Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. RELATÓRIO
A…, notificado da sentença proferida em 2024.07.12, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que indeferiu a reclamação de atos de órgão de execução fiscal por si deduzida, contra o “despacho proferido pela Diretora de Finanças de Setúbal, em 25.01.2024, que indeferiu o requerimento apresentado de reapreciação e revogação de despacho de reversão contra o Reclamante nos processos de execução fiscal n.ºs 2194200801000306 e 2194200801018027, instaurados no Serviço de Finanças do Montijo, nos quais é devedora originária a sociedade “I… Imobiliários, Lda.”, dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo Sul.
Nas alegações de recurso apresentadas, o Recorrente formulou as seguintes conclusões:
A. «Conforme estabelece o n° 1 do artigo 276° do CPPT, “as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afetem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são suscetíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1a instância”.
B. No caso concreto, discute-se a inadmissibilidade de indeferimento de requerimento em que é solicitada a revogação do despacho de reversão n.° 2194200801000306 e 2194200801018027, em que era devedora originária a I… Imobiliários, Lda.
C. Por comercialmente inscrito gerente, o Reclamante é considerado devedor de imposto de irc, na qualidade de revertido da sociedade i… imobiliários, lda (cfr. artigo 23.° da LGT).
D. Por respeito a esse valor de IRC, o Ministério Público considerou que os alegados gerentes da sociedade (onde se inclui o reclamante) quiseram e conseguiram alterar a declaração de irc de 2003, fornecendo informação que sabiam não corresponder à verdade, lesando o património do estado e violando o dever de colaboração e lealdade perante a autoridade Tributária, que impende sobre todos os contribuintes.
E. Nesse processo-crime em que se discutia a possibilidade de existência de crime de Fraude Fiscal - Proc. N.° 29/08.0IDSTB - foi possível provar que os comercialmente inscritos gerentes apenas o eram de direito, mas não já de facto, atento o facto de não praticarem atos materiais de gestão da ENTIDADE.
F. Quando dado conhecimento à Autoridade Tributária desta situação, através de requerimento - indeferido e ora sindicado -, totalmente extrapolando as suas competências hermenêuticas, foi entendimento dos serviços não haver qualquer aplicabilidade dos factos dados como provados e do caso julgado penal, ao presente processo executivo
G. Ora, a destrinça entre o conceito de gerente de direito e de facto, existe a nível fiscal e penal, tal como consagrado no n.° 1 do artigo 24.°, a propósito da responsabilidade dos gestores pelas dívidas tributárias.
H. Assim, se existe uma sentença que determina o não exercício da gerência de facto pelo Reclamante, não se compreende que a Autoridade Tributária ignore o apurado a propósito do provado em sede de processo penal - em plena violação de caso julgado; caso julgado esse que os serviços desconsideram - num criativo, mas incoerente, desenvolver de doutrina fiscal-civilística.
I. Tratando-se de um conceito de uma particular área do direito, não poderá a consideração comercial unitária de “gerente”, ter aqui uma integração passível de prejudicar o reclamante, sob pena de violação do próprio artigo 11.° da Lei Geral Tributária.
J. Trata-se, em bom rigor, de um conceito que releva apenas para efeitos tributários - aqueles com que a autoridade tributária está familiarizada - e efeitos penais (e, assim mesmo, integrado no regime geral das infrações Tributárias, intimamente ligado ao próprio CPPT).
K. Nas palavras de Ricardo Costa, A linha condutora das intervenções do(s) legislador(es) entrega-se ao movimento generalizado do direito estrangeiro ao verter a assimilação cada vez mais pronunciada do administrador de facto ao administrador de direito. traduz a preocupação em evitar que os sujeitos com um poder efectivo de gestão na sociedade não fujam dos efeitos previstos na disciplina pertinente da responsabilidade, com base no incumprimento dos formalismos jurídico-mercantis, legais e/ou estatutários, na matéria própria da designação dos administradores.
