| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:
1. Relatório
T… (doravante A. ou Recorrente) instaurou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ação administrativa urgente de impugnação de ato contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo – AIMA, I.P. (doravante Entidade Demandada ou Recorrida), na qual peticionou a anulação da decisão que considerou o seu pedido de proteção internacional infundado e que seja ordenada a reavaliação do seu pedido, analisando-se a sua elegibilidade para o estatuto de refugiado ou, subsidiariamente, para proteção internacional.
Por sentença proferida em 18 de junho de 2025, o referido Tribunal julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a Entidade Demandada do pedido.
Inconformado, o A. interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:
“A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida no âmbito do Processo n.º 16087/25.0BELSB – 9.ª Espécie – Outros Processos Urgentes, que corre termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, mediante a qual foi julgada improcedente a ação de impugnação intentada pelo ora Recorrente contra a decisão do Conselho para a Decisão de Pedido de Proteção Internacional da Agência para a Imigração, Mobilidade e Asilo, I.P. (AIMA, I.P.), que indeferiu o pedido de proteção internacional por si apresentado.
B. A decisão recorrida desconsiderou, de forma injustificada, a coerência factual, cronológica e subjetiva do relato do Recorrente quanto à sua pertença e prática religiosa no seio da Igreja de Deus Todo-Poderoso, tendo exigido prova documental praticamente impossível de obter face à clandestinidade imposta pelo regime chinês.
C. Tal exigência contrasta com o entendimento sufragado na sentença do Processo n.º 21444/25.0BELSB, também do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, considerou procedente a impugnação apresentada.
D. Ao recusar valor probatório à narrativa do Recorrente por ausência de documentos de filiação religiosa, a sentença olvidou o princípio da facilitação probatória (artigo 4.º, n.º 5 da Diretiva 2011/95/EU e artigo 18.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2008), que impõe uma inversão do ónus da prova em favor do requerente, nomeadamente quando a documentação é, por natureza, de difícil obtenção.
E. A sentença a quo exigiu um grau de prova desproporcionado, incompatível com o standard probatório adequado em matéria de proteção internacional, que deve assentar na plausibilidade e verosimilhança do receio.
F. O Tribunal baseou-se em pretensas contradições marginais da entrevista de admissibilidade para improceder o pedido, nomeadamente, alegadas pequenas imprecisões naturais em contextos de vulnerabilidade emocional que não afetam a credibilidade global do relato.
G. O Tribunal ignorou deliberadamente os relatórios de organizações internacionais – como o U.S. Department of State, Freedom House e Human Rights Watch – que confirmam a repressão sistemática contra os membros da Igreja de Deus Todo-Poderoso na China, o que constitui prova externa relevante.
H. A sentença falhou na análise do princípio do non-refoulement (artigo 3.º da CEDH e artigo 33.º da Convenção de Genebra), omitindo totalmente a avaliação do risco real e atual de o Recorrente ser submetido a tortura, maus-tratos ou punições desproporcionadas em caso de retorno.
I. A decisão recorrida atribuiu relevância excessiva à inexistência de testemunhas ou de meios de prova adicionais, descurando a necessidade de valorar, com a devida atenção, o depoimento do Recorrente enquanto narrativa individual coerente, circunstanciada e conforme aos padrões exigidos no âmbito da apreciação de pedidos de proteção internacional.
J. O Tribunal deixou de ponderar que a simples saída do país com alegação pública de pertença àquela Igreja poderá colocar o Recorrente em vigilância ou constar de “listas negras” do regime, sendo a deportação potencialmente fatal.
K. O juízo negativo de credibilidade foi formulado sem observância do artigo 18.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2008, que impõe critérios objetivos e cumulativos para tal apreciação, os quais não foram devidamente analisados na decisão recorrida.
L. A sentença recorrida enferma de erro de julgamento ao interpretar a ausência de menção a episódios concretos de prática de culto como indício de fabulação, desconsiderando que o exercício clandestino da religião, por força da repressão vigente, implica necessariamente a limitação de rituais e da vivência comunitária, sendo essa reserva precisamente característica dos contextos de perseguição religiosa.
M. A jurisprudência invocada na sentença recorrida revela-se desatualizada, genérica e manifestamente inapta a refletir as especificidades do caso sub judice, mostrando-se, por isso, desconforme com o princípio da apreciação casuística que deve presidir à decisão em matéria de proteção internacional.
N. A decisão ignorou o dever de oficiosidade da instrução ao não diligenciar por informações complementares que poderiam reforçar a plausibilidade dos factos alegados.
O. A sentença não aplicou corretamente o artigo 7.º da mesma Lei, ao excluir o risco de perseguição por parte de entidades não estatais, quando está demonstrado que o regime comunista chinês age, muitas vezes, através de forças paraestatais.
P. A proteção subsidiária foi igualmente negada sem ponderação efetiva das condições prisionais, das “reeducações” forçadas e da vigilância digital promovida na China.
Q. O Tribunal a quo ignorou que o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa admitiu anteriormente que a pertença à Igreja de Deus Todo-Poderoso é, só por si, um critério de risco real, atual e individual.
R. A sentença não distingue corretamente a diferença entre crentes “perseguidos” e “ativos”, desconsiderando que a mera expressão pública da fé pode gerar repressão, sem necessidade de envolvimento em cargos ou liderança.
S. O Tribunal violou o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), ao decidir de forma diametralmente oposta a caso idêntico julgado pela mesma jurisdição, sem justificação jurídica válida para a divergência.
T. O juízo sobre a ausência de prova foi contraditório, porquanto reconheceu a dificuldade em obter documentos e, ainda assim, condicionou o deferimento à sua apresentação.
U. A sentença valorou negativamente o facto de o Recorrente não ter apresentado um passaporte religioso ou comprovativo de batismo, quando tal documento não existe em contextos repressivos como o chinês.
V. Foi ignorado o efeito psicológico do medo constante em contexto de repressão, o qual compromete a narrativa linear e detalhada exigida na entrevista.
W. A decisão desprezou o princípio da proporcionalidade, ao privilegiar a forma em detrimento da substância, rejeitando o pedido com base em omissões processuais menores.
X. O Tribunal omitiu o dever de ponderação do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), ao desconsiderar o impacto que o retorno terá na vida espiritual, psíquica e social do Recorrente.
Y. Desconsiderou-se o facto de que os convertidos ao cristianismo não registado são frequentemente alvo de desaparecimentos forçados, monitorização digital e trabalho forçado, como bem explicito nos relatórios juntos aos autos.
Z. O facto de o Recorrente ter recorrido imediatamente após o indeferimento da AIMA evidencia o uso legítimo e tempestivo dos meios legais e o seu interesse em permanecer sob proteção do Estado de Direito português.
AA. A decisão não analisou, como lhe competia, a viabilidade de concessão de autorização de residência por razões humanitárias, como via alternativa.
