Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1727/19.9BELSB
Secção:JUÍZA PRESIDENTE
Data do Acordão:08/21/2024
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:CONFLITO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL VS JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
DIREITO DE REGRESSO
DECRETO-LEI Nº 74-B/2023, DE 28/08
Sumário:
Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO

I- RELATÓRIO

A Senhora Juíza do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (doravante, também TAC de Lisboa) veio, na mesma decisão em que se declara materialmente incompetente para o conhecimento da causa, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul, ao abrigo do disposto na alínea t) do nº1 do artigo 36º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal, uma vez que ambas se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da ação administrativa de responsabilidade civil que M ………………………… intentou no TAC de Lisboa contra a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. (ARSLVT, I.P.) e contra V ……………………………….


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Chegados os autos a este TCA Sul, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 112º, nº 1 do CPC; as partes nada disseram.

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Foi dada vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência dever ser atribuída ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa.

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- QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A questão colocada consiste em determinar se a competência para decidir a presente ação, que deu entrada em juízo em 18 de setembro de 2019, ou seja, antes da alteração ao artigo 44º-A do ETAF (operada pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08), em que está em causa um litígio relacionado com um pedido indemnizatório decorrente de um acidente em serviço sofrido no local de trabalho da autora, cabe ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa ou ao Juízo Administrativo Social do mesmo Tribunal.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

Para julgamento do presente conflito, são relevantes as seguintes ocorrências processuais:

1) Em 18/09/2019, M ………………….., intentou no TAC de Lisboa uma ação administrativa de responsabilidade civil contra a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. (ARSLVT, I.P.) e contra V ……………………….., na qual, por referência ao acidente em serviço ocorrido no Centro de Saúde da …………….., Lisboa, em 27/04/2009, pediu a condenação solidária das Rés a pagar-lhe.

“a) A título de indemnização por danos patrimoniais:

- 25,50 € a título de taxa de justiça devida pela interposição da acção de intimação;
- 3.434,40€ em honorários de advogado, relativos ao patrocínio nas acções de intimação e de impugnação de acto;
- o valor de honorários a liquidar pela Autora referentes à acção ora em apreço e respectiva execução, em montante a liquidar em execução de sentença;- 1.557,93€ a título de diferenças entre as retribuições que lhe eram devidas e as que lhe foram pagas entre Novembro de 2016 e Setembro de 2017;
- 1.120,25€ a título de subsídio de refeição entre Novembro de 2016 e Setembro de 2017;
- juros de mora à taxa legal de 4% sobre as quantias referidas nos dois parágrafos anteriores, no montante vencido de 321,38€ e os vincendos até à data de integral pagamento;

b) A título de indemnização por danos não patrimoniais:
- 50.000,00€ a título de reparação da descompensação psiquiátrica, com sintomas depressivos e atitude de desistência da reabilitação física, diagnosticado como “Depressão major, 2.ºepisodio, etilogia multifactorial, comorbilidade ortopédica significativa” - a que se soma “desejo de morte e ideação suicidária pouco estruturada (risco médio)”sofrida pela Autora; - 50.000,00€ a título de reparação pelo agravamento de lesões na coluna vertebral consequente da marcha que teve de efectuar para o Centro das ……………….e as lesões sofridas em consequência da queda dada no Hospital de ……………… de que resultou a rotura do tendão, afectando definitivamente a sua mobilidade, com repercussão funcional na marcha e de transferência e na capacidade de realização das actividades da vida diária de forma autónoma são dano que se manterá até ao final a sua vida;”.

[cfr. P.I., 47 Docs., Procuração e Comprovativo do pagamento da taxa de justiça fls. 1/85 – SITAF]

2) Por decisão de 09/02/2024, a Senhora Juíza do Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa, excecionou a incompetência em razão da matéria daquele tribunal e determinou a remessa dos autos ao Juízo Administrativo Social do mesmo Tribunal por entender ser esse o competente, aduzindo, para tanto, a fundamentação de direito que, de seguida, se transcreve nos trechos mais significativos. Assim:

«(…)

Preceitua o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28 de agosto, que “[a]o nível da primeira instância, e face às interpretações divergentes que se têm verificado relativamente ao âmbito da competência dos juízos administrativos sociais e dos juízos de contratos públicos, e que conduziram a diversos conflitos negativos de competência, clarifica-se o sentido das normas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…) Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.”

