Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1522/08.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/07/2021
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:LICENÇAS OU AUTORIZAÇÕES URBANÍSTICAS;
RELAÇÕES DO TITULAR DA LICENÇA COM TERCEIROS NÃO INTERVENIENTES NA OPERAÇÃO URBANÍSTICA.
Sumário:I. As normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido de licenciamento ou de autorização urbanísticas.

II. Ficam excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, designadamente, as relações de vizinhança ou relações com pessoas afetadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística e as situações especiais de responsabilidade que se verifiquem entre os intervenientes naquela operação.

III. Qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização, sob pena de usurpação de poderes, mas pelos tribunais.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

O MUNICÍPIO DE MAFRA, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 19.11.2020, que julgou procedente a ação administrativa especial intentada contra si por A..., na qual se impugnava o ato que ordenou o averbamento do alvará de construção de armazém agrícola sito na Amendoeira, Mafra, em nome de F....

Nas alegações de recurso que apresentou culminou com as seguintes conclusões – cfr. fls. 329 e ss. do SITAF:

«(…)

A. Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença do Tribunal a quo de 19 de Novembro de 2020, notificada ao ora Recorrente em 23 de Novembro de 2020, que apreciou o mérito da causa no âmbito da acção administrativa especial deduzida por A..., Autor e ora Recorrido, contra o MUNICÍPIO DE MAFRA, Réu e ora Recorrente, sendo Contrainteressada F..., em que se impugnou o ato administrativo que ordenou o averbamento (do nome) da Contrainteressada, em substituição do Autor, como titular do Alvará n.° 1592/2001, emitido no Processo de licenciamento de obra de construção (de armazém) n.° 134/2001, por ser a única proprietária do prédio denominado “V...”, com a área de 5 312,00 (cinco mil trezentos e doze) metros quadrados, sito na Amendoeira, na freguesia de Mafra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.° 5.../200110515 (anteriormente n.° 5..., a fls. 149 do Livro B-16), e inscrito na respetiva matriz cadastral sob o n.° 1..., secção J (fls. 189 a 190 do processo instrutor), sentença que julgou procedente por provada a ação interposta, e, em consequência, anulou a decisão de averbamento impugnada;

B. Nos autos que sobem a este Alto Tribunal, fixou o Douto Tribunal a quo como questões a decidir, (i) se o acto impugnado é anulável por preterição de audiência prévia; (ii) se o acto impugnado é anulável por falta de fundamentação; e, caso o seja; (iii) se a falta destas formalidades se deve degradar na preterição de formalidades não essenciais, devendo o acto impugnado ser aproveitado por o seu conteúdo decisório ser o único possível, recusando-se assim os seus efeitos invalidantes;

C. Como ficou demonstrado, o Douto Tribunal a quo lidou, apenas, com o conhecimento de vícios formais (não realização da audição e falta de fundamentação), uma vez que o Autor não imputou ao ato impugnado qualquer vício de violação de lei que inquinasse o seu conteúdo normativo, isto é, a (i)legalidade do averbamento da contrainteressada e do título - propriedade do prédio - por esta invocado para o efeito;

D. Como resulta da Douta Sentença recorrida, entendeu o Douto Tribunal a quo que, não tendo sido dado ao Autor direito de audição, era o ato impugnado ilegal, com fundamento nessa preterição, uma vez que, tendo já intervindo no procedimento em causa, era interessado para efeitos do artigo 100.° e ss. do CPA;

E. Por outro lado, entendeu também o Douto Tribunal a quo padecer o ato impugnado de vício de falta de fundamentação, uma vez que, apesar de se perceber que tal decisão se deveu à circunstância de a Contrainteressada ser a proprietária do terreno no qual o Autor iniciou a construção do armazém em causa nos presentes autos, a Entidade Demandada não explicita naquele ato quais as normas que permitem ou impõem que a CI, na qualidade de proprietária do terreno onde se visa construir ou já construiu, substitua o Autor, enquanto titular do procedimento em causa;

F. Isto é, entendeu o Douto Tribunal a quo que, embora o ato impugnado se apresente fundamentado de facto, já não se encontra fundamentado de direito, uma vez que o ato impugnado é omisso, por não indicar, o normativo jurídico que fundou a decisão de facto;

G. Por último, quanto à terceira e última questão, de saber e decidir se a preterição das duas formalidades supra, uma vez demonstradas, se deveriam degradar em não essenciais, tendo em conta que o novo ato a emitir, isento dos mesmos vícios, não poderá deixar de ter o mesmo conteúdo decisório - isto é, no caso, o novo ato a praticar não poderá deixar de consistir no averbamento da proprietária como titular do processo -, assim se economizando tempo e meios, aproveitando o ato impugnado, entendeu o Douto Tribunal a quo que a decisão em causa não se apresenta estritamente vinculada, apresentando alguma margem de discricionariedade, cumprindo à administração efetuar valorações próprias da sua função, que não foram efetuadas;

H. Acrescentando-se que estava a Entidade Demandada obrigada a ponderar factos como os descritos nos pontos 10), 11) e 12) do julgamento da matéria de facto, ponderação que não foi feita;

I. Como fica demonstrado, salvo o devido respeito, e melhor entendimento deste Alto Tribunal, entende o MUNICÍPIO DE MAFRA, ora Recorrente, que o julgamento que o Douto Tribunal a quo fez às 3 (três) questões decidendas supra padece de erro de julgamento de direito;

J. O presente recurso jurisdicional tem também por objeto a decisão proferida sobre a matéria de facto, concretamente a decisão respeitante aos factos dados como provados nos números 3), 10), 11), 12) e 18), entendendo o ora Recorrente que uma correta apreciação da prova produzida, nomeadamente da produzida por confissão do Autor, impunha um diferente julgamento da matéria de facto, e concretamente dos factos supra referidos, os quais devem ser reapreciados por este Alto Tribunal;

K. Como ficou demonstrado, o sentido e conteúdo da douta decisão recorrida adveio de vários erros de julgamento que foram cometidos pelo Douto Tribunal a quo no decurso do processo, designadamente no que concerne ao julgamento da matéria de facto que deu como provada, e, por conseguinte, da matéria de facto tida como relevante para a apreciação do mérito da causa, bem como da interpretação das normas de direito aplicáveis;

L. Desde logo, entendeu o Douto Tribunal a quo, com base na prova documental carreada para os autos, julgar provado que: “3) Juntamente com o requerimento mencionado no ponto antecedente o Autor entregou a declaração mencionada no ponto 1) supra (cfr. documentos a fls. 1 a 26 do PA apenso aos autos)”;

M. Ora, sendo verdade quanto ali consta, não é, contudo, indicada a razão porque o Autor teve de juntar com o seu Requerimento a Declaração referida em 1) emitida pelos comproprietários do prédio aqui me causa;

N. Entende o ora Recorrente que a razão da necessidade de instruir o Requerimento de licenciamento em seu nome com a referida Declaração constitui, ainda, matéria de facto dos presentes autos, pelo que deve constar da fundamentação de facto da Douta Sentença Recorrida;

