Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:51064/24.0BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:05/22/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RECLAMAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO
CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
QUESTÕES EMERGENTES DO CONTRATO
Sumário:Estando-se no âmbito do contencioso pré-contratual e não no âmbito de questões emergentes do contrato e não sendo situação subsumível ao disposto no art.º 20.º, n.º 1, do CPTA, é de lançar mão, para efeitos de competência em razão do território, da regra geral prevista no art.º 16.º, n.º 1, do CPTA.
Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão

[art.º 105.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC)]


I. Relatório

Unidade ………………….., E.P.E. (doravante Reclamante) veio reclamar, ao abrigo do art.º 105.º, n.º 4, do CPC, da decisão proferida no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa), na qual aquele Tribunal se julgou territorialmente competente para o conhecimento da ação de contencioso pré-contratual apresentada por I……… – Instituto ………………., S.A. (doravante A.).

Formulou as seguintes conclusões:

“A - A Reclamante Unidade ………………., E.P.E., anteriormente Hospital …………, E.P.E., é uma entidade pública empresarial que presta cuidados de saúde integrado no Serviço Nacional de Saúde.

B - A Reclamante procedeu a concurso público, com publicação no JOUE, designado por “CPI Nº 05788/2023 – Aquisição de Serviços de Alimentação para o Hospital de ........... E.P.E.”

C - O lugar do cumprimento do contrato a celebrar no âmbito do referido procedimento é, será, no estabelecimento hospitalar da Ré, sito ……………, São Vítor, ………-243 ………., conforme Cláusula 14ª do Cadernos de Encargos “Os serviços serão prestados nas instalações do HB, EPE sitas em ………., S. Victor, ………..”

D - Ficou convencionado na cláusula 25ª do Caderno de Encargos do “CPI Nº 05788/2023” que o foro competente para dirimir eventual litígio no âmbito deste concurso o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo de Contratos Públicos.

E - Estabelece o artigo 19º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA, sob a epígrafe “Competência em matéria relativa a contratos”: “1 – As pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal do lugar do cumprimento do contrato. 2 – Se as partes convencionarem o tribunal perante o qual se comprometem a deduzir as suas pretensões relativas ao contrato, o tribunal competente para o efeito é o tribunal convencionado.

F - O Decreto-Lei nº 174/2019, de 13 de dezembro, procedeu à criação de juízos de competência especializada em matéria de contratação pública, tendo sido criado no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre as áreas de jurisdição de vários TAF`s entre os quais o de ........... conforme artigo 8º, nº 2

G - O Artigo 44º-A, nº 1, al. c) do ETAF determina: “Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete: ... Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua 15 formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;”

H - A incompetência territorial e em razão da matéria constitui uma exceção de conhecimento oficioso nos termos do artigo 13º do CPTA.

I – O Tribunal competente para dirimir o presente litígio é o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo de Contratos Públicos.

J – Pelo exposto, deve ser revogado o Despacho que julgou “improcedente a exceção de incompetência territorial” do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo de Contratos Públicos.

K – E substituído por outro, nos termos dos factos e de direito invocados, que declare competente Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto Juízo de Contratos Públicos”.

A A., no exercício do direito ao contraditório, respondeu, considerando ser de aplicar a regra prevista no art.º 16.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

É a seguinte a questão a decidir:

a) Qual o tribunal territorialmente competente para a instrução e conhecimento da presente ação?

II. Fundamentação

II.A. Para a apreciação da presente reclamação, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1) Em 10.12.2024, a A., com sede social sita na ………………., n.º 10, 2.º Piso, …………..-022 ……….., intentou, contra a ora Reclamante, no TAC de Lisboa, ação de contencioso pré-contratual, relativa ao procedimento do concurso público internacional n.º 05788/2023, na qual formulou os seguintes pedidos:

“Nestes termos e nos melhores de direito, doutamente a suprir por v. Exa., deve a presente ação ser julgada integralmente procedente por provada e, em consequência, ser determinada:

a) A anulação da decisão final do procedimento, proferida por deliberação do conselho de administração da unidade local de saúde de ........... de 26 de novembro de 2024, que, aprovando o relatório final de 4 de setembro de 2024, determinou adjudicação do objeto do procedimento do concurso público internacional cpi n.º …………./2023, para aquisição de serviços de alimentação para o hospital de ........... e.p.e., à contrainteressada m…………… de c………., s.l. (doravante “m……………” ou “contrainteressada”), por padecer do vício de violação de lei ao aplicar normas ilegais do programa do procedimento e do caderno de encargos;

b) A anulação do contrato público que, entretanto, venha a ser celebrado no seguimento daquela decisão de adjudicação, entre a entidade demandada e a contrainteressada m………….. e, bem assim, dos efeitos de tal eventual contrato;

c) A anulação do antedito procedimento concursal, por não poder ser retomado por vício das respetivas peças procedimentais (inexatidão e insuficiência da equipa de colaboradores e do preço base);

d) subsidiariamente, a condenação da entidade demandada a excluir a proposta da contrainteressada, com as devidas consequências legais, designadamente a possibilidade de, no mesmo procedimento concursal, exercer a prerrogativa prevista no artigo 7.º, n.º 4 do programa do procedimento e, bem assim, no artigo 70.º, n.º 6 do código dos contratos públicos, adjudicando a proposta apresentada pela autora”

(cfr. ……………………………………….).

2) Do Caderno de Encargos, a que respeita o procedimento mencionado na petição inicial, constam, designadamente, as seguintes cláusulas:

Cláusula 14ª


Local

Os serviços serão prestados nas instalações do HB, EPE sitas em …………, S. Victor, ............

(…)


Cláusula 25ª

Foro Competente


Para todas as questões emergentes do contrato será competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo de Contratos Públicos” (cfr. processo administrativo junto em pen drive).

3) Foi proferido, a 31.03.2025, despacho saneador, no TAC de Lisboa, no qual este Tribunal se declarou territorialmente competente para conhecer da presente ação, constando do mesmo designadamente o seguinte:

“Na contestação veio a Entidade Demandada defender-se por exceção, invocando a incompetência territorial deste Tribunal para conhecer da presente ação.

Aduz para o efeito que o lugar do cumprimento do contrato a celebrar no âmbito do procedimento sub judice será no estabelecimento hospitalar da R., sito em ………, São Vítor, ……….-243 ............ - cfr. Cláusula 14ª do Cadernos de Encargos.

Assim, atendendo às pretensões da A. relativamente ao contrato a cumprir no estabelecimento hospitalar da R., o foro competente para dirimir o presente litígio seria o Tribunal Administrativo e Fiscal de ............

Porém, ficou determinado na cláusula 25ª do Caderno de Encargos, do concurso posto em crise que “Para todas as questões emergentes do contrato será competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo de Contratos Públicos.

Conclui, assim, que, nos termos do artº 19º do CPTA, quer nos termos do seu nº 1 (“tribunal do lugar do cumprimento do contrato”), quer nos termos do seu nº 2 (“o tribunal competente para o efeito é o tribunal convencionado”), o Tribunal competente para dirimir o presente litígio é o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo de Contratos Públicos.

Cumpre apreciar.

A competência territorial dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se regulada nos artigos 16.º e s., do CPTA.

O artigo 16.º, nº 1, do CPTA enuncia a regra geral em matéria de competência territorial estabelecendo que, “Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes e das soluções que resultem da distribuição das competências em função da hierarquia, os processos são intentados no tribunal da residência habitual ou da sede do autor.”

A aqui A. tem sede em ……….. (cfr. intróito da p.i.).

Não relevam aqui as regras especiais plasmadas nos artigos 17.º a 22.º do CPTA, concretamente o artº 19º, que diz respeito a pretensões relativas a contratos, inaplicável aos presentes autos, uma vez que vem impugnado ato administrativo pré-contratual; e o 20º, visto que a Entidade Demandada não é uma região autónoma, nem uma autarquia local, nem uma entidade instituída por qualquer uma destas pessoas coletivas de administração e território (ou seja, não é uma pessoa coletiva criada por uma região autónoma ou por uma autarquia local); e também não é uma pessoa coletiva de utilidade pública.