A referida norma é, assim, uma norma interpretativa, que tem eficácia retroativa – cfr. artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil.

No caso vertente, pretende a Autora a efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente em serviço, sofrido no Centro de Saúde da Alameda, em 17.04.2009, peticionando, a final, o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, razão pela qual se conclui que o objeto do presente processo se encontra, por aplicação conjugada do disposto no artigo 44.º-A, n.º 1, alíneas a) e b), do ETAF, subtraído à competência material deste Tribunal - Juízo Administrativo Comum – sendo competente, em razão da matéria, para dele conhecer o Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa.

(…)

Nos termos e pelos fundamentos expostos, declaro este Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa materialmente incompetente para conhecer do objeto do presente processo, e, em consequência, determino a remessa dos autos ao Juízo Administrativo Social deste Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. (…) ».

[cfr. decisão- fls.393/396 SITAF]

3º) Uma vez ali chegados, a Senhora Juíza a quem os presentes autos foram distribuídos, proferiu sentença com data de 25/03/2024, a declarar-se igualmente incompetente em razão da matéria para dirimir o litígio que lhe foi submetido, devolvendo a competência ao tribunal remetente. Dessa decisão, extrai-se o seguinte trecho:

«(…)a presente acção foi contestada e tem réplica, seguindo a tramitação normal, tendo sido distribuída no âmbito do Juízo Administrativo Comum (JAC), aquando da criação dos Juízos de competência especializada, por ter por objecto a responsabilidade civil,(…)

(…)(…)a contrario do entendimento vertido na sentença do JAC que antecede, não se trata aqui de uma lei interpretativa, com efeitos retroactivos, à luz do qual se remeteu para este Juízo Administrativo Social, um processo que vinha sendo tramitado no JAC, desde Set./2021 posto que uma lei, para ser considerada uma lei interpretativa, depende da verificação de requisitos cumulativos, que dela dimanam (cfr. art.º 13.º/1/C.Civil), não é o Julgador que lhe atribui tal natureza e efeitos retroactivos, sem mais, sendo certo que, «(…) para que uma lei se possa qualificar como interpretativa, parece-nos, ela tem de revelar, ao menos implicitamente, uma intenção de clarificação do regime legal anterior, intenção essa que há de ser revelada, ou pelo seu teor literal, ou pelo preâmbulo do diploma que a aprova ou, no mínimo, pelos respetivos trabalhos preparatórios (…).

(…)

o entendimento vertido no Ac. do STJ, de 9 de Dezembro de 2021, em sede de recurso para uniformização de jurisprudência, no que à qualificação de uma lei como sendo lei interpretativa concerne (Proc. n.º 2227/18.0YRLSB.S1-A, www.dgsi.pt), do qual se destaca o seguinte: «(…)

17. O critério determinante da qualificação de uma lei como interpretativa depende do preenchimento cumulativo de dois requisitos: o primeiro consiste em “a lei [nova] regular um ponto de direito acerca do qual se levantam dúvidas e controvérsias na doutrina e jurisprudência” e o segundo, em “a lei [nova] consagrar uma solução que a jurisprudência pudesse tirar do texto da lei anterior, sem intervenção do legislador”. Convocando a formulação de Baptista Machado, dir-se-á que o primeiro requisito está em que a solução do direito anterior, da lei antiga, “seja controvertida ou, pelo menos, incerta” e que o segundo requisito está em que a solução da lei nova se situe dentro dos quadros da incerteza, de forma a que “o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei”.

(…)

(…)in casu, tais requisitos cumulativos não se encontram preenchidos, seja porque, em momento algum houve controvérsia/dúvidas de que a competência para julgar litígios concernentes à efectivação de responsabilidade civil não estavam cometidos, pelo legislador (na redacção inicial do preceito em causa, dada pela Lei n.º 114/2019, de 12/09) ao Juízo Administrativo Social, caindo, destarte, a competência no Juízo de natureza residual – o JAC -, como resulta à saciedade da vasta jurisprudência existente na matéria, seja também porque, outrossim, a introdução da subalínea, v) Efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas referidas nas subalíneas anteriores; constitui um alargamento da competência originariamente atribuída ao Juízo Administrativo Social, ex novo, qua tale, significando isto que, esta “inclusão”, extravasa do quadro de qualquer controvérsia ou incerteza antes existente entre os Juízos Administrativos Social e Comum, que se procurasse solucionar, até porque, no âmbito da chamada interpretação autêntica (que não é uma verdadeira interpretação, antes é uma lei com efeito retroactivo), uma lei não pode ser interpretada senão por outra lei (neste sentido, vide Interpretação e Aplicação das Leis, de Francesco Ferrara, 3.ª Ed., Coimbra 1978, pág. 134), o que, in casu, a perfilhar a tese da lei interpretativa, teríamos a Lei n.º 114/2019, de 12/09 (12.ª alteração ao ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02), a ser derrogada pelo DL n.º 74-B/2023 de 28/08 (no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 34/2023, de 19/06), solução essa inviável, também por este prisma, atenta a hierarquia dos actos normativos (cfr. art.º112.º/1 e 2 da CRP),