O. Ora, não sendo o Autor, nem nunca tendo sido, proprietário do prédio aqui em causa - como o próprio confessa nos artigos 4.° e 13.° (a contrario) da sua petição inicial - para poder requerer o pedido de licenciamento da construção em terreno de terceiro, tinha que obrigatoriamente apresentar uma Declaração do respetivo proprietário, autorizando esse mesmo pedido e essa mesma construção, sob pena de ser o mesmo requerimento liminarmente rejeitado, por falta de legitimidade;

P. Tendo em atenção o quadro legal aplicável, tinha o Requerimento referido em 2) da matéria de facto, que ser necessariamente instruído com a Declaração referida em 1) da matéria de facto, instrução e necessidade de instrução, essas, que constituem matéria de facto nos presentes autos;

Q. Ora, a matéria de facto constante do ponto 3) apenas dá como provada a instrução, nada referindo quanto à necessidade de instrução, que é ainda matéria de facto;

R. Consequentemente, uma correta apreciação da prova documental e da confissão do Autor obriga a que se dê como provado no ponto 3) que: “3) Juntamente com o requerimento mencionado em 2) o Autor entregou a declaração mencionada em 1) supra, para efeitos de prova da sua legitimidade como Requerente (cfr. documentos a fls. 1 a 26 do PA);

S. requerendo-se assim a reapreciação e alteração do ponto 3) da matéria de facto, nos termos e com os fundamentos expostos;

T. Por outro lado, entendeu o Douto Tribunal a quo dar como provado, em 10), 11) e 12) que:

“10) Em 2003, o armazém mencionado no ponto 2) supra foi inscrito na matriz urbana, no Serviço de Finanças de Mafra sob o artigo 8847 (cfr. documento a fls. 39 e 40 dos autos);

11) Desde 2003 e, pelo menos, até 06-12-2007, o Autor constava como único titular, em propriedade plena do armazém mencionado em 2) supra, na respectiva caderneta predial urbana (cfr. documento a fls. 39 e 40 dos autos);

12) Desde 2003 e, pelo menos, até 17-02-2008, as liquidações de IMI eram emitidas em nome do Autor (cfr. documento a fls. 42 e 42 dos autos).”

U. Ora, salvo o devido respeito e melhor entendimento deste Alto Tribunal, entende o ora Recorrente que os factos 10), 11) e 12) são irrelevantes para a decisão da presente lide, por um lado, sendo que o conteúdo do facto 11) não é sequer verdadeiro, por outro;

V. Com efeito, desde logo, e em primeiro lugar, não invocou o Autor, no seu articulado inicial, que era proprietário do terreno aqui em causa ou do respetivo armazém;

W. Pelo contrário, o que resulta claro do artigo 13.° da petição inicial, a contrario, e é até expressamente confessado pelo mesmo, é que nunca o Autor foi proprietário do mesmo terreno ou do armazém: “13. Pelo que, desde sempre o Autor teve a posse do imóvel que estava afecto exclusivamente à sua actividade profissional”;

X. Sendo também pelo mesmo alegado e confessado no artigo 4.° da sua petição (o que foi aceite pelo Município, na sua Contestação) que foi o Autor “... autorizado a construir um armazém no prédio rústico ...”, primeiro pelos comproprietários do mesmo prédio referidos em 1) e depois pela aqui Contrainteressada, na sequência da doação do mesmo prédio;

Y. Ora, se o próprio Autor confessa que não é, e que nunca foi proprietário quer do prédio quer do armazém aqui em causa, é irrelevante que este conste como proprietário pleno do armazém na Caderneta Predial das Finanças;

Z. Ficando demonstrado que o facto constante em 11), no seu conteúdo, é, assim, falso - não obstante suportado por um documento das finanças;

AA. Acresce, em segundo lugar, que a menção de proprietário pleno em Caderneta das Finanças não faz operar a transmissão da propriedade, nem prova a mesma propriedade;

BB. Contudo, e como resulta da Douta Sentença Recorrida, o facto de conteúdo falso enunciado em 11) foi julgado relevante para o julgamento da questão da degradação das formalidades em não essenciais, e para o não aproveitamento do ato impugnado;

CC. Assim, requer-se que o julgamento dos factos constantes de 10) e 11) seja reapreciado, sendo julgados, ou irrelevantes para o julgamento da presente lide, sendo suprimidos de todo, ou corrigidos do seguinte modo:

10) Em 2003, o mencionado no ponto 2) supra foi inscrito na matriz urbana, no Serviço de Finanças de Mafra, dando origem a duas matrizes, uma urbana e uma rústica (cfr. documento a fls 39 e 40 dos autos); 

11) Embora o Autor conste como único proprietário do armazém mencionado em 2) supra, na caderneta predial urbana, nunca o Autor foi proprietário do mesmo, sendo o respectivo conteúdo falso (por confissão).

DD. Quanto ao facto constante de 12) deve o mesmo ser suprimido, por um lado, por ser totalmente irrelevante, e por outro por ser igualmente falso, uma vez que, como resulta do Doc. 5 junto pelo Autor, o prédio encontrava-se isento, por se tratar de prédio de reduzido valor, de IMI - vg. artigo 45.° do EBF - pelo que não é verdade que o Autor tenha pago o IMI de 2003 a 2008 (o Doc. 7 é um documento de reembolso de IMI de 2003 e o Doc. 8 é uma liquidação de IMI do Ano de 2007);

EE. Julgou o Douto Tribunal a quo, em 18), que: “18) Em 13-06-2008, a CI F... constava como única titular, em propriedade plena do armazém mencionado no ponto 1) supra, na respectiva caderneta predial urbana”;

FF. Ora, como ficou demonstrado, a prova da propriedade do terreno e da construção pela Contrainteressada resulta de vários documentos juntos pelo Autor, e é até confessada por este - e não apenas da Caderneta Predial Urbana referida;

GG. Sendo indiscutível que a Contrainteressada era/é, à data do pedido do averbamento aqui em causa, a única proprietária do prédio dos autos - tendo sido até o próprio Autor que demonstrou o trato sucessivo até à aquisição do prédio pela Contrainteressada por escritura de doação (cfr. Doc. n.° 4 junto pelo Autor na p.i.);

HH. Assim, resulta da prova documental oferecida pelo Autor - dos documentos n.° 1, 3, 4 e 6 - que o prédio em causa nos presentes autos pertencia aos avós da Contrainteressada, tendo sido em partilhas atribuído ao seu pai, e tendo sido por este último doado à Contrainteressada;

II. Por outro lado, é o próprio Autor que confessa na sua petição inicial que o prédio é propriedade da Contrainteressada - confissão que resulta dos artigos 3.°, 4.°, 9.°, 10.°, 12.° e 13.°, a contrario;

JJ. Por último, a propriedade do prédio pela Contrainteressada resulta também da prova documental por esta oferecida, no Requerimento do pedido de averbamento por si apresentado e que deu origem ao ato impugnado;

KK. O julgamento da matéria de facto em 18) - mais a mais, com a redação igual ao facto falso constante de 11) - nos termos em que está dado como provado, dá uma versão enviesada dos factos, devendo em consequência ser reapreciado e julgado nos seguintes termos:

18) A Contrainteressada F... é, desde a escritura da doação de 6 de Agosto de 2001, a única proprietária do prédio identificado em 1), tendo nessa qualidade requerido o averbamento do processo de licenciamento mencionado em 2) em seu nome, por nessa data ser a única proprietária e por ter revogado a autorização por si emitida a favor do Autor, constante de 13) (por confissão e docs. 1, 3, 4 e 6 da p.i., e 188 a 190 do PA).