L. é que, em bom rigor, sempre se terá de respeitar o caso julgado penal, em sede de processo tributário, nomeadamente porque (i) o processo penal, o ne bis in idem (cfr. artigo 29.°, n.° 5 da crp) e o próprio caso julgado penal enquanto instituto de direito vão muito para além da sua circunscrição ao processo, (ii) se se considerar que não existe uma força própria conferida ao instituto, estaremos em sede tributária perante uma lacuna que merece integração, com recurso a normas do cpc; sob pena de (a) prejudício da unidade do sistema e (b) violação da integração sistemática das normas.
M. Ainda assim, usando dois pesos e duas medidas para uma mesma situação de caso julgado, esquece o Tribunal o caráter de última ratio do processo penal.
N. Na verdade, o processo penal, o ne bis in idem e a figura do caso julgado têm assento na doutrina e especial proteção constitucional, alicerçada, quer no disposto no n.° 3 do artigo 282.° da crp, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de estado de direito, emergente do art. 2.° da crp, mas também no princípio da tutela jurisdicional efetiva.
O. Assim, especialmente protegida é a intangibilidade do caso penal, intrínseca à própria existência da figura enquanto garantia do estado de Direito e cujas limitações apenas poderão ceder perante uma logica de balanceamento ou ponderação conjugada dos valores da certeza e segurança jurídica, por um lado, e outros valores constitucionalmente protegidos, como a justiça material.
P. no caso concreto, o valor da justiça material - inexigibilidade da dívida - encontra-se de braço dado com o caso julgado.
Q. Mas mesmo que não se conceda por esta aplicabilidade direta, superado o normativismo positivista, havendo uma lacuna no CPPT, a mesma terá de ser integrada.
R. Assim, contem o artigo 628.° do CPC a definição de sentença transitada em julgado, sendo que o artigo 624.° do mesmo código aponta para uma relação do processo penal com o civil.
S. Ora, além de diretamente aplicável ao caso concreto, a firmeza ou definitividade da sentença transitada em julgado poderá ser relativa, posta em causa apenas (i) através dos recursos extraordinários previstos legalmente; ou, ainda (ii) por força de decisão de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional, em matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social, se a mesma for de conteúdo mais favorável ao arguido, nos termos do n.° 3 do ARTIGO 282.° da Constituição da República portuguesa.
T. Apenas esta intangibilidade do caso julgado é compatível com a unidade do sistema, mais não seja considerando o n.° 5 do artigo 48.° da LGT, que atribuiu um efeito suspensivo à instauração do inquérito criminal e, enquanto facto duradouro, à pendencia do mesmo - logo, aquele normativo atribuiu efeito suspensivo à existência de um qualquer inquérito criminal, em que estejam em investigação factos atinentes a uma concreta dívida tributária, e que diz que a duração da suspensão vai da instauração do inquérito até ao arquivamento ou transito em julgado da sentença;
U. Nestes termos, não se concebe como poderá (i) o transito em julgado da sentença considerado relevante para efeitos fiscais, nomeadamente por inclusivamente considerado como uma causa de suspensão da prescrição das dívidas fiscais nos termos do n.° 5 do artigo 48.° da lgt e, (li) ao mesmo tempo, se desconsidera os efeitos do caso julgado, por inexistência de norma expressa habilitante no código de processo e de procedimento tributário.
V. De todo o modo, sempre se terá de reconhecer - a norma do n.° 5 do artigo 48.° reconhece a autoridade do caso julgado penal; se assim não se conceder, é uma norma ineficaz e ilegal - e então, estarão as presentes dívidas prescritas.
Nestes termos e nos mais de direito que v. exas doutamente suprirão, requer-se a v. exas que se dignem ajulgar procedente o pedido formulado pelo ora recorrente, com todas as legais consequências.
A Recorrida, Autoridade Tributária e Aduaneira, não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Os autos foram com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Com dispensa de vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre decidir.
II – Fundamentação
Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso.
Assim, na falta de especificação no requerimento de interposição do recurso, nos termos do artigo 635/3 do Código de Processo Civil, deve-se entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao Recorrente. O objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (artigo 635/4 CPC). Assim, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões e devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.
