Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:350/23.8 BEALM
Secção:CA
Data do Acordão:09/13/2023
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:DESPACHO LIMINAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
DIREITO À HABITAÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Sumário:I- A rejeição liminar do requerimento inicial, prevista no artigo 116º, nº2, alínea d) do CPTA, deve ser reservada para os casos em que é evidente e manifesto que não existe probabilidade de a pretensão formulada poder vir a proceder.
II- A admissão do requerimento em sede de despacho liminar não influi na decisão final sobre o mérito da providência cautelar.
III- Uma vez que as duas decisões têm natureza distinta e podem ter desfechos diferentes, a admissão do requerimento inicial não impede que o processo cautelar possa ser julgado improcedente, pelo que é manifestamente prematuro o juízo contido na decisão recorrida, nomeadamente no tocante à falta de “fumus boni iuris”, pois a rejeição liminar do requerimento inicial, ao abrigo do nº 2 do artigo 116º do CPTA, exige o carácter evidente e óbvio da falta de fundamento da pretensão.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I. RELATÓRIO
1. B............., com os sinais dos autos, intentou no TAF de Almada contra o Município de Almada uma providência cautelar de suspensão de eficácia do acto que determinou a desocupação da habitação própria e exclusiva do requerente e da companheira, sita na Azinhaga ............., até ao dia 30 de Maio de 2023.
2. O TAF de Almada, por decisão datada de 25-5-2023, indeferiu liminarmente a providência cautelar requerida.

3. Inconformado, o requerente interpôs recurso de apelação para este TCA Sul, no qual formulou as seguintes conclusões:
1ª – O recorrente e a sua companheira desde Maio de 2019 que se encontram a habitar na actual habitação por não ter outro sítio para onde ir e há vários anos que o recorrente aguarda pela, para atribuição de uma casa social mas da recorrida, nunca recebeu qualquer resposta.
2ª – O recorrente vive com a companheira, não dispondo de qualquer outra habitação.
3ª – Têm assistido a entregas de chaves a pessoas que não concorreram tal como sucedeu recentemente que um seu conhecido que tendo aceite a casa atribuída por concurso viu a mesma ser-lhe retirada e ocupada (foi entregue sem concurso pelo Presidente da CMA) ao que consta por uma distinta senhora que não concorreu e que lhe ficou com a casa por alegadamente ser mulher de um polícia municipal.
4ª – Neste contexto, após terem sido despejados não teve outro remédio senão entrar numa casa que se encontrava abandonada e com a porta aberta. Após isso realizou obras de restauro profundo tornando assim um lar com as condições higiénicas e de saúde para a sua companheira.
5ª – O recorrente já tentou que a recorrida o recebesse para assinar um contrato de arrendamento com uma renda apoiada e de acordo com os rendimentos do agregado familiar.
6ª – Desde há vários anos atrás que o recorrente tem feito tudo para que junto da recorrida lhe fosse regularizada a situação visto que pretendia pagar a renda e naturalmente ter recibos na sua posse.
7ª – Temendo pela dignidade e integridade da sua família, temem pelo eminente despejo tal como outros exemplos da sua família e amigos que foram despejados, foi o seu agregado familiar a terem de pernoitar ao relento, sem proceder aos tramites impostos por lei do reencaminhamento para outras entidades competentes, para mais não foi facultado qualquer direito de defesa, audiência prévia ou audição do interessado, ora recorrente pelo que logo teme a iminente entrada daqueles na sua habitação.
8ª – Recorde-se que a casa corresponde à residência do recorrente e da sua companheira, não dispondo de qualquer outra habitação, se o documento a suspender não for suspenso fica o recorrente sujeito, que a qualquer hora sem qualquer outro aviso prévio ou direito de defesa tenha de passar a pernoitar ao relento com a sua companheira!
9ª – O recorrente nada aufere, não tendo qualquer actividade remunerada, não tendo possibilidades económicas que lhes permitam arrendar uma casa.
10ª – O recorrente, ao concorrer durante estes anos consecutivos e por estar em situação de desespero por ter não ter outro sítio onde viver, adquiriu a legitima expectativa de ter acesso a uma habitação social pois que está demonstrado que carece da mesma.
11ª – O recorrente e a sua companheira apenas têm condições para pagar uma renda de 4 ou 5 euros, o que só é possível numa habitação social.
12ª – Com base em estado necessidade o garantir a segurança, a saúde, e até o direito à vida do recorrente e da sua companheira, faz com que se verifiquem os requisitos objectivos e subjectivos do estado de necessidade não apenas desculpante, mas verdadeiramente dirimente da responsabilidade criminal.
13ª – Acresce ainda que tal como resulta do Acórdão do TCAS nº 383/19.9BELSB, estando demonstrada a efectiva carência habitacional tal como o recorrente alega, a entidade requerida GEBALIS enquanto entidade de gestora de um parque de habitação social esta obrigada, quando confrontada com o requerimento da providência a averiguar a existência de efectiva carência habitacional e sendo a mesma evidente, deverá ser emitido juízo de prognose favorável por parte do Tribunal se a GEBALIS cumprir a obrigação legal imposta pela Lei nº 32/2016, de 24/8, facilmente concluirá que o recorrente afinal tem direito à atribuição de uma habitação social atenta a fragilidade da sua situação económica sob a forma de atribuição em emergência social.
