Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:18162/25.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/09/2025
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA A PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NOTIFICAÇÃO DA RESPOSTA AO REQUERENTE
Sumário:I - Tendo sido a inexistência de procedimento administrativo – deduzida da falta de formalização de pedido junto da entidade requerida, invocada na resposta por esta apresentada – que constituiu o fundamento da decisão de improcedência da intimação para a prestação de informações, impunha-se, por força da aplicação do princípio do contraditório, que o requerente tivesse sido notificado da resposta da entidade requerida e para, querendo, se pronunciar sobre aquele fundamento.
II - Embora a lei processual não preveja a notificação da resposta da entidade requerida ao requerente da intimação para a prestação de informações, o princípio do contraditório a tal obriga, ao estipular que não é lícito ao juiz “decidir questões de direito ou de facto (…) sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”, sob pena de ser proferida uma decisão surpresa, ainda mais quando, como no caso em apreço, a decisão assentou precisamente em questão suscitada na resposta da entidade requerida.
III - No mesmo sentido, milita também o princípio da igualdade das partes, ao atribuir a cada uma delas os direitos de conhecer as posições assumidas pela outra e de se pronunciar sobre elas.
IV - Tendo sido omitida tal notificação, foi violado o princípio do contraditório quanto à questão que veio a determinar o desfecho da acção, constituindo, por isso, a sentença recorrida uma decisão surpresa, e integrando tal violação uma nulidade processual, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, por ser susceptível de influir «no exame ou na decisão da causa».
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

T… intentou intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, contra AIMA I.P. AGÊNCIA PARA A INTEGRAÇÃO, MIGRAÇÕES E ASILO. Pede que “(…) Seja a autoridade Requerida AIMA intimada a revelar o estado do processo, e bem assim revelar de que forma pode juntar ao processo os documentos em falta para a emissão da Autorização de Residência para investimento, visto que o sistema informático não o permite.”
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a julgar improcedente o pedido.
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“I - O Requerente requereu Autorização de Residência para Investimento, em 12 de Agosto de 2022.
II - O ora requerente apresentou a sua candidatura à Autorização de Residência para Investimento tendo-lhe sido atribuído o nº de processo 01281/ARI/010/22.
III - Sucede porém que, apenas conseguiu obter o documento declaração bancária em Abril de 2024, por motivos que são alheios ao requerente e que resultaram exclusivamente do funcionamento do Banco.
IV - Contudo, nessa data já não conseguiu fazer a respectiva junção na plataforma de forma a completar a submissão de documentos.
V - O requerente contactou os Serviços em várias ocasiões no sentido de saber como pode realizar a junção dos demais documentos e bem assim da declaração bancária.
VI - Assim sendo, veio em Fevereiro de 2025, uma vez mais, reiterar o requerido, ou seja requerer a prestação de informações relativamente ao estado do processo particularmente vem solicitar informações de como pode submeter os documentos em falta e se conclua o procedimento de concessão de Autorização de Residência.
VII - Contudo, até à data não recebeu o ora Autor, a informação solicitada relativa ao estado do processo e bem assim à informação de como proceder à junção dos documentos em falta para conclusão do processo.
VIII - E assim requereu a condenação da requerida na prestação das informações requeridas.
IX - A entidade requerida apresentou resposta, na qual alega que não foi formalizado qualquer pedido por parte do Requerente, na medida em que este efetuou o registo no portal, mas não finalizou a apresentação do requerimento, pelo que o seu estado é o de “registo criado”, concluindo, assim, que não existe objeto para o presente meio processual.
X - Veio depois a ser proferida sentença que considerou que: como a própria designação expressamente enuncia, o objeto desta intimação consiste na prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões.