Atento o exposto, e tendo presentes as conclusões de recurso apresentadas, importa decidir se a sentença padece de erro de julgamento, na interpretação dos factos e aplicação do direito.
II.1- Dos Factos
O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:
A) «Em 03.01.2008, foi instaurado no Serviço de Finanças de Montijo, contra a sociedade “I… Imobiliários, Lda”., o processo de execução fiscal n.° 2194200801000306, por dívida de IRC do ano de 2003 e respetivos juros compensatórios e de mora, no valor total de € 201.704,74, com data limite de pagamento voluntário fixado em 12.12.2007 (cf. fls. 201/311 [1 a 3] do SITAF).
B) Em 18.03.2008, foi instaurado no Serviço de Finanças de Montijo, contra a sociedade “I… Imobiliários, Lda.”, o processo de execução fiscal n.° 2194200801018027, por dívida de IRC do ano de 2003 e respetivos juros compensatórios e IRC do ano de 2004, no valor total de € 776.073,72, com data limite de pagamento voluntário fixado em 26.02.2008 (cf. fls. 201/311 [104 a 108] do SITAF).
C) Em 04.08.2009, foi proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças do Montijo, no âmbito dos processos de execução fiscal mencionados nas alíneas A) e B) supra, despacho de reversão dos referidos processos contra o ora Reclamante, H… e V…, constando do mesmo, no campo relativo aos “fundamentos da reversão”, o seguinte:
(cf. fls. 201/311 [29] do SITAF).
D) No âmbito dos processos de execução referidos nas alíneas A) e B) supra foi enviado ao ora Reclamante, pelo Serviço de Finanças do Montijo, por carta registada com aviso de receção, ofício datado de 04.08.2009, designado de “citação (reversão)”, do qual consta o seguinte:
«Imagem em texto no original»
(cf. fls. 201/311 [31 a 33] do SITAF).
E) Entre 17.08.2009 e 31.08.2009, o ora Reclamante rececionou a carta mencionada na alínea anterior (cf. facto não controvertido, expressamente admitido pelo Reclamante no artigo 22º da petição inicial, que os revertidos, onde se inclui o ora Reclamante, receberam os ofícios de citação entre as mencionadas datas – a referência a 31.09.2008 deve-se a lapso manifesto).
E) Em 16.09.2009, o ora Reclamante, H… e V… apresentaram oposição no Serviço de Finanças de Montijo, contra o despacho de reversão mencionado na alínea C) supra, solicitando a declaração da sua nulidade, com fundamento na violação do artigo 23.º, n.º 2, da LGT – inexistência de fundada insuficiência de bens penhoráveis da devedora originária, a qual correu termos neste Tribunal sob o processo n.º 1249/09.6BEALM (cf. facto não controvertido corroborado com o documento de fls. 2 a 9 do SITAF nos autos de oposição n.º 1249/09.6BEALM).
F) Em 12.09.2009, foi proferida decisão no processo de oposição n.º 1249/09.6BEALM, mencionado na alínea anterior, na qual foi julgada improcedente a oposição (cf. sentença a fls. 174 a 185 do SITAF nos autos de oposição n.º 1249/09.6BEALM).
G) A decisão mencionada na alínea anterior foi objeto de recurso pelos oponentes (cf. documento de fls. 226 a 243 do SITAF nos autos de oposição n.º 1249/09.6BEALM).
H) Por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 10.02.2021, foi negado provimento ao recurso mencionado na alínea anterior (cf. documento de fls. 293 a 312 do SITAF nos autos de oposição n.º 1249/09.6BEALM).
I) Em 14.06.2022, foi proferida sentença pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Montijo – juiz 1, no processo n.º 29/08.0IDSTB, na qual o ora Reclamante, H… e V… , bem como a sociedade devedora originária, identificada na alínea A) supra, foram absolvidos do crime de fraude fiscal, constando como facto não provado que, desde a constituição da sociedade devedora originária, o ora Reclamante, H… e V… foram gerentes de facto da referida sociedade (cf. documento de fls. 50 a 71 do SITAF).