BB. O Tribunal interpretou de forma restritiva os poderes de controlo jurisdicional, limitando-se a confirmar o ato da Administração, sem exercer o controlo pleno da legalidade, exigido pelos artigos 268.º e 202.º da CRP.
CC. A ausência de análise contextual por parte do Tribunal revela um desvio das garantias da descoberta da verdade material.
DD. O Tribunal omitiu-se no dever de proteção reforçada a grupos vulneráveis, como os requerentes de proteção internacional, cujo estatuto exige juízo de empatia institucional e compreensão das assimetrias processuais.
EE. A sentença revela um formalismo incompatível com a missão humanitária do regime de asilo, regulado por normas de direito internacional público.
FF. Sem prescindir, sempre se dirá, que qualquer dúvida razoável deve favorecer o requerente.
GG. A aplicação cega do princípio da livre apreciação da prova resultou, neste caso, numa violação do princípio da proteção judicial efetiva (artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE).
HH. Por todo o exposto, o Tribunal a quo deveria ter julgado procedente o pedido de proteção internacional, ou, subsidiariamente, deferido a concessão de autorização de residência por razões humanitárias.
II. Não obstante, sempre se dirá, que o recorrente apresentou o seu pedido de proteção internacional em 25 de novembro de 2024.
JJ. Decorrido o prazo legal de 30 dias, previsto no artigo 20.º, n.º 1 da Lei n.º 27/2008, sem que tenha sido notificada qualquer decisão válida sobre a admissibilidade do pedido, verifica-se a formação de deferimento tácito, nos termos conjugados do artigo 130.º, n.º 1 do CPA.
KK. Com efeito, o silêncio da Administração sobre um pedido devidamente apresentado, findo o prazo legal para a decisão, constitui um ato administrativo tácito de deferimento, salvo nos casos expressamente excecionados por lei — o que não é o caso dos procedimentos de proteção internacional, nos quais tal possibilidade não se encontra afastada.
LL O silêncio constitui, assim, uma forma de atuação administrativa expressamente prevista pelo ordenamento jurídico português, que tem valor jurídico pleno e vinculativo, com os mesmos efeitos de uma decisão expressa favorável.
MM. Ao proferir decisão posterior de indeferimento, em 08.01.2025 e só, apenas, notificada ao recorrente em 24.01.2025, a AIMA violou não apenas o princípio da boa-fé e da proteção da confiança, consagrado no artigo 10.º do CPA, mas também os princípios da legalidade e da segurança jurídica, ao tentar fazer retroagir efeitos negativos a uma situação jurídica já consolidada a favor do recorrente.
NN. Pelo exposto, deverá considerar-se que o pedido de proteção internacional apresentado pelo Impugnante se encontra admitido por força de deferimento tácito, sendo a posterior decisão de inadmissibilidade materialmente inexistente ou anulável por vício grave de violação de lei.
Assim se fará A ACOSTUMADA JUSTIÇA, com a revogação da decisão recorrida, a consequente revogação do ato de 24.01.2025, com a salvaguarda dos direitos fundamentais do ora Recorrente, em estrita observância ao quadro constitucional e convencional que vincula a República Portuguesa, no que respeita aos pedidos de proteção internacional.”
A Recorrida AIMA, IP, notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Notificadas do aludido parecer, as partes nada disseram.
Com dispensa dos vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
2. Delimitação do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA), a este Tribunal cumpre apreciar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto e de direito.
3. Fundamentação de facto
3.1. Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
“1. O A. é nacional da República Popular da China – cfr. fls 15 do processo administrativo junto aos autos.
2. Em 25.11.2024 o A. apresentou pedido de proteção internacional – cfr. fls 1 e seguintes do processo administrativo junto aos autos.
3. Em 25.11.2024 foi realizado inquérito preliminar ao A., no qual pode ler-se, além do mais, o seguinte: cfr. fls 1 e seguintes do processo administrativo junto aos autos.  4. Em 30.12.2024 o A. prestou declarações junto da Entidade Demandada, a qual lavrou o respetivo auto - cfr. fls 45 e seguintes do processo administrativo junto aos autos.
5. Do documento referido no ponto supra consta, além do mais, o seguinte: - cfr. fls 45 e seguintes do processo administrativo junto aos autos.
«Imagem em texto no original»




6. Em 08.01.2025 foi emitida a "Informação/Proposta/n.0 49/CNAR-AIMA/2025", na qual pode ler-se, além do mais, o seguinte: - cfr. fls 83 e seguintes do processo administrativo junto aos autos.

 













7. Em 08.01.2025 foi proferido despacho pelo Presidente da AIMA com o seguinte teor: - cfr. documento n.° 1 junto com a Petição Inicial e fls 83 do processo administrativo junto aos autos.
“Concordo. Atenta a informação e fundamentos invocados, considera-se o pedido de proteção internacional infundado nos termos da/s alínea/s e), do n.º 1, do artigo 19° da Lei n.° 27/08, de 30 de junho, na sua atual redação. Notifique-se a pessoa da decisão.”
8. Em 24.01.2025 foi assinado pelo A. o documento denominado "Notificação sobre PPI apresentado em território nacional infundado e/ou inadmissível (Artigo 20.°, n.° 3 da Lei n.° 27/2008, de 30/06, na sua atual redação)” - cfr. fls 107 do processo administrativo junto aos autos.”
3.2. Consignou-se na sentença a respeito dos factos não provados,
“Não existem outros factos relevantes para a decisão que importe destacar como não provados.”
3.3. E em sede de motivação de facto consta da sentença,
“A convicção do Tribunal, quanto à matéria de facto, resultou da análise crítica dos documentos juntos aos autos e do processo administrativo, conforme referido a propósito de cada um dos pontos do probatório.”
4. Fundamentação de direito
Importa, em primeiro lugar, considerar que em sede de alegações o Recorrente sustentou, além do mais, que a decisão recorrida omite a fundamentação de facto (pontos 16 e 17) e de direito, no que respeita à falta de consideração da situação dos direitos humanos no pais de origem e aos relatórios dos organismos especializados (pontos 25 e 26) e da fundamentação da razão de divergência quanto à decisão proferida no processo 21444/25.0BELSB (ponto 40), no que reputa consubstanciar a nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC. Por seu turno, nas conclusões II a NN invoca que se teria formado o ato tácito de deferimento, pelo que a posterior prática do ato de indeferimento violaria os princípios da boa fé, da proteção da confiança, da legalidade e da segurança jurídica, mais advogando na conclusão AA que se imporia analisar a concessão de autorização de residência por razões humanitárias, como via alternativa.
Dado que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de questão que delas não conste, a não ser que se tratem de questões de conhecimento oficioso (artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do CPTA, 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2 do CPC), verificando-se que, não obstante a alegação, o Recorrente omite nas conclusões a referência à nulidade que apontou a sentença, o objeto do recurso considera-se restringido ao erro de julgamento de facto e de direito, não sendo apreciada a nulidade da sentença.