XI - Resultou provado que o requerimento, apesar de ter sido preenchido (criado), não foi submetido (cf. alínea A), do probatório) o que significa que não foi iniciado o procedimento administrativo.
XII - Contudo, como foi referido na petição inicial, o requerente alegou ter apresentado requerimento de autorização de residência para investimento em 12 de Agosto de 2022. A entidade requerida veio alegar que não foi apresentado qualquer requerimento.
XIII - Por seu lado a sentença, sem que haja notificado as partes para se pronunciarem sobre esta questão, em despacho saneador considerou que em 12 de agosto de 2022, o Requerente preencheu o formulário relativo a candidatura de autorização de residência para investimento, do qual Página 2 de 7 constam as seguintes menções: “Situação do Requerimento: Registo Criado” e “Não é possível concluir a candidatura porque o tipo de investimento já não está disponível” (cf. documento junto pelo Requerente, a fls. 7 s., no SITAF).
XIV - Todavia a douta enferma de nulidade e viola princípios basilares do regime jurídico aplicável.
XVI - Em qualquer caso, nunca poderia o Tribunal a quo, sem convidar ao exercício do contraditório, julgar “provado que o Recorrente não apresentou requerimento de autorização de residência, permitindo-lhe apresentar a sua defesa contra a Decisão surpresa que acabou por proferir!
XVII - Vindo a considerar que não se iniciou o procedimento administrativo, e que por essa razão a requerida não tinha iniciado o procedimento administrativo e por essa via a requerida não tinha obrigação de responder e prestar informações por não ter sido submetido o requerimento de autorização de residência
XVIII - O que, com o devido respeito não resultou provado nem da posição das partes nem dos documentos apresentados,
XIX - Pelo que, o Autor, considera que apresentou o requerimento de autorização de residência não tendo contudo conseguido juntar todos os documentos. Justamente porque o sitío de internet não o permite.
XX - Assim sendo, salvo o devido respeito, a sentença ao decidir como decidiu sem convidar a parte, ora recorrente, a pronunciar-se sobre a existência ou inexistência de procedimento administrativo, enfermou de violação do princípio do contraditório,
XXI - Uma vez que deveria ter apurado da existência de um procedimento administrativo e bem assim admitir prova nesse sentido, e bem assim convidar as partes a pronunciarem-se sobre tal questão. E assim a Sentença recorrida está ferida de nulidade, que expressamente se arguiu para todos os efeitos legais!
XXII - Resulta claro quem ao contrário do que referiu a sentença a quo, a apresentação de um requerimento de autorização de residência faz-se justamente pela criação de um registo no sítio de internet do SEF e agora AIMA.
XXIII - Assim sendo, nos termos do artigo 54º do CPA, iniciou-se um procedimento administrativo por iniciativa do interessado, ora recorrente. Que apresentou o seu requerimento e submeteu documentos de instrução.
XXIV - Tendo-lhe sido atribuído o número de processo 01281/ARI/010/22, como se constata pela análise cuidada do documento nº1. Aliás deste documento resulta evidente que este refere Candidatura de autorização de residência para investimento.
XXV - Pelo que, salvo o devido respeito, o ora recorrente apresentou um requerimento, e encontra-se a correr termos um procedimento administrativo aliás titulado por um número de processo.
XXVI - Embora não tenha conseguido submeter todos os documentos instrutórios no sítio de internet. Sem que contudo, haja sido excluído legalmente do âmbito de aplicação da autorização de residência para investimento.
XXVII - Ou seja, o requerente não consegue completar o requerimento por o sítio de internet não o permitir, E não porque já não tenha direito de concluir a sua candidatura.
XXVIII - E assim deve a entidade requerida ser condenada a prestar informação, de que forma pode o requerente apresentar o documento em falta de forma a poder concluir a sua candidatura a Autorização de Residência nos termos legais.”
A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se pela improcedência do recurso.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), importa apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