14ª – Em suma, a pretensão do recorrente com base no estado de necessidade e na situação de emergência social tem direito a que seja previamente ouvida a recorrida, a qual tem a obrigação não apenas de informar mas sobretudo de acompanhar e comunicar ao tribunal se afinal o recorrente tem ou não carência habitacional em situação de urgência e só depois, eventualmente após a inquirição das testemunhas se pode concluir pela legalidade ou não do recurso à providência cautelar de suspensão, a qual nos termos legais deveria merecer um despacho judicial no prazo de 48 horas de deferimento, relegando-se para a fase posterior à oposição a apreciação do mérito da providência.
15ª – Assim, por se afigurar que o recorrente tem direito ao deferimento provisório da providência e que o momento oportuno para se conhecer da legalidade ou não da pretensão só tem lugar após a apresentação da oposição por parte da entidade requerida, se requer a V. Exª se digne deferir provisoriamente a mesma.
16ª – Se a recorrida não se dignar fixar o valor da renda ao recorrente, dentro dos parâmetros legais, a sobrevivência do agregado familiar estará grave e irremediavelmente afectada.
17ª – Nos termos do disposto no artigo 65º, nº 1 da CRP todos têm direito para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
18ª – Tal disposição tem como sujeito passivo o Estado e naturalmente que incumbindo-lhe competências quer para gerir um parque habitacional perfeitamente delimitado. Logo, a notificação da recorrida no que respeita à omissão culposa da regularização da situação não só era oportuna como perfeitamente ilegal ao abrigo da CRP.
19ª – Efectivamente, ao abrigo da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2016, resulta do artigo 28º, nº 6 que os agregados alvos de despejo com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais. Trata-se uma disposição naturalmente imperativa.
20ª – Não houve qualquer juízo no Tribunal de primeira instância o recorrente não compreende este aviso de despejo iminente. Para mais houve uma severa omissão dos deveres objectivos das requeridas no que diz respeito ao artigo 4º do DL nº 89/2021, de 3 de Novembro, em que nenhum dos deveres impostos às requeridas foram cumpridos ao longo dos últimos anos!
21ª – Um aspecto que não foi tido em conta pelo Tribunal de primeira instância e que foi alegado na PI foi a verificação objectiva da colisão de direitos entre o direito na esfera jurídica da recorrida em ter um imóvel devoluto há mais de três anos, que apenas servia de casa de chuto, contra o direito de um agregado familiar com efectiva carência económica onde esta uma pessoa com deficiência de locomoção, que realizou obras de restauro profundo na mesma, que possa aí viver e pagar uma renda. Independentemente, se a interpretação da colisão de direito for perante o nº 1 ou 2 do artigo 335º do Código Civil, é de convir que prevalece, ainda que a título provisório, o direito do ora recorrente. Devendo assim esta ordem de despejo ser suspensa.
22ª – Para mais o Tribunal de primeira instância não teve em conta que a consequência inevitável da notificação, a não ser suspensa, será, sem qualquer dúvida, o procedimento de despejo coercivo. Procedimento esse que o recorrente não terá qualquer direito defesa, audiência prévia ou sequer ser ouvido. No que se consubstanciará num despejo a qualquer hora e sem aviso prévio em ser despejado com auxílio das forças policiais e sem qualquer reencaminhamento efectivo não restando outra solução senão a irem dormir para a rua!
23ª – Prevê o artigo 28º, nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, na redacção da Lei nº 32/2016, de 24 de Agosto, que “[o] s agregados alvos de despejo com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”.
24ª – Retira-se do despacho da CMA, o acto suspendendo, que daquela norma não resulta que deva ser atribuída, sem mais, uma habitação na sequência da determinação da desocupação, mas sim que os ocupantes sejam encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, que foi o que a CMA não fez e nem sequer informou o recorrente dos programas de acesso à habitação e de apoio ao arrendamento de que dispunha e aos quais poderia aceder.
25ª – E nesse despacho nada nos indica tal opção.
26ª – O citado normativo impõe que se encaminhem os agregados com efectiva carência habitacional para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais.
27ª – Tal informação, ao contrário do sustentado nesse despacho não se afigura suficiente para dar cumprimento ao citado normativo.
28ª – É que se a expressão “encaminhar” não encontra correspondência automática na atribuição de uma habitação também não se pode reduzir a uma mera informação tabelar dos procedimentos que os ocupantes podem adoptar. E nem sequer essa mera informação tabelar foi realizada pela CMA e ora recorrida.
29ª – Encaminhar implica um acto de dirigir a algo, ou acompanhar a algo, ao passo que informar se esgota no acto de dar conhecimento de algo.
30ª – Falamos de conceitos distintos, portanto, e se as entidades requeridas ora recorrida se limitaram a informar, não cumpriram com o disposto na lei.
31ª – Por outro lado, o normativo refere-se a agregados com efectiva carência habitacional, o que naturalmente pressupõe uma prévia averiguação da respectiva situação financeira, o que, ao que se sabe, não se mostra concretizada.
