Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:42511/24.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/29/2025
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:MODIFICAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVA
PROVA DOCUMENTAL
REPRODUÇÃO DE DOCUMENTO
AGREGADO FAMILIAR
UNIÃO DE FACTO
CEDÊNCIA DE GOZO DA HABITAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - Atento o princípio do dispositivo, a modificação da decisão da matéria de facto depende da iniciativa da parte interessada, na falta da qual a decisão do recurso deve considerar a factualidade fixada na sentença recorrida.
II - Considerando que, nos termos do n.º 1 do artigo 118.º do CPTA, pode haver lugar a produção de prova quando o juiz a considere necessária, cabe ao recorrente que a pretenda produzir demonstrar tal necessidade, designadamente especificando os factos cuja prova se impõe.
III - Sendo os documentos meios de prova de factos, os factos provados com base em documentos devem ser discriminadamente enunciados, não correspondendo a reprodução do teor de um documento à enunciação de factos.
IV - Estando escrito na matéria de facto fixada na sentença que consta de um documento que o requerente declarou que o agregado familiar que habitava o locado integrava a sua mulher, tal não constitui a enunciação do facto de que a sua mulher integra o agregado familiar que habita o locado.
V - Não se tendo provado que a companheira do recorrente integra o agregado familiar que habita o locado, nem que ambos vivem em união de facto, se a mesma ali vive, fá-lo, consequentemente, por cedência de quem lá habita, pelo que estamos perante uma cedência de gozo da habitação.
VI - Sendo proibida a cedência do gozo da habitação por parte do arrendatário ou de qualquer elemento do seu agregado familiar, e constituindo causa de resolução do contrato, a permanência na habitação, por período superior a um mês, de pessoa que não pertença ao agregado familiar, sem autorização prévia do senhorio (artigos 4.º, n.º 2, e 25.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro), a ordem de desocupação do fogo por parte de pessoa não autorizada visa, precisamente, obstar à resolução do contrato.
VII - Em face do disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, para além de a inconstitucionalidade se dever reportar a norma, e não a acto administrativo, o tribunal apenas conhece do pedido de desaplicação de norma por inconstitucionalidade se tal conhecimento implicar a aplicação dessa norma e se a procedência do pedido depender, em alguma medida, da sua desaplicação.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

C… instaurou processo cautelar contra o Município de Loures, pedindo (i) a suspensão da eficácia da decisão de desocupação do locado proferida em 29.10.2024 pela Chefe de Divisão de Promoção e Gestão da Habitação, e (ii) a integração, a título provisório, da sua companheira no seu agregado familiar para efeitos habitacionais.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a julgar improcedente o processo cautelar, por considerar não verificado o requisito do fumus boni iuris.
O requerente interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“a) A decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, ao desconsiderar que a coabitação em união de facto com o Recorrente não pode ser equiparada à permanência de terceiros estranhos, violando a correta interpretação do art. 25.°, n.° 1, alínea d), da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, e do art. 73.° do Regulamento Municipal de Habitação.
b) Não obstante as alegações do Tribunal a quo, que sustenta que o Regulamento da Câmara Municipal não prevê a cedência do contrato de arrendamento por parte do titular, os factos demonstram a necessidade de uma interpretação mais ampla e conforme aos princípios da estabilidade habitacional e da proteção do agregado familiar.
c) O Recorrente, que integra o agregado familiar desde a celebração do contrato e cuja composição foi formalmente comunicada à Câmara Municipal, em 2002, convive em união de facto com a sua companheira há mais de quinze anos.
d) Posteriormente, requereu a atualização da composição do agregado, solicitando a inclusão da referida companheira, sem que tenha obtido qualquer resposta da entidade competente.
e) A inércia da Câmara Municipal em responder ao pedido formulado configura uma omissão relevante, com impacto direto nos direitos do Recorrente e na segurança jurídica da sua situação habitacional.
f) Em resultado desta omissão, foi imposta uma medida manifestamente desproporcional e inconstitucional, traduzida no despejo isolado da companheira do Recorrente da habitação, onde este integra o agregado familiar desde a sua constituição.
