I. RELATÓRIO
A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 27.09.2020, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por S…, S.A. (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto a liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), atinente ao exercício de 2011.
Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:
“I. A Douta Sentença do Tribunal da qual se recorre, considerou como questão a solucionar, a de saber se a liquidação impugnada constitui um acto de execução de anterior julgado anulatório , isto é, se a liquidação impugnada se limitou a corrigir parte de um anterior acto de liquidação, assumindo, portanto, a natureza de acto confirmativo daquele anterior acto de liquidação, e, nessa medida, inimpugnável.
II. Ora, como decorre da matéria de facto apurada, a liquidação em crise mais não é do que o resultado da anulação da liquidação adicional de IRC relativa ao exercício de 2010, e respetivos juros compensatórios, efetuada pela sentença proferida no processo n.º 235/13.6BEBJA, que teve repercussão nos exercícios seguintes.
III. Na verdade, a execução de julgado em causa, para além do ajustamento favorável à Impugnante relativamente ao IRC de 2010, implicou inevitavelmente outros ajustamentos desfavoráveis em relação a períodos seguintes, nomeadamente, o exercício de 2011.
IV. Prosseguindo, a liquidação em crise mais não é do que uma mera concretização da execução do julgado, e através da qual a AT se limita a revogar/anular parte de anterior liquidação, não possuindo a primeira natureza de ato substitutivo porque não cria um novo quadro jurídico regulador de uma situação concreta, tratando-se antes de um ato que se limita a corrigir, por imposição judicial, uma parte do ato administrativo primitivo e que, portanto, não inovando na ordem jurídica, tem natureza meramente confirmativa, não admitindo impugnação autónoma.
V. Pelo que, entendemos que a decisão padece do vício de erro de julgamento da matéria de facto.
Termos em que, atento o exposto, deve ser:
a) Declarada a nulidade da Sentença recorrida, nos termos expostos, com os devidos efeitos ou, caso assim não se entenda, o que sem conceder se admite;
b) Ser concedido provimento ao presente Recurso Jurisdicional, por provado, revogando - se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, para todos os devidos efeitos legais”.
A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
“§1. Da leitura das alegações e das conclusões de recurso da Fazenda Pública não resulta sequer com clareza qual o objecto do recurso, afigurando-se, porém, à Recorrida que este se cinge à questão da (in)impugnabilidade do acto de liquidação adicional em apreço.
§2. Desde logo ante a impossibilidade de, com clareza, fixar o objecto do seu recurso, a Fazenda Pública falha redundantemente na contestação da sentença emitida pelo Tribunal a quo, não cumprindo, desde logo, o ónus que lhe caberia ao abrigo do artigo 639.º do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.
§3. Com efeito, nos termos do mencionado artigo do CPC, caberia à Fazenda Pública enunciar os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da sentença recorrida; devendo incluir nas conclusões formuladas, quais as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entender da Fazenda Pública, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas e qual a norma jurídica que se considera ser aplicável — cfr. n.º 2 do artigo 639.º do CPC – não se podendo bastar com a repetição de argumentos anteriores.
§4. No caso em apreço, analisando as conclusões da Fazenda Pública, constata-se que esta optou por recorrer reproduzindo, acriticamente, o teor da sua contestação, na linha do defendido pela AT, sem lograr analisar, refutar e afastar o que foi decidido pelo Tribunal a quo, o que nos permite imediatamente concluir no sentido da improcedência do recurso dos Autos.
§5. De outro passo, e sem prescindir do que acima se referiu quanto ao objecto do recurso, na circunstância de se vir a julgar que este abrange a questão da caducidade do direito à liquidação, o que se admite apenas por dever de patrocínio, a Recorrida constata também que a apreciação do recurso se mostra inútil por falha evidente no alvo do recurso.
§6. É que o Tribunal a quo sustenta — e bem — que mesmo que se pudesse considerar que liquidação adicional de IRC de 2011 impugnada configura um acto integrado no poder de execução da sentença proferida no processo de impugnação n.º 235/13.6BEBJA, o mesmo tinha sido emitido quando o prazo para a execução espontânea daquela decisão há muito tinha expirado, o que implica que o direito à liquidação, mesmo naquelas circunstâncias, se tinha de considerar caducado.