32ª – Aferindo-se a efectiva carência habitacional, incumbe às entidades requeridas apresentarem soluções alternativas (à da casa ilegalmente ocupada) de acordo com a lei, não se podendo limitar a informar os elementos do agregado da identificação dos seus programas de acesso à habitação e de apoio ao arrendamento, e de que podem ainda recorrer à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
33ª – No sentido propugnado, veja-se recente acórdão do TCAN, datado de 25-1-2019 (tirado no proc. nº 02681/17.7BEPRT, disponível em http://www.dgsi.pt), no qual se assinala que dizer “aos visados, em simultâneo com a ordem de despejo, que deverão procurar eles próprios, uma solução de habitação” é “substancialmente distinto de serem encaminhados, antes do despejo, para uma solução legal de habitação ou para a prestação de apoios habitacionais. Independentemente da existência ou não de uma situação de carência efectiva de apoio social no que diz respeito à habitação, o que só as entidades competentes para decidir sobre os apoios alternativos podem determinar”.
34ª – Considerando a aparência do bom direito, consubstanciada na violação do referido normativo, é mister passar a transcrever uns excertos do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Processo nº 1012/22.9BELSB, de 20-10-2022, por ser uma situação idêntica à do requerente, ora recorrente e do seu agregado familiar com efectiva carência económica.
35ª – “Falta evidência à conclusão constante da decisão recorrida de que é manifesta a falta de interesse em agir da requerente, dado que esta no requerimento inicial (onde solicita a intimação das entidades requeridas à abstenção de uma conduta) alega factualidade no sentido de que as entidades requeridas têm executado despejos sem prévia notificação escrita, além de que invoca nesse articulado que foi ameaçada de despejo sem prévia notificação”.
36ª – “Falta certeza à conclusão tirada na decisão recorrida de que a requerente, de forma manifesta, pode ser despejada sem lhe ser atribuído um imóvel por se tratar de uma ocupação sem título de fogo municipal, tendo em conta, por um lado, que a requerente alega no requerimento inicial factualidade tendente a demonstrar que se encontra numa situação de efectiva carência habitacional e, por outro lado, o disposto no artigo 13º da Lei nº 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), e nos artigos 1º, 3º e 4º, do DL nº 89/2021, de 3/11 (o qual regulamenta a Lei nº 83/2019), diplomas legais que concretizam o direito à habitação consagrado no artigo 65º da CRP”.
37ª – “De todo o modo, esse artigo 65º foi concretizado maxime pela Lei nº 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), em cujo artigo 13º, sob a epígrafe “Protecção e acompanhamento no despejo”, determina-se o seguinte:
“1 – Considera-se despejo o procedimento de iniciativa privada ou pública para promover a desocupação forçada de habitações indevida ou ilegalmente ocupadas.
2 – A lei estabelece os termos e condições em que a habitação é considerada indevida ou ilegalmente ocupada. (…)
4 – O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento, nos termos definidos na lei, sem prejuízo do número seguinte.
5 – Em caso de ocupação ilegal de habitações públicas, o despejo obedece a regras procedimentais estabelecidas por lei.
6 – Sempre que estejam reunidas as condições para o procedimento previsto no nº 1, são garantidos pelo Estado, nomeadamente:
a) Desde o início e até ao termo de qualquer tipo de procedimento de despejo, independentemente da sua natureza e motivação, a existência de serviços informativos, de meios de acção e de apoio judiciário;
b) A obrigação de serem consultadas as partes afectadas no sentido de encontrar soluções alternativas ao despejo;
c) O estabelecimento de um período de pré-aviso razoável relativamente à data do despejo;
d) A não execução de penhora para satisfação de créditos fiscais ou contributivos, nos termos da lei, quando esteja em causa a casa de morada de família;
e) A existência de serviços públicos de apoio e acompanhamento de indivíduos ou famílias vulneráveis alvo de despejo, a fim de serem procuradas atempada e activamente soluções de realojamento, nos termos da lei.
7 – As pessoas e famílias carenciadas que se encontrem em risco de despejo e não tenham alternativa habitacional têm direito a atendimento público prioritário pelas entidades competentes e ao apoio necessário, após análise caso a caso, para aceder a uma habitação adequada”.
38ª – “Acresce que esta Lei nº 83/2019 foi regulamentada pelo DL nº 89/2021, de 3/11 – invocado no artigo 5º do requerimento inicial –, no qual se dispõe o seguinte:
- No respectivo preâmbulo, “O direito à habitação, previsto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, constitui uma das mais importantes marcas genéticas do Estado de Direito Democrático nascido a 25 de Abril de 1974 e do ambicionado e, desde então, amplamente realizado Estado Social”.
39ª – A notificação como acto suspendendo, é de particular gravidade e, por constituir uma clara violação do nº 4 do artigo 13º da Lei de Bases da Habitação (Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro), segundo o qual “o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento, nos termos definidos na lei, sem prejuízo do número seguinte”.
40ª – Da mesma forma, viola os artigos 11º e 12º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), aprovado pela resolução da Assembleia da República nº 3/2013, de 21 de Janeiro, uma vez que não foi apresentada qualquer alternativa habitacional, numa situação de especial vulnerabilidade e hoje agravada pela inflação que se vive.
41ª – Tendo em conta as conclusões retiradas na jurisprudência e legislação citada leva-nos a levar por terra a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância no sentido que é uma situação ilegal e que nem sequer estamos perante um acto administrativo.
42ª – Não há violação do princípio da separação dos poderes pois incumbe aos Tribunais verificarem a legalidade da actuação da administração pública, o que se pretende com a suspensão do acto suspendendo por manifesta violação da lei.
43ª – Para mais, é manifesta a falta de fundamentação da decisão da primeira instância.
44ª – Nada há de contraditório ao dizer-se que o recorrente ao iniciar uma relação com a sua actual companheira inviabiliza a manutenção destes na antiga residência dos progenitores por impossibilidade destes coabitarem”.