Com efeito, o estatuto de pessoa coletiva de utilidade pública pode ser conferido a associações, fundações e cooperativas – vide artigo 6.º, n.º 1 do Anexo da Lei n.º 36/2021, de 14 de junho.

No caso dos autos, vem demandada a Unidade Local de Saúde de ........... E.P.E..

Conforme artº 1º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei nº 102/2023, de 7 de novembro, para produzir efeitos a 1 de janeiro de 2024, o Hospital de ........... E.P.E., integrado no Serviço Nacional de Saúde (SNS), adotou o “modelo de organização e funcionamento em unidades locais de saúde (ULS)” passando a designar-se Unidade Local de Saúde de ........... E.P.E..

Nos termos do artº 8.º, sob a epígrafe “Sucessão” do mesmo diploma legal: “As ULS objeto do presente decreto-lei sucedem as entidades incorporadas na universalidade dos bens, direito e obrigações bem como nas respetivas posições contratuais, independentemente de quaisquer formalidades legais”.

A Unidade Local de Saúde de ........... E.P.E., anteriormente Hospital de ........... E.P., tem, pois, a natureza de entidade pública empresarial, integrada no Serviço Nacional de Saúde [cfr. artº 1.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 102/2023, de 7 de novembro].

Assim, tem aplicação a regra geral consagrada no artº 16.º, n.º 1 do CPTA, pelo que o tribunal territorialmente competente é o tribunal da área da sede da A..

Do que ficou dito, resulta que o tribunal territorialmente competente para conhecer a presente ação é o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – juízo de contratos públicos (cfr. art. 16º, nº 1, do CPTA e mapa anexo ao Decreto-Lei nº 325/2003, de 29/12 e artº 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 174/2019, de 13/12, nos termos do qual, “O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa integra ainda um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Almada, Lisboa e Sintra.”).

Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de incompetência territorial suscitada pela Entidade Demandada” (cfr. ………………………………….).


*

II.B. Apreciando.

Considera a Reclamante, em síntese, que o Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo de Círculo do Porto [a funcionar agregado com o Tribunal Tributário do Porto, sob a designação unitária Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Porto, designação a que adotaremos de ora em diante] é o territorialmente competente para apreciar a ação em causa, porquanto tal é o que resulta quer da cláusula 14.ª quer da cláusula 25.ª do Caderno de Encargos.

Vejamos, então.

A competência do tribunal, em qualquer das suas espécies, deve ser aferida pelo tipo de pretensão deduzida pelo autor (pedido) e pelas normas que a disciplinam (fundamentos jurídicos).

Nos termos do art.º 13.º do CPTA, “[o] âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.

Este diploma contém um conjunto de regras, em termos de competência em razão do território, que cumpre ter presentes, previstas nos seus art.ºs 16.º a 22.º.

Nos termos da regra geral, prevista no n.º 1 do art.º 16.º do CPTA:

“Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes e das soluções que resultem da distribuição das competências em função da hierarquia, os processos são intentados no tribunal da área da residência habitual ou da sede do autor”.

Para além da regra geral, prevista no art.º 16.º, há várias regras especiais, a saber:

a) Competência atinente a processos relacionados com bens imóveis (art.º 17.º);

b) Competência em matéria de responsabilidade civil (art.º 18.º);

c) Competência em matéria relativa a contratos (art.º 19.º);

d) Outras regras de competência territorial (art.º 20.º);

e) Competência em caso de cumulação de pedidos (art.º 21.º);

f) Competência supletiva (art.º 22.º).

In casu, não estamos perante nenhum dos casos enquadráveis em qualquer uma das regras especiais previstas no CPTA.

Centrando-nos nos casos elencados no art.º 19.º deste diploma, a que a Reclamante lança mão, cumpre referir que, nos termos já mencionados pelo Tribunal a quo, o mesmo não tem aqui aplicação.