g) Tal decisão desconsidera a proteção conferida à união de facto e afronta os princípios da proporcionalidade e da tutela da estabilidade familiar.
h) O regime de arrendamento apoiado, em conjugação com os artigos 65.° e 67.° da CRP, visa a concretização do direito à habitação, protegendo a estabilidade familiar. A exclusão formal da companheira do Recorrente não encontra, por isso, qualquer fundamento legal, configurando uma restrição injustificada e desproporcional.
i) A coabitação da companheira não configura cedência a terceiros ou ocupação indevida, pois a união de facto é legalmente reconhecida, não podendo ser equiparada à presença de um estranho ao agregado, sob pena de violação do direito fundamental à constituição e manutenção da família. O Recorrente integra o arrendamento desde a origem, não se verificando qualquer "ruptura" contratual ou subarrendamento, mas apenas a continuidade de ocupação resultante da saída do titular originário, formalmente comunicada ao Município, cuja inércia em reconhecer a substituição não legitima a extinção do arrendamento.
k) Existe fumus boni iuris, porquanto a ação principal de impugnação do ato de desocupação tem elevada probabilidade de procedência, considerando a proteção constitucional do direito à família e a legítima presença da companheira no seu núcleo habitacional.
1) Verifica-se periculum in mora, pois a execução imediata do despacho administrativo implicaria um dano irreversível à vida familiar do Recorrente, impossibilitando a salvaguarda efetiva do direito à habitação, caso o processo principal venha a reconhecer a ilegalidade do ato.
m) O princípio da proporcionalidade (art. 7.° do CPA e art. 18.° da CRP) não foi respeitado, sendo a desocupação imediata uma medida excessiva e injustificada, quando a autarquia poderia proceder à atualização do agregado familiar e, se necessário, efetuar o recálculo de rendas, em conformidade com a Lei n.° 81/2014 e o respetivo regulamento municipal.
n) O indeferimento da produção de prova testemunhal cerceou a possibilidade de demonstrar, de forma robusta, a legitimidade da coabitação e a continuidade da ocupação pelo Recorrente e sua companheira, contribuindo para um juízo erróneo quanto ao fumus boni iuris.
o) Não há demonstração de prejuízo irreparável para o interesse público em manter provisoriamente o Recorrente e a companheira no imóvel, inexistindo quaisquer indícios de comportamento abusivo ou rentabilização indevida do locado; ao invés, a execução imediata do despejo causa dano irreversível ao Recorrente.
p) O reconhecimento formal da companheira no agregado familiar constitui via legalmente admissível e menos gravosa, adequada à finalidade do arrendamento social, permitindo a permanência de um agregado efetivo em condições de dignidade, sem violar a ratio do regime do arrendamento apoiado.
q) Há fortes razões para concluir que o ato administrativo padece de ilegalidade, quer por erro nos pressupostos de facto (desconsiderando a união de facto existente), quer por desrespeito dos princípios constitucionais e legais que regem a proteção da habitação e da família, gerando a probabilidade de anulação do despacho em sede de ação principal.
r) Consequentemente, os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora encontram-se satisfatoriamente preenchidos, devendo ser decretada a suspensão de eficácia do ato, preservando o status quo até à decisão final do litígio, conforme prevê o artigo 120.° do CPTA.
s) Pelo que, deve ser revogada a sentença recorrida e decretada a providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho de 29.10.2024, ordenando-se a manutenção do Recorrente e do seu agregado familiar no locado até à decisão final.”