LL. Entende o ora Recorrente que a Douta Sentença Recorrida padece também de erro de julgamento de direito na solução que deu às 3 (três) questões que incumbia decidir ao Douto Tribunal a quo;

MM. Com efeito, embora não seja indicada uma norma na fundamentação do ato impugnado, resulta da fundamentação deste que o averbamento da Contrainteressada decorre do facto de a mesma ser proprietária do prédio em causa, de ser a única proprietária, e de ter demonstrado tal facto, nos termos legalmente exigíveis;

NN. Ora, a remissão para a propriedade é também já por si um fundamento de direito, uma vez que é nesse direito real que assenta o regime aqui em causa - da legitimidade em matéria de procedimentos urbanísticos;

OO. Ou seja, e como fica demonstrado, ao fundar o averbamento na propriedade do prédio, está o ato impugnado a remeter, afinal, para a disciplina jurídica;

PP. Não sendo necessário, para que um ato se encontre devidamente fundamentado, também em matéria de direito, que se indique o normativo concretamente aplicável, como aliás constitui até jurisprudência citada na Douta Sentença Recorrida, bastando que do mesmo resulte a disciplina jurídica aplicada e aplicável;

QQ. Ora, como resulta da Douta Sentença Recorrida, o ato impugnado encontra-se fundamentado de facto, uma vez que se percebe "... que tal decisão se deveu à circunstância de a CI ser a proprietária do terreno no qual o Autor iniciou a construção do armazém ...”;

RR. Mas também de direito, já que, ficando tal averbamento a dever-se à circunstância de a Contrainteressada ser proprietária do terreno se faz aplicação da disciplina jurídica aqui em causa - uma vez que a legitimidade dos requerentes, nos termos da lei, assenta, entre outros direitos reais, na propriedade;

SS. Errou assim a Douta Sentença Recorrida ao julgar que o ato impugnado se encontra viciado de falta de fundamentação de direito, nos termos do artigo 125.° do CPA em vigor à data, que não encontra;

TT. Como ficou demonstrado, em matéria de legitimidade dos Requerentes em operações de loteamento importa referir que as licenças e as autorizações urbanísticas são atos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, na apreciação dos projetos, apenas verifica o cumprimento de normas de direito do urbanismo;

UU. A submissão exclusiva das licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo determina que elas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferem ao requerente da licença, apenas e só, o direito de realizar aquela operação urbanística, não retirando por isso a terceiros direitos que estes já possuíssem de acordo com o ordenamento privatístico;

VV. Assim, qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização (sob pena de usurpação de poderes) mas pelos tribunais;

WW. Contudo, apesar da regra da submissão exclusiva das licenças a normas de direito público, não está excluída, no procedimento de licenciamento, a necessidade de comprovação da legitimidade do requerente desde logo porque o artigo 9.°, n.° 1, do RJUE - e à data, o artigo 14.°, n.° 1 e 3, do DL 445/91 - exigem que o requerente, no requerimento inicial, invoque e comprove a titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão, determinando o n.° 1 do artigo 11.° do RJUE, que o Presidente da Câmara Municipal deve decidir, na fase de saneamento e apreciação liminar, as questões de ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento do pedido;

XX. Assim para aquela prova sempre foi necessária a apresentação dos “documentos comprovativos da qualidade de titular de qualquer direito que confira a faculdade de realização da operação” (e a certidão da descrição e de todas as inscrições em vigor emitida pela conservatória do registo predial referente ao prédio ou prédios abrangidos);

YY. Nestes termos, por força deste normativo, está o requerente em processo de licenciamento de obras, desde a entrada em vigor do DL 445/91 - antes deste diploma, tal prova não era exigida - obrigado a instruir o seu pedido de licenciamento de obras com a referida certidão, sob pena de o Presidente da Câmara Municipal proferir despacho de rejeição liminar do pedido, por falta de documento instrutório indispensável ao conhecimento da pretensão;

ZZ. Note-se, porém, que a verificação da legitimidade se restringe apenas a uma apreciação meramente formal, isto é, no sentido de verificar se o requerente apresentou o documento comprovativo da legitimidade invocada;

AAA. Desta forma, desde que o particular apresente tal documento deve a Administração dar início e prosseguir com o procedimento, cabendo exclusivamente aos tribunais esclarecer qualquer dúvida de natureza substancial que se relacione com a questão da legitimidade;

BBB. Assim, é de concluir que “a subordinação exclusiva a regras do direito do urbanismo e a sua emissão salvo direito de propriedade e sem prejuízo de direitos de terceiros não tem inteira aplicação quando está em jogo a verificação da legitimidade para formular o pedido de licenciamento, uma vez que a Administração se vê obrigada a verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido, não obstante essa verificação se traduzir, em regra, numa mera verificação formal;

CCC. Como ficou demonstrado no caso dos autos, o ato impugnado procedeu a essa verificação, tendo em consequência da demonstração de propriedade efetuada pela Contrainteressada (e da verificação de não propriedade por parte do Autor, que resulta do próprio pedido de licenciamento, pelas Declarações juntas autorizando e conferindo legitimidade) deferido o requerido averbamento;

DDD. Assim se demonstrando que o ato impugnado é válido, e é o único possível, uma vez que a legitimidade do Autor sempre foi precária, assente num direito que nem sequer é qualificado, decorrente de uma (mera) autorização, como se de um mandatário dos proprietários se tratasse, por um lado;

EEE. e que a Contrainteressada é a única proprietária do prédio em causa, pelo que tem legitimidade para requerer o averbamento, o qual lhe deve ser deferido - não podendo deixar de ser deferido;

FFF. Deste modo, ainda que por hipótese fosse devido no caso dos autos direito de audição, o que por mera hipótese se dá, esta formalidade sempre se degradaria em não essencial, uma vez que o ato impugnado é o único ato possível de praticar, atendendo ao regime jurídico aqui em causa, e à circunstância de a Contrainteressada ter legitimidade para requerer o averbamento;

GGG. Errou assim a douta sentença recorrida no julgamento de direito que fez quer quanto à necessidade de concessão de direito de audição, quer quanto à decisão de não aproveitamento do ato impugnado, por degradação das formalidades julgadas violadas em não essenciais, uma vez que, repetido o ato, terá o MUNICÍPIO DE MAFRA que decidir do mesmo modo.(…)».