Concretizemos.

Nos termos do mencionado art.º 19.º:

“1 - As pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal do lugar de cumprimento do contrato.

2 - Se as partes convencionarem o tribunal perante o qual se comprometem a deduzir as suas pretensões relativas ao contrato, o tribunal competente para o efeito é o tribunal convencionado”.

Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, p. 171):

“O presente artigo estabelece as regras de competência territorial aplicáveis a ações sobre contratos, considerando-se como tais as ações cujo pedido principal (para os casos de cumulação, cfr. artigo 21.º) tem por objeto a interpretação, validade e execução de contratos, a que se refere o artigo 37.º, n.º 1, alínea l), aí se incluindo as ações de responsabilidade contratual por incumprimento ou as ações destinadas a obter o cumprimento de prestações contratuais. Fora da previsão do artigo 19.º ficam os pedidos de impugnação de atos administrativos destacáveis respeitantes à formação ou à execução do contrato (v.g. ato de adjudicação ou ato que aplique, já na vigência do contrato, uma sanção contratual), que seguem a regra de competência territorial definida no artigo 16.º ou no artigo 20.º, n.º 1, consoante os casos (neste sentido, cfr. Acórdão do TCA Sul de 16 de março de 2005, Processo n.9 607/05)”.

Apliquemos estes conceitos in casu.

Antes de mais, refira-se que a Reclamante reputa a decisão da instância de obscura e contraditória, sem se pronunciar quanto a questões que foram submetidas à apreciação do Tribunal. No entanto, fá-lo sem consubstanciar nada do que alega, o que, sendo uma fórmula vazia, equivale a não alegação. Sempre se diga que, quanto à única questão que é passível de apreciação na presente sede, ou seja, a (in)competência em razão do território, está explanado na decisão reclamada, de forma clara e inequívoca, o itinerário cognoscitivo do Tribunal a quo [nunca tendo sido afirmada a não aplicação da regra de competência em razão da matéria constante do art.º 44.º-A, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, questão alheia, aliás, a esta reclamação].

Prosseguindo.

In casu, estamos no âmbito do contencioso pré-contratual e não no âmbito de questões emergentes do contrato, como é referido na decisão reclamada.

Com efeito, das cláusulas do caderno de encargos citadas decorre exatamente que os serviços serão prestados em ........... e que o TAF do Porto é o competente para “as questões emergentes do contrato”. Ou seja, estamos perante cláusulas relativas ao contrato. Concretamente quanto à cláusula 25.ª, a mesma respeita inequivocamente a questões emergentes do contrato e não, como refere a Reclamante, a qualquer litígio no âmbito do concurso.

Aliás, o caderno de encargos é a “peça do procedimento que contém as cláusulas a incluir no contrato a celebrar(cfr. art.º 42.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos).

Como tal, não é de aplicar o disposto nem no n.º 1 do art.º 19.º nem no seu n.º 2, nem qualquer uma das exceções previstas no CPTA (dado que, nos termos constantes da decisão reclamada, para os quais se remete, não se está perante situação subsumível ao art.º 20.º, n.º 1, do CPTA), sendo de lançar mão da regra geral do art.º 16.º, n.º 1, do CPTA.

Logo, considerando a localização da sede da A. em ........... e o facto de o Juízo dos Contratos Públicos do TAC de Lisboa ter jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Almada, Lisboa e Sintra, é territorialmente competente para o conhecimento dos autos o TAC de Lisboa (cfr. mapa anexo ao DL n.º 325/2003, de 29 de dezembro, e art.º 2.º, n.º 2, do DL n.º 174/2019, de 13 de dezembro).

Como tal, não assiste razão à Reclamante.

III. Decisão

Face ao exposto:

a) Indefere-se a reclamação apresentada;

b) Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 1/2 (meia) UC;

c) Registe e notifique;

d) Baixem os autos.


Lisboa, d.s.

A Juíza Desembargadora Presidente,