J) Em 14.07.2023, deu entrada no Serviço de Finanças do Montijo requerimento apresentado pelo ora Reclamante, H… e V…, no qual solicitam a reavaliação e revogação do despacho de reversão mencionado na alínea C) supra, alegando a existência da sentença mencionada na alínea anterior e que na mesma não ficou provada a gerência de facto, pelos requerentes, da sociedade devedora originária, mencionada na alínea A) supra, pelo que falta o pressuposto da reversão da gerência de facto dos revertidos (cf. facto não controvertido corroborado com o teor de fls. 42 a 49 do SITAF).
K) Em 18.01.2024, foi proferida informação no âmbito dos processos de execução identificados nas alíneas A) e B) supra, pela Equipa de Apoio aos Devedores Estratégicos da Direção de Finanças de Setúbal, com o seguinte teor:
«Imagem em texto no original»
(…)
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»

(…)

«Imagem em texto no original»
(…)” (cf. documento de fls. 42 a 49 e 201/311 [96 a 103] do SITAF).
L) Sobre a informação reproduzida na alínea anterior, em 24.01.2024, foi proferido parecer pelo Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Setúbal, do qual se extrata, o seguinte:
(…)” (cf. documento de fls. 42 a 49 e 201/311 [96 a 103] do SITAF).
M) Sobre a informação e o parecer reproduzidos nas alíneas K) e L) que antecedem, em 25.01.2024, foi proferido despacho pela Diretora de Finanças de Setúbal, no qual indeferiu o requerimento mencionado na alínea J) supra, constando do mesmo o seguinte:
“Concordo.
Com os fundamentos expressos na informação prestada e Parecer infra do Senhor Chefe de Divisão, indefiro o pedido, conforme proposto.” (cf. documento de fls. 42 a 49 e 201/311 [96 a 103] do SITAF).»
Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:
«Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam ser considerados como não provados.»
E quanto à Motivação da Decisão de Facto, consignou-se:
«A convicção do tribunal baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida nos autos, designadamente nas informações oficiais e dos processos de execução fiscal, não impugnados, conforme remissão feita a propósito de cada alínea do probatório, assim como, na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados - artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT) - foram corroborados pelos documentos juntos, conforme estabelece os artigos 76º n.º 1 da LGT e 362º e seguintes do Código Civil.»
II.2 Do Direito
O Reclamante e ora Recorrente executado, por reversão nos processos de execução fiscal instaurados no Serviço de Finanças do Montijo e que correm termos sob os nº 2194200801000306 e 2194200801018027, veio reclamar judicialmente contra o despacho de 2024.01.25, da Diretora de Finanças de Setúbal que indeferiu o pedido de reapreciação e revogação de despacho de reversão.
O despacho de reversão em causa tinha sido proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças do Montijo em 2009.08.04, e em 2009.09.16, o ora Recorrente deduziu oposição, julgada improcedente, sentença essa confirmada por acórdão deste TCAS de 2021.02.10.
Posteriormente, em 2022.06.14, no processo n.º 29/08.0IDSTB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Montijo – juiz 1, foi proferida sentença em que o ora Recorrente foi absolvido do crime de fraude fiscal. Na referida sentença, constava dos factos não provados que o ora Recorrente tivesse sido gerente de facto da sociedade “I… Imobiliários, Lda.”, devedora originária das dívidas exequendas que ora lhe estão a ser exigidas.
E, na sequência desta sentença de absolvição, em 2023.07.14, o ora Recorrente pediu a reavaliação e revogação do despacho de reversão, pedido indeferido por despacho da Diretora de Finanças de Setúbal, despacho de indeferimento do qual reclamou judicialmente.
É desta sentença que indeferiu a reclamação judicial que vem interposto o presente recurso.
Nas conclusões das alegações de recurso o ora Recorrente, em suma, apresenta alguns do mesmo argumentos formulados na reclamação e apreciados na sentença recorrida, cuja reapreciação pretende.
Desde já adiantaremos que a sentença recorrida não merece a crítica que lhe é feita, encontra-se bem fundamentada, citando e seguindo a principal jurisprudência sobre a questão, em termos tais que pouco ou mais temos a acrescentar.