Acresce que “os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre” (Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil», Almedina, 4ª edição, pág. 147-148), encontrando-se “vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608.º, n.º 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10.1.2022, proferido no processo 725/17.1T8VNG.P1, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8f6407c89934a6e3802587fe004bb7da).
Ora, a questão da formação do ato tácito e da consequente violação dos princípios da boa fé, da proteção da confiança, da legalidade e da segurança jurídica com a prática do ato expresso de indeferimento foi, de forma inovatória, alegada nas conclusões de recurso, sem que, anteriormente, em sede de requerimento inicial tivesse sido suscitada pelo Requerente e, consequentemente apreciada pelo Tribunal a quo. Donde, porque não se trata de matéria de conhecimento oficioso, não é (também) objeto de apreciação por este Tribunal ad quem.
4.1. Do erro de julgamento de facto
Se bem se compreende da conjugação das alegações e conclusões de recurso, o Recorrente entende ter ocorrido um “erro de julgamento na valoração da prova”, na medida em que o Tribunal não teria conferido relevo suficiente às declarações do Recorrente, prestadas de forma coerente, circunstanciada e compatível com os relatórios internacionais sobre a repressão religiosa na China (ponto 7 das alegações), de tal forma que a aplicação cega do princípio da livre apreciação da prova teria resultado na violação do princípio da proteção judicial efetiva (conclusão GG).
Importa considerar que, atento o disposto no art.º 640.º do CPC ex vi art.º 1.º do CPTA, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição total ou parcial do recurso:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. c), do CPC], entendendo-se que o recorrente deve expressar “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente.” (cf. Ac. do TCAN de 17.11.2023, proc. n.º 00464/10.4BECBR, disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/cc39bb581d8ca5de80258a6f004dba88?OpenDocument).
Assume-se como notório que, não obstante o Recorrente imputar à sentença erro na valoração da prova, o que representa o erro de julgamento de facto, em momento algum, seja nas alegações, seja nas conclusões de recurso, indica quais foram, afinal, os factos que foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo – concretamente por, como alega, ter, de forma errónea, exercido o poder de livre apreciação da prova -, qual a decisão que sobre os mesmos deveria ter sido proferida e os meios probatórios que a sustentam. O Recorrente omite in totum o cumprimento dos ónus impugnatórios que sobre si recaíam ao abrigo do artigo 640.º, n.º 1 do CPC, em termos que determinam a rejeição do recurso quanto à matéria de facto.
Sem prejuízo, dir-se-á que, verdadeiramente, a questão suscitada pelo Recorrente não se prende com a apreciação da prova nesta sede judicial, mas sim com o entendimento que o Tribunal a quo assumiu, perante as declarações por si prestadas perante a entidade administrativa, para o efeito de considerar que não lhe assiste o direito de asilo ou à proteção subsidiária, ou seja, a contender com o erro de julgamento de direito.
4.2. Do erro de julgamento de direito
O Recorrente insurge-se contra a sentença que julgou improcedente a sua pretensão de anulação da decisão do Presidente da AIMA de 8.1.2025 que julgou infundado o seu pedido de proteção internacional nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008, de 3 de junho, por entender que, baseando-se em imprecisões naturais em contextos de vulnerabilidade que não afetam a credibilidade global do relato, a decisão desvalorizou o depoimento do Recorrente enquanto narrativa factual, cronológica e subjetivamente coerente da pertença e prática religiosa no seio da Igreja de Deus Todo-Poderoso.
Considera que a sentença exigiu, em desconformidade com o princípio da facilitação probatória previsto no artigo 4.º, n.º 5 da Diretiva 2011/95/EU e 18.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2008, um grau de prova incompatível com o standard probatório em matéria de proteção internacional, valorando negativamente o facto de o Recorrente não ter apresentado um passaporte religioso ou comprovativo de batismo, quando tal documento não existe no regime repressivo chinês.
Aduz que o juízo negativo formulado sobre a credibilidade do Recorrente não observou os critérios previstos no artigo 18.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2008 e que errou ao interpretar a ausência de menção a episódios concretos de prática de culto como fabulação, desconsiderando que, em contexto de perseguição religiosa, o exercício clandestino da religião limita os rituais e convivência comunitária. Assim desprezando o princípio da proporcionalidade, privilegiando a forma sobre a substância, ao rejeitar o pedido com base em omissões processuais menores.
Advoga que o Tribunal a quo ignorou os relatórios de organizações internacionais que confirmam a repressão sistemática contra os membros da Igreja de Deus Todo-Poderoso na China, falhando na análise do princípio do non-refoulement, omitindo a avaliação do risco de ser submetido a tortura, maus-tratos ou punições em caso de retorno e o dever de ponderação do princípio da dignidade humana ao desconsiderar o impacto que o retorno terá na vida do recorrente.
Considera que o dever de oficiosidade da instrução demandaria diligenciar por informações complementares com vista a reforçar a plausibilidade dos factos alegados.
Invoca, ainda, que o Tribunal a quo aplicou erradamente o artigo 7.º da Lei 27/2008 excluindo o risco de perseguição por entidades não estatais, quando se demonstra que o regime comunista chinês age através de forças paraestatais e que a proteção subsidiária foi negada sem ponderação das condições prisionais, reeducações forçadas e vigilância digital promovida na China, não se analisando a viabilidade de concessão de autorização de residência por razões humanitárias.
Aduz que o entendimento seguido pela sentença se mostra desconforme ao sufragado no processo 21444/25.0BELSB, violando o Tribunal a quo o princípio da igualdade ao decidir de forma diametralmente oposta ao caso idêntico apreciado naqueles autos.
Resulta do probatório (factos 6 e 7) que o pedido de proteção internacional apresentado pelo A./Recorrente foi considerado infundado nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (Lei do Asilo), porquanto, embora no seu país de origem exista perseguição a minorias religiosas e igrejas domésticas cristãs, os factos por si alegados não consistem, nem revelam uma ameaça atual e efetiva contra si, que apenas pudesse ser afastada pelo mecanismo da proteção internacional, não revelando um tratamento que possa ser considerado ato de perseguição, e as suas alegações revelaram-se pouco coerentes e plausíveis e contraditórias com as prestadas pela sua esposa. Entendendo-se que a sua exposição não revela qualquer situação enquadrável no artigo 3.º da Lei n.º 27/2008, nem se encontram preenchidos os pressupostos para a atribuição de proteção subsidiária ao abrigo do artigo 7.º do mesmo diploma.
