Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2019/23.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/09/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:PROTECÇÃO INTERNACIONAL;
INADMISSIBILIDADE;
TOMADA A CARGO POR ESTADO-MEMBRO;
INEXISTÊNCIA DE FALHAS SISTÉMICAS
Sumário:I - As autoridades portuguesas, detectando que um requerente de protecção internacional já formulou um pedido cronologicamente antecedente noutro Estado-Membro, que até já aceitou a tomada ou retoma a cargo desse cidadão estrangeiro, emitem decisão de inadmissibilidade desse mesmo pedido em Portugal, por ser competente para a análise concreta dessa solicitação o Estado-Membro de primeiro registo ou acerto no sistema EURODAC, nos termos conjugados dos artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 37.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, e dos artigos 3.º, n.º 1, e 7.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013.
II - Por consequência, passa a ser o Estado-Membro de tomada ou retoma a cargo o competente para sindicar as concretas razões alegadas pelo requerente de protecção, nomeadamente, as que tenham a ver com as condições sociais, políticas ou de segurança em vigor no país de origem do solicitante de protecção internacional.

III - Só assim não procederá o Estado português se, no concreto e ante os factos alegados pelo requerente de protecção internacional, considerar que existem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente no Estado-Membro de destino da tomada ou retoma a cargo, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, conforme o preceituado no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013.

IV - No caso em apreço, vendo-se que inexistem motivos válidos para conjecturar quaisquer falhas sistémicas no sistema francês de asilo e nas condições de acolhimento, que impliquem risco de tratamento desumano ou degradante, nada impede a decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrente, nem a sua tomada ou retoma a cargo pela República Francesa.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão
Acordam, em conferência, na Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - Relatório.

M..., cidadão da República dos Camarões, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) deduziu impugnação judicial contra a ora Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), doravante Recorrida, com vista à impugnação do despacho do Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de 22/05/2023, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo ora Recorrente, inconformado que se mostra com a sentença do TACL, de 06/12/2023, que julgou improcedente a impugnação, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):

1. O Recorrente alegou e demonstrou indiciariamente, com as limitações geradas pelo próprio contexto em que decorreram os factos sobre a actividade probatória, para efeitos da previsão do art. 3.º, e do art. 5.º, n.ºs 1 e 4, ambos da Lei n.º 27/2008, inequivocamente:

(i) encontra-se fora do país da sua nacionalidade;

(ii) apresentou um receio fundado vir a ser deportado para os Camarões e de sofrer perseguição e tratamento desumano neste país;

(iii) foi perseguido;

e (iv) não pode beneficiar (por razões óbvias) da protecção do Estado da sua nacionalidade.

2. Verificam-se, portanto, todos os requisitos de que depende a concessão de protecção subsidiária.

3. Por outro lado, o tribunal a quo reconhecendo abstractamente possível a aplicação da previsão do art. 7.º, da Lei n.º 27/2008, sustentou não ser possível apreciar a causa suscitada, com fundamento num argumento formal-legal, considerando estar demonstrado preenchimento da norma daquele artigo no presente caso, rejeitando apreciar o recurso e absolvendo da instância o R. nos termos do artigo 89.º, n.os 2 e 4, alíneas i) e k), do CPTA.

4. Existem elementos nos autos e fora deles que põem em causa, de forma objectiva a asserção retirada pelo tribunal a quo e impõem outra interpretação da lei, apoiada na indispensável osmose da realidade notória que vivemos e ninguém, muito menos um tribunal enquanto bastião da salvaguarda do Estado de Direito e dos direitos liberdades e garantias fundamentais pode recusar, e a credibilidade do Recorrente não pode igualmente ser posta em causa, sem apoio em quaisquer factos ou elementos contrários, como não existem.

5. Caso tivesse sido respeitado o acervo normativo acima citado, incluindo o ponto 204, do Manual de Procedimentos do ACNUR, o processo não teria sido liminarmente indeferido e teria sido admitido para a segunda fase, nela se procedendo à adequada instrução dos autos que permitiria a averiguação mais aprofundada dos factos alegados pelo Recorrente, com vista à decisão final sobre o seu pedido.