Considerando, aqui chegados, que é consabido e resulta da lei – art.º 5.º/1/ETAF, inalterado, sob a epígrafe “Fixação da competência” -, que, A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente. (N/Negrito), o que, desde logo, bule com a tese que sustenta a sentença que antecede,

Considerando, por último, que, estando em causa nos presentes autos litígio relativo à efectivação de responsabilidade civil extracontratual, ao abrigo do regime aprovado pela Lei n.º67/2007, de 31/12 – litígio esse, anterior ao DL n.º 74-B/2023, de 28/08, reitera-se -, deverá aqui, como é bom de ver, ser a competência para dirimir tal litígio mantida no Juízo Administrativo Comum deste Tribunal, que a detinha à data da criação dos Juízos especializados (pelo DL n.º174/2019, de 13/12, em funcionamento desde 01/09/2020 - cfr. Portaria n.º 121/2020, de 22/05),

Considerando, em suma, abusivo (porquanto destituído de qualquer fundamento legal, e por se tratar de um processo prioritário – por determinação do CSAF, como é consabido -, ainda em fase de saneamento), qualquer que seja a vertente considerada, o entendimento vertido na sentença que antecede, que resultou na remessa dos presentes autos a este Juízo Administrativo Social, Impõe-se, tudo visto e ponderado, solicitar a V.ª Exa. a resolução do presente conflito negativo de competência, com a atribuição da competência material para conhecer da presente acção ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por se configurar não ser competente para dela conhecer o Juízo Administrativo Social (do TAC de Lisboa), independentemente das alterações legislativas entretanto ocorridas na matéria.»

[cfr. sentença fls.304/309- SITAF]

4º) Após o trânsito das decisões em conflito os autos foram remetidos ao TCA Sul em 21/05/2024.

[cfr. consulta ao SITAF].


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- De direito

Nos termos do artigo 36º, nº1, alínea t), do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos artigos 135º a 139º do CPTA.

Estabelece-se no nº 1 do artigo 135º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” segue o regime da ação administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109º e segs. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111º do CPC, que dispõe o seguinte:

“1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir.

2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

E, apesar do citado artigo 136º do CPTA manter a redação originária, acima transcrita, afigura-se-nos que a mesma não afasta a aplicação da norma do nº 1 do artigo 111º do CPC, a qual deve ser também aplicada no contencioso administrativo, com as devidas adaptações, por força do citado artigo 135º do CPTA.

Tenha-se presente que o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria – artigo 13º do CPTA.

Continuando, sob a epígrafe “Conflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

“1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.
2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
3 – Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência”.

Vejamos, então, repetindo que a questão que nos é agora trazida a juízo coloca-se por via da alteração ao artigo 44º-A, do ETAF, operada pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08, mais precisamente no que respeita à competência que é atribuída ao Juízo Administrativo Social para julgar as ações para efetivação de responsabilidade civil emergente de actos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas para as quais é competente o juízo administrativo social, a qual se mostra contemplada em v), da alínea b),do nº1, do citado preceito.

A nova redação dada à alínea b), do nº1 do artigo 44º-A, do ETAF, introduzida pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08, dispõe assim:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

(…)

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a:

i) Litígios emergentes do vínculo de emprego público, incluindo a sua formação;

ii) Exercício do poder disciplinar;

iii) Formas públicas ou privadas de previdência social;

iv) Pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial;

v) Efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas referidas nas subalíneas anteriores;

vi) Demais matérias que lhe sejam deferidas por lei” (sublinhado nosso).