Notificado das alegações apresentadas, o requerido não apresentou contra-alegações.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, nos termos da sentença recorrida.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), importa apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença padece de erro de julgamento de direito.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida fixou os seguintes factos, que considerou indiciariamente provados:
“1. Em 27/02/2002, pelo Chefe da Divisão Municipal de Habitação do Município de Loures foi emitido o documento designado por “Edital n.º 87”, do qual se extrai o seguinte:
“Serve o presente para notificar o Ser. A… e respectivo agregado familiar, composto pelo Sr. C… e Sr.ª D.ª F…, recenseados no P.E.R. da Câmara Municipal de Loures, no núcleo de Barracas n.º …, ocupantes da Barraca n.º …, sita na Quinta …, Freguesia de Sacavém, que por despacho da Sr.ª Vereadora do Pelouro, datado de 2001/12/14, por delegação do Presidente da Câmara Municipal de Loures, ao abrigo do art.º 69 n.º 2 e da alínea m) do n.º 2 do art.º 68, todos da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, e ao abrigo do despacho n.º 145 do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Loures, foi ordenada a desocupação de pessoas e bens da barraca acima identificada e a consequente demolição desta, atenta as alíneas A e B do art.º 5º do Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de Maio, e atenta a reiterada recusa de assinatura do contrato de arrendamento relativo ao fogo sito na Urb. Q…, Lote …, …., Freguesia de Sacavém, pelo que, no prazo de 10 dias contados a partir da data da afixação do presente edital, poderão pronunciar-se sobre a ordem dada, nos termos do art.º 101 do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, com a actual redacção em vigor, sob pena, caso não cumpram, de imediata execução coerciva a expensas dos notificados, não se respobsabilizando esta Câmara pelos prejuízos que daí possam advir, e, sob pena da prática de um crime de desobediência previsto e púbico pelo art.º 348 do Código Penal. (…)”
– cfr. documento 1 junto com o requerimento inicia, a fls. 29 dos autos; facto admitido por acordo entre as partes;
2. Em 10/01/2023, pela Diretora do Departamento de Habitação do Município de Loures foi emitido o documento designado por “Edital n.º 15/2024”, que aqui se dá como reproduzido e do qual se extrai, entre o mais, o seguinte:
“Assunto: RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO APOIADO E CONSEQUENTE DESPEJO DA HABITAÇÃO MUNICIPAL – NOTIFICAÇÃO PARA AUDIÊNCIA PRÉVIA DOS INTERESSADOS – A… P…, Diretora do Departamento de Habitação, FAZ PÚBLICO, em conformidade com o artigo 121.º do Código do Procedimento Administrativo, que por despacho da vice-Presidente da Câmara Municipal de Loures datado de 30/08/2023, proferido ao abrigo das competências delegadas pelo Presidente da Câmara Municipal conforme despacho n.º 362 exarado a 23 de setembro de 2022, e para os efeitos previstos na h), do n.º 2, do artigo 35.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, mereceu decisão favorável a: Proposta de resolução do contrato de arrendamento apoiado celebrado com A…, para a fração municipal sita na Urbanização M…, Lote …, …, Sacavém, e consequente despejo administrativo deste e demais residentes na fração.
Tal proposta de decisão fundamenta-se nos seguintes factos:
• Cedência indevida a terceiros;
• Não prestação ao Município das informações obrigatórias previstas na lei, nomeadamente com a entrega de documentos, ainda que tenha sido notificada para o efeito;
Neste âmbito, e nos termos dos artigos 121.º e 122.º do Código do Procedimento Administrativo, dispõem os interessados de 10 (dez) dias úteis contados a partir do dia útil a seguir à afixação ou publicação na internet do presente edital, consoante o que ocorrer em último lugar, para se pronunciarem por escrito, sobre as questões que constituem objeto do presente procedimento, bem como para requerer diligências complementares e juntar documentos.