4. O Município de Almada apresentou contra-alegação, na qual formulou as seguintes conclusões:
a. O acto administrativo/decisão do Município para desocupação da habitação atenta a ocupação ilegal, foi notificado ao recorrente através do edital nº ......../2023, de 15 de Maio de 2023, afixado na habitação, não tendo sido colocado em crise o seu conteúdo.
b. Não é de todo ao TAF de Almada que está acometida a competência para atribuição de habitações Municipais.
c. Nem estas são atribuídas pelo Município de Almada na sequência de ocupações abusivas, à revelia da edilidade.
d. Por outro, lado o requerente encontrava-se à data da ocupação realojado em fogo Municipal de tipologia adequada à dimensão do agregado familiar comunicado ao Município.
e. Não se encontrava sem tecto, sem solução habitacional, nem tão pouco solicitou, antes da ocupação ou na sequência da notificação para a desocupação auxílio para encontrar outras soluções habitacionais, caso não pretendesse retornar à habitação em que estava realojado legalmente.
f. Apenas pretendeu autonomizar-se com a ocupação abusiva que vem fazendo da habitação, conforme refere no seu requerimento inicial, “pretendia um desdobramento” e agora a regularização da ilegalidade cometida.
g. Pelo que feneceria qualquer pretensão do requerente a este propósito em sede de acção principal, que o decretamento da PC, porquanto antecessória (sic) pretendesse acautelar.
h. Pelo que, nenhuma censura merece a decisão proferida em 1ª instância, que indeferiu liminarmente a providência cautelar interposta por B..............
i. Devendo, nessa conformidade, ser declarado improcedente o recurso ora interposto e em consequência mantida a decisão em crise”.
5. Remetidos os autos a este TCA Sul, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 146º do CPTA, tendo a Digna Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal emitido douto parecer, no qual sustenta que o recurso merece provimento.
6. Sem vistos aos Exmºs Juízes Adjuntos, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.


II. OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A DECIDIR
7. Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nºs 1, 2 e 3, todos do CPCivil, “ex vi” artigo 140º do CPTA, não sendo lícito a este TCA Sul conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
8. E, tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, impõe-se apreciar no presente recurso se a decisão recorrida carece de fundamentação e se incorreu em erro de julgamento de direito ao ter indeferido liminarmente a providência requerida, violando desse modo o direito à habitação do recorrente, previsto no artigo 65º da CRP, e os artigos 11º e 12º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), aprovado pela resolução da Assembleia da República nº 3/2013, de 21 de Janeiro, uma vez que não foi apresentada qualquer alternativa habitacional, numa situação de especial vulnerabilidade e hoje agravada pela inflação que se vive.


III. FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
9. A decisão recorrida considerou assente – sem qualquer reparo – a seguinte factualidade:
a. No requerimento inicial consta, por extracto:

O locado sito na Azinhaga..................., é propriedade da entidade requerida.
O/A antigo/a titular da actual residência do requerente é de identidade desconhecida, mas o locado encontrava-se devoluto há muito tempo, não menos de 5 anos, estando este imóvel devoluto durante este tempo, tal como muitos outros naquele Bairro contrastando com o facto de encontrarem-se à espera de atribuição de habitação social centenas senão milhares de pessoas.
Para mais a requerida já não efectua os chamados “desdobramentos” o que consistia no acompanhamento do crescimento natural de uma família, pois a família do requerente cresceu e apenas tinham um quarto disponível para toda a sua família e nunca foi possível ao requerente ter acesso a outra habitação. Para mais, estes foram despejados daquela habitação não restando qualquer alternativa!
O agregado familiar é composto pelo requerente e a companheira tal como doc. 1 que se junta e aqui residem desde Maio de 2019.
Tendo passado a residir nesta habitação, onde dormem, e vão sendo acompanhados por familiares que, por incapacidade destes, também não os podem acolher em casa fazendo todos os possíveis para dar o maior conforto ao requerente. Em Março de 2023 o requerente teve uma conversa com as assistentes sociais que foram visitar a casa e explicou-lhe que já estava há mais de 6 anos a aguardar por uma habitação e explicou-lhe as condições em que vivia, tendo este respondido que iria aí continuar por não ter alternativa. O que este após profundas obras de restauro o fez.
O requerente tem vindo a solicitar, nos últimos 6 anos, a atribuição de uma casa de habitação social, mas a requerida de forma alguma concedeu a algum dos seus pedidos que nunca surtiram algum efeito nem mesmo tendo em conta a condição debilitante da requerente. O requerente já solicitou por diversas vezes ao longo dos últimos 6 anos que passe a constar da ficha do agregado familiar deste fogo, nunca compreendendo a ausência de resposta positiva para tal. Para mais o requerente já solicitou por N vezes a atribuição de uma casa de habitação social, estando inscrito há 6 anos, mas nem sequer na CMA e ora requerida nem na IHRU, de forma alguma concedeu a algum dos seus pedidos que nunca surtiram algum efeito nem mesmo tendo em conta a condição debilitante. Desde o primeiro dia que aqui começaram a viver estes informaram a requerida deste facto, estando desde então a aguardar uma solução e querem pagar uma renda!