A sentença recorrida entendeu, em face das declarações prestadas perante a entidade administrativa, tratarem-se de declarações vagas, não plausíveis e incompletas quanto à sua religiosidade, em termos que não se pode inferir estarem preenchidos os critérios vertidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º da Lei do Asilo. Considerou, ainda, que não assiste ao Recorrente o direito à proteção subsidiária porquanto do seu relato resulta nunca ter sido diretamente ameaçado, assumindo-se como mera conjetura a alegação de que os atos persecutórios se concretizem em agressões físicas ou detenções, e que não alegou qualquer situação concreta de correr risco de ofensa grave ou de violação grave ou sistemática dos seus direitos fundamentais. Aduzindo não ter aplicação o princípio do benefício da dúvida, porquanto não se pode considerar que tenha feito esforço para fundamentar o seu pedido, nem tão pouco que tenha apresentado o pedido com a maior brevidade, porquanto esteve na Sérvia desde maio/junho de 2023, passou por vários países (Bósnia, Croácia, Eslovénia e Itália) e apenas em novembro de 2024 apresentou o pedido em Portugal.
Vejamos.
Em primeiro lugar, importa dar conta que não existe, nos termos reclamados pelo Recorrente, um princípio de uniformidade das decisões jurisdicionais e que, sustentado nas ideias de precedente jurisdicional e de igualdade, confiança e boa-fé, impusesse ao Tribunal a quo, e a este Tribunal ad quem, decidir nestes autos nos mesmos moldes do juízo contido na sentença proferida por um tribunal de 1.ª instância num outro processo que pugna por idêntico.
Por um lado, atente-se que, além de o instituto jurídico dos assentos a que se referia o artigo 2.º do Código Civil corresponder a decisões de tribunais superiores que, constituindo fonte interpretativa ou inovadora de Direito, eram vinculativos para os Tribunais, como o Recorrente, representado por mandatário judicial, não pode desconhecer, já há muito foram revogados.
Por outro, “a realização do fim da uniformidade da jurisprudência é, por regra, confiada, sobretudo, aos tribunais supremos” (Michele Taruffo, A jurisprudência entre a casuística e a uniformidade, Revista Julgar n.º 25, 2015, p. 20), e daí que recaia ao Supremo Tribunal Administrativo proferir acórdãos para uniformização de jurisprudência quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição entre acórdãos dos tribunais superiores nos termos que emergem do artigo 152.º, n.º1 do CPTA. Os acórdãos para uniformização de jurisprudência visam, é certo, garantir a certeza do direito e o princípio da igualdade, evitando que decisões judiciais que envolvam a mesma lei e a mesma questão de direito obtenham dos tribunais colegiais respostas diferentes, contudo assumem caráter orientador e persuasivo, não produzindo por lei efeito vinculativo.
Acrescente-se que o objetivo de garantir a segurança jurídica, a certeza e a estabilidade das decisões judiciais é, ainda, visado pelo instituto jurídico do caso julgado, que “tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o trânsito em julgado da decisão judicial por condição” (Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar, novembro 2018, p. 1).
No seu efeito positivo ou dimensão de autoridade, “o caso julgado consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior” (Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar, novembro 2018, p.6) e “produz o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão, de modo que o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial ou pressuposto necessário, que será tido em conta na decisão que há-de ser posteriormente proferida, ou seja, a decisão antecedente constitui uma premissa da decisão subsequente” e implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão (Ac. do STA de 25.1.2024, processo 02614/23.1BELBS, https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1da8f87c29ce649580258ab5003692b2?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1).
Assim, quando a vinculação se refere ao objeto processual e aos sujeitos da própria decisão constitui o objeto de uma execução de sentença, “o efeito positivo interno do caso julgado vincula as partes da relação jurídica e não os sujeitos do processo. A contrario, o caso julgado não se estende a terceiros, ou seja, a todos aqueles que não sejam os mesmos que os destinatários sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. É a clássica regra de que o caso julgado não deve aproveitar nem prejudicar terceiros, como enunciava o brocardo nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere sole.” (Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar, novembro 2018, p.6)
Por sua vez, o “efeito positivo externo consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objetos processuais conexos” (Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar, novembro 2018, p.6), de tal forma que «na ausência dessas relações, “não é invocável a força vinculativa da autoridade de caso julgado”, frisa o Ac. do TRP de 21-11-2016/Proc. 1677/15.8T8VNG.P1 (JORGE SEABRA). Generalizando, e apresentando-a por outra perspetiva, a condição objetiva positiva consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor.» (Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar, novembro 2018, p. 27). Adiantando-se que, “a autoridade de caso julgado (i) pode ser oposta pelas concretas partes entre si e (ii) não pode ser oposta a quem é terceiro. Em termos práticos, serão julgadas improcedentes (em maior ou menor grau) as pretensões processuais das partes entre si que sejam lógica ou juridicamente incompatíveis com o teor da primeira decisão; mas já idêntica pretensão deduzida por terceiro será apreciada sem consideração pelo sentido decisório alheio.” (Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar, novembro 2018, p.28).
Ora, como é manifesto uma sentença proferida por um tribunal de 1.ª instância não corresponde a um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência que pudesse conduzir os demais tribunais a adotarem o entendimento, relativamente a uma questão de direito, sobre o qual o mesmo se tivesse pronunciado.
Tão pouco demonstra o Recorrente estarmos, relativamente ao processo 21444/25.0BELSB, perante decisão que produza, relativamente a estes autos, o efeito de autoridade de caso julgado e que, impondo-se ao Tribunal a quo e a este Tribunal, pudesse ser oposto à Recorrida, conduzindo a que, tal como sucedeu naqueles autos relativamente à ali autora, nacional da China e membro da mesma Igreja, se considerasse que da factualidade relatada pelo Recorrente resulta a existência de uma situação de perseguição levada a cabo por agentes do Estado em virtude da religião professada, e proibida no país, que traduz um receio objetivo de perseguição direcionada contra si, em termos suscetíveis de se enquadrarem no disposto no artigo 3.º, n.º 2 da Lei do Asilo.
Na realidade, como se disse, o Recorrente não demonstra uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os objetos processuais destes e daqueles autos, para o efeito de beneficiar, relativamente à decisão ali tomada da autoridade do caso julgado. Estando em causa, na realidade, distintos processos, com autores distintos, sem alegação de qualquer conexão com os presentes autos ou sequer com o aqui autor.
Recorda-se, de resto, que o princípio da igualdade «não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade”», sendo que «tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo - o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).»(Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 362/2016, www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, o que o Recorrente não logra concretizar é, desde logo, onde reside a igualdade entre a situação apreciada no processo 21444/25.0BELSB e a sua, omitindo a alegação de qualquer factualidade que a evidenciasse em termos que possibilitassem a realização do juízo comparativo que permitiria concluir, nos termos por si afirmados, que a sua situação mereceria tratamento idêntico.
Daí que, inversamente ao propugnado pelo Recorrente, não há que demandar, face à decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo nos autos 21444/25.0BELSB, tratamento idêntico e vinculativo nos moldes preconizados pelo Recorrente.