O Recorrido, A... contra-alegou, contrapondo, em suma, o seguinte: - cfr. fls. 378 e ss. do SITAF:
«(…)
Quanto à alteração da decisão sobre a matéria de facto:
I. Impugna o recorrente Município de Mafra os factos dados como provados sob os n°s 3. 10, 11, 12 e 18.
Fá-lo sem fundamento válido, incorrendo em errada interpretação dos documentos em que se baseia a decisão de facto e em incorrecta aplicação das normais legais sobre o valor probatório desses documentos.
O documento identificado na sentença recorrida para fundamentar o facto dado como provado em 3) é um documento particular.
Na verdade, trata-se de um requerimento subscrito pelo Autor para início do processo de licenciamento do armazém que veio a construir no prédio rústico em causa (cfr. n° 2 da matéria de facto).
Juntamente com aquele requerimento foi junta a declaração emitida pelos comproprietários do prédio rústico, autorizando o Autor a proceder à construção do armazém em causa (cfr. n° 1 da matéria de facto).
No n° 3) é dado como provado o que consta do processo instrutor nomeadamente a identificação dos documentos constantes deste e o teor destes documentos.
Estamos, neste caso, perante documentos particulares que, nos termos do artigo 376° do Código Civil, fazem prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
Ora, do teor dos documentos em causa não se pode retirar uma declaração deles não constante, como pretende o recorrente, ao afirmar que devia ser dado como provado a razão porque o Autor juntou tal documento ao requerimento inicial ou a intenção ou os fins dessa junção.
Improcedem, assim, as conclusões A) e S) da alegação do recorrente.
Contrariamente ao afirmado pelo recorrente na conclusão O) da alegação, a legitimidade para requerer o licenciamento de obra particular não cabe apenas ao proprietário do prédio a licenciar.
Como era referido no artigo 14°, n° 1 e 3 do Decreto-Lei n° 445/91, tinha legitimidade para requerer o licenciamento, além do proprietário, o usufrutuário, locatário, titular do direito de uso e habitação, superficiário ou mandatário.
Está provado documentalmente nos autos que, em 18-12-2000, eram donos do prédio rústico em causa, M..., M..., A... e M... e M... (cfr. doc. n° 3 junto pelo Autor com a p.i.).
Consta dos autos e da matéria dada como provada (n° 1) que os identificados donos do prédio rústico, por documento escrito e assinado em 18-12-2000, concederam ao Autor autorização para “proceder à construção de um armazém no referido terreno”.
O direito de construir uma obra em terreno alheio, é qualificado pelo artigo 1524° do Código Civil, como direito de superfície.
Tal direito pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião (artigo 1528° do CC).
O Autor, a partir de 18-12-2000, passou a exercer os actos materiais correspondentes ao direito de superfície (artigo 1251° e 1287° do Código Civil).
Tal posse teria conduzido à aquisição do direito de superfície, decorrido o prazo de quinze anos.
Tem, assim, de concluir-se que, na data em que foi praticado o despacho impugnado, 26-3-2008, o Autor era titular de um direito real (o direito de construir no prédio rústico em causa), ou pelo menos, da posse do referido direito, já que tinha sido investido neste direito por contrato escrito dos legítimos comproprietários do prédio rústico.
O recorrente não podia ignorar tal direito, já que o mesmo resultava de documentos constantes do processo de licenciamento.
Tem, assim, de reconhecer-se que, no momento em que o acto impugnado é praticado existem dois direitos reais distintos: o direito da proprietária do prédio rústico (a contra-interessada) e o direito de construir do Autor (direito de superfície ou posse deste direito).
O primeiro tinha como objecto o prédio rústico. O segundo tinha, na data em causa, como objecto a construção implantada naquele prédio rústico (cfr. artigo 1525° do Código Civil).
II. Entende ainda o recorrente que os factos dados como provados em 10), 11) e 12) são irrelevantes.
Tendo o Autor alegado a inscrição do armazém na matriz predial urbana, tendo junto notificações expedidas pelas Finanças em seu nome, estes factos são relevantes, quer para se aferir da qualidade do Autor como interessado no processo de licenciamento, quer para decidir sobre a manutenção do averbamento da licença camarária em seu nome.
Como é sabido, a inscrição de um prédio na matriz em nome de alguém não constitui prova da propriedade do prédio, mas apenas de quem é para as Finanças contribuinte ou sujeito passivo do imposto.
Ora, o Autor, enquanto titular do direito a construir o armazém em causa, tinha toda a legitimidade para requerer a inscrição do mesmo na matriz urbana e aí figurar como proprietário ou superficiário desse prédio (v. artigo 91°, a) Código do IMI).
Carece, ainda, de total fundamento a invocação de que o facto dado como provado em 11) da sentença é falso.
O que é dado como provado em 11) é o que consta da matriz predial urbana de 2003 até 6-12-2007.
Convém recordar que as matrizes prediais são documentos exarados por autoridade pública e, como tal, documentos autênticos (artigo 369° do Código Civil).
Tais documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade pública, bem como dos factos neles atestados com base nas percepções da entidade documentadora (artigo 371° do Código Civil).
A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade.
Não foi pelo recorrente arguida a falsidade dos documentos emitidos pelas Finanças juntos aos autos com a p.i.
Não pode, por isso, o recorrente vir agora, nas alegações de recurso, afirmar que o conteúdo de documentos juntos pelo Autor com a petição inicial, são falsos, quando admitiu a veracidade dos mesmo e a sua força probatória.
Como é sabido (e constitui jurisprudência dos nossos tribunais), os recursos não servem para levantar questões novas, não submetidas à apreciação e julgamento em 1a instância.
Apesar da não admissibilidade da arguição feita de falsidade, tais documentos foram legitimamente emitidos pela entidade competente e o seu conteúdo corresponde à verdade.
O Autor construiu um armazém legitimamente num prédio rústico alheio, porque lhe foi conferido por contrato escrito o direito da fazer tal construção pelos então legítimos proprietários.
O que, só por si, foi suficiente para a inscrição da construção na matriz como prédio urbano, figurando o Autor como legitimo proprietário ou superficiário do mesmo.
Improcedem, assim, as conclusões constantes de T a DD.
III. O facto dado como provado em 18), porque resulta do teor do documento junto aos autos - caderneta predial - está fundamentado em termos de direito probatório.
Como já referido, uma caderneta predial (ou a matriz predial respectiva) fazem prova plena quanto aos elementos que da mesma constam, como percepcionados pela entidade documentadora (cfr. cit. artigo 371° do Código Civil).