(…)” – cfr. requerimento inicial que se dá por reproduzido;
b. Em 15-5-2023, o Director Municipal de Desenvolvimento Social assinou o Edital nº ......../2023 do Departamento de Habitação da Câmara Municipal de Almada, com o seguinte teor:
EDITAL ......../2023
M........., Director Municipal de Desenvolvimento Social
Faz público que, a partir da data de afixação do presente Edital, ordenada a desocupação da habitação municipal, sita na Azinhaga …………….,
Ocupada por desconhecidos, com fundamento na ocupação abusiva, ilegítima e ilegal, por quem não detém contrato de arrendamento ou documento de atribuição ou autorização de permanência na mesma.
Mais se notificam os ocupantes que dispõem do prazo de 5 (cinco) dias, a partir da publicação do presente Edital, para desocuparem a referida habitação municipal, sendo que se não o fizerem até ao final do prazo que lhes é concedido, administrativo, serão removidos todos os bens que se encontrem na habitação municipal, os quais serão depositados em local designado para o efeito, onde poderão ser levantados pelos proprietários, dentro do prazo 60 (sessenta) dias a partir da publicitação do presente Edital, data a partir da qual serão declarados perdidos a favor do Município.
Almada, 15 de Maio de 2023
(…)” – cfr. doc. 2 junto ao requerimento inicial;
c. No requerimento para efeitos de solicitação de apoio judiciário, o requerente, no quadro referente à composição do agregado familiar fez constar a menção a:
(ver documento original).


B – DE DIREITO
10. Como decorre dos autos, a decisão ora sob recurso considerou ser manifesta a falta
de fundamento da pretensão formulada no requerimento inicial, pelo que, de acordo com o disposto no artigo 116º, nº 2, alínea d) do CPTA, indeferiu o mesmo liminarmente, estribando-se nos seguintes argumentos:
O “acto administrativo a suspender” corresponde ao Edital datado de 15 de Maio de 2023, que ordenou «a desocupação da habitação municipal, sita na Azinhaga do Rato, Bloco J, 2º Dtº, no Laranjeiro, ocupada por desconhecidos, com fundamento na ocupação abusiva, ilegítima e ilegal, por quem não detém contrato de arrendamento ou documento de atribuição ou autorização de permanência na mesma». (cfr. B).
O requerente alega que reside com a sua companheira naquela habitação municipal, desde Maio de 2019.
Vem ainda alegado que a entidade requerida já recusou, nos últimos 6 (seis) anos, pedidos de habitação social formulados pelo requerente, sem que este demonstre em que processos tal aconteceu ou sequer, se impugnou tais actos, ou ainda se, em caso de omissão de decisão por parte da Administração, se apresentou em Tribunal pedido de condenação à prática de acto legalmente devido, sendo essas as vias processuais para a resolução jurídica da situação habitacional social do requerente, em sentido de procedência ou de improcedência da mesma (cfr. A).
Dos autos mais resulta, manifestamente, por um lado que o requerente e a companheira não são detentores de qualquer título jurídico legal para residir naquele local, e, por outro, não vem alegada qualquer factualidade susceptível de sustentar qualquer expectativa de passar a residir naquela habitação mediante a eventual celebração de futuro contrato de arrendamento. (cfr. A).
A alegação que sustenta o requerimento inicial apenas demonstra actuação sem título legal do ora requerente e respectivo agregado familiar, desde Maio de 2019.
Dos factos indiciariamente provados resulta ainda que o Edital, junto como doc. 2, acto que o requerente visa suspender, não reveste a natureza de acto administrativo, emitido no âmbito de um qualquer pedido de acesso à habitação social formulado pelo requerente.
Antes, o Edital em causa, visa tão só, reaver o locado livre se pessoas e bens que integra o património municipal. (Cfr. B).
Em consequência e, salvo o devido respeito por opinião contrária, o que o requerente vem pedir ao Tribunal, é apenas a manutenção ilegal de uma situação de ocupação de fracção pertencente à Câmara Municipal de Almada, sem que detenha qualquer título jurídico para o efeito, designadamente, contrato de arrendamento, documento de atribuição ou autorização de permanência na mesma.
Assim, da alegação efectuada no douto requerimento inicial, não decorre fundamento legal para que o Tribunal determine a manutenção dessa situação, ou seja, da ocupação ilegal da casa, o que, além do mais, contende com o princípio da separação de poderes entre os Tribunais Administrativos e a Administração Pública previsto no artigo 3º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
E, no respeito pelo princípio da separação de poderes, não pode o Tribunal pronunciar-se sobre a conveniência ou a oportunidade de actuação das entidades administrativas envolvidas na gestão do património habitacional público.
A alegada desocupação a realizar pela entidade requerida de uma casa ocupada pelo requerente, sem qualquer título jurídico cuja legalidade seja susceptível de demonstração, constitui situação de manifesta ausência de fundamento legal para o decretamento de providência cautelar que vem pedida de suspensão de eficácia de um acto, visando apenas a manutenção de uma situação ilegal.
Efectivamente, o requerente pretende que seja sancionada e mantida pelo Tribunal a sua situação de facto, por via do decretamento cautelar da presente providência, acompanhado de decretamento provisório, o que manifestamente, não tem respaldo legal, não podendo, designadamente, o artigo 28º, nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, e o artigo 4º do Decreto-Lei nº 89/2021, de 3 de Novembro, diploma que regulamenta as normas da Lei de Bases da Habitação relativas à garantia de alternativa habitacional, serem interpretados no sentido de estimular e manter situações de ocupação ilegal de casas destinadas a habitação social, sendo que a gestão das mesmas cabe, em primeira linha, à Administração Pública.