Impõe-se, pois, apreciar se, como alega o Recorrente, o Tribunal a quo errou ao considerar mostrarem-se preenchidos os pressupostos para que o seu pedido de proteção internacional fosse considerado infundado ao abrigo do disposto no artigo 19.º, n.º 1 al. e) da Lei n.º 27/2008.
A Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (Lei do Asilo), estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária.
Assim, prevê-se no art.º 3.º da Lei n.º 27/2008 que,
“1 - É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
2 - Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.
(…)
4 - Para efeitos do n.º 2, é irrelevante que o requerente possua efetivamente a característica associada à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou político que induz a perseguição, desde que tal característica lhe seja atribuída pelo agente da perseguição.”
O art.º 5 deste diploma, epigrafado “Atos de perseguição”, estipula que,
“1 - Para efeitos do artigo 3.º, os atos de perseguição suscetíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais.
2 - Os atos de perseguição referidos no número anterior podem, nomeadamente, assumir as seguintes formas:
a) Atos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual;
b) Medidas legais, administrativas, policiais ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória;
c) Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias;
d) Recusa de acesso a recurso judicial que se traduza em sanção desproporcionada ou discriminatória;
e) Ações judiciais ou sanções por recusa de cumprir o serviço militar numa situação de conflito na qual o cumprimento do serviço militar implicasse a prática de crime ou ato suscetível de provocar a exclusão do estatuto de refugiado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º;
f) Atos cometidos especificamente em razão do género ou contra menores.
3 – (…)
4 - Para efeitos do reconhecimento do direito de asilo tem de existir um nexo entre os motivos da perseguição e os atos de perseguição referidos no n.º 1 ou a falta de proteção em relação a tais atos.”
Nos termos da al. n) do art.º 2, n.º 1 deste diploma, os “motivos da perseguição” que fundamentam o receio fundado de o requerente ser perseguido “devem ser apreciados tendo em conta as noções de raça, religião, nacionalidade e grupo que resultam das alíneas i) a v) do normativo, considerando-se agentes de perseguição, conforme o n.º 1 do art.º 6.º, o Estado [al. a)], os partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território [al. b)] e “os agentes não estatais, se ficar provado que os agentes mencionados nas alíneas a) e b) são incapazes ou não querem proporcionar proteção contra a perseguição” [al. c)], considerando-se “que existe proteção sempre que os agentes mencionados nas alíneas a) e b) do número anterior adotem medidas adequadas para impedir, de forma efetiva e não temporária, a prática de atos de perseguição por via, nomeadamente, da introdução de um sistema jurídico eficaz para detetar, proceder judicialmente e punir esses atos, desde que o requerente tenha acesso a proteção efetiva” (art.º 6.º, n.º 2 ).
Por seu turno o art.º 7.º prevê a proteção subsidiária, nos seguintes termos,
“1 - É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.
2 - Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo anterior.”
O princípio do non-refoulement refere-se à proibição de expulsar ou repelir qualquer pessoa que fuja de um cenário de violência, perseguição e de ameaça à sua vida ou à sua liberdade, quando o país de origem não é capaz de a proteger. Este normativo deve ser interpretado tendo em conta o disposto no artigo 8.º da Diretiva n.º 2011/95/UE, do Conselho, de 13 de dezembro, que dispõe que,
«1 – Ao apreciarem o pedido de proteção internacional, os Estados-Membros podem determinar que um requerente não necessita de protecção internacional se, numa parte do país de origem, o requerente:
a) Não tiver receio fundado de ser perseguido ou não se encontrar perante um risco real de ofensa grave; ou
b) Tiver acesso a protecção contra a perseguição ou ofensa grave, tal como definida no artigo 7.º, E puder viajar e ser admitido de forma regular e com segurança nessa parte do país, e tiver expectativas razoáveis de nela poder instalar-se.»
Assim, no caso de o requerente da proteção internacional poder se deslocar para outra parte do território do país de origem, de forma regular e com segurança, e tiver expetativas razoáveis de nela poder instalar-se, verifica-se a falta de necessidade de proteção internacional, por não haver receio fundado de ser perseguido ou se encontrar perante um risco real de ofensa grave, ou tiver acesso a proteção contra a perseguição ou a ofensa grave.
No que respeita à tramitação procedimental do pedido de proteção internacional (art.º 13.º, n.º 1), apresentado o pedido, constituem deveres do requerente “apresentar os documentos de identificação e de viagem de que disponha, bem como elementos de prova, podendo apresentar testemunhas em número não superior a 10” (art.º 15.º, n.º 2) e, bem assim, “apresentar todos os elementos necessários para justificar o pedido de proteção internacional, nomeadamente:
a) Identificação do requerente e dos membros da sua família;
b) Indicação da sua nacionalidade, país ou países e local ou locais de residência anteriores;
c) Indicação de pedidos de proteção internacional anteriores;
d) Relato das circunstâncias ou factos que fundamentam a necessidade de proteção internacional;
e) Permitir a recolha das impressões digitais de todos os dedos, desde que tenha, pelo menos, 14 anos de idade, nos termos previstos no Regulamento (UE) n.º 603/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, relativo à criação do sistema Eurodac de comparação de impressões digitais;
f) Manter a AIMA, I. P., informada sobre a sua residência, devendo imediatamente comunicar a este serviço qualquer alteração de morada;
g) Comparecer perante a AIMA, I. P., quando para esse efeito for solicitado, relativamente a qualquer circunstância do seu pedido.” (art.º 15.º, n.º 1).
Ao requerente é, ainda, assegurado o direito de prestar declarações nos termos do artigo 16.º, sendo elaborada transcrição das mesmas (art.º 17.º).
Por sua vez, cabendo à AIMA a apreciação dos pedidos de proteção internacional (art.º 10.º, n.º 3), compete-lhe “solicitar e obter de outras entidades os pareceres, informações e demais elementos necessários para o cumprimento do disposto na presente lei em matéria de concessão de pedidos de proteção internacional” (art.º 10.º, n.º 4).
Conforme emerge do n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 27/2008, na apreciação dos pedidos de proteção internacional deve ser determinado, em primeiro lugar, se o requerente preenche as condições para beneficiar do estatuto de refugiado e, caso não preencha, se é elegível para proteção subsidiária.
Quanto à apreciação dos pedidos de proteção internacional, da conjugação dos artigos 18.º, 19.º e 19.º-A, resulta que, no caso de o pedido de proteção internacional não ter sido, desde logo, considerado infundado (ao abrigo do disposto no artigo 19º.) ou inadmissível (ao abrigo do disposto no artigo 19º.-A), a apreciação do mesmo obedecerá ao disposto no artigo 18.º.
Assim, o artigo 19.º estabelece a tramitação acelerada da “análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional”, considerando-se o pedido infundado, quando, com relevo aos autos, se verifique que “[a]o apresentar o pedido e ao expor os factos, o requerente invoca apenas questões não pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado refugiado ou pessoa elegível para proteção subsidiária” [n.º 1 al. e)].