§7. Ora, nas suas alegações de recurso, a Fazenda Pública limita-se a pôr em causa o entendimento de que o acto de liquidação em crise não corresponde a um acto de execução de decisão judicial anterior, nada dizendo no que respeita à posição do Tribunal a quo no sentido de que este teria sido emitido para além do prazo de execução espontânea da sentença chamada à colação pela mesma Fazenda Pública.
§8. Assim, ainda que se admitisse dar provimento àquela questão suscitada pela Fazenda Pública — o que também apenas por dever de patrocínio se admite, sem conceder — e, como tal, se tivesse de considerar que o acto de liquidação adicional em causa tinha sido emitido no âmbito do poder de execução da sentença proferida no processo n.º 235/13.6BEBJA, tendo tal sucedido muito para além do prazo de execução espontânea (o que não foi contestado em sede de recurso pela Fazenda Pública) constatar-se-ia de imediato que a decisão teria de ser a mesma, pois o tribunal a quo entendeu que o direito à liquidação com referência a 2011 estava, em Agosto de 2019, há muito caducado, o que impediria que do provimento do recurso fosse retirado um qualquer efeito útil.
§9. Avançando para a reapreciação da excepção invocada pela Fazenda Pública e nas suas alegações revisitada, como julgou acertadamente o Tribunal a quo, o acto que o Tribunal reconheceu ilegal nos autos n.º 235/13.6BEBJA foi o acto de liquidação de IRC de 2010 aí impugnado, acto esse que foi objecto de anulação, tendo o imposto a mais liquidado pela Administração Tributária sido eliminado.
§10. O único acto tributário que antecedeu o acto de liquidação adicional que ora se impugna foi o acto de autoliquidação de IRC de 2011 praticado pela própria Recorrida, pelo que através do acto cuja anulação se requer, a Administração Tributária procedeu à alteração da matéria colectável apurada pela Recorrida em sede de autoliquidação, fixando um valor adicional de IRC a pagar pela mesma.
§11. Como correctamente entendeu o Tribunal a quo, o acto administrativo em causa é distinto daquele de 2010, encerrando uma decisão da Administração Tributária sobre a situação concreta do contribuinte de IRC, unilateralmente determinando o montante de obrigação pecuniária, sendo, pois, um acto impugnável.
§12. Tudo visto, o acto em apreço configura um acto lesivo e inovador e, como tal, susceptível de ser posto em causa pela ora Recorrida mediante reclamação graciosa ou impugnação judicial.
§13. Nesta conformidade, deve a sentença dos Autos que julgou improcedente a excepção invocada pela Administração e concluiu pela impugnabilidade do acto em apreço ser mantida para todos os efeitos, sendo negado provimento ao recurso da Fazenda Pública.
§14. Caso se venha a entender que o recurso interposto pela Fazenda Pública versa igualmente sobre a questão da caducidade e sem prescindir da certeza de que seria então inútil o conhecimento do recurso, conforme se alegou e afirmou, a Recorrida não pode deixar de voltar a sublinhar que a decisão do Tribunal a quo se teria, em qualquer caso, de manter inalterada.
§15. Mediante o acto de liquidação em crise, a Administração Tributária, considerando que, com referência a 2011, foi definida uma prestação inferior à legal, fixou o quantitativo que a esta devia acrescer e liquidou-o adicionalmente à Recorrida, exigindo o pagamento de um valor adicional de IRC de 2011 de mais de 1 milhão de euros.
§16. Como resulta da doutrina e da jurisprudência consolidada dos nossos tribunais superiores, as liquidações correctivas são actos de apuramento de imposto subsequentes a liquidações adicionais resultantes de reclamações graciosas dos contribuintes parcialmente atendidas e em razão dos quais se apure quantitativo de imposto inferior ao determinado naquela, consubstanciam meras liquidações correctivas, não lesivas dos interesses dos destinatários no segmento não corrigido.
§17. A liquidação de IRC de 2011, impugnada nos presentes Autos, não resulta de uma qualquer decisão favorável à Recorrida nesse exercício, na medida em que a autoliquidação de IRC de 2011 não foi objecto de reclamação graciosa ou impugnação judicial e o processo n.º 235/13.6BEBJA não teve por objecto essa liquidação, nem este Tribunal se pronunciou sobre aquela mesma autoliquidação.
§18. Dito isto, estando em causa o exercício de 2011, o direito à liquidação de imposto caducou em 31 de Dezembro de 2015, i.e., 4 anos volvidos daquela data — cfr. artigo 45.º, n.º 1 da LGT —, pelo que, em 2 de Agosto de 2019, quando a liquidação adicional de IRC de 2011, ora impugnada, foi emitida, o direito àquela emissão já se encontrava há muito caducado.