6. Ao não entender assim, o douto acórdão recorrido viola o disposto nos art.º s 7.º, n.º 2, e art. 5.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 27/2008, devendo por isso ser revogado e substituído por outra decisão que salvaguarde os direitos legalmente consagrados na lei para o recorrente e outras pessoas em condições idênticas às do recorrente e a atribuição de residência provisória até à decisão final sobre a pretensão do Recorrente, após a instrução e sem prejuízo da liberdade de decisão a final sobre a matéria.

A Recorrida não contra-alegou.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.

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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida, ao julgar improcedente a impugnação judicial, enferma, ou não, de erro de julgamento, impondo-se para tal desiderato a sindicância sobre o acerto ou desacerto do quadro legal interpretado e aplicado pelo Tribunal a quo, sobretudo, sobre o artigo 19.º-A, n.º 1, alínea a), e n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, diploma legal que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, e sobre o artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2013 (doravante apenas o Regulamento n.º 604/2013), que institui os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.
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III - Matéria de facto.
Considerando que a matéria de facto fixada na sentença recorrida não foi impugnada, nem há lugar a qualquer alteração, remetemos para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu, conforme o disposto no n.º 6 do artigo 663.º do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
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IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito da sentença recorrida, transcrevendo-se os seguintes excertos, por serem aqueles que, de modo mais relevante, interessam à decisão do presente recurso:
Já o Artigo 19º-A, nº 1, a) do mesmo diploma legal refere que, o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que “Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, previsto no capítulo IV”.
Estabelece, por seu turno, o nº 2 da norma em apreço que nas situações em que o pedido é considerado inadmissível, “prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de protecção internacional”.
(…)
Nesta conformidade, dispõe o Artigo 37º, nº 1, do mencionado diploma legal, o seguinte: “Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respectivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo.”.
(…)
Preceitua o Artigo 3º, do citado Regulamento, sob a epígrafe “Acesso ao procedimento de análise de um pedido de protecção internacional” o seguinte:
“1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de protecção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.
2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de protecção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado. Caso seja impossível transferir um requerente para o EstadoMembro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável. Caso não possa efectuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um EstadoMembro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável. (…)”. (sublinhado nosso)
(…)
Do quadro normativo supra exposto resulta que, nas situações em que o Estado Português considere – em aplicação dos critérios previstos no Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho – que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado-Membro, incumbia ao SEF dar início ao procedimento especial regulado nos Artigos 36º e seguintes da Lei de Asilo, e caso verifique que o requerente efetuou em data anterior pedido idêntico junto de outro Estado-Membro, titular da competência, pode requerer a esse Estado a retoma a cargo do requerente de proteção internacional.
Compulsado o probatório constata-se que, previamente ao pedido de proteção internacional formulado em Portugal, o requerente já pediu 2 pedidos de proteção internacional, o primeiro deles em Itália e posteriormente em França (cf. ponto 3 do probatório), sendo certo, está provado, tal foi confirmado pelo próprio requerente, aquando do seu auto de declarações.
O SEF inicialmente pensava que a Itália era o Estado-Membro responsável pelo pedido, porém este esclareceu que seria a França, pelo que, perante aquela resposta de Itália e ao ter verificado, ao abrigo do Regulamento (EU) n.º 604/2013, concluiu que a França era o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional desencadeado pelo requerente e, como tal, solicitou a retoma a cargo deste às autoridades francesas, que não a rejeitando, a aceitaram (cf. pontos 6, 7 e 11 do probatório).
Razão pela qual, o pedido de proteção internacional apresentado em Portugal foi considerado inadmissível, nos termos do Artigo 19.º -A, n.º 1 alínea a) e artigo 37º, nº2 da Lei do Asilo.
Em face dos factos apurados, conclui este Tribunal que a decisão da Entidade Demandada não merece censura.
Com efeito, e conforme já se deu nota supra, o Regulamento (UE) n.º 604/2013 estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num Estado-Membro por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida. Sendo que, de acordo com o Artigo 3.º, os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional por nacionais de países terceiros ou apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Porém, os pedidos serão analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que, de acordo com os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento, designarem como responsável.
Assim, tendo o requerente formulado um novo pedido de proteção internacional junto das autoridades nacionais, o Estado Português, considerando que a responsabilidade pela análise do referido pedido pertence a outro Estado-Membro, não procedeu à sua apreciação, tendo dado início ao procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, em conformidade com o disposto nos Artigos 36.º e seguintes da Lei do Asilo.