Refira-se que nas situações que se enquadrem nas alíneas do n.º 1 do artigo 19.º da Lei 27/2008, “a apreciação do pedido de proteção internacional não é submetida a instrução nem à apreciação do pedido de acordo com os critérios do artigo 18.º, devendo ser sujeito a tramitação acelerada por o pedido ser considerado infundado” (Ac. deste TCA Sul de 26.1.2023, proferido no processo 1599/22.6BELSB).
Ou seja, no âmbito das situações tipificadas no n.º 1 do artigo 19.º, estamos perante circunstâncias que, com elevado grau de evidência, se entende o pedido como infundado e, consequentemente, tornando desnecessário que este seja submetido a instrução e apreciado nos termos do art.º 18.º da Lei n.º 27/2008.
Cumpre, ainda, considerar que recai sobre o requerente do pedido de asilo ou de proteção subsidiária o ónus da prova dos factos que alega, cabendo-lhe “dizer a verdade, esforçar-se para sustentar as suas declarações com todas as evidências disponíveis e dar uma explicação satisfatória em relação a qualquer falta de elementos de prova” (Ac. deste TCA Sul de 26.1.2023, proferido no processo 1599/22.6BELSB), isto é “sendo-lhe exigível que nas declarações que preste ao SEF apresente um relato coerente, consistente e credível” (Ac. do TCA Sul de 11.4.2024, proferido no processo 798/23.8BELSB).
Com efeito, como se deu conta no Ac. deste TCA Sul de 26.11.2020, proferido no processo 868/20.4BELSB, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/868-2020-191547075l,
“Por força dos artigos 15º n.ºs 1, als. a) a d), e 2 e 18º n.º 4 (corpo), da Lei 27/2008, de 30/6, na redacção da Lei 26/2014, de 5/5 e ainda dos pontos 195 e 196 (1ª parte) do Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado, da autoria da ACNUR, é entendimento pacífico que cabe ao requerente de protecção internacional, o ónus da prova dos factos que alegaIsto, sem prejuízo dos deveres de inquisitório que recaem sobre a Administração, concretamente recolhendo informação precisa e actualizada junto de várias fontes sobre a situação do paíse de origem do requerente e dos países por onde este tenha passado e realizando perícias sobre matérias específicas como, por exemplo, questões médicas (cfr. arts. 18º n.ºs 1 e 2 e 28º n.º 1, da Lei 27/2008, de 30/6, na redacção da Lei 26/2014, de 5/5).
Todavia, tem-se entendido, reiteradamente, que o ónus que recai sobre o requerente de protecção internacional é muitas vezes mitigado pela concessão do benefício da dúvida, atendendo às especiais circunstâncias em que o pedido é formulado e desde que a versão dos factos alegada pelo requerente seja credível, coerente e consistente – a título de exemplo, acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, processos n.º 11750/14 e 09498/12, de 12/02/2015 e de 21/02/2013, publicados em www.dgsi.pt.
Assim, importa que estejam reunidas cumulativamente as seguintes condições, descritas nas als. a) a e) do n.º 4 do art. 18º n.º 4, da Lei 27/2008:
- O requerente tenha feito um esforço autêntico para fundamentar o seu pedido;
- O requerente apresente todos os elementos ao seu dispor e explicação satisfatória para a eventual falta de outros considerados pertinentes;
- As declarações prestadas pelo requerente forem consideradas coerentes, plausíveis, e não contraditórias face às informações disponíveis;
- O pedido tiver sido apresentado com a maior brevidade possível, a menos que o requerente apresente justificação suficiente para que tal não tenha acontecido;
- Tenha sido apurada a credibilidade geral do requerente.
Ou seja, as declarações do requerente não carecem de ser confirmadas através do recurso a outros meios de prova sempre e quando tais declarações se revelarem consistentes, fundamentadas e credíveis.
A justificação para este princípio do benefício da dúvida encontra-se explicitada no Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado, nos seguintes termos: “Constitui um princípio geral de direito que o ônus da prova compete à pessoa que submete um pedido. Contudo, é possível que um requerente não consiga ser capaz de fundamentar as suas declarações em provas documentais ou outros meios. Casos em que o requerente conseguirá fornecer elementos de prova para todas as suas declarações serão mais a exceção do que a regra. Na maioria dos casos, após fugir de uma perseguição, uma pessoa chega apenas com o indispensável e, muito frequentemente, sem documentos pessoais. Desse modo, apesar de, em princípio, o requerente deter o ónus da prova, o dever de certificar e avaliar todos os factos relevantes é repartido entre ele e o examinador. De facto, em alguns casos, caberá ao examinador a utilização de todos os meios disponíveis para a produção dos elementos de prova necessários à instrução do pedido. No entanto, nem sempre essa investigação independente terá sucesso e podem existir declarações que não sejam susceptíveis de prova. Em tais casos, se a declaração do requerente parecer crível, deverá ser concedido ao requerente o benefício da dúvida, a menos que existam boas razões para pensar o contrário” (ponto 196);
- Mesmo que solicitante tenha feito um verdadeiro esforço para fundamentar a sua história, é possível que ainda faltem elementos de prova para fundamentar algumas de suas declarações. Como explicado linhas atrás (parágrafo 196), dificilmente um refugiado conseguirá “provar” todos os fatos relativos ao seu caso e, na realidade, se isso fosse um requisito, a maioria dos refugiados não seria reconhecida como tal. Portanto, na maioria das vezes, será necessário conceder ao solicitante o benefício da dúvida (ponto 203);
- Todavia, o benefício da dúvida apenas deverá ser concedido quando todos os elementos de prova disponíveis tiverem sido obtidos e confirmados e quando o examinador estiver satisfeito quanto à credibilidade geral do solicitante. As declarações do solicitante deverão ser coerentes e plausíveis e não deverão ser contraditórias face à generalidade dos fatos conhecidos (ponto 204).
Assim, apenas deve ser concedido o benefício da dúvida - quanto à prova do caso - desde que se mostre satisfeito o teste de credibilidade, coerência e plausibilidade.”(sublinhado nosso).
Feito este enquadramento, o pedido de proteção internacional formulado pelo Recorrente mostra-se assente na alegação de que no seu país de origem, China, existem ameaças e perseguições relacionadas com a religião a que se converteu em 2021 – Igreja de Deus Todo o Poderoso. Do seu relato resulta que afirmou que não falava com a esposa – com a qual não vivia por esta realizar tarefas ligadas à religião - sobre a crença, vindo a saber que aquela já praticava a religião, mas que teve conhecimento da religião através da esposa. Referiu que não foi diretamente ameaçado, mas que se apercebeu ter sido vigiado em casa por vizinhos, e que foi perseguido numa reunião doméstica em que os irmãos da religião foram presos, não o tendo sido o Requerente por se encontrar na casa de banho. Deu nota que quando se apercebeu de estar a ser vigiado e perseguido, não mudou de cidade por entender não existir necessidade e ser indiferente essa mudança a quem está a ser perseguido.