A sentença recorrida começa por convocar as principais normas jurídicas para apreciação da causa. Diz no segmento que aqui interessa:
Vejamos o alegado, convocando para o efeito, o quadro legal aplicável.
Nos termos do disposto no artigo 84.º do Código de Processo Penal (CPP) “A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”
Na mesma senda, estatui o artigo 623.º do Código de Processo Civil (CPC) que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”
A par, estabelece o artigo 624.º do CPC que “1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário. 2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil”
Prossegue, citando jurisprudência:
Resulta, assim, dos normativos supra transcritos que, como salienta a Fazenda Pública na sua resposta, o artigo 84.º do CPP apenas atribui relevância extraprocessual ao caso julgado no caso de decisões penais que apreciam pedidos cíveis e os artigos 623.º e 624.º do CPC apenas atribuem a decisões penais efeitos em processos de natureza cível e não de natureza tributária, em consonância com o decidido no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27.05.2021, proferido no processo n.º 102/20.7BEFUN.
De facto, como se sumariou no supra citado acórdão, perante uma situação de intempestividade da oposição à reversão, e face à invocação de efeitos extraprocessuais de decisão em matéria penal:
“VI - Ainda que dimane da interpretação conjugada dos artigos 99.º da LGT e 13.º do CPPT, um dever de o Juiz ordenar todas as diligências tidas por pertinentes para a descoberta da verdade material, tal não determina que o julgador possa subverter quaisquer formalismos legais e desrespeitar prazos processuais. A sua atuação pauta-se pela análise, interpretação e correta transposição do regime jurídico vigente à situação fática dos autos, não a podendo subverter em ordem a agilizar a prova de uma realidade fática - no caso prova da ilegitimidade, por não ter exercido a gerência de facto- quando a ação não passa no crivo da tempestividade.
VII - Tendo a oposição sido deduzida fora do prazo, ao Tribunal nada mais restava senão julgar verificada a exceção da caducidade do direito de ação, pautando-se, assim, a sua atuação pelo princípio da legalidade.”.
Neste particular, ainda quanto aos efeitos extraprocessuais de decisão em matéria penal, seguiremos de perto o acórdão proferido a 20.03.2019 pelo Tribunal de cúpula desta jurisdição, no processo n.º 01053/18.0BELRA, com o qual se adere enquanto discurso fundamentador da presente decisão e do qual se extrata, o seguinte:
“a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária, podendo coexistir na esfera jurídica da mesma pessoa, são títulos autónomos de responsabilidade, gerados por factos diversos, sujeitos a diversos princípios, regimes e leis e determinantes de consequências igualmente diferenciadas.
Desde logo, na responsabilidade penal tributária não há culpas presumidas, presumindo-se, ao invés, inocente o arguido até ao trânsito em julgado da decisão que o condene. A responsabilidade tributária, porém, admite uma presunção – ilidível - de culpa no não pagamento, nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da Lei Geral Tributária, cabendo ao responsável tributário ilidir, através do meio processual próprio (audiência prévia antes da reversão e oposição), essa presunção legal de culpa para afastar a sua responsabilidade pela dívida.
Muita estranheza suscita a alegação de que, designadamente no caso dos autos, a não extinção dos processos executivos e seus efeitos viola o “princípio da presunção de inocência”, designadamente porque no processo tributário não há inocentes ou culpados, antes devedores ou não devedores do imposto, sendo os pressupostos da responsabilidade tributária diversos dos da responsabilidade penal tributária, como não podia deixar de ser, aliás, dado o diferente calibre dos valores em presença num e noutro caso.” (sublinhado e destaque nosso).
No mesmo diapasão se sumariou no acórdão do mesmo Tribunal Superior, proferido no processo n.º 0266/20.0BEPRT, em 02.02.2022, “[n]ão existe qualquer princípio ou norma legal que preveja a prevalência das decisões proferidas em sede de processos-crime sobre a decisão judicial anteriormente proferida em sede de processo judicial tributário, no caso, Impugnação Judicial, transitada em julgado”.