O que está dado como provado em 18) é o teor da caderneta predial de 13-6- 2008 e nada mais.
A sentença recorrida, e bem, não deu (nem podia dar) como provado, factos não constantes da caderneta predial, sob pena de ir além do efeito probatório consentido pelo Código Civil.
Têm, assim, de improceder as conclusões EE a LL.
IV. Defende o recorrente que o despacho impugnado está fundamentado de direito.
Basta ler o mesmo para se constatar que não existe a referência a qualquer norma ou diploma legal, sendo certo que a fundamentação de direito tem de ser expressa e não implícita, como determinava o artigo 125° do CPA de 1991, então em vigor.
E assim decidiu o STA por Ac. de 25-3-2009, Proc. n° 218/08-12:
“Não se pode considerar suficientemente fundamentado um despacho que não contém qualquer referência normativa, estando inserido um procedimento que omite qualquer alusão, directa ou indirecta a um quadro legal” (in Código do Procedimento Administrativo Anotado, Fernando Brandão Ferreira-Pinto, Livraria Petrony, 2011, pág. 302).
Acresce que o despacho impugnado, ao alterar o averbamento do processo de construção para o nome da contra-interessada, operou uma modificação de acto administrativo anterior, o que só por si, obrigava o recorrente a uma fundamentação expressa do mesmo (artigo 124°, n° 1, e) do CPA de 1991).
E porque afectava direito ou interesses legalmente protegidos do Autor, também por esta razão, devia ter sido fundamentado (cit. artigo 124°, n° 1, a)).
Refira-se ainda que o despacho impugnado se baseia num pressuposto de facto errado: uma revogação da autorização emitida a favor do Autor.
Tal revogação não era possível.
Estamos perante declaração negocial que, uma vez aceite pelo destinatário, não pode ser revogada pelo seu autor. (cfr. artigo 230° do Código Civil).
Além de irrevogável, a contra-interessada não estava a revogar uma autorização sua.
A contra-interessada revogou uma autorização de terceiros. O que constitui um acto nulo, porque proibido por lei e porque carecia de competência total para o fazer (artigo 280° do Código Civil).
A afirmação constante do despacho impugnado de que a “a requerente teria autorizado o Autor a fazer a construção no terreno”, não corresponde à realidade, sendo infirmada pelos documentos juntos aos autos.
Como já referido, não foi a contra-interessada que concedeu ao Autor a autorização para construir.
Tal direito foi atribuído ao Autor pelos proprietários do terreno em 18-12-2000 e, nesta data, a contra-interessada não era proprietária do terreno, nem detentora de qualquer direito real sobre o mesmo.
O direito de construir do Autor é anterior ao direito de propriedade da contra- interessada (cfr. facto provado n° 1) e facto provado n° 6).
Recorde-se que o direito do superficiário (do Autor) e do direito do dono solo (a contra-interessada) são direitos distintos, podendo ser transmitidos por acto entre vivos ou por morte (artigo 1534° do Código Civil).
O que significa que, em Março de 2008, quando a contra-interessada apresenta o requerimento à Câmara Municipal de Mafra, a mesma era apenas proprietária do solo, mas não da construção neste implantada.
O despacho recorrido baseou-se, assim, em pressupostos errados, o que também determinaria a sua ilegalidade por violação de lei e consequente anulabilidade.
São, assim, totalmente infundadas e insubsistentes as conclusões vertidas de MM a SS.
V. Do que fica dito resulta, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, que o acto impugnado não é o único acto possível.
Pelo contrário.
O despacho impugnado, como bem refere a sentença recorrida, não se apresenta como estritamente vinculado, apresentando alguma margem de discricionariedade.
Como refere JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, in O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO EXPRESSA DE ACTOS ADMINISTRATIVOS, a pág. 329:
“O juiz só poderá pretender aproveitar um acto administrativo anulável por vicio de forma quando o conteúdo desse acto não puder ou não dever ser outro, porque só então terá a certeza fundada de que um agente racional e cumpridor da lei não deixaria de ter tomado aquela decisão. Por outras palavras, e concretizando, o juiz só poderá aproveitar um acto não fundamentado que constitua uma decisão vinculada da Administração”
Este mesmo entendimento tem sido reafirmado pelo STA, de que citamos o Acórdão de 11-10-2007, Proc. n° 0274/07, em cujo sumário se afirma:
“IV - Como é jurisprudência uniforme deste STA, o tribunal só pode recusar o efeito invalidante à omissão da formalidade prevista no art° 100 do CP A, se o acto tiver sido praticado no exercício de poderes vinculados e se puder concluir, com inteira segurança, num juízo de prognose póstuma, que a decisão administrativa impugnada era a única concretamente possível. ”
Como resulta dos autos, a contra-interessada na data em que é praticado o acto impugnado, não era dona do armazém em causa, sendo apenas dona do prédio rústico, carecia de competência para revogar uma autorização de construção dada pelos legítimos donos do prédio ao Autor, carecendo por isso, de legitimidade para pedir a substituição da titularidade do Alvará para seu nome.
O despacho do recorrente, não só devia ter sido precedido de audiência prévia do Autor, em obediência à legislação em vigor, como devia ter sido de indeferimento.
O recorrente limitou-se a aceitar como boas as razões invocadas pela contra- interessada, tendo consciência de que ia afectar direitos do Autor, o que o obrigava, no mínimo a ouvir previamente o Autor, antes de decidir.
Não deixa de ser curioso que o requerimento da contra-interessada foi apresentado em 13 de Março de 2008, foi informado em 26 de Março e neste mesmo dia, decidido, ou seja, 13 dias depois de entregue na autarquia.
O recorrente, ao praticar o despacho impugnado nos termos em que o fez, demonstrou um desprezo total pelos princípios básicos de actuação da Administração Pública, nomeadamente, postergando o dever de respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos do cidadão, o respeito pelos princípios da igualdade e da imparcialidade, princípios consagrados no artigo 266° da Constituição da República.
O recorrente, ao decidir uma pretensão de um particular que sabia que ira afectar os direitos de outro particular, sem fundamentação de direito, desprezou a obrigação imposta no artigo 268°, n° 3 da Constituição da República.
E ao proferir o despacho impugnado, retirando ao Autor o averbamento da licença e concedendo este averbamento à contra-interessada, sem previa audiência do Autor, violou grosseiramente o princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito consagrado no artigo 267° n° 5 da Constituição da República.
Improcedem, por isso, as demais conclusões do recorrente.(…)».