Aduziu que saiu do seu país de origem em 2023 e que esteve na Sérvia durante 1 ano e meio, mas que a sua autorização de residência na Sérvia se encontraria cancelada por terem vendido a casa. Relatou que não foi perseguido nesse país, embora a esposa lhe tenha dito ter visto um chinês, que o vizinho indicou que seria dos serviços secretos, a vigiar a casa, e que teria receio da cooperação entre a Sérvia e a China, que possibilitava à China o direito de prender cidadãos chineses naquele país, razão pela qual também não pediu aí proteção internacional.
Acrescentou, ainda, que foi da Sérvia para a Bósnia, da Bósnia para Itália, tendo sido detido e libertado durante o percurso, e que chegou a Portugal há cerca de 1 mês atrás, em 21.11.2024, não tendo pedido proteção internacional naqueles países porque não se sentiu bem e teria como destino Portugal, fazendo-o em Portugal por ter sentido liberdade e bem-estar. Referiu não se recordar porque não solicitou proteção internacional assim que chegou a Portugal, só o fazendo em 25.11.2024, e que não guardou registos do que relatou.
Como resulta da sentença recorrida, “[p]ara efeitos da concessão de proteção internacional com base em perseguição religiosa do interessado, nos termos da Lei do Asilo, há que fundamentar e não presumir que o interessado é membro e ou praticante de certa religião, religiosidade essa que, assim, não deve ser pressuposta acriticamente pelo Estado Português” (Ac. deste TCA Sul de 5.7.2017, proferido no processo 464/17.3BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/48102DE003CE54D38025818400307269).
O que significa que, cabendo ao Requerente prestar declarações que sejam coerentes e plausíveis face à generalidade dos factos conhecidos enquanto pressuposto a intervenção do benefício da dúvida no direito de asilo, do seu relato deve, desde logo, resultar que o requerente de proteção internacional em virtude de perseguição religiosa sofrida na China professa religião não oficial, de índole cristã.
O que sucede in casu é que, ao contrário do que ora defende, o Recorrente não apresentou uma narrativa factual, cronológica e subjetivamente coerente da pertença e prática religiosa no seio da Igreja de Deus Todo-Poderoso. Não se trata de sobrepor imprecisões naturais em contextos de vulnerabilidade em detrimento de um relato global credível, mas sim de as declarações prestadas, na realidade, apresentarem lacunas, contradições e incoerências, quer entre si, quer à luz dos factos conhecidos e das regras da experiência, que evidenciam a sua falta de credibilidade, em termos que não cumprem o ónus mínimo que recai sobre o requerente de proteção internacional. Lacunas, contradições e incoerências essas que, sequer nestes autos, o Recorrente logra colmatar e esclarecer, assentando a sua defesa na mera afirmação do erro que aponta à sentença.
Não se trata de lhe exigir a demonstração de atos públicos que revelassem a religião e que, naturalmente, seriam reprimidos pelo regime chinês, mas sim de desenvolver em termos concretos a alegada religiosidade que constitui o motivo da perseguição. Só que sobre a sua religião, o objeto da mesma, as crenças em que a mesma assenta, os termos em que a desenvolveu, o significado para si, o Requerente pouco ou nada disse.
Limitou-se a afirmar o nome da Igreja e a sua vertente cristã. Afirmou ter sido a esposa quem o apresentou à religião que alega professar mas, contraditoriamente, referiu inicialmente que não falava com a esposa sobre o assunto e que veio a saber que aquela já, anteriormente a si, praticava a religião.
Acresce que, como dá nota a sentença recorrida, o seu relato é vago quanto à alegação de atos de profissão da sua fé.
Desde logo, “nada alega quanto à continuidade da prática da sua alegada religião, quer na Sérvia, onde residiu mais de 1 ano, quer em Portugal”, na realidade “a continuidade da prática da referida crença nos demais países por onde se deslocou e onde residiu, nem sequer vem alegada” (páginas 25 e 26 da sentença).
Ou seja, o Requerente nem sequer convence da sua alegada crença religiosa, de tal forma que ainda que exista informação no sentido de que pessoas que professam essa religião são objeto de perseguição pelas autoridades chinesas, tal é insuficiente para lhe ser aplicado o regime previsto nos artigos 3.° e 7.° da Lei do Asilo.
Ademais, ainda que se aceitasse a alegada religiosidade do Recorrente, o certo é que os fundamentos em que assenta a sua pretensão, não revelam com pertinência e relevância a consubstanciação de sujeição a grave ameaça ou efetiva prática de atos de perseguição nos termos do art. 5.º da Lei 27/2008, pelos agentes de perseguição identificados no art. 6.º, e (ii) um receio fundamentado de perseguição, in casu, em virtude da sua religião - apreciada segundo a noção elencada na subalínea ii) da al. n) do n.º 1, do art. 2.º, do mesmo diploma - que, o impossibilite ou impeça de voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.
Com efeito, é de atentar que o Recorrente afirmou expressamente nunca ter sido ameaçado e os atos de perseguição que referiu, alegadamente motivados pela prática de religião proibida na China, limitam-se a dois episódios em que foi vigiado em casa e à participação numa reunião em que foram detidos membros da igreja. Refira-se que não circunstanciou temporalmente qualquer das situações que alegou. Quanto à vigilância de que teria sido alvo na China não imputou qualquer autoria, nem verdadeiramente relacionou com a alegada prática religiosa. Relativamente à vigilância na Sérvia asseverou que teria sido um vizinho - que também não identificou, nem enunciou de onde adviria a sua razão de ciência – que teria afirmado tratarem-se dos serviços secretos chineses, dando nota de uma alegada colaboração entre a Sérvia e China que, averiguada pela Entidade Requerida, não encontrou qualquer suporte factual, mostrando-se improvável, porque contrária à autonomia territorial da Sérvia, a tese relatada quanto à aceitação de intervenções das forças de segurança de um estado terceiro. E, ademais, não se revela verosímil que, perante o afirmado contexto de repressão de atividades religiosas vivenciado na China, o Recorrente tenha, opostamente aos demais participantes na reunião, escapado a uma detenção pelo facto de se encontrar na casa de banho.
Não se trata, como alega o Recorrente, de interpretar a ausência de menção a episódios concretos de prática de culto como fabulação. O que sucede é que, em primeira linha, é sobre o requerente da proteção internacional que recai a obrigação de apresentar um relato coerente, consistente e credível, o que lhe demanda, naturalmente, a circunstanciação fáctica, sólida e coesa, dos eventos que representam a perseguição religiosa que afirma ser vítima.