Deste modo, os normativos legais referidos, não se aplicam por via da acção directa dos particulares, como acontece no caso em apreço.
Mais, a situação alegada de “efectiva carência habitacional” de que o requerente se pretende fazer valer, deve ser alegada, mediante factos concretos, designadamente, do local da anterior habitação, da impossibilidade de nela continuar a viver e da situação actual. Não basta uma alegação vaga, genérica, conclusiva e contraditória, como decorre do requerimento inicial e, por isso, insusceptível de prova. Ademais, o pedido de habitação social deve ser efectuado, em primeiro lugar, junto da Administração, de acordo com os requisitos legais para esse efeito.
Efectivamente, o requerente alega, que o seu agregado é constituído, por si e pela companheira (dois adultos), e simultaneamente, que, “Para mais a requerida já não efectua os chamados “desdobramentos” o que consistia no acompanhamento do crescimento natural de uma família, pois a família do requerente cresceu e apenas tinham um quarto disponível para toda a sua família e nunca foi possível ao requerente ter acesso a outra habitação. Para mais, estes foram despejados daquela habitação não restando qualquer alternativa!”.
Não se vislumbra, ao contrário do alegado pelo requerente, como, deve, no caso em apreciação, a entidade requerida apresentar solução habitacional alternativa (à da casa ilegalmente ocupada).
Deste modo, não há fundamento legal para que em sede judicial, o Tribunal possa ajuizar positivamente a pretensão do requerente.
Sendo certo que a gestão do parque habitacional do Município não cabe aos utentes, sendo manifesto o actual uso ilegal desta habitação pelo ora requerente.
Afigura-se assim, manifesta a improcedência de eventual pretensão a apreciar em acção principal, por não haver fundamento legal para o requerente, continuar a ocupar a fracção em causa que integra o património habitacional da Câmara Municipal de Almada.
Acresce que não cabe ao Tribunal proceder a “administração activa”, em substituição da Administração, o que contraria o artigo 3º do CPTA, não podendo manter o requerente numa casa que ilegalmente ocupou.
E isto porque, «em decorrência da natureza instrumental das medidas cautelares está vedado ao juiz cautelar dar ao particular coisa diferente ou mais do que lhe será permitido alcançar através da decisão de mérito do processo principal», tal como se pode ler, no sumário do douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 2005-11-17, Proc. nº 1129/05, situação que se verifica no caso vertente.
Em conclusão, e prejudicadas demais considerações, face à situação de manifesta falta de fundamento da pretensão formulada no presente requerimento inicial, de acordo com o artigo 116º, nº 2, alínea d) do CPTA, apenas há que o indeferir liminarmente”.
11. É contra este entendimento que o recorrente se insurge, sustentando que a decisão recorrida enferma de erro, pois deveria haver oposição, produção de prova e depois decisão, ou seja, que não se encontram preenchidos os pressupostos para ocorrer a rejeição liminar do requerimento inicial (cfr. conclusão 15ª da alegação do recorrente).
Vejamos se lhe assiste razão.
12. De acordo com o disposto no artigo 116º, nº 2 do CPTA, constituem fundamento de rejeição liminar do requerimento da providência cautelar:
(…)
a) A falta de qualquer dos requisitos indicados no nº 3 do artigo 114º que não seja suprida na sequência de notificação para o efeito;
b) A manifesta ilegitimidade do requerente;
c) A manifesta ilegitimidade da entidade requerida;
d) A manifesta falta de fundamento da pretensão formulada;
e) A manifesta desnecessidade da tutela cautelar;
f) A manifesta ausência dos pressupostos processuais da acção principal.
(…)”.
13. Em anotação ao citado normativo, no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2017, 4ª edição, a págs. 949, defendem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, o seguinte:
Como é evidente, a existência de despacho liminar, ao permitir a eliminação ab initio de processos que não reúnam condições mínimas de viabilidade, favorece, em teoria, a economia processual. A imposição de uma intervenção liminar necessária do juiz em todos os processos conduz, porém, a incomportáveis congestionamentos do fluxo processual. Faz, por isso, sentido que, em domínios circunscritos, possa haver despacho liminar, mas que a sua existência não seja estendida à generalidade dos processos. E, a haver despacho liminar, justifica-se que seja em processos como os cautelares, que são processos urgentes, na medida em que, uma vez recebido o requerimento, este deve ser apresentado ao juiz sem mais delongas e que, por outro lado, ao juiz, no despacho liminar, não só cumpre evitar o inútil prosseguimento de processos inexoravelmente condenados ao insucesso, como também promover, desde logo, através da emissão de um despacho de aperfeiçoamento, o suprimento das eventuais deficiências de que a instância possa padecer, quando esse suprimento possa ser feito através da correcção do requerimento inicial.
O despacho liminar só deve ser de indeferimento quando o tribunal considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada ou que existem excepções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impedem a emissão de uma pronúncia de mérito sobre a pretensão do requerente ou se verifique uma total ausência do pedido ou da causa de pedir em termos de o requerimento não poder ser objecto de convite ao aperfeiçoamento (…)”.
14. E, ainda seguindo o ensinamento de Antunes Varela, in RLJ, 126º, pág. 10475, o indeferimento liminar “constitui um julgamento prévio ou preliminar, através do qual a lei procura proteger o requerido de demanda absolutamente injustificada, limitando o exercício do direito de acção aos casos em que exista um mínimo de viabilidade aparente da pretensão”.