(…)
O presente edital vai autenticado com o selo oficial em uso no Município de Loures, constituído por 1 folha, será publicitado no sítio institucional da Câmara municipal de Loures em www.cm-loures.pt, afixado na porta da habitação municipal ora arrendada, na entrada do serviço da Administração por onde corre o procedimento – Departamento de Habitação da Câmara Municipal de Loures e na sede da Junta de Freguesia de Sacavém e Prior Velho, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 112.º do Código do Procedimento Administrativo e da alínea f) do n.º 4 do art.º 34.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, na sua redação atual. (…)”
– cfr. documento 2 junto com o requerimento inicia, a fls. 30 e 31 dos autos; facto admitido por acordo entre as partes;
3. Em 21/02/2024, o Requerente apresentou pronúncia, dirigida ao Departamento de Habitação da Câmara Municipal de Loures, remetida através de carta registada com aviso de receção, que aqui se dá como reproduzida e da qual se extrai, entre o mais, o seguinte:
“Exmo. Senhor
Presidente da Câmara Municipal de Loures,
Na sequência do edital n.º 15/2024, afixado na habitação sita na Urbanização M…, lote …, …, em Sacavém, e na qualidade de mandatária do Sr. C… e do Sr. A…, venho pela presente pronunciar quanto aos factos alegados por V/Exa: a) No que concerne à alegada cedência indevida da habitação a terceiros, importa esclarecer que, segundo Edital n.º 87, lavrado a 27 de fevereiro de 2002, que se junta em anexo, consta como agregado familiar do Sr. A…, a D. F… e o Sr. C…. De facto, o Sr. A… e a D. F…,residem em França, onde atualmente têm osseustrabalhosrrendimentos, no entanto, o Sr. C…permaneceu e permanece na morada supramencionada acompanhado da sua esposa, nunca tendo cedido a habitação a qualquer pessoa, mantendo-se assim o seu agregado familiar. Mais, o ora requerido, procurou manter a sua situação regularizada, preservando a habitação e assumindo o pagamento das rendas, ainda que atualmente, devido ao estado económico do país, tenha duas rendas em atraso, a verdade é que o mesmo tem intenções de cumprir com o estabelecido e, por isso, desde já se requer a V/Exa. pagamento faseado das mesmas. b) Relativamente à não entrega dos documentos solicitados pelos V/Ilustres serviços, de facto o m/constituinte não havia entregue os mesmos por a notificação ter sido feita ao titular do arrendamento, contudo, vem na presente missiva juntar toda a documentação necessária para junção ao s/processo, permitindo a sua continuidade como arrendatário da habitação.
Pelo exposto, e tendo em consideração todos os elementos que se junta em anexo, solicita-se a V/Exa. análise dos mesmos de modo que o contrato possa permanecer em vigor, sendo certo que o Sr. A… cede a sua posição contratual ao seu irmão, C…, conforme procuração que se junta. (…)”
– cfr. documento 3 junto com o requerimento inicia, a fls. 32 a 37 dos autos; facto admitido por acordo entre as partes;
4. Em 29/10/2024, pelos serviços do Município de Loures foi emitido o ofício n.º 44549, dirigido a A…, do qual se extrai o seguinte:
“Assunto: NOTIFICAÇÃO PARA DESOCUPAÇÃO DO LOCADO
Serve o presente ofício para notificar V. Ex.ª que esta Autarquia tomou conhecimento que se encontra a residir no fogo que lhe foi atribuído, elementos que não fazem parte do agregado realojado, pelo que se encontra V. Ex.ª a violar o disposto no contrato de arrendamento e demais legislação em vigor.
Alerta-se desde já V. Ex.ª que as alterações ocorridas no seu agregado familiar, devem ser comunicadas aos serviços municipais e devidamente comprovadas.
Mais se informa, que de acordo com a alínea i) do ponto 1 do art.º 73ª do RHML, “A permissão de permanência na habitação de pessoas que não pertençam ao agregado familiar por período superior a um mês, salvo se o Município de Loures o tiver autorizado”, constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento apoiado.
Fica assim V. Ex.ª desde já notificado(a) que os elementos acolhidos no fogo, uma vez que se encontram a residir ilegalmente, terão de o desocupar no prazo de 10 (dez) dias, contados a partir da data da receção da presente notificação.”
– cfr. documento 5 junto com o requerimento inicia, a fls. 39 dos autos; facto admitido por acordo entre as partes;
5. Em 19/01/2024, pela Junta de Freguesia da União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, foi lavrado documento intitulado “ATESTADO”, do qual se extrai o seguinte:
“A Junta De Freguesia Da União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, Concelho de Loures, atesta nos termos da lei 75/2013 de 12 de Setembro artº 16, nº 1 alínea rr), que C…, nascido em 04-…-1…, Solteiro, Pedreiro, filho de A… e de F…, natural de Cabo Verde, portador do Título de Residência Nº 9…, Emitido em 04-02-2021, com morada em Sacavém, reside nesta Freguesia há cerca de 29 anos, na Rua A…, Lote …, …, 2…-1… Sacavém, conforme declarações prestadas pelo próprio. Mais se atesta e ao que nos consta, o Agregado Familiar do requerente é composto pelo mesmo e sua esposa M…, de 50 anos de idade, sua mãe F…, de 83 anos de idade e seus filhos J…, de 58 anos de idade e A…, de 52 anos de idade. Por nos ter sido pedido para fins de Residência, para ser apresentado na Câmara Municipal de Loures, se passa o presente que vai assinado pelo Presidente e autenticado com o selo branco desta Junta. (…)”
– cfr. documento 6 junto com o requerimento inicia, a fls. 40 dos autos; facto admitido por acordo entre as partes.”