E o que in casu sucede é que o relato de perseguição de que o Recorrente aduz ser vítima não é consubstanciado em moldes que, em conformidade com o artigo 5.º, constituam “pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais” ou que se traduzam num “conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais”.
Antes se limitou a dois episódios esporádicos de uma alegada vigilância e de detenção a outros membros da comunidade religiosa que, como o próprio referiu, não o visou diretamente. E pretende, agora, fundar um direito de asilo na mera circunstância de ser reconhecida a perseguição na China a comunidades religiosas tidas por ilegais, ou seja, sem sustentar os atos de perseguição numa afetação da sua própria esfera jurídica em termos que representem uma grave violação de direitos fundamentais, sem assentar o seu relato em factos objetivos que façam com que, atentas as circunstâncias por si vivenciadas e experienciadas, o seu receio seja plausível e razoável.
O que significa, portanto que, além de nunca ter alegado qualquer ativismo em prol da defesa dos princípios democráticos, da liberdade, da paz e dos direitos humanos, por motivo do qual tivesse sido sujeito ou ameaçado de perseguição, as suas declarações, opostamente ao alegado nesta sede recursiva, não revelam que o Recorrente foi sujeito a ameaças ou a atos objetivos de natureza persecutória contra a sua pessoa, que traduzam de forma objetiva um receio de ser vítima de perseguição por força da religião que professa, que torne a sua permanência na China insustentável a ponto de ter de abandonar o seu país de origem e a ele não poder regressar.
Daí que não lhe assiste razão quando aponta à sentença o erro de julgamento por entender beneficiar do direito de asilo, pois que os elementos existentes não são aptos a infirmar o juízo realizado pelo Tribunal a quo quanto ao entendimento de que o A./Recorrente não aduz questões pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado pessoa elegível com vista a ser-lhe concedido o direito de asilo e obter o estatuto de refugiado.
Como ademais, assim também é quanto ao alegado direito a proteção subsidiária dado que não se vislumbra que em causa esteja um qualquer impedimento ou impossibilidade de o A. regressar à China, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correr o risco de sofrer ofensa grave, não podendo, por conseguinte, ser-lhe atribuída proteção subsidiária, por autorização de residência, por força de tal facto.
O direito à proteção subsidiária (art. 7.º) depende de o requerente sentir-se impossibilitado de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, em razão (i) da sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique ou (ii) por correr o risco de sofrer ofensa grave.
Ora, a situação invocada pelo A. não configura, nem revela uma sistemática violação generalizada e indiscriminada dos direitos humanos na China, que permitissem sustentar o impedimento ou impossibilidade de regresso e permanência àquele país.
Como se disse, é certo que se reconhece, como emerge do ato impugnado, a existência de perseguição às igrejas domésticas cristãs, com detenções, penas de prisão e doutrinação. Contudo, nem o resultante das fontes internacionais, nem o relato do Recorrente atinge o patamar de uma “sistemática violação dos direitos humanos”.
Não se trata de uma errónea aplicação do artigo 7.º da Lei do Asilo, designadamente por se ter excluído o risco de perseguição por entidades não estatais ou desconsiderado as condições prisionais, reeducações forçadas e vigilância digital, ou de uma omissão na análise pelo Tribunal a quo do princípio do non refoulement, mas sim de o Recorrente pretender assentar o seu direito sem ter alegado “qualquer situação concreta de violação dos direitos humanos que o Estado do seu país de origem, contra si, enquanto cidadão chinês, esteja a perpetrar” (fls. 27 da sentença).
Tão pouco evidenciou o Recorrente o risco de, ao regressar ao seu país de origem, poder vir a ser sujeito a uma ofensa grave na aceção da Lei do Asilo.
Com efeito, o risco de ofensa grave assenta, como emerge do elenco exemplificativo do n.º 2 do artigo 7.º da Lei 27/2008, em hipóteses que objetiva e marcadamente se prendem com o receio pela vida ou pela segurança física do requerente, o que, em termos concretos, o Recorrente não circunstanciou.
O que significa que, como se concluiu na sentença, “não resultam dos autos quaisquer dados objetivos, nem sequer as declarações prestadas pelo Autor, se revelam suficientes (para o efeito pretendido), por forma a enquadrar a sua situação no regime subsidiário ao pedido de asilo, consagrado no referido artigo 7.° da Lei do Asilo” (fls. 27 da sentença).
Reitera-se, não se trata de fazer incidir sobre o Recorrente um grau de prova incompatível com o princípio do benefício da dúvida, sem observância do disposto no artigo 18.º, n.º 4 da Lei do Asilo, mas sim de atender a que este princípio apenas atua frente a um relato consistente, congruente e credível do requerente de asilo. Isto é, “a invocação do princípio do benefício da dúvida não faz sentido quando, no caso, falta cumprir um ónus inicial e básico: a de fazer um relato sem contradições, circunstanciado, coerente e credível” (Ac. do TCA Sul de 6.12.2018, proferido no processo 1264/18.9BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/c3bb4b0050f0bfd58025836000342579?OpenDocument).
Daqui resulta que, como se entendeu no ato impugnado e na sentença recorrida, “ao apresentar o pedido e ao expor os factos, o requerente invoca apenas questões não pertinentes ou de relevância mínima para analisar o cumprimento das condições para ser considerado refugiado ou pessoa elegível para proteção subsidiária”, a determinar, portanto, que o seu pedido se considera infundado nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008.
Donde, tal como supra referido, nas situações tipificadas no n.º 1 desse artigo 19.º, não há lugar à instrução e apreciação nos termos do art.º 18.º da Lei n.º 27/2008. Pelo que, ao alegar a necessidade de realizar instrução com vista a obter informações complementares destinadas a reforçar a plausibilidade dos factos por si alegados, o que o Recorrente pretende é beneficiar do regime do artigo 18.º da Lei n.º 27/2008, numa hipótese em que a apreciação da sua pretensão foi submetida ao regime da tramitação acelerada do art.º 19.º do mesmo diploma e que, consequentemente, não impõe que se realizem as diligências instrutórias a que se reportam os n.ºs 1, 2 als. a) e b) e 4 do artigo 18.º da Lei n.º 27/2008.
Em suma, nenhuma das circunstâncias alegadas se revela bastante para ultrapassar o crivo de pertinência ou relevância mínima contido na supracitada alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/2008 e que permitia ser concedido ao Recorrente o alegado direito a ver o seu pedido apreciado à luz do artigo 18.º da Lei n.º 27/2008, com vista a obter para o estatuto de refugiado ou, subsidiariamente, autorização de residência para proteção subsidiária.
4.3. Da condenação em custas
Sem custas, por ser gratuito o processo, nos termos do artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho.
5. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Rejeitar o recurso quanto à matéria de facto;
b. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Mara de Magalhães Silveira
Ana Cristina Lameira
Marcelo da Silva Mendonça
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