Neste tribunal, a DMMP, não emitiu pronúncia.

Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto - impugnando os factos n.º 3), 10), 11), 12) e 18) - e de direito, ao ter anulado o ato impugnado por (i) preterição de audiência prévia e por (ii) falta de fundamentação e, mesmo concedendo os anteriores vícios, não os degradando em formalidades não essenciais, para assim proceder ao aproveitamento do ato impugnado, ao abrigo do art. 163.º, n.º 5, do CPA.

II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto constante da sentença recorrida é aqui transcrita ipsis verbis:
«(…)
1) Em 18-12-2000, os comproprietários do prédio rústico “sito em Amendoeira, Sobreiro, Mafra”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.° 05... e inscrito na matriz sob o artigo 1....°, Secção J, emitiram declaração, através da qual autorizavam o Autor a construir um armazém no referido prédio (cfr. documentos a fls. 29 e 31 a 36 dos autos e a fls. 20 a 23 do PA apenso aos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidos);
2) Em 29-01-2001, o Autor deu entrada, junto da Câmara Municipal de Mafra, de requerimento com vista ao licenciamento para construção de armazém agrícola no prédio rural mencionado no ponto antecedente, tendo sido atribuído ao respetivo processo o n.° 134/2001-OP (cfr. documentos a fls. 1 a 26 do PA apenso aos autos, que se dão aqui por reproduzidas na íntegra, bem como o carimbo aposto em cada uma das referidas fls.);
3) Juntamente com o requerimento mencionado no ponto antecedente o Autor entregou a declaração mencionada no ponto 1) supra (cfr. documentos a fls. 1 a 26 do PA apenso aos autos);
4) Em 08-03-2001, por partilha da herança de A... o prédio identificado no ponto 1) supra foi adquirido por M... (cfr. documentos a fls. 31 a 36 e 37 a 38 dos autos e por acordo);
5) Em 03-08-2001, o Autor entregou, no âmbito do processo de licenciamento mencionado no ponto 2) supra, os projetos “de estabilidade”, de “redes prediais de águas e esgotos” e “de instalações telefónicas” e “termo de responsabilidade para a execução da obra” (cfr. documentos a fls. 48 a 98 do PA apenso, que se dão aqui por integralmente reproduzidos);
6) Em 06-08-2001, por escritura celebrada no Cartório Notarial de Mafra, M... doou o prédio à ora CI, F... (cfr. documento a fls. 37 a 38 dos autos e por acordo);
7) Em 28-08-2001, foi deferido o licenciamento mencionado no ponto 2) supra (cfr documento a fls. 102 do PA apenso);
8) Em 03-10-2001, a ED emitiu o alvará n.° 1592/2001, em nome do Autor, respeitante ao processo de licenciamento para construção de armazém agrícola mencionado no ponto 2) supra, com validade de um ano (cfr. documentos a fls. 107 e 108 do
PA apenso);
9) Em 03-10-2001, a ED emitiu guia de receita, em nome do Autor, no montante total de 1.318,82 EUR, relativa à liquidação de tributos referentes a:

(cfr. documento a fls. 30 dos autos e 106 do PA apenso aos autos, que se dão aqui por reproduzidos na íntegra);
10) Em 2003, o armazém mencionado no ponto 2) supra foi inscrito na matriz urbana, no Serviço de Finanças de Mafra, sob o artigo 8847 (cfr. documento a fls. 39 e 40 dos autos);
11) Desde 2003 e, pelo menos, até 06-12-2007, o Autor constava como único titular, em propriedade plena do armazém mencionado no ponto 2) supra, na respetiva caderneta predial urbana (cfr. documento a fls. 39 e 40 dos autos);
12) Desde 2003 e, pelo menos, até 17-02-2008, as liquidações de IMI eram emitidas em nome do Autor (cfr. documento a fls. 42 e 43dos autos);
13) Em 28-11-2003, o Autor entregou junto da Câmara Municipal de Mafra, uma declaração emitida pela ora Contrainteressada, autorizando que todas as licenças e outros elementos referentes ao processo OP-134/2001, mencionado no ponto 2) supra, fossem emitidos em nome daquele, constando da mesma o seguinte:
“(…)
«Imagem no original»

(...)” (cfr. documentos a fls. 113 a 118 do PA apenso, que se dão aqui por reproduzidos na íntegra, e por acordo);
14) Em 13-03-2008, a CI F..., apresentou junto da Câmara Municipal de Mafra, requerimento do qual consta o seguinte:
«Imagem no original»

(...)” (cfr. documento a fls. 192 do PA apenso aos autos);
15) Em 26-03-2008, o Vereador da Câmara Municipal de Mafra emitiu despacho através do qual deferiu “o pedido de averbamento do nome” da CI, efetuado no requerimento mencionado no ponto antecedente, com base na informação de técnica superior, com a mesma data, da qual consta o seguinte:
“(…)
(...)” (cfr. documento a fls. 195 do PA apenso aos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido);
16) O Autor recebeu o ofício, com o n.° 33703, da Câmara Municipal de Mafra, datado de 08-04-2008, relativo ao processo de licenciamento mencionado no ponto 2) supra, do qual consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
«Imagem no original»

(...)” (cfr. documento a fls. 196 do PA apenso aos autos, que se dá aqui por reproduzido na íntegra);
17) A CI recebeu o ofício, com o n.° 33704, da Câmara Municipal de Mafra, datado de 08-04-2008, relativo ao processo de licenciamento mencionado no ponto 2) supra, do qual consta, designadamente, o seguinte:
“(…)


(...)” (cfr. documento a fls. 199 do PA apenso aos autos, que se dá aqui por reproduzido na íntegra);
18) Em 13-06-2008, a CI F... constava como única titular, em propriedade plena do armazém mencionado no ponto 1) supra, na respetiva caderneta predial urbana (cfr. documento a fls. 74 dos autos);
*
Nada mais se apurou com interesse para a decisão a proferir.
*
A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame dos documentos constantes dos autos e do PA apenso, bem como na posição das partes, conforme discriminado em cada um dos pontos do probatório. (…)»

II.2. De direito

Do imputado erro de julgamento que recaiu sobre os factos 3), 10), 11), 12) e 18), conhecer-se-á depois de nos pronunciarmos sobre os invocados erros de julgamento de direito, pois que o seu conhecimento se poderá revelar inútil, conforme melhor explicitaremos infra.
Vejamos então.
Do erro de julgamento imputado à sentença recorrida ao ter anulado o ato impugnado por preterição de audiência prévia e por falta de fundamentação e, ainda assim, e em virtude disso, concedendo os anteriores vícios, não os ter degradado em formalidades não essenciais, para assim proceder ao aproveitamento do ato impugnado, ao abrigo do art. 163.º, n.º 5, do CPA.

Sobre a preterição de audiência prévia, o discurso fundamentador da decisão recorrida foi o seguinte:

«(…) A propósito do conceito de interessados importa ter em conta o artigo 53.°, n.° 1 do CPA (à data aplicável), que estabelece que têm “legitimidade para iniciar o procedimento administrativo e para intervir nele os titulares de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos, no âmbito das decisões que nele forem ou possam ser tomadas”.

Ora, compulsada a matéria de facto, verifica-se que em 18-12-2000, os comproprietários do prédio rústico “sito em Amendoeira, Sobreiro, Mafra”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob n° 05... da respetiva freguesia, e inscrito na matriz sob o artigo 1...°, Secção J, emitiram declaração, através da qual autorizaram o Autor a construir um armazém no mesmo [cfr. ponto 1) da fundamentação de facto].

Nessa sequência, em 29-01-2001, o Autor deu entrada, junto da Câmara Municipal de Mafra, de requerimento com vista ao licenciamento para construção de armazém agrícola no prédio rural mencionado, acompanhada da referida autorização de construção [cfr. pontos 2) e 3) da fundamentação de facto].

Em 06-08-2001, o prédio rural em causa passou a ser propriedade da CI [cfr. ponto 6) da fundamentação de facto].

Em 28-08-2001, na sequência de o Autor ter apresentado os projetos “de estabilidade”, de “redes prediais de águas e esgotos” e “de instalações telefónicas” e o “termo de responsabilidade para a execução da obra”, foi-lhe deferido o licenciamento para a construção do armazém em causa [cfr. pontos 5) e 7) da fundamentação de facto].

Em 2003, o Autor entregou, junto da Câmara Municipal de Mafra, declaração da CI em que esta declarava autorizar que as licenças e outros “elementos necessários”, no âmbito do processo de licenciamento em causa, fossem emitidos em nome deste [cfr. ponto 13) da fundamentação de facto].