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Os pressupostos do decretamento das providências cautelares constam do artigo 120.º do CPTA, cujos n.ºs 1 e 2 estabelecem o seguinte: “1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente. 2 - Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”
Assim, a adopção de providências cautelares depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) periculum in mora, ou seja, fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal; e (ii) fumus boni iuris, ou seja, probabilidade de procedência da pretensão formulada no processo principal. Todavia, ainda que verificados tais pressupostos, as providências cautelares são recusadas “quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”
Em suma, a não verificação do periculum in mora ou do fumus boni iuris determina o indeferimento da providência; caso se verifiquem cumulativamente tais pressupostos – e só apenas nesse caso -, importa proceder à referida ponderação de interesses públicos e privados em presença e, decorrendo da mesma que os danos que resultariam da concessão da providência se mostram superiores aos que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências, o Tribunal indefere a providência.

A sentença recorrida julgou improcedente o processo cautelar por considerar não verificado o requisito do fumus boni iuris, não sendo provável que a pretensão a formular no processo principal venha a ser julgada procedente, em virtude de a companheira do requerente ocupar a habitação municipal em causa sem pertencer ao agregado familiar autorizado a permanecer na mesma e sem para tal estar autorizada pelo Município de Loures, tal como impõem a alínea a) do artigo 24.º e a alínea d) do n.º 1 do artigo 25.º, ambos da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, bem como a alínea i) do n.º 1 do artigo 73.º do Regulamento da Habitação do Município de Loures, sendo proibida qualquer forma de cedência do gozo da habitação por parte do arrendatário ou de qualquer elemento do seu agregado familiar, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro.

Insurge-se o recorrente contra o assim decidido, imputando-lhe erro de julgamento de direito.

Começa por alegar que foi requerida a actualização da composição do agregado familiar, tendo sido solicitada a inclusão da sua companheira, com quem vive em união de facto há mais de quinze anos, sem que tenha obtido qualquer resposta da entidade competente, aduzindo ainda que o indeferimento da produção de prova testemunhal lhe cerceou a possibilidade de demonstrar a legitimidade da coabitação da sua companheira.
Todavia, não tendo o recorrente impugnado a decisão relativa à matéria de facto, importa considerar a matéria de facto que foi fixada pelo Tribunal a quo. Com efeito, atento o princípio do dispositivo, a modificação da decisão da matéria de facto depende da iniciativa da parte interessada, na falta da qual a decisão do recurso deve considerar a factualidade fixada na sentença recorrida.
Ora, do probatório não resulta que o recorrente tenha requerido ao Município de Loures a actualização da composição do agregado familiar, solicitando a inclusão da sua companheira, muito menos que tal requerimento não tenha obtido resposta. Por conseguinte, não podemos assentar no pressuposto de facto da alegação do recorrente, o de que foi requerida a inclusão da sua companheira no agregado familiar, que visa demonstrar a regularidade do gozo da habitação por parte da mesma.
Ademais, considerando que, nos termos do n.º 1 do artigo 118.º do CPTA, pode haver lugar a produção de prova quando o juiz a considere necessária, cabe ao recorrente que a pretenda produzir demonstrar tal necessidade, designadamente especificando os factos cuja prova se impõe. Assim, não especificando o recorrente os factos concretizadores da alegada “legitimidade da coabitação da sua companheira”, cuja prova implicasse a produção de prova testemunhal, fica inviabilizada a análise da pertinência da prova em causa.


Alega também que, ao contrário do decidido, a coabitação da companheira não configura cedência a terceiros ou ocupação indevida, dado que a união de facto é legalmente reconhecida, não podendo ser equiparada à presença de um estranho ao agregado, sob pena de violação do direito fundamental à constituição e manutenção da família.