§19. Mesmo que o acto de liquidação em crise decorresse da execução da decisão judicial do processo n.º 235/13.6BEBJA (o que não é o caso e só por dever de patrocínio se admite), sendo desfavorável à Recorrida e implicando a liquidação adicional de IRC, este apenas poderia, eventualmente, ter sido emitido até ao termo do prazo de execução espontânea, prazo esse que for largamente ultrapassado.
§20. Somente durante o período legal de execução espontânea a Administração Tributária fica investida pela decisão anulatória no poder de praticar actos desfavoráveis ao contribuinte, desde que não tenham eficácia retroactiva (n.º 2 do artigo 173.º do CPTA).
§21. Se a Administração Tributária não executar espontaneamente a decisão anulatória, praticando um novo acto de liquidação no prazo de execução espontânea, extinguir-se-á o poder de aquela praticar um novo acto que emana da decisão anulatória, pelo que a prática de novos actos só seria possível se puder basear-se ainda no poder originário que é concedido à Administração Tributária para praticar actos de liquidação, tal como resulta da Lei e da Jurisprudência corrente e pacífica dos tribunais superiores.
§22. Tudo visto, face ao exposto, impõe-se concluir que o tribunal a quo decidiu bem e que a liquidação de IRC em crise é ilegal por violação de lei, designadamente do disposto no artigo 45.º da LGT, pelo que deverá a sentença que julgou no sentido da sua anulação ser mantida para todos os efeitos, incluindo sendo a Administração Tributária condenada ao reembolso do imposto e ao pagamento de juros indemnizatórios.
VI. DO PEDIDO
Termos em que se requer que seja, imediatamente, negado o conhecimento do recurso por não ter sido cumprido o ónus de alegação legalmente atribuído à Recorrente e por manifesta inutilidade daquele conhecimento, conforme alegado supra, ou, caso assim não se entenda, que seja negado provimento ao presente recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública, por a decisão a quo não merecer qualquer censura devendo ser mantida, com as devidas consequências legais.
Mais se requer que seja dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça em sede de recurso à luz do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, não só face à simplicidade dos Autos, mas também por decisão contrária implicar a violação dos princípios da proporcionalidade e do direito de acesso à justiça.
Só nestes termos será respeitado o DIREITO e feita JUSTIÇA!”.
O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.
É a seguinte a questão a decidir:
a) Há erro de julgamento, porquanto o ato impugnado constitui um ato de execução de anterior julgado anulatório?
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:
“a) Em 05.02.2013, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de IRC n.º 2013 8310000817, respeitante ao exercício de 2010, com um valor total € 6 931 026,77; cfr doc constante do processo n.º 235/13.6 – art.º 412.º n.º 2 do CPC e art.º 13.º do CPPT
b) Essa liquidação foi impugnada judicialmente, em acção interposta em 03.07.2013 que correu termos neste tribunal sob o n.º 235/13.6BEBJA, ; cfr doc constante do processo n.º 235/13.6 – art.º 412.º n.º 2 do CPC e art.º 13.º do CPPT, admitido pelas partes
c) Em 20.10.2016, foi proferida sentença naquele processo n.º 235/13.6BEBJA, que julgou a acção procedente, concluindo “pela procedência do invocado fundamento da impugnação, julgando ilegal a aplicação ao caso vertente do regime transitório contido no art.º 5 do Decreto - Lei n.º 159/2009, de 13/07, em razão do que impõe declarar nula e de nenhuns efeitos a liquidação impugnada.” cfr doc constante do processo n.º 235/13.6 – art.º 412.º n.º 2 do CPC e art.º 13.º do CPPT, admitido pelas partes, cfr doc junto à petição inicial
d) Dessa sentença foi interposto recurso pela Fazenda Pública, pedindo a revogação da sentença, e a sua substituição “... por acórdão que analise cabalmente as questões suscitadas pela ora recorrente; cfr doc constante do processo n.º 235/13.6 – art.º 412.º n.º 2 do CPC e art.º 13.º do CPPT, admitido pelas partes, cfr doc junto à petição inicial
e) Esse recurso subiu até ao Supremo Tribunal Administrativo que, em data concreta não apurada, mas antes de 14.12.2018, proferiu acórdão com o teor que consta do documento 4 junto à petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual, além do mais, foi negado provimento quanto à questão de mérito; cfr doc constante do processo n.º 235/13.6 – art.º 412.º n.º 2 do CPC e art.º 13.º do CPPT, cfr doc junto à petição inicial