Em 13-03-2008, a CI apresentou junto da Câmara Municipal de Mafra, no âmbito do processo de licenciamento em causa, requerimento no qual peticionava o averbamento do alvará n.° 1592/2001 em seu nome e revogava a autorização de passagem de quaisquer documentos em nome daquele [cfr. ponto 14) da fundamentação de facto].

Em 26-03-2008, o Vereador da Câmara Municipal de Mafra emitiu despacho através do qual deferiu o mencionado requerimento [cfr. ponto 15) da fundamentação de facto].

Assim, por força de tal despacho perdeu o Autor a titularidade no processo licenciamento em causa, tendo-lhe deixado de ser reconhecida, pela ED, legitimidade para intervir no mesmo, já não podendo, designadamente, pedir nova licença, caso ainda não tenha sido terminada a construção do armazém, ou pedir a emissão de licença de utilização, tendo passado a ED a reconhecer tal legitimidade, exclusivamente, à CI, conforme resulta do ponto 14) a 17) da fundamentação de facto.

Efetivamente, da matéria de facto, não resulta que, antes de ter sido emitido o referido despacho, tenha sido dada oportunidade ao Autor para se pronunciar, nos termos do artigo 100.° do CPA (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 442/91, de 15 de novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 6/96, de 31 de janeiro), o que, de resto, a própria ED admite na sua contestação.

Como vimos, invocam a ED e a CI que, na situação em causa, o Autor não se pode considerar interessado para os efeitos do citado artigo.

(…) Desde logo, acompanhando o entendimento propugnado pelos citados autores, se aqueles que não intervieram, mas o podiam ter feito, são considerados interessados num determinado procedimento, por maioria de razão, quem já interveio no âmbito do mesmo, também terá de o ser.

Acontece que, no âmbito do procedimento em causa, o Autor havia sido, até ao momento da apresentação do requerimento pela CI, o único interveniente no procedimento de licenciamento.

Logo, o mesmo deve ser considerado interessado, pelo que se impunha, obrigatoriamente notificá-lo para os efeitos do artigo 100.° do CPA.

(…) Ademais, propugnam, ainda, os já citado autores- ob cit., pp. 281 e 282 -, cujo entendimento acompanhamos, o seguinte:

«O juízo proferido pela autoridade procedimental em matéria de legitimidade dos interessados para iniciar ou intervir no procedimento só constitui - para efeitos de reacção administrativa e contenciosa- decisão do próprio procedimento em relação aos interessados a quem ela for recusada.

Uma decisão favorável sobre a questão da legitimidade nem é um acto constitutivo de direitos (ou interesses legalmente protegidos) nem uma decisão definitiva da questão da legitimidade, podendo a Administração, a todo o tempo (até ao termo do procedimento e mesmo após isso, dentro do prazo de revogação da decisão procedimental), modificar o juízo que anteriormente formulara sobre ela.

Só através da decisão final - se esta vier a ser desfavorável à pretensão material do interessado, em função da legitimidade procedimental reconhecida a outrem ilegalmente - seria admissível impugnar contenciosamente a ilegalidade decorrente do errado reconhecimento da legitimidade de um particular.

Ou seja, a decisão favorável sobre a legitimidade não só não é passível de recurso contencioso, como não funciona, só por si como causa necessária de invalidade da decisão.

Pode dizer-se que, pelo menos na generalidade dos casos, a participação de mais "interessados" cabe no âmbito da natureza inquisitória do procedimento administrativo.

Mas já não é assim quanto à decisão que recusa a legitimidade de um interessado, pois o direito de intervenção no procedimento administrativo é um direito com autonomia substancial suficiente para que a sua lesão deva ser valorada, por si só, em sede de garantias de legalidade.»

Assim, também tendo em conta o citado entendimento, e tendo em conta que através da decisão impugnada se deixou de se reconhecer a legitimidade do Autor para intervir no procedimento em causa, o mesmo deve considerar-se lesivo para este.

Acresce que, conforme se explicitou, por força do ato impugnado, o Autor deixou de poder pedir a renovação da licença de construção, caso ainda não tenha sido terminada a construção do armazém, ou pedir a emissão de licença de utilização, caso a construção esteja concluída, o que também não se pode deixar de considerar lesivo, uma vez que se estão a retirar direitos que, antes da prática do ato em causa, o Autor podia exercer [cfr. pontos 14) a 17) da fundamentação de facto].

Nesta conformidade, impõe-se concluir que o Autor era interessado para os efeitos da decisão em causa, devendo ter sido notificado para os efeitos do artigo 100.° do CPA.

De referir, ainda, que o artigo 103.°, n.° 2, alínea b), citado supra, não tem aplicação na presente sede, pois a decisão em causa, embora fosse favorável para a CI, não o era para o Autor, não se podendo, portanto, concluir que estávamos perante uma decisão favorável a todos os interessados.

Procede, assim, o invocado vício de preterição de audiência prévia, o qual é gerador da anulabilidade do ato impugnado, nos termos do artigo 135.° do CPA.(…)».

O discurso fundamentador da sentença recorrida supra transcrito, embora correto, em abstrato, padece, porém, de um erro de perceção tendo em conta o procedimento em apreço, que contagia a solução a que chegou. Vejamos em que termos.

As licenças e autorizações urbanísticas são atos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que à Administração Municipal, na apreciação que faz das questões urbanísticas que lhe são submetidas e que são da sua competência, cumpre verificar apenas o cumprimento de normas de direito do urbanismo.

Neste sentido, veja-se, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07.02.2002, P. 048295, onde se concluiu, numa situação similar, que «(…)Resta apurar da alegada violação dos artigos 12º, 1305º e 1543º, todos do CC e que o Recorrente liga ao invocado desrespeito do direito de servidão já atrás referenciado. Só que, também quanto a esta questão não assiste razão ao Recorrente, como se irá demonstra de seguida. Na verdade, a legalidade do deferimento do pedido de licenciamento da obra em causa tem de se equacionar com atinência aos condicionamentos urbanísticos legalmente estabelecidos.

A este nível, a Administração não tem poderes (falta de atribuições), para, por acto autoritário, se intrometer no domínio privado, dirimindo um conflito entre particulares a propósito de interesses privados. Vidé, em especial, os Acs. deste STA, de 8-4-97 - Rec. 36955 e de 5-2-98 - Rec. 28734.

Com efeito, tal definição não se enquadra claramente na função administrativa, antes integrando a função jurisdicional. Ou seja, à Administração não incumbe, assim, qualquer forma de composição jurisdicional de conflitos, só aos Tribunais competindo administrar a justiça (princípio da reserva de competência judicial, acolhido no nº 1 , do artigo 202º da CRP).