Por sua vez, a redação anterior, decorrente da Lei nº114/2019, de 12/9, o artigo 44.º-A, do ETAF dispunha, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, o seguinte, no que para aqui releva:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

(…)

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei”.

Ou seja, não integrava na competência do juízo administrativo social as ações para efetivação de responsabilidade civil emergente de actos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas para as quais é competente o juízo administrativo social.

Porém, o legislador de 2023 (leia-se, o Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08) incluiu - como decorre da norma supra transcrita - no âmbito da esfera de competência do juízo administrativo social, todos os litígios relativos responsabilidade civil em que estejam em causa danos provocados por atos ou omissões para os quais aquele juízo administrativo é competente.

Disso deu conta o preâmbulo do aludido diploma quando refere queAinda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…).”( sublinhado nosso).

Como deixámos evidenciado, a questão que aqui se coloca e que fundamenta a divergência subjacente às decisões em conflito, está em saber se a apontada alteração, introduzida pelo Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ao citado artigo 44º-A do ETAF, tem natureza interpretativa (como defende a Senhora Juíza do Juízo Comum) ou inovatória (como defende a Senhora Juíza do Juízo Social). Dito de outro modo, importa saber se a alteração verificada é imediatamente aplicada a todas as ações para efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas para as quais é competente o juízo administrativo social, aí se incluindo os instaurados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ou se, diferentemente, apenas se aplica às ações entradas em juízo a partir de 29 de agosto de 2023 (cfr. artigo 9º do citado diploma).

Sobre esta questão – da natureza interpretativa ou inovatória da alteração ao artigo 44.º-A do ETAF, na redacção em vigor - já se pronunciou, em diversas ocasiões, este Tribunal Central Administrativo Sul, nomeadamente nas decisões singulares proferidas no âmbito dos processos nº1640/22.2BELRS, 19.04.2024 ; nº 2462/16.5BELRS, de 22.04.2024, nº165/21.8BELRS e 716/22.0BESNT, ambas de 26.04.2024 (disponíveis in http://www.dgsi.pt/jtcae.).

Assim, na já citada decisão singular proferida em 19 de abril de 2024, no âmbito do processo nº1640/22.2BELRS, escreveu-se, na parte que aqui importa, o seguinte:
“ (…)Dispõe o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil (CC), que “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza”.
Comecemos por caracterizar brevemente as leis interpretativas.
Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, pode dizer-se que são de natureza interpretativa aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado. Com efeito, tem-se entendido que a “razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nº 465/19.7 YRLSB 7).
“Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tomou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a lei nova que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 14/2013 de 12/11/13.
Como ensina Batista Machado, para que uma lei nova (LN) possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora – cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1991, pp. 345-347
Ainda a propósito do conceito de lei interpretativa, ensina Santos Justo que a lei interpretativa realiza uma interpretação autêntica, querendo isto dizer que, “o legislador interpreta uma lei (LA) através duma nova lei (LN). Para que estejamos em face de uma lei interpretativa é necessário que sejam satisfeitos alguns requisitos: “1. tempo: a lei interpretativa (LN) deve ser posterior à lei interpretada (LA); 2. finalidade: a lei interpretativa deve interpretar a LA, cuja solução, que oferece, se apresenta controvertida ou incerta; 3. fonte: a lei interpretativa não deve ser hierarquicamente inferior à lei interpretada” (Cfr. A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 2012, p. 390).
Vejamos, então, se podemos afirmar o caráter interpretativo da LN [o Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, na parte em que alterou o artigo 44º-A no segmento que aqui nos ocupa – nº1, alínea b), ii)], ou seja, vejamos se a LN passa no teste que nos permitirá saber se a mesma é interpretativa.
Em primeiro lugar, importa saber se há uma declaração expressa contida no texto do diploma nesse sentido. E aqui, percorrido o texto do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, a resposta é negativa.
Tem igualmente significado a afirmação expressa do carácter interpretativo constante do preâmbulo do diploma. Aí, tal afirmação também não se mostra feita.
Por último, se o diploma nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto (e até em conjugação com o teor do seu preâmbulo) quando for manifesta a referência (tácita) da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Também aqui, a resposta terá que ser negativa.
É verdade, e este Tribunal não o desconsidera, que, como evidencia a Mma. Juíza do Juízo Administrativo Comum, do preâmbulo do DL nº 74-B/2023, de 28/08, consta, além do mais, a propósito da competência dos juízos administrativos sociais, a referência a “interpretações divergentes” e “clarificação”. Com efeito, aí se lê, no que para aqui interessa, o seguinte:
“Ao nível da primeira instância, e face às interpretações divergentes que se têm verificado relativamente ao âmbito da competência dos juízos administrativos sociais e dos juízos de contratos públicos, e que conduziram a diversos conflitos negativos de competência, clarifica-se o sentido das normas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.
Assim, no que toca ao juízo administrativo social, prevê-se que a respetiva competência abrange os processos relativos a litígios emergentes de qualquer tipo de vínculo de emprego público, ao invés de se circunscrever unicamente aos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas, conforme resultava da versão originária da alínea b) do n.º 1 do referido artigo 44.º-A. Da mesma forma, o conceito de «formas públicas ou privadas de proteção social», originariamente empregue na redação inicial da norma delimitadora da competência do juízo administrativo social, é agora substituído pela noção, mais restrita e mais rigorosa, de «formas públicas ou privadas de previdência social». Neste sentido, clarifica-se que o juízo administrativo social não é o juízo comum de todos os litígios relacionados com questões de proteção social que cabem no âmbito da jurisdição administrativa, mas apenas dos litígios respeitantes a questões relacionadas com o sistema previdencial, refletindo assim, de forma mais fiel, aquela que era a intenção originária do legislador da Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro.
Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…)” (sublinhado nosso)