f) A Impugnante e a Fazenda Pública, foram notificadas deste acórdão através de documento datado de 14.12.2018; Cfr doc 4 junto à petição inicial e consulta ao processo n.º 235/13
g) Com data de 16.07.2019, os serviços da Unidade dos Grandes Contribuintes da Administração Tributária endereçaram e enviaram a mandatário da Impugnante, o ofício n.º 1811, com o seguinte teor:
“Impugnação judicial n.º 235/13.6BEBJA
Assunto: Execução de julgado
Em referência à execução do julgado respeitante á decisão proferida no âmbito do processo acima mencionado, em que era Impugnante a sociedade que usa a firma “S…, S.A.”, somos a informar que essa mesma execução de julgado, a operar em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas relativo ao ano de 2010, consubstanciado num ajustamento, por dedução ao lucro tributável, no valor de € 26 905 298,53, irá por sua vez provocar um ajustamento, desta vez por acréscimo, aos períodos subsequentes de 2011 a 2014, por montante correspondente à parte daquele valor que a impugnante veio a considerar nestes últimos períodos.
Mais se informa que a breve trecho o cumprimento do disposto no art.º 100.º da LGT ficará concluído.”; Cfr doc constante do processo instrutor
h) Em 02.08.2019, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de IRC n.º 2019 65100003673, com o seguinte teor:
«Imagem no original»
«Imagem no original»
«Imagem no original»
Cfr doc 1 e 2 juntos à petição inicial
i) Em 12.09.2019, a Impugnante efectuou um pagamento ao Estado no valor de € 1 412 522,17, através da referência de pagamento 105 519 006 421 422, respeitante àquela liquidação; Cfr documento 5 junto à petição inicial, conjugado com os elementos do documento de pagamento enviado à Impugnante”.
II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:
“A convicção do Tribunal sobre toda a matéria de facto resultou da análise crítica aos documentos juntos aos autos pelos Impugnantes, conjugados com os que constam do processo administrativo, tal como se fez referência em cada uma das alíneas da matéria de facto provada”.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.A. Do erro de julgamento
Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto, na sua perspetiva, o ato impugnado constitui um ato de execução de anterior julgado anulatório.
Antes de mais, refira-se que a Recorrente formula um pedido de declaração da nulidade da sentença recorrida. Não obstante, compulsadas as alegações e respetivas conclusões, verifica-se que nada foi invocado que seja atinente a qualquer causa de nulidade da sentença, mas tão-só a erro de julgamento, motivo pelo qual este Tribunal nada dirá sobre tal pedido, que carece de materialidade.
Prosseguindo.
In casu, como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto, não impugnada:
a) A Recorrida impugnou, no âmbito dos autos 235/13.6BEBJA, a liquidação de IRC n.º 2013 8310000817, respeitante ao exercício de 2010;
b) Quer em primeira instância, quer em sede de recurso, a Impugnante obteve vencimento nos mencionados autos, tendo sido o último dos acórdãos proferidos notificado através de ofício datado de 14.12.2018;
c) No ano seguinte, os serviços da administração tributária (AT) remeteram um ofício à Impugnante, dando-lhe conta de que a decisão proferida atinente ao exercício de 2010 comportava, do ponto de vista de execução de julgado, um ajustamento ao lucro tributável, por dedução, ao exercício de 2010, e um ajustamento, por acréscimo, aos exercícios subsequentes, incluindo o ora em apreciação;
d) Nessa sequência, foi emitida a liquidação ora em crise.
Vejamos então.
Verificando-se a situação de ocorrência de um julgado anulatório, tendo por objeto, como in casu, uma concreta liquidação de imposto de um concreto exercício, cabe à AT, desde logo, executar voluntariamente tal decisão.
Com efeito, atento o disposto no art.º 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), “[a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
Assim, havendo anulação de ato tributário, está a AT obrigada à reconstituição da situação atual e hipotética, por forma a recriar na esfera do administrado a situação que o mesmo teria se o ato ilegal não tivesse sido praticado.
O ato tributário que resulte da execução do julgado anulatório, neste seguimento, não é considerado um ato autonomamente impugnável, porquanto se limita a cumprir o determinado judicialmente.