Em sentido idêntico, veja-se inter alia o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte datado de 20.04.2017, proferido no processo n.º 145/10.9., cujo entendimento se subscreve, com as devidas adaptações:
“(…) não existe qualquer norma legal que atribua força de caso julgado no processo de impugnação judicial às decisões proferidas em processo penal. O que ao contrário se verifica, como resulta do disposto no artigo 48 do RGIT que nos diz “A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram”. Só nos casos previstos no artigo 674ºB do CPC nomeadamente no seu nº 1, a decisão penal transitada em julgado que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário. Também de acordo com o artigo 84º do CPP, a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis. Ora, como se afirmou no acórdão do STA de 08.10.2014, onde se discutia o caso julgado em processo penal, na oposição judicial, “ Da leitura conjugada de ambas [leia-se artigo 674ºB do CPC e 84º do CPP] as normas, surpreende-se que, só no âmbito de acções civis em que se discutem relações jurídicas conexas com a pratica da infracção em apreciação no processo penal, pode a decisão penal absolutória constituir presunção ilidível, relativamente aos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal do crime.” Paradigmático de tal interpretação é o acórdão do STA de 16.02.2005, processo nº 08/05, já acima referenciado, (e citado pela sentença sob recurso), que decidindo sobre a suspensão de impugnação judicial até ao trânsito de decisão proferida em processo crime, por notório interesse para a instrução do processo e do conhecimento da prova produzida no de natureza criminal se plasmou “(…) no caso em apreço, em que está em causa no processo de impugnação judicial a apreciação da falsidade ou não de facturas, a formulação de um juízo pelo tribunal tributário não depende da decisão que for proferida em processo criminal sobre a mesma matéria, pois, enquanto no processo criminal as dúvidas sobre a matéria de facto são valoradas a favor do arguido, no processo de impugnação judicial, havendo indícios de irregularidades de escrita, o ónus da prova da veracidade desta cabe ao contribuinte (arts. 121º., n.º 2, do C.P.T. e 100.º, n.º 2, do C.P.P.T.). Para além disso, apesar da maior exigência probatória do processo criminal para dar como provados factos integradores de infracção que é corolário do princípio in dubio pro reo, não existe qualquer norma legal que atribua força de caso julgado no processo de impugnação judicial às decisões proferidas em processo criminal. Com efeito, o art. 84.º do C.P.P. apenas atribui relevância extraprocessual ao caso julgado no caso de decisões penais que apreciam pedidos cíveis e os arts 674.º-A e 674.º-B do C.P.C. apenas atribuem a decisões penais efeitos em processos de natureza cível e não de natureza tributária. (…)” – sublinhado e destaque nosso.
Resulta do que antecede que, só no âmbito de ações civis em que se discutem relações jurídicas conexas com a prática da infração em apreciação no processo penal, pode a decisão penal absolutória constituir presunção ilidível, relativamente aos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal do crime e nessa medida pode ser aplicado o princípio da presunção da inocência.
Como facilmente se conclui das transcrições supra a jurisprudência nacional não vai em sentido favorável à pretensão do ora Recorrente.
No mesmo sentido de a sentença de absolvição em processo-crime, não [ter] a força de caso julgado em processo tributário, no que respeita aos factos aí dados como provados ou não provados, antes deve reconduzir-se a um elemento de prova que pode ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artº.607, nº.5, do C.P.C., aplicável "ex vi" do artº.2, al.e), do C.P.P.T., chamamos ainda à colação o Acórdão STA, 2ª Seção, de 2023.05.10, com o qual concordamos e para cuja fundamentação remetemos e do qual transcrevemos:
«(…) [D]efende o apelante que o pedido de revogação do despacho de reversão se escorou em factos novos que não haviam sido sopesados pelo órgão de execução fiscal, aquando da prolação do despacho de reversão em causa, mais especificamente, o teor da sentença constante do processo 76/13.0TAVLN, a correr termos na Comarca de Viana do Castelo, na qual foi absolvido da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada (cfr.nº.13 do probatório supra).