Ora, existindo no caso em análise divergência entre Particulares em sede do sentido e alcance do direito de servidão da passagem já antes referenciado não competia à Entidade Recorrida dirimir tal conflito ao praticar o acto de licenciamento, não lhe incumbindo qualquer definição administrativa sobre tal direito. É que o licenciamento teria de ser concedido nos limites e condições legais, sendo que as relações jurídicas reais, como a agora em análise, não podem ser objecto do acto de licenciamento. Este aspecto em nada prejudica as posições subjectivas dos titulares do aludido direito de servidão, na medida em que, como é sabido, o licenciamento de obra não os inibe de usar os meios cíveis que entendam por adequados à defesa de tais posições. Podemos, por isso, concluir, como se faz no Ac. deste STA, de 11-11-99 - Rec. 44021, que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelem servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra do licenciamento”, razão pela qual a sentença do TAC ao decidir como decidiu não ter violado o disposto nos artigos 12º, 1305º e 1543º, do CC. (…).»

Da doutrina que dimana do aresto citado e, bem assim, da ideia de submissão exclusiva das licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo, resulta, coerentemente, que estas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferindo ao requerente apenas o direito de realizar determinada operação urbanística, não retirando direitos a terceiros, direitos que estes já possuam ou venham a possuir sobre, designadamente, o terreno onde a obra foi ou está a ser levada a cabo.

Dos pressupostos supra enunciados retira, Fernanda Paula Oliveira (1), retira duas consequências:

A primeira é a de que as normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido de licenciamento ou de autorização urbanísticas e, a segunda, a de que ficam excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, designadamente, as relações de vizinhança ou relações com pessoas afetadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística e as situações especiais de responsabilidade que se verifiquem entre os intervenientes naquela operação.

Concluindo a mesma autora que qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização, sob pena de usurpação de poderes, mas pelos tribunais.

É certo, porém, que, e como bem se refere nos autos, no procedimento urbanístico não deixa de ser necessário comprovar a legitimidade do requerente, desde logo, porque o art. 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12. (doravante RJUE), exige que o requerente da licença ou autorização, no requerimento inicial, invoque e comprove a titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão, mais determinando o n.º 1 do art. 11.º do mesmo diploma legal, que o presidente da câmara municipal deve decidir, na fase de saneamento e apreciação liminar, as questões de ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento de qualquer pedido ou comunicação apresentados.

De notar, porém, e face a todo o exposto, que a verificação da legitimidade se restringirá, apenas, a uma apreciação meramente formal, isto é, no sentido de verificar se o requerente apresentou um documento comprovativo da legitimidade invocada.

Desde que o particular apresente um documento válido, que titule o direito a que se arroga, como sucedeu no caso em apreço relativamente ao pedido formulado, de averbamento ao alvará de construção, enquanto proprietária do terreno – cfr. factos 14 e 15 da matéria de facto – o Recorrente atuou como poderia atuar, efetuando o averbamento solicitado, sem prejuízo de os tribunais virem a esclarecer as questões se natureza substancial suscitadas pelo Recorrido nos autos, relacionadas com a respetiva legitimidade., sem prejuízo, também correntemente, aliás, com o que decorre do no n.º 7, do citado art. 11.º.

Assim, «(…) a subordinação exclusiva a regras do direito do urbanismo e a sua emissão salvo direito de propriedade e sem prejuízo de direitos de terceiros não tem inteira aplicação quando está em jogo a verificação da legitimidade para formular o pedido de licenciamento, uma vez que a Administração se vê obrigada a verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido, não obstante essa verificação se traduzir, em regra, numa mera verificação formal. (2)

Neste sentido, e referindo expressamente, também em matéria de urbanismo, a presunção iuris tantum do registo predial, diz, em aresto de 13.05.2003, P. 01580/02, o Supremo Tribunal Administrativo que «(…) Se o requerente for o proprietário do imóvel, o presidente da Câmara (órgão competente para dirimir as questões inerentes ao saneamento do procedimento) deve considerar formalmente provada a legitimidade do requerente se este lhe apresentar a respectiva certidão do registo predial. Se um terceiro, porventura, arguir com a falsidade dessa certidão tal não deve obstar ao prosseguimento do procedimento de licenciamento ou de autorização, dado que formalmente está provada a legitimidade do requerente até porque o registo constitui uma presunção iuris tantum da existência do direito invocado. O artigo 7.º do Código do Registo Predial estipula que «o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.». Não compete, assim, ao presidente da Câmara dirimir o eventual conflito entre os particulares mas sim aos tribunais. Por seu turno, os actos de licença ou de autorização são efectuados sob reserva de terceiros, não conferindo por si quaisquer direitos reais dado que se tratam de actos administrativos que não criam, modificam ou extinguem direitos privados (…).»

Neste pressuposto, e considerando que no procedimento em apreço, quer por via do art. 9.º, ou do art. 77.º, do RJUE, em sede de averbamento da substituição do requerente ou do titular do alvará de obras não se prever uma fase de audiência dos interessados, coerentemente com todo o exposto supra acerca do âmbito material de competência do presidente da câmara nesta matéria, erra a sentença recorrida, na parte em que considerou verificada a preterição de audiência do interessado e deverá ser revogada.

Pelos mesmos motivos improcede também o invocado vício de falta de fundamentação, e fica provido também o recurso nesta parte, pois que os fundamentos que o tribunal a quo entende estarem em falta, designadamente, e muito em particular, os fundamentos de direito, ao dizer que se percebe que o ato impugnado se deve «à circunstância de a CI ser a proprietária do terreno no qual o Autor iniciou a construção do armazém em causa nos presentes autos», mas que « no entanto, a ED não explicita naquele ato quais as normas que permitem ou impõem que a CI, na qualidade de proprietária do terreno onde se visa construir ou já construiu, substitua o Autor, enquanto titular do procedimento em causa como se configura (cfr. pontos 14) a 17) da fundamentação de facto). (…)», questões estas, como vimos, de índole jus privatística e que, por esse motivo, extravasam o âmbito material de apreciação do órgão competente para ordenar o averbamento em apreço pois que, quanto muito, «havendo um litígio sobre a titularidade do direito que tenha de ser decidido em tribunal, a Administração deve, nos termos do n.º7 do artigo 11.º do RJUE, suspender o procedimento de atribuição da licença até que o litígio seja solucionado»(3) suspensão essa, porém, cuja manutenção sempre dependeria da verificação das condições previstas na alínea b) do art. 31.º do CPA, na redação vigente à data da prática do ato impugnado, designadamente quanto à prova de ter sido intentada ação judicial no prazo de 30 dias, o que não foi sequer invocado nos autos.

Em face do que, procedendo os invocados erros de julgamento, imperioso se torna conceder provimento ao recurso, ficando prejudicado o conhecimento do erro de julgamento quanto à matéria de facto, em virtude de o mesmo se revelar inútil.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, conhecendo em substituição, julgar improcedente a ação.

Custas pelo Recorrido.

Lisboa, 07.07.2021

Dora Lucas Neto

*

A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente acórdão os senhores magistrados integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira.

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(1) A legitimidade nos Procedimentos urbanísticos — II Parte, in Revista O Municipal, n.º 265, 2003.
(2) FERNANDA PAULA OLIVEIRA, in As licenças de Construção e os Direitos de Natureza Privada de Terceiros, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito, n.º 61, pgs 1027 e ss.
(3) Idem, op. cit., pg. 1033.