15. Também a jurisprudência, nomeadamente a deste TCA Sul, vem sustentando que a rejeição liminar duma providência cautelar deve ser reservada para situações excepcionais, uma vez que a mesma “(…) deve ser utilizada com cautela e reservada para aquelas situações em que seja manifesta a existência de fundamento para tal, pois que a regra é a do prosseguimento dos autos, com a citação da entidade requerida, a apresentação por esta da sua defesa, a instrução do processo e a prolação de decisão, tanto mais que o despacho de rejeição é proferido sem audição da parte” (cfr., neste sentido, os acórdãos deste TCA Sul, de 20-11-2014, proferido no âmbito do processo nº 11555/14, de 16-1-2020, proferido no âmbito do processo nº 1575/19.6BELSB, e de 7-7-2021, proferido no âmbito do processo nº 1893/20.0 BELSB-A-A),
16. Significa isto que a rejeição liminar do requerimento inicial deve ser usada com parcimónia, só devendo ocorrer quando não existe qualquer probabilidade de a pretensão poder vir a proceder (por a mesma ser infundada ou pela existência de excepções dilatórias insupríveis), isto é, só quando é evidente, patente, palmar e segura a desnecessidade de tutela cautelar é que pode ser rejeitado o requerimento inicial, pelo que na dúvida não se pode proceder a tal rejeição.
Afigura-se-nos, porém, que tal não sucede no presente caso.
17. Para tanto, seguiremos de muito perto as conclusões exaradas no acórdão deste TCA Sul, de 20-10-2022, proferido no âmbito do processo nº 1012/22.9BELSB, por ter contornos idênticos. Aí se consignou o seguinte:
(…)
Estatui o artigo 35º da Lei nº 81/2014, de 19/12, que estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 32/2016, de 24/8), sob a epígrafe “Ocupações sem título”, o seguinte:
“1 – São consideradas sem título as situações de ocupação, total ou parcial, de habitações de que sejam proprietárias as entidades referidas no nº 1 do artigo 2º, por quem não detém contrato ou documento de atribuição ou de autorização que a fundamente.
2 – No caso previsto no número anterior o ocupante está obrigado a desocupar a habitação e a entregá-la, livre de pessoas e bens, até ao termo do prazo que lhe for fixado, não inferior a três dias úteis, na comunicação feita para o efeito, pelo senhorio ou proprietário, da qual deve constar ainda o fundamento da obrigação de entrega da habitação.
3 – Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação nos termos do número anterior há lugar a despejo nos termos do artigo 28º.
4 – É aplicável às desocupações previstas no presente artigo o disposto no nº 6 do artigo 28º”.
E por sua vez prescreve o artigo 28º da mesma lei, sob a epígrafe “Despejo”, o seguinte:
“1 – Caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega da habitação a uma das entidades referidas no nº 1 do artigo 2º, cabe a essas entidades levar a cabo os procedimentos subsequentes, nos termos da lei.
2 – São da competência dos dirigentes máximos, dos conselhos de administração ou dos órgãos executivos das entidades referidas no nº 1 do artigo 2º, consoante for o caso, as decisões relativas ao despejo, sem prejuízo da possibilidade de delegação.
3 – Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo.
(…)
5 – Salvo acordo em sentido diferente, quaisquer bens móveis deixados na habitação, após qualquer forma de cessação do contrato e tomada de posse pelo senhorio, são considerados abandonados a favor deste, caso não sejam reclamados no prazo de 60 dias, podendo o senhorio deles dispor de forma onerosa ou gratuita, sem direito a qualquer compensação por parte do arrendatário.
6 – Os agregados alvos de despejo com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”.
Além disso, embora a recorrente alegue factualidade tendente a demonstrar que se encontra numa situação de efectiva carência habitacional, pode-se afirmar que a mesma, claramente, não pode recorrer ao direito à habitação consagrado no artigo 65º da CRP, para reivindicar a atribuição de uma habitação/fogo, pois tal direito constitucional está dependente de concretização legal, só podendo exigir o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei.
De todo o modo, esse artigo 65º foi concretizado maxime pela Lei nº 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), em cujo artigo 13º, sob a epígrafe “Protecção e acompanhamento no despejo”, determina-se o seguinte:
“1 – Considera-se despejo o procedimento de iniciativa privada ou pública para promover a desocupação forçada de habitações indevida ou ilegalmente ocupadas.
2 – A lei estabelece os termos e condições em que a habitação é considerada indevida ou ilegalmente ocupada.
(…)
4 – O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento, nos termos definidos na lei, sem prejuízo do número seguinte.
5 – Em caso de ocupação ilegal de habitações públicas, o despejo obedece a regras procedimentais estabelecidas por lei.
6 – Sempre que estejam reunidas as condições para o procedimento previsto no nº 1, são garantidos pelo Estado, nomeadamente:
a) Desde o início e até ao termo de qualquer tipo de procedimento de despejo, independentemente da sua natureza e motivação, a existência de serviços informativos, de meios de acção e de apoio judiciário;
b) A obrigação de serem consultadas as partes afectadas no sentido de encontrar soluções alternativas ao despejo;
c) O estabelecimento de um período de pré-aviso razoável relativamente à data do despejo;
d) A não execução de penhora para satisfação de créditos fiscais ou contributivos, nos termos da lei, quando esteja em causa a casa de morada de família;
e) A existência de serviços públicos de apoio e acompanhamento de indivíduos ou famílias vulneráveis alvo de despejo, a fim de serem procuradas atempada e activamente soluções de realojamento, nos termos da lei.