O artº.624, nº.1, do C.P.Civil, dispõe que a sentença penal absolutória, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui simples presunção legal da inexistência desses factos, em ações de natureza civil. A propósito da interpretação de tal normativo discute-se se a referida presunção também se aplica nas situações em que o arguido é absolvido em virtude do funcionamento do princípio "in dúbio, pro reo", ou apenas nos casos em que é feita prova positiva de não ter praticado os factos. A jurisprudência tem decidido que tal presunção ilidível não se aplica em caso de absolvição com fundamento no citado princípio "in dúbio, pro reo", uma vez que nesta situação a absolvição se baseia na falta de prova dos factos imputados ao arguido, exigindo a aludida norma que tal absolvição tenha como fundamento não ter este praticado os factos que lhe foram imputados (cfr.v.g. ac.S.T.J.-7ª.Secção, 21/10/2010, proc.95/04.8TBCDR.P1.S1; ac.S.T.J.-2ª.Secção, 11/07/2019, proc.7318/17.1T8CBR.C1.S1; António Santos Abrantes Geraldes e Outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 2019, pág.747; José Lebre de Freitas e Outro, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 4ª. Edição, Almedina, 2021, pág.765 e seg.).
No entanto, já não existe qualquer princípio ou norma legal que preveja a prevalência das decisões proferidas em sede de processos-crime sobre as decisões proferidas em sede dos procedimentos ou processos tributários. Pelo contrário, o legislador prevê é a possibilidade de decisões judiciais transitadas em julgado e proferidas nos processos de impugnação ou de oposição à execução constituírem caso julgado no âmbito do processo penal tributário (cfr.artº.48, do R.G.I.T.). É que no processo tributário não há inocentes ou culpados, antes devedores ou não devedores do imposto, sendo os pressupostos da responsabilidade tributária diversos dos da responsabilidade penal tributária.
Ora, como é bem sabido, a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária, podendo coexistir na esfera jurídica da mesma pessoa, são títulos autónomos de responsabilidade, gerados por factos diversos, sujeitos a diversos princípios, regimes e leis e determinantes de consequências igualmente diferenciadas. Desde logo, na responsabilidade penal tributária não há culpas presumidas, presumindo-se, ao invés, inocente o arguido até ao trânsito em julgado da decisão que o condene. A responsabilidade tributária, porém, admite uma presunção - ilidível - de culpa no não pagamento, nos casos previstos no artº.24, nº.1, al.b), da L.G.T., cabendo ao responsável tributário ilidir, através do meio processual próprio (audiência prévia antes da reversão e oposição), essa presunção legal de culpa para afastar a sua responsabilidade pela dívida. Com estes pressupostos, a sentença de absolvição do ora recorrente no processo-crime, não tem a força de caso julgado pretendida pelo mesmo, no que respeita aos factos aí dados como provados ou não provados, antes deve reconduzir-se a um elemento de prova que pode ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artº.607, nº.5, do C.P.C., aplicável "ex vi" do artº.2, al.e), do C.P.P.T. (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/10/2014, rec.1930/13; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 20/03/2019, rec.1053/18.0BELRA).
"In casu", o recorrente não usou de qualquer meio processual que a lei disponibiliza - oposição à execução ou reclamação da decisão do órgão de execução fiscal - para reagir ao seu chamamento à execução para responder pela dívida - citação na qualidade de responsável subsidiário. Pretende agora, alegando um facto ou causa superveniente, revogar a reversão contra si efectuada no processo executivo, com base na sua, defendida, falta de responsabilidade pela dívida exequenda.
Mas a decisão judicial que apresentou como fundamento da presente reclamação de acto do órgão de execução fiscal, por um lado, não sabe este Tribunal se já transitou em julgado e, por outro, não produz os efeitos que defende em sede de processo tributário e conforme o que se acabou de expor.»
Mutatis mutandis, porquanto no caso ora em análise foi deduzida oposição pelo ora Recorrente, oposição julgada improcedente, decisão confirmada por acórdão deste TCAS e já transitada, aquela fundamentação é inteiramente transponível para os presentes autos.