Vejamos.
Nos termos do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, “É proibida qualquer forma de cedência, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, do gozo da habitação por parte do arrendatário ou de qualquer elemento do seu agregado familiar, nomeadamente a cessão da posição contratual, o subarrendamento, a hospedagem ou o comodato.”, constituindo causa de resolução do contrato de arrendamento apoiado pelo senhorio, “A permanência na habitação, por período superior a um mês, de pessoa que não pertença ao agregado familiar, sem autorização prévia do senhorio” (cfr. artigo 25.º, n.º 1, alínea d)). Para efeito do disposto nesta lei, considera-se «Agregado familiar», “o conjunto de pessoas que residem em economia comum na habitação arrendada, constituído pelo arrendatário e pelas pessoas referidas nas alíneas a), b), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, bem como por quem tenha sido autorizado pelo senhorio a permanecer na habitação” (cfr. alínea a) do artigo 3.º), sendo as pessoas referidas em tais alíneas “a) Cônjuge ou pessoa em união de facto há mais de dois anos; b) Parentes e afins maiores, em linha recta e em linha colateral, até ao 3.º grau; c) Parentes e afins menores em linha recta e em linha colateral; d) Adoptantes, tutores e pessoas a quem o requerente esteja confiado por decisão judicial ou administrativa de entidades ou serviços legalmente competentes para o efeito; e) Adoptados e tutelados pelo requerente ou qualquer dos elementos do agregado familiar e crianças e jovens confiados por decisão judicial ou administrativa de entidades ou serviços legalmente competentes para o efeito ao requerente ou a qualquer dos elementos do agregado familiar.” Importa considerar ainda que uma das obrigações do arrendatário é efectuar as comunicações e prestar as informações ao senhorio relativas à composição do seu agregado familiar (cfr. artigo 24.º, alínea a)), constituindo o seu incumprimento causa de resolução do contrato de arrendamento apoiado pelo senhorio (cfr. artigo 25.º, n.º 1, alínea a)).
Antes de mais, ao contrário do que afirma o recorrente, não decorre do probatório que o recorrente viva em união de facto com a sua companheira na habitação em causa nem que a mesma integre o agregado familiar. Diferentemente, o que emerge do probatório, no seu ponto 5., é apenas que, em 19/01/2024, pela Junta de Freguesia da União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, foi lavrado documento intitulado “ATESTADO”, referindo que atesta nos termos da lei 75/2013 de 12 de Setembro artº 16, nº 1 alínea rr), que C…, (…), com morada em Sacavém, reside nesta Freguesia há cerca de 29 anos, na Rua A…, Lote …, …, 2…-1… Sacavém, conforme declarações prestadas pelo próprio” e que “Mais se atesta e ao que nos consta, o Agregado Familiar do requerente é composto pelo mesmo e sua esposa M…, de 50 anos de idade (…).” Ou seja, o que emerge do probatório é que o recorrente declarou perante a Junta de Freguesia da União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, que residia há cerca de 29 anos, na Rua A…, Lote …, …, 2…-1… Sacavém, e que o seu agregado familiar é composto pelo mesmo e sua esposa M…, de 50 anos de idade, e que a Junta de Freguesia verteu em “atestado” essas suas declarações.
Com efeito, a “prova como resultado probatório” distingue-se do “meio de prova”: a primeira é a demonstração da realidade de um facto; o segundo é o elemento que permite ao juiz formar a sua convicção “acerca das afirmações de factos feitas pelas partes” – cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2015, pp. 221 e 222). Nos termos do artigo 362.º do Código Civil, “Prova documental é a que resulta de documento (...)”, sendo os documentos meios de prova de factos. Assim, os factos provados com base em documentos devem ser discriminadamente enunciados, não correspondendo a reprodução do teor de um documento à enunciação de factos.
Estando escrito na matéria de facto fixada na sentença que consta de um documento que o requerente declarou que o agregado familiar que habitava o locado integrava a sua mulher, tal não constitui a enunciação do facto de que a sua mulher integra o agregado familiar que habita o locado.