Ora, a leitura integral deste trecho do preâmbulo, face ao conhecimento das interpretações divergentes antes verificadas, permite-nos concluir que a clarificação do âmbito da competência do juízo administrativo social diz respeito aos litígios relativos a questões de proteção social (vide, entre outras, a Decisão do Presidente do TCA, de 01/07/22, no processo nº 196/21.8 BESNT).

(….)”

No mais, e no que para aqui importa – ações referentes para efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas para as quais é competente o juízo administrativo social - se atentarmos na asserção “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados (…)com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.” , somos levados a concluir que o legislador de 2023, através do DL 74-B/2023, de 28 de agosto, entendeu, inovadoramente, que o Juízo Administrativo Social era o juízo mais preparado para o julgamento de todas as pretensões fundadas em responsabilidade civil em que o fundamento desta decorre de atos ou omissões para os quais é competente ao juízo administrativo social.

Diga-se, por último, quanto à “aplicação no tempo” do DL 74-B/2023, de 28/08, que o artigo 8º de tal diploma previu expressamente a aplicação aos processos pendentes das alterações respeitantes à “alínea b) do artigo 26.º do ETAF e ao artigo 280.º do CPPT” e, bem assim, a norma revogatória contida na “alínea a) do artigo 6º” (o nº 2 do artigo 83º do Regime Geral das Infrações Tributárias).

Face a tudo quanto vem dito, não se vê qualquer razão para reconhecer natureza interpretativa à nova redação do artigo 44º-A, nº1, alínea b), do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, nos termos que aqui fomos chamados a apreciar, antes – isso, sim – natureza inovatória.

Cabe ainda convocar para aqui o estatuído do 5º do ETAF, nos termos do qual “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”, de conteúdo análogo ao artigo 38.º da Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário que dispõe no seu nº1 que “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.”

Em face do que vem dito e tendo presente, por um lado, que no caso dos autos, a presente ação de efetivação de responsabilidade civil deu entrada em juízo no dia 18 de setembro de 2019 (cfr artigo 1º da matéria de facto assente), por conseguinte, em momento anterior à publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/8 e, por outro lado, que o litígio aqui em dissidio não era, no quadro do direito anterior ( Decreto-Lei nº114/2019) objeto de uma previsão legal expressa, só nos resta concluir que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito, não cabe ao juízo de administrativo social do TAC de Lisboa mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal - artigo 5º do ETAF, alínea b) do nº 1 do artigo 44º-A do ETAF, na redação dada pela Lei nº 114/2019, de 12/9 e artigo 2º, nº1, alínea a) do DL nº 174/2019, de 13/12 (criação de juízos de competência especializada/ ETAF), conjugado com a alínea a) do artigo 1º da Portaria nº 121/2020, de 22/5 (Entrada em Funcionamento dos Juízos Especializados dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 21/08/24


A Presidente do TCA Sul

(Catarina Almeida e Sousa)