No entanto, tal circunstância ocorre apenas e quando estivermos perante um ato tributário que se situe dentro dos limites do julgado anulatório, pois, se e na medida em que os extravase, já perde essa natureza de mero ato de execução.
Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.
In casu, da sentença proferida no âmbito dos autos n.º 235/13.6BEBJA extrai-se o seguinte:
“9.1.
DA INVERIFICAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DE APLICAÇÃO DO REGIME TRANSITÓRIO DEFINIDO PELO DECRETO-LEI Nº 159/2009, DE 13/07
(…) Vejamos:
Efectivamente o Decreto-Lei nº 159/2009 veio introduzir alterações necessárias à adaptação do Código de IRC à imposições decorrentes da introdução de um novo enquadramento contabilístico, o SNC.
E, fê-lo mediante o estabelecimento de regras integradoras de um regime transitório que visava minimizar o impacto a curto prazo que se traduziria tais mudanças quer no tecido empresarial quer na arrecadação de receita fiscal.
Com efeito, do Decreto-Lei nº 159/2009 consta um regime transitório consignado no seu art. 5º e que, para o que ao caso importa, dispõe que: “1 – Os efeitos nos capitais próprios decorrentes da adopção, pela primeira vez, das normas internacionais de contabilidade adoptadas nos termos do artigo 3.º do Regulamento n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho, que sejam considerados fiscalmente relevantes nos termos do Código do IRC e respectiva legislação complementar, resultantes do reconhecimento ou do não reconhecimento de activos ou passivos, ou de alterações na respectiva mensuração (…)”.
Daqui decorrendo a consequência de que verificadas algumas dessas situações os respetivos efeitos produzir-se do seguinte modo “concorrer, em partes iguais, para a formação do lucro tributável do primeiro período de tributação em que se apliquem aquelas normas e dos quatro períodos de tributação seguintes”.
O que importa, pois, é apreciar da aplicação ao caso deste regime.
Numa primeira linha, como defendido pela Impugnante, importa analisar da eventual implicação de efeitos nos capitais próprios por adopção das regras do SNC. E, neste capítulo, é forçoso notar que por acordo entre as partes se conclui pela inexistência de reflexos nos capitais próprios da sociedade de tal adopção.
Por outro lado, a norma exige que esses efeitos sejam resultantes do reconhecimento ou do não reconhecimento de activos ou passivos. No caso vertente torna-se irrelevante tal pressuposto pois que já em 2009 a sociedade Impugnante havia evidenciado como estimativa de perdas tal montante.
Ou, que tais efeitos decorram de alteração da mensuração. O que, de igual forma, é irrelevante pois, como resultou assente, o procedimento contabilístico e fiscal quanto a tais perdas é idêntico em 2009 e 2010 àquele que adoptou nos anos de 2001 a 2004.
Ademais, o valor “medido” é aceite comumente pelas partes.
Aqui chegados impõe-se concluir pela não verificação no caso dos pressupostos que importam a aplicação ao caso do regime transitório ali previsto.
Ao invés, o que resulta manifesto para o Tribunal é que a perda apurada pela Impugnante em 2010 corresponde à liquidação nesse mesmo ano dos instrumentos financeiros derivados que havia contratado no ano de 2009 mas que só então alcançavam o seu termo.
Não se trata de qualquer alteração ao correspondente justo valor, à forma pela qual foi efetuada a sua mensuração e não acarretaram quaisquer efeitos nos capitais próprios da sociedade.
Estas conclusões decorrem da subsunção da norma que se citou à realidade que foi trazida para apreciação pelo Tribunal salientando-se que o critério de quantificação do justo valor e evidencia contabilística da estimativa da perda decorriam da aplicação pela Somincor de normas internacionais que se mostravam harmoniosas com aquelas que o SNC veio introduzir, inexistindo alterações a registar.
Desta forma afasta o Tribunal a aplicação ao caso vertente da aludida norma constitutiva de regime transitório porquanto serviu apenas para acautelar o regime fiscal de ganhos / perdas que a partir de 01/01/2010 se registassem e deixassem ou passassem a ser fiscalmente relevantes por contraposição do que sucedia até 31/12/2009.
Subscrever o entendimento da ATA seria, na convicção do Tribunal, desvirtuar a natureza dos instrumentos financeiros derivados cuja característica principal é a futuridade da sua liquidação.