Face às conclusões das alegações de recurso – que delimitam o respectivo objecto, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC -, as questões que ao Tribunal cumpre solucionar são as de saber:
a) Se ocorre nulidade processual em virtude de a sentença recorrida não ter sido antecedida de contraditório;
b) Se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Considerando que não foi impugnada, nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto, remete-se para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria, nos termos do n.º 6 do artigo 663.º do CPC.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A. Da nulidade processual

Alega o recorrente que, em violação do princípio do contraditório, a sentença não foi precedida de notificação das partes para se pronunciarem sobre a existência ou inexistência de procedimento administrativo, tendo concluído que não se iniciou o procedimento administrativo e que, por essa razão, a requerida não tinha obrigação de prestar informações, o que constitui decisão-surpresa.
Vejamos.
Sobre as nulidades processuais, o n.º 1 do artigo 195.º do CPC consagra a regra geral de que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Assim, para que estejamos perante uma nulidade processual, é necessário, não só (i) que ocorra a prática de um acto que a lei não admita ou que haja omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, mas também (ii) que a lei o declare ou que a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Relativamente à audição das partes, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Acerca do âmbito do princípio do contraditório, cumpre, por se mostrar pertinente, citar a seguinte passagem do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.02.2013, proferido no processo 0787/12 (in www.dgsi.pt): “Num processo de estrutura dialéctica, o direito ao contraditório, como decorrência do princípio da igualdade das partes, é um direito que se atribui à parte de conhecer as condutas assumidas pela contraparte, de tomar posição sobre elas e de ser ouvida antes de ser proferida qualquer decisão. A essência do princípio do contraditório está pois no facto de cada parte processual ser chamada a apresentar as respectivas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas ou a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras. E por isso, a relevância do direito à audiência prévia e do direito de resposta dá-se sobretudo quando o seu exercício representa a garantia de uma parte relativamente à conduta processual da contraparte. Mas, o âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 3º parece incluir também o contraditório relativamente a “decisões-surpresa”, com que as partes não podiam contar, por não terem sido objecto de discussão no processo. Nesses casos, para que a parte não seja confrontada e atingida como uma decisão inesperada, impõe-se garantir o contraditório. Razões ligadas à boa administração da justiça e à justa composição do litígio justificam que também nesses casos a contraditoriedade se efective.”
Como ensina Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, pp. 92 e 93), “A violação do princípio do contraditório integra nulidade processual sujeita, como tal, ao regime geral das nulidades contempladas no n.º 1 do art. 195.º; e isto porque a sua inobservância é suscetível de influir «no exame ou na decisão da causa».
Tendo o requerente peticionado a intimação da entidade requerida a prestar informação sobre o estado do procedimento para concessão de autorização de residência bem como sobre a forma pela qual o mesmo poderia juntar ao procedimento os documentos em falta, a sentença recorrida concluiu que não se impõe a prestação de informação em virtude de não ter sido iniciado procedimento administrativo, dado que, embora o requerimento tenha sido preenchido e criado pelo requerente, não foi o mesmo submetido.
Esta falta de submissão do requerimento e a consequente inexistência do procedimento administrativo haviam sido alegadas pela entidade requerida na resposta que apresentou ao pedido de intimação. Sucede que, compulsada a tramitação dos presentes autos, se constata que, não só o requerente da intimação não foi notificado para se pronunciar sobre a inexistência de procedimento administrativo, como nem sequer foi notificado da resposta apresentada pela entidade requerida.
Ora, tendo sido precisamente a inexistência de procedimento administrativo – deduzida da falta de formalização de pedido junto da entidade requerida, invocada na resposta por esta apresentada – que constituiu o fundamento da decisão de improcedência da presente intimação, impunha-se, por força da aplicação do princípio do contraditório, que o requerente tivesse sido notificado da resposta da entidade requerida e para, querendo, se pronunciar sobre aquele fundamento.
É certo que a lei processual não prevê a notificação da resposta da entidade requerida ao requerente da intimação para a prestação de informações. Todavia, o princípio do contraditório a tal obriga, ao estipular que não é lícito ao juiz “decidir questões de direito ou de facto (…) sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”, sob pena de ser proferida uma decisão surpresa, inesperada; ainda mais quando, como no caso em apreço, a decisão assentou precisamente em questão suscitada na resposta da entidade requerida. No mesmo sentido, milita também o princípio da igualdade das partes, ao atribuir a cada uma delas os direitos de conhecer as posições assumidas pela outra e de se pronunciar sobre elas.
Tendo sido omitida tal notificação, foi violado o princípio do contraditório quanto à questão que veio a determinar o desfecho da acção, constituindo, por isso, a sentença recorrida uma decisão surpresa, e integrando tal violação uma nulidade processual, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 195.º do CPC, por ser susceptível de influir «no exame ou na decisão da causa».
Ante o exposto, concedendo provimento ao recurso, impõe-se a anulação da sentença recorrida e, com vista ao suprimento da nulidade processual, determinar que o Tribunal a quo profira o despacho omitido, de notificação da resposta da entidade requerida ao requerente e para o mesmo, querendo, se pronunciar sobre a questão ali suscitada, seguindo-se os ulteriores termos processuais, ficando prejudicado o conhecimento do invocado erro de julgamento.
*
Por não haver vencimento nem proveito, nos termos do n.º 1 do artigo 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, e considerando que a presente decisão não é a decisão definitiva do processo – prosseguindo o mesmo termos com a baixa dos autos à 1.ª instância -, será a parte vencida a final a responsável pelas custas – neste sentido, seguindo o entendimento adoptado no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 16.12.2015, proferido no processo n.º 12356/15, in www.dgsi.pt.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e, com vista ao suprimento da nulidade processual, determinar que o Tribunal a quo profira o despacho omitido, de notificação da resposta da entidade requerida ao requerente e para o mesmo, querendo, se pronunciar sobre a questão ali suscitada, seguindo-se os ulteriores termos processuais.


Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 09 de Outubro de 2025

Joana Costa e Nora (Relatora)
Mara de Magalhães Silveira
Ricardo Ferreira Leite