Nesta sequência, a Entidade Demandada proferiu a decisão objeto da pretensão impugnatória do requerente, no sentido da inadmissibilidade do pedido por si apresentado e da sua transferência para França, ao abrigo dos Artigos 19º-A, nº 1, al. a) e 37º, nº 2, da Lei de Asilo.
Caso em que, em conformidade com o disposto no Artigo 19º-A, n.º 2, daquele diploma legal, se prescinde da análise das condições de que depende a concessão do estatuto de beneficiário de proteção internacional.
Por outro lado, estabelece o Artigo 3º, nº 2, do Regulamento nº 604/2013, que “Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.” (sublinhado nosso)
Sendo que, em derrogação do Artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento – cf. Artigo 17º, nº 1, do Regulamento.
(…)
E não poderia ser de outra forma, sob pena de o Sistema Europeu Comum de Asilo se tornar num “Asylum Shopping”, em que o requerente de asilo apresenta pedidos de proteção internacional em mais do que um Estadomembro ou escolhe o Estado-Membro onde pretende ver o seu pedido apreciado em detrimento de outros, com o fundamento nas condições de receção ou de assistência social que cada Estado-Membro tem para oferecer [optando pelo Estado-Membro que ofereça melhores condições]. Não é este, o escopo da concessão de proteção internacional às pessoas que, legitimamente procurem a proteção da União.
(…)
No caso dos autos, e atenta a factualidade provada, inexistem sequer indícios da existência de razões sérias para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos Requerente de proteção internacional em França, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nos termos e na aceção acolhida pelo TJUE e à qual se faz referência supra.
Veja-se que nas suas declarações nada é concretizado ou demonstrado, mormente quanto ao mau tratamento e eventuais más condições a que esteve sujeito durante o período de permanência em França e Itália, resultando antes que, o requerente já esgotou todas as vias, graciosas e contenciosas, de apreciação do seu pedido, ao que acresce uma manifestação clara por parte do requerente, que o seu pedido de asilo, é apenas um meio para a atingir um fim, isto é, cumprir o objetivo de ficar na Europa, repare-se que o próprio afirma nas suas declarações que tanto em Itália como em França o seu pedido foi recusado, ainda recorreu duas vezes aos tribunais mas o pedido de asilo foi recusado, sendo que em Itália teve apoio no alojamento, na alimentação, no acesso à saúde e davam-lhe tabaco para vender e podia ficar com o dinheiro e, em França tinha um cartão com dinheiro só para as refeições.
Por outro lado, do relato do requerente, das informações constantes do processo administrativo ou da petição inicial, não resulta que as autoridades francesas sejam completamente alheias ou indiferentes às condições dos requerentes de proteção internacional, ao ponto de culminarem, em concreto Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa Juízo Administrativo Comum 25 de 26 para o requerente, numa situação de privação material extrema, que não lhe permitisse fazer sequer face às suas necessidades mais básicas, termos em que, nada sido invocado nesse sentido pelo requerente, em sede de declarações, junto do SEF, não sendo exigível ao SEF que se pronunciasse sobre qualquer informação fidedigna e atualizada sobre o procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção em Itália, bem como de França.
Assim, não resultando quaisquer elementos do processo administrativo, mormente das declarações prestadas pelo próprio requerente, que indicassem ou indiciassem a existência de motivos válidos que levassem a Entidade Demandada a crer que existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em França ou Itália, que implicassem o risco de o requerente vir a sofrer um tratamento desumano ou degradante [nas aceções supra referidas], nada mais lhe era exigido, a não ser decidir pela inadmissibilidade do pedido e, por conseguinte pela formulação do pedido de retoma a carga à Itália. [Veja-se nesse sentido decisão recente do TCAS no âmbito do processo n.º 1353/18.0BELSB, de 10 de Janeiro de 2019].
Note-se que, não está causa qualquer situação de doença ou qualquer outro fundamento que o requerente invoque para que não se efetue a retoma a cargo (como sucede factualmente no recentíssimo acórdão, do TCA SUL, Proc. 1982/18.1BELSB, de 22-08-2019).
Concluindo-se, pois, que andou bem a Entidade Demandada, não se verificando os alegados vícios imputados ao ato impugnado, o qual será de manter.
Para mais, não é alegado em concreto, a invocação de qualquer vício, quanto ao deficit instrutório, sendo certo que o dever de fundamentação não encerra o dever de percorrer todos os caminhos possíveis e imaginários que qualquer ato administrativo poderá abrir no âmbito da sua fundamentação, nem mesmo esgrimir todo e qualquer argumento, mormente aqueles que não são sequer invocados pelo interessado no âmbito do procedimento.
Face a todo o exposto, verifica-se que não estão reunidos os pressupostos legais para que o pedido de proteção internacional formulado pelo requerente possa ser apreciado por Portugal, como decidiu a entidade intimada, não cabendo, pois, às autoridades portuguesas, proferir decisão de mérito acerca desse pedido, por ser entidade responsável o Estado Francês, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, al. b) do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho.
*
Desde já adiantamos que a decisão recorrida, por dela provir um julgamento de direito acertado, será integralmente confirmada.
Vejamos as razões, cujo fio condutor analítico não poderá deixar de ser o âmbito estrito das conclusões recursivas do Recorrente.
O Recorrente começa logo por dizer nas suas conclusões de recurso que alegou e demonstrou indiciariamente, com as limitações geradas pelo próprio contexto em que decorreram os factos sobre a actividade probatória, para efeitos da previsão do art. 3.º, e do art. 5.º, n.ºs 1 e 4, ambos da Lei n.º 27/2008, inequivocamente:
(i) encontra-se fora do país da sua nacionalidade;