Ajustada com tal natureza, e bem assim as normas que o SNC veio impor, se nos afigura a consignação do potencial de perda a um justo valor que decorrerá, naturalmente, do valor do mercado no momento. E foi esse o procedimento que a Impugnante levou a cabo.
Por outro lado importa referir que de forma absoluta pode colher a tese da ATA de acordo com a qual a sociedade Impugnante aceita o entendimento propugnado no relatório da inspecção que conduziu às liquidações. Na verdade, como ficou assente, plausível e consentâneo com uma postura de salvaguarda do muito elevado valor que está em causa nos autos se mostra a adopção de uma postura que dá sequência ao que a ATA impõe por forma a acautelar as deduções impostas. Assim, em nada se entende extrair uma posição de concordância da opção fiscal que a Impugnante tomou ao apresentar declaração de substituição de IRC quanto ao exercício de 2011, aí consignando a dedução fraccionada, e anos subsequentes mas tão só uma prudência com vista a lograr a efectiva dedução de um custo que notoriamente ocorreu.
Por fim, acrescente-se que não obstante se considerar despiciendo se entende efetivamente infeliz – como refere a Ilustre Representante da Fazenda Público – a referência ao caso como situação análoga à que no regime transitório se prevê pois que a apreciação contida no relatório ensaia uma efectiva aplicação do mesmo com integração nos respectivos pressupostos. No que falha, entende o Tribunal, na sua apreciação.
De todo o exposto conclui-se pela procedência do invocado fundamento da impugnação, julgando ilegal a aplicação ao caso vertente do regime transitório contido no art. 5º do Decreto-Lei nº 159/2009, de 13/07, em razão do que se impõe declarar nula e de nenhuns efeitos a liquidação impugnada.
Na decorrência desta nulidade impõe-se determinar o reembolso do montante já pago como ficou assente a título de imposto e de juros compensatórios.
(…)
Em consequência do exposto, julga-se a impugnação totalmente procedente em razão do que:
- se anula a liquidação de IRC e juros compensatórios respeitantes ao exercício de 2010;
- se determina o reembolso do montante pago;
- se condena a Entidade Impugnada no pagamento de juros indemnizatórios correspondentes”.
Por seu turno, do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.12.2018 (Processo: 0235/13.6BEBJA 01052/17), que confirmou a mencionada sentença, extrai-se o seguinte:
“No essencial, na sentença recorrida reconheceu-se razão à pretensão da recorrida por se ter entendido que no caso concreto não faria sentido a aplicação do regime transitório estabelecido no artigo 5º do DL n.º 159/2009, de 13.07, que procedeu à adaptação do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro, às normas internacionais de contabilidade adoptadas pela União Europeia e ao Sistema de Normalização Contabilística (SNC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, uma vez que a sociedade recorrida já anteriormente, nos exercícios fiscais anteriores, lançou mão do critério de quantificação do justo valor e evidência contabilística da estimativa da perda por recurso às normas internacionais que se mostravam harmoniosas com aquelas que o SNC veio introduzir, inexistindo alterações a registar.
Ou seja, se bem se percebe, para efeitos contabilísticos e fiscais, a posição da impugnante não surge afectada ou alterada pela entrada em vigor das novas regras uma vez que já anteriormente, esta mesma recorrida, organizava a sua contabilidade respeitando as regras que o DL 159/2009 veio introduzir no CIRC.
Já vimos que para a adaptação das novas regras introduzidas por este DL o legislador editou uma norma transitória com o seguinte teor, cfr. artigo 5º, n.º 1:
Os efeitos nos capitais próprios decorrentes da adopção, pela primeira vez, das normas internacionais de contabilidade adoptadas nos termos do artigo 3.º do Regulamento n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho, que sejam considerados fiscalmente relevantes nos termos do Código do IRC e respectiva legislação complementar, resultantes do reconhecimento ou do não reconhecimento de activos ou passivos, ou de alterações na respectiva mensuração, concorrem, em partes iguais, para a formação do lucro tributável do primeiro período de tributação em que se apliquem aquelas normas e dos quatro períodos de tributação seguintes.