E não se tendo provado que a companheira do recorrente integra o agregado familiar que habita o locado, nem que ambos vivem em união de facto, se a mesma ali vive, fá-lo, consequentemente, por cedência de quem lá habita, seja o arrendatário, seja qualquer dos elementos do seu agregado familiar. Assim, independentemente do tipo de cedência, indubitavelmente que estamos perante uma cedência de gozo da habitação, ainda que a companheira do recorrente viva com o mesmo em união de facto, pois que essa realidade não se mostra provada, pelo que, para efeitos de execução do contrato de arrendamento, é como se não existisse, tal não significando, como alega o recorrente, que a união de facto esteja, assim, a ser equiparada à presença de um estranho ao agregado. Nestes termos, não se vislumbra qualquer violação do direito fundamental à constituição e manutenção da família.

Alega ainda o recorrente que, “Apesar de o Regulamento Municipal de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa não prever a cedência do contrato de arrendamento por parte do titular, impõe-se uma interpretação mais ampla e conforme aos princípios da estabilidade habitacional e da proteção do agregado familiar”, alegação esta que se mostra de tal modo vaga e genérica, que obsta à sua análise, desde logo porque o recorrente, para além de não identificar a norma que, no seu entendimento, merece uma “interpretação mais ampla e conforme aos princípios da estabilidade habitacional e da proteção do agregado familiar”, também não enuncia o sentido interpretativo que considera ser violador dos princípios que invoca.

Por fim, o recorrente invoca que o “despejo isolado” da sua companheira da habitação carece de fundamento legal e é inconstitucional, não só por desconsiderar “a proteção conferida à união de facto”, mas também por violar o princípio da proporcionalidade, “sendo uma medida excessiva porque a autarquia poderia proceder à atualização do agregado familiar e, se necessário, efetuar o recálculo de rendas, em conformidade com a Lei n.° 81/2014 e o respetivo regulamento municipal”.
Mas também neste ponto não lhe assiste razão.
Por um lado, o acto suspendendo e impugnado, ao determinar a desocupação dos “elementos acolhidos no fogo” que não integram o agregado familiar, em violação do “contrato de arrendamento e demais legislação em vigor” não carece de fundamento legal pois, como acima referido, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, é proibida a cedência do gozo da habitação por parte do arrendatário ou de qualquer elemento do seu agregado familiar, constituindo causa de resolução do contrato pelo senhorio, a permanência na habitação, por período superior a um mês, de pessoa que não pertença ao agregado familiar, sem autorização prévia do senhorio (cfr. artigo 25.º, n.º 1, alínea d), da referida Lei). Deste modo, a ordem de desocupação do fogo por parte de pessoa não autorizada visa, precisamente, obstar à resolução do contrato.
Por outro lado, a inconstitucionalidade invocada não procede. Com efeito, nos termos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.” Assim, para além de a inconstitucionalidade se dever reportar a normas, e não a actos administrativos, o tribunal apenas conhece do pedido de desaplicação de norma por inconstitucionalidade se tal conhecimento implicar a aplicação dessa norma e se a procedência do pedido depender, em alguma medida, da sua desaplicação.
Ora, para além de o recorrente imputar a inconstitucionalidade ao acto que determina a desocupação do fogo por parte da sua companheira, e não à norma em que o mesmo assenta, o que impossibilita a apreciação desta alegação, a sua alegação de violação da “proteção conferida à união de facto” e do princípio da proporcionalidade não se mostra minimamente densificada, não enunciando o recorrente uma interpretação normativa que tenha sido aplicada e que se revele desconforme com a lei fundamental.

Ante o exposto, improcede o invocado erro de julgamento de direito e, consequentemente, mantém-se o juízo de improbabilidade de procedência da acção principal, constante da sentença recorrida.
Aqui chegados, e atenta a circunstância de os pressupostos de concessão das providências cautelares serem de verificação cumulativa, não há que avançar para análise dos demais pressupostos de decretamento das providências cautelares.
Termos em que se impõe julgar o presente processo cautelar improcedente.
*
Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, nos termos dos artigos 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 29 de Maio de 2025

Joana Costa e Nora (Relatora)
Marta Cavaleira
Ricardo Ferreira Leite