(ii) apresentou um receio fundado vir a ser deportado para os Camarões e de sofrer perseguição e tratamento desumano neste país;

(iii) foi perseguido;

e (iv) não pode beneficiar (por razões óbvias) da protecção do Estado da sua nacionalidade.

2. Verificam-se, portanto, todos os requisitos de que depende a concessão de protecção subsidiária.”

Como se constata, o Recorrente remete-nos para a hipótese de vir a ser decidida a sua deportação para a República dos Camarões, o seu país de origem, e de, uma vez aí, poder ser perseguido e ser sujeito a tratamento desumano, temendo não poder ser protegido pelas autoridades do seu país natal.

Ora bem, o argumento em causa não tem a virtualidade de abalar o mérito da sentença recorrida, posto que, logo à partida, o acto administrativo impugnado em parte alguma determinou a deportação do ora Recorrente para o seu país de origem.

O sentido da decisão impugnada foi apenas o de, face ao quadro legal em vigor, considerar inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo Recorrente, por ser a República Francesa, país que já contava com um registo/acerto prévio no sistema EURODAC de um pedido de protecção igualmente apresentado pelo ora Recorrente, o competente para a análise desse pedido, nos termos do artigo 19.º-A, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27/2008, de 30/06, que prescreve o seguinte: 1 - O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que:

a) Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV” (destaques nossos).

As autoridades portuguesas limitaram-se a aplicar o disposto no artigo 37.º, n.º 1, da citada Lei, que determina o seguinte: “Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado-Membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, a AIMA, I. P., solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo (destaques nossos).

Foi precisamente o que ocorreu no caso vertente, impondo-se à entidade recorrida a solicitação de tomada ou retoma a cargo do ora Recorrente às autoridades francesas, às quais compete a análise concreta dos alegados motivos para o pedido de protecção internacional, conforme dimana do artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento n.º 604/2013, que preceitua o seguinte: Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável” (destaques nossos).

É a França o país responsável pela apreciação do pedido de protecção internacional do ora Recorrente, porquanto, como atrás dissemos, foi nesse país que, face aos registos do sistema EURODAC, o Recorrente primeiramente apresentou um pedido de tal ordem, o que se mostra conforme ao disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013, inserto no capítulo III, que estabelece os critérios de determinação do Estado-Membro responsável, do qual resulta o seguinte: “A determinação do Estado-Membro responsável em aplicação dos critérios enunciados no presente capítulo é efetuada com base na situação existente no momento em que o requerente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado-Membro (destaques nossos).