Como bem se refere na decisão recorrida, não se vislumbra que a concreta situação de facto se possa enquadrar na previsão da norma transitória relevante pelas seguintes razões:
-a adopção do SNC pelo sujeito passivo a partir do início da sua vigência não se reflectiu no capital próprio da sociedade (entendido como valor residual dos activos da sociedade após dedução dos passivos); nem na alteração dos critérios de reconhecimento e de mensuração de activos e passivos (factos provados als. O) e X);
-no exercício de 2009 (antecedente ao primeiro exercício de aplicação do regime transitório) a impugnante tinha reconhecido uma estimativa de perda contabilística resultante da contratação de IFD nesse período de tributação mas ainda não liquidados, correspondente ao montante que deduziu ao lucro tributável do exercício de 2010 (factos provados als. H) I) J) K);
-o procedimento contabilístico e fiscal quanto a essas perdas adoptado em 2009 e 2010 foi idêntico ao adoptado nos exercícios de 2001 a 2004, com aceitação pela administração tributária (factos provados als. Y) Z);
-a perda (gasto na nova nomenclatura fiscal - art. 8° al. f) DL n° 159/2009, 13.07) apurada pelo sujeito passivo no exercício de 2010 resultou da liquidação de IFD contratados em 2009 (nos termos indicados na al. b).
Ou seja, face a este circunstancialismo fáctico disponível não resta dúvida que a perda apurada pela recorrida e aqui relevante não resulta da aplicação das regras do justo valor, ou até das demais regras adoptados pelo DL n.º 159/2009, antes pelo contrário, resulta de se ter verificado uma perda efectiva resultante da liquidação dos IFD’s, ou seja, no caso concreto tais perdas não resultam do reconhecimento ou do não reconhecimento de activos ou passivos, ou de alterações na respectiva mensuração.
E, portanto, não sendo subsumível o caso concreto à norma, a aplicação do regime transitório pretendida pela administração tributária, com fundamento numa alegada analogia do caso concreto com a adopção pela primeira vez do novo formato contabilístico (SNC) no período de 2010, constituiria uma violação do princípio da legalidade em matéria fiscal, impeditivo da integração de lacuna por interpretação no domínio das normas de incidência dos impostos nos termos do disposto nos artigos 103° n.º 2 da CRP e 11º, n.º 4 da LGT. Aliás, é a própria AT que no seu relatório, em que afirma a necessidade de correcção à declaração de IRC, que conclui pela não identidade da situação fáctica com aquela constante da previsão legal ao referir que, pelo que se pode afirmar que já se encontram registados nos capitais próprios efeitos inerentes à adaptação do Código do IRC ao Sistema de Normalização Contabilística, efeitos esses que devem ser considerados relevantes para efeitos fiscais porquanto apresentam características substancialmente idênticas àquelas que emergem da adopção pela primeira vez do novo formato contabilístico no período de 2010.
Improcederá, assim, nesta parte o recurso que nos vem dirigido”.
Ora, de modo algum resulta do julgado em causa a existência de qualquer consequência na liquidação de exercícios ulteriores, designadamente na do exercício de 2011.
A eventual ligação da situação subjacente à liquidação ora em crise emitida pela AT com a circunstância de a FP ter decaído nos autos relativos ao exercício de 2010 não faz com que a correção efetuada pela AT à liquidação do exercício de 2011 resulte do tal julgado anulatório, que em momento algum se pronuncia sobre tal exercício nem era, aliás, o mesmo, direta ou indiretamente, o seu objeto.
Como tal, não se pode considerar que a liquidação ora posta em causa seja um mero ato de execução do julgado anulatório.
É, sim, um ato inovatório, passível de impugnação autónoma, e não um mero ato confirmativo.
No mesmo sentido e em situação idêntica à ora apreciada, v. o Acórdão deste TCAS, de 24.03.2022 (Processo: 42/20.0BEBJA).
Acrescente-se, ademais, como referido pela Recorrida, que o Tribunal a quo considerou, de resto, que, mesmo que o ato se pudesse considerar confirmativo (e não se considera), ainda assim não teria sido respeitado o prazo previsto no art.º 175.º n.º 1 do CPTA, ex vi art.º 102.º da LGT, com consequências em termos de caducidade do direito à liquidação, o que nunca foi posto em causa pela Recorrente.
Face ao exposto, carece de razão a Recorrente.
Atento o valor dos autos, cumpre considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do RCP, aplicável na presente sede.
Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.
No caso, considerando quer a conduta das partes, que se revelou sem mácula, quer a simplicidade das questões apreciadas, entende-se dever haver lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;
c) Registe e notifique.
Lisboa, 14 de julho de 2022
(Tânia Meireles da Cunha)
(Susana Barreto)
(Patrícia Manuel Pires) |