Não tem, pois, razão o Reclamante e ora Recorrente, improcedendo nesta parte o recurso.
Por fim, alega o ora Recorrente que a norma do n.º 5 do artigo 48.º reconhece a autoridade do caso julgado penal e que, “se assim não se conceder, é uma norma ineficaz e ilegal - e então, estarão as presentes dívidas prescritas”.
Sobre esta questão pronunciou-se a sentença recorrida em termos que não merecem censura. Diz:
«Neste conspecto, há, desde logo, que evidenciar que de uma norma que versa sobre a interrupção e suspensão da prescrição da obrigação tributária não se vislumbra e alcança de que forma a mesma pode traduzir qualquer reconhecimento, ainda que implícito, da autoridade do caso penal, nem, de resto, a mesma se encontra, in casu, devidamente substanciada.
Com efeito, a aludida norma limita-se a consignar que o prazo de prescrição legal suspende-se, ainda, desde a instauração de inquérito criminal até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, e cuja introdução no ordenamento jurídico a partir de 2013 resulta “da necessidade de dar efeito útil à suspensão do prazo de caducidade”, e “salvaguarda dos créditos da Administração Tributária por impossibilidade de cobrança”, porquanto, como é consabido “o processo criminal é revestido de especiais garantias de defesa, podendo a sua duração ser bastante prolongada o que não é compatível com os prazos de prescrição normalmente vigentes no âmbito tributário”. (vide, neste sentido, José Maria Fernandes Pires, e outros, LGT anotada e comentada, Almedian:2015, página 474).
(…)
Inferindo, como visto, a sua arguição, estando em causa dívidas relativas a IRC dos anos de 2003 e 2004, o prazo de prescrição de 8 anos, iniciou-se em 01.01.2004 e 01.01.2005, respetivamente, conforme previsto no n.º 1 do artigo 48.º da LGT e terminaria em 31.12.2011 e 31.12.2012, na ausência de qualquer causa interruptiva ou suspensiva da prescrição.
Todavia, como resulta da factualidade dada como provada na alínea E) do probatório, o Reclamante foi citado para a execução, por reversão, antes de esgotado o prazo de prescrição, interrompendo-se, assim, a contagem deste prazo, nos termos do n.º 1 do artigo 49.º da LGT.
Sendo que esta citação teve não só o “efeito instantâneo” de interromper esse prazo ainda em curso, inutilizando, assim, o prazo decorrido, como também o efeito de obstar agora o decurso do mesmo até ao trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo de execução fiscal em que a citação foi efetuada (artigos 326.º, n.º 1 e 327.º, n.º 1, do Código Civil) - neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, “Sobre Prescrição da Obrigação Tributária”, 2ª ed., Áreas Editora, 2010, pág. 119, e acórdão do STA de 30.06.2010, processo n.º 0158/10.
E assim sendo, o prazo prescricional ainda não se completou.
Com efeito, nos termos do artigo 326º do Código Civil «a interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo seguinte» e o artigo estabelece: «1. Se a interrupção resultar de citação, notificação ou ato equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo».
Assim e tal como decidido, o ato interruptivo da citação inutiliza todo o tempo até então decorrido e obsta ao início da contagem do novo prazo enquanto o processo executivo não findar.
O ato interruptivo da citação para os termos da execução tem assim efeito duradouro, motivo pelo qual não ocorreu ainda a prescrição das dívidas executivas, ao contrário do que defende o ora Recorrente.
Nada há, pois, a censurar à sentença que assim decidiu.
Em face do exposto, o recurso só pode improceder.
Sumário/Conclusões:
I - A sentença de absolvição em processo-crime, não tendo a força de caso julgado em processo tributário, no que respeita aos factos aí dados como provados ou não provados, antes deve reconduzir-se a um elemento de prova que pode ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 607/5 do C.P.C., aplicável "ex vi" do artigo 2.e) do CPPT.
III – Decisão
Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, que decaiu
Lisboa, 7 de novembro de 2024
Susana Barreto
Hélia Gameiro Silva
Lurdes Toscano
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