E compreende-se que assim seja, posto que, a tal critério cronológico presidem razões de certeza e segurança jurídicas, evitando-se, assim, a duplicação de decisões ou decisões díspares sobre o mesmo caso concreto, tal como, impede que o sistema europeu comum de asilo se torne num “Asylum Shopping”, em que o requerente de asilo apresenta pedidos de proteção internacional em mais do que um Estado-membro ou escolhe o Estado-Membro onde pretende ver o seu pedido apreciado em detrimento de outros, com o fundamento nas condições de receção ou de assistência social que cada Estado-Membro tem para oferecer [optando pelo Estado-Membro que ofereça melhores condições]. Não é este, o escopo da concessão de proteção internacional às pessoas que, legitimamente procurem a proteção da União”, como assertivamente referiu a sentença recorrida.

Ao acima dito soma-se que, considerado inadmissível o pedido de protecção internacional, sobre as autoridades portuguesas deixou de impender qualquer obrigação de análise sobre as concretas razões invocadas pelo ora Recorrente no seu pedido de protecção, nomeadamente, os alegados receios de perseguição ou a aduzida falta de condições de segurança na República dos Camarões, já que, a apreciação de tais motivos passaram a ser da competência das autoridades francesas, responsáveis, segundo o direito nacional e europeu atrás enunciado, pela tomada ou retoma a cargo do Recorrente. Assim rege o artigo 19.º-A, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, que estipula o seguinte: Nos casos previstos no número anterior, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.” (destaques nossos).

Portanto, assim tendo sido apreciado e decidido pela sentença recorrida, nenhum erro de julgamento se lhe pode apontar até ao presente momento, impondo-se dizer que, ao contrário das conclusões recursivas ora sindicadas, o Tribunal a quo não tinha qualquer fundamento para anular o acto administrativo impugnado, nem para condenar a Recorrida na pretensão material de concessão da protecção internacional almejada pelo ora Recorrente, pois que, como vimos, mostra-se de acordo com a legalidade aplicável a decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção e de considerar a França como o Estado-Membro responsável pela tomada ou retoma a cargo do ora Recorrente.

Prosseguindo, só assim não aconteceria, isto é, não se admitiria a tomada ou retoma a cargo do Recorrente pelo estado francês se, no concreto, se verificasse o panorama descrito no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013, que prevê o seguinte: “Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.” (destaques nossos).

Neste conspecto, e retornando ao caso concreto, só podemos secundar o acerto com que apreciou tal matéria a sentença recorrida, destacando-se o seguinte excerto: Sendo que, em derrogação do Artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento – cf. Artigo 17º, n.º 1, do Regulamento.

Donde resulta que, nas situações em que por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, a Entidade Demandada poderia: i) prosseguir com a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável para a decisão do pedido formulado; ii) avocar para si, em derrogação do Artigo 3.º e dos próprios critérios estabelecidos no Capítulo III, a competência para conhecer dos pressupostos de concessão do pedido de asilo formulado.

Porém, tal atuação pressupõe que, previamente existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante. Sendo que, e como explicita o TJUE, “O artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que: - mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.º 604/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na acepção desse artigo (…).” (sublinhado nosso) – cfr. acórdão do Tribunal de Justiça de 16/02/2017, proferido no proc. nº C-578/16 PPU

Pois bem, a derrogação da norma que dita a tomada ou retoma a cargo do Recorrente pela República Francesa só pode acontecer se, no caso concreto, existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, atento o já enunciado artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013.

Ora, o Recorrente simplesmente alude nas suas conclusões recursivas que “Existem elementos nos autos e fora deles que põem em causa, de forma objectiva a asserção retirada pelo tribunal a quo e impõem outra interpretação da lei, apoiada na indispensável osmose da realidade notória que vivemos e ninguém, muito menos um tribunal enquanto bastião da salvaguarda do Estado de Direito e dos direitos liberdades e garantias fundamentais pode recusar, e a credibilidade do Recorrente não pode igualmente ser posta em causa, sem apoio em quaisquer factos ou elementos contrários, como não existem.”

Como facilmente se constata, trata-se de uma conclusão recursiva vaga e imprecisa, dela não se logrando extrair qualquer elemento que nos aponte com um mínimo de clareza e segurança quais os motivos válidos, assentes em factos devidamente circunstanciados e densificados, que nos possam levar a crer que existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção em solo francês, que impliquem nesse Estado-Membro o risco de tratamento desumano ou degradante.

Aliás, o que se passa é o contrário do que indicia o Recorrente, ou seja, não tendo o Recorrente conseguido explanar nas suas conclusões de recurso motivos válidos para a derrogação da norma que o levará a ser tomado ou retomado a cargo pelo estado francês, temos por certo que é a sentença recorrida a sustentar devidamente a falta desses motivos e, como tal, a inexorável transferência do Recorrente para a República Francesa.

É o que dimana do seguinte excerto da decisão recorrida: No caso dos autos, e atenta a factualidade provada, inexistem sequer indícios da existência de razões sérias para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos Requerente de proteção internacional em França, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nos termos e na aceção acolhida pelo TJUE e à qual se faz referência supra.

Veja-se que nas suas declarações nada é concretizado ou demonstrado, mormente quanto ao mau tratamento e eventuais más condições a que esteve sujeito durante o período de permanência em França e Itália, resultando antes que, o requerente já esgotou todas as vias, graciosas e contenciosas, de apreciação do seu pedido, ao que acresce uma manifestação clara por parte do requerente, que o seu pedido de asilo, é apenas um meio para a atingir um fim, isto é, cumprir o objetivo de ficar na Europa, repare-se que o próprio afirma nas suas declarações que tanto em Itália como em França o seu pedido foi recusado, ainda recorreu duas vezes aos tribunais mas o pedido de asilo foi recusado, sendo que em Itália teve apoio no alojamento, na alimentação, no acesso à saúde e davam-lhe tabaco para vender e podia ficar com o dinheiro e, em França tinha um cartão com dinheiro só para as refeições.

Por outro lado, do relato do requerente, das informações constantes do processo administrativo ou da petição inicial, não resulta que as autoridades francesas sejam completamente alheias ou indiferentes às condições dos requerentes de proteção internacional, ao ponto de culminarem, em concreto para o requerente, numa situação de privação material extrema, que não lhe permitisse fazer sequer face às suas necessidades mais básicas, termos em que, nada sido invocado nesse sentido pelo requerente, em sede de declarações, junto do SEF, não sendo exigível ao SEF que se pronunciasse sobre qualquer informação fidedigna e atualizada sobre o procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção em Itália, bem como de França.

Assim, não resultando quaisquer elementos do processo administrativo, mormente das declarações prestadas pelo próprio requerente, que indicassem ou indiciassem a existência de motivos válidos que levassem a Entidade Demandada a crer que existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em França ou Itália, que implicassem o risco de o requerente vir a sofrer um tratamento desumano ou degradante [nas aceções supra referidas], nada mais lhe era exigido, a não ser decidir pela inadmissibilidade do pedido e, por conseguinte pela formulação do pedido de retoma a carga à Itália. [Veja-se nesse sentido decisão recente do TCAS no âmbito do processo n.º 1353/18.0BELSB, de 10 de Janeiro de 2019].– (sublinhados nossos).

A propósito da presente temática, chamamos à colação o acórdão do STA, de 24/11/2022, proferido no processo sob o n.º 0269/22.0BELSB, consultável em www.dgsi.pt, que fez constar do seu sumário o seguinte posicionamento: “O SEF não se encontra obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando não existam indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III”.

Do mesmo acórdão consta ainda o seguinte entendimento, que aqui igualmente sufragamos: E, também, não podemos esquecer que a França, como Estado-Membro da União Europeia, está sujeita às obrigações decorrentes da aplicação da legislação europeia, nomeadamente em matéria de procedimento de asilo (Regulamento Dublin III), de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (Diretiva 2013/33/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2013), e aos órgãos da própria União Europeia.

Pelo que, inexistindo indícios concretos de falhas sistémicas nos procedimentos de asilo em França, não se impõe obrigar o SEF a averiguar acerca das condições no procedimento de asilo no país de acolhimento, procedendo a diligências instrutórias de averiguação sobre eventuais falhas do sistema francês na apreciação dos pedidos de proteção internacional ou nas condições de acolhimento dos requerentes.

Não estamos, pois, perante uma situação donde, da inadmissibilidade do pedido de proteção em Portugal do aqui recorrente, possa decorrer a sua transferência para outro Estado-Membro que o vá colocar numa situação equiparada a “tratos desumanos ou degradantes”.

E, por isso, não se impõe ao SEF qualquer averiguação oficiosa sobre o funcionamento do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nesse Estado-membro da União Europeia.

No mesmo sentido existe já abundante jurisprudência deste TCAS, que de modo uniforme vem decidindo questões em tudo semelhantes à do presente recurso, destacando-se, entre outros, os acórdãos proferidos nos seguintes processos: n.º 1476/22.0BELSB, de 23/03/2023; n.º 3842/22.2BELSB, de 11/05/2023; n.º 48/23.7BELSB, de 11/05/2023; e 2415/23.7BELSB, de 12/12/2023, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Deste modo, nesta parte, nenhum erro de julgamento se descortina na apreciação do Tribunal a quo, supra transcrita, que merece a nossa inteira aprovação.
Por fim, o Recorrente foca nas suas conclusões recursivas o ponto 204 do Manual de Procedimentos do ACNUR, concluindo que a consideração dessa recomendação, que apela à concessão do benefício da dúvida ao solicitante de protecção, não teria levado ao indeferimento liminar do seu pedido, mas antes à admissão da sua solicitação para a segunda fase, nela se procedendo à adequada instrução.
Em primeiro lugar, o Recorrente só arguiu pela primeira vez a questão supra em sede de alegações de recurso. Isto leva-nos a considerar, com efeito, que nenhuma omissão de pronúncia ou erro de julgamento se pode sequer assacar à sentença recorrida por não ter ponderado tal matéria (do benefício da dúvida sobre as declarações do Recorrente), pois tal dilucidação, na falta de expressa alegação em sede da p.i., era inexigível ao Tribunal a quo.
Em segundo lugar, sobre o pedido de protecção internacional apresentado pelo ora Recorrente não incidiu, por parte da entidade recorrida, qualquer apreciação ou decisão de fundo sobre a pretensão material (de deferimento ou de indeferimento), isto é, o acto impugnado não apreciou o bem ou mal fundado dessa pretensão, porquanto, como vimos, limitou-se, segundo o enquadramento legal aplicável, a considerar tal pedido inadmissível e a remetê-lo para a apreciação de outro Estado-Membro.
Em terceiro lugar, em coerência com o atrás exposto, não competindo às autoridades portuguesas analisar o pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrente (porque correctamente considerado inadmissível), mas sim à República Francesa, que até já consentiu na tomada ou retoma a cargo do Recorrente, e inexistindo motivos válidos que nos indiciem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção em solo francês, à República Francesa competirá, portanto, o exame dos motivos concretamente alegados pelo ora requerente de protecção e, concomitantemente, a tal Estado-Membro incumbirá decidir se a versão declarada pelo Recorrente é credora do clamado benefício da dúvida.
Improcede, pois, a conclusão de recurso acabada de sindicar, à qual não reconhecemos força invalidante da decisão recorrida.
Tudo visto, acordamos em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, sendo de confirmar a sentença recorrida.

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Sem custas, por ser gratuito o processo, nos termos do artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - As autoridades portuguesas, detectando que um requerente de protecção internacional já formulou um pedido cronologicamente antecedente noutro Estado-Membro, que até já aceitou a tomada ou retoma a cargo desse cidadão estrangeiro, emitem decisão de inadmissibilidade desse mesmo pedido em Portugal, por ser competente para a análise concreta dessa solicitação o Estado-Membro de primeiro registo ou acerto no sistema EURODAC, nos termos conjugados dos artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 37.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, e dos artigos 3.º, n.º 1, e 7.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013.
II - Por consequência, passa a ser o Estado-Membro de tomada ou retoma a cargo o competente para sindicar as concretas razões alegadas pelo requerente de protecção, nomeadamente, as que tenham a ver com as condições sociais, políticas ou de segurança em vigor no país de origem do solicitante de protecção internacional.
III - Só assim não procederá o Estado português se, no concreto e ante os factos alegados pelo requerente de protecção internacional, considerar que existem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente no Estado-Membro de destino da tomada ou retoma a cargo, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, conforme o preceituado no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013.
IV - No caso em apreço, vendo-se que inexistem motivos válidos para conjecturar quaisquer falhas sistémicas no sistema francês de asilo e nas condições de acolhimento, que impliquem risco de tratamento desumano ou degradante, nada impede a decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional formulado pelo ora Recorrente, nem a sua tomada ou retoma a cargo pela República Francesa.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 09 de Maio de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Lina Costa – (1.ª Adjunta)
Joana Costa e Nora – (2.ª Adjunta)