7 – As pessoas e famílias carenciadas que se encontrem em risco de despejo e não tenham alternativa habitacional têm direito a atendimento público prioritário pelas entidades competentes e ao apoio necessário, após análise caso a caso, para aceder a uma habitação adequada”.
Acresce que esta Lei nº 83/2019 foi regulamentada pelo DL nº 89/2021, de 3/11 – invocado no artigo 5º do requerimento inicial –, no qual se dispõe o seguinte:
- No respectivo preâmbulo, “O direito à habitação, previsto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, constitui uma das mais importantes marcas genéticas do Estado de Direito Democrático nascido a 25 de Abril de 1974 e do ambicionado e, desde então, amplamente realizado Estado Social.
(…) a matéria da habitação, ainda que sendo objecto de alguns programas específicos, como o Serviço de Apoio Ambulatório Local (…) e o Programa Especial de Realojamento para as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, criado pelo Decreto-Lei nº 163/93, de 7 de Maio, não se tenha podido materializar enquanto pilar fundamental do Estado Social.
Tal objectivo é afirmado pelo XXII Governo Constitucional, cujo programa reconhece a concepção do direito à habitação como um direito social, de vocação universal, que visa garantir a todos uma habitação adequada a custos acessíveis. Reconhece-se também a necessidade de garantir a adopção de instrumentos diferenciados em função das necessidades específicas dos destinatários, realizando-se, assim, de modo eficiente, um direito que é de todos e não uma mera prerrogativa de apoio do Estado aos mais carenciados, de índole assistencialista.
Para a aproximação a estes objectivos foi fundamental a criação da primeira lei de bases da habitação, aprovada pela Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro (LBH), que veio criar um quadro normativo de primeiro nível, que define as competências que neste âmbito cabem a cada uma destas entidades e impõe um dever de acção para cada uma delas.
Neste âmbito, a LBH veio impor o dever de regulamentação em algumas matérias específicas, como sejam a das obrigações das entidades públicas quanto à garantia de uma alternativa habitacional (…).
O presente decreto-lei visa, pois, no cumprimento da obrigação referida, regulamentar estes importantes aspectos do conteúdo do direito à habitação, dando-lhes forma e corpo (…).
Deste modo, procede-se à definição de situação de efectiva carência habitacional, para os efeitos previstos no nº 6 do artigo 28º da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, na sua redacção actual. Assim, considera-se que estão em tal situação as pessoas que não possuam, ou que estejam em risco efectivo de perder, uma habitação adequada, não constituindo uma alternativa habitacional aquela que imponha uma alteração ao agregado habitacional pré-existente à situação de carência, salvo se esta alteração resultar de pedido ou obtiver a concordância escrita de todas as partes envolvidas.
Impõe-se ainda um dever de articulação entre as diversas entidades, do Estado e dos municípios, para que de forma pró-activa possam resolver as situações das pessoas em situação de efectiva carência habitacional.
(…)”;
- No seu artigo 1º, “O presente decreto-lei procede à regulamentação da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, estabelecendo as obrigações das entidades públicas relativas à garantia de uma alternativa habitacional (…)”;
- No seu artigo 3º, sob a epígrafe “Situação de efectiva carência habitacional”, “1 – Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 13º da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, e para os efeitos previstos no nº 6 do artigo 28º da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, na sua redacção actual, consideram-se em situação de efectiva carência habitacional as pessoas que não possuam ou que estejam em risco efectivo de perder uma habitação e não tenham alternativa habitacional.
2 – Para efeitos do disposto no nº 6 do artigo 28º da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, considera -se uma habitação adequada a fracção ou o prédio destinado a habitação, apto a satisfazer condignamente as necessidades habitacionais de uma pessoa ou de um agregado habitacional determinado, tendo em consideração, designadamente, a composição deste, a tipologia da habitação e as condições de habitabilidade e de segurança da mesma.
3 – Não constitui uma alternativa habitacional aquela que imponha uma alteração ao agregado habitacional pré-existente à situação de carência referida no nº 1, salvo se esta alteração resultar de pedido ou obtiver a concordância escrita do requerente e do elemento, ou elementos, do agregado habitacional com quem a entidade pública respectiva tenha previamente celebrado um contrato de arrendamento”;
- No seu artigo 4º, sob a epígrafe “Dever objectivo de actuação das entidades públicas”: “1 – Cabe às entidades públicas, no âmbito da protecção e acompanhamento no despejo, conforme estabelecido no artigo 13º da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, prestar o apoio necessário aos agregados familiares em situação de efectiva carência habitacional nos termos definidos no nº 1 do artigo anterior, sinalizados no âmbito do atendimento de acção social, designadamente aquele a que se refere o artigo 10º do Decreto-Lei nº 55/2020, de 12 de Agosto, sem prejuízo do disposto na Portaria nº 120/2021, de 8 de Junho.
2 – Não existindo alternativa habitacional adequada, deve ser salvaguardado o encaminhamento para uma resposta habitacional permanente do parque habitacional público existente, quer dos municípios, quer do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP (IHRU, IP), e de acordo com os respectivos critérios de elegibilidade.
3 – Na impossibilidade de promover a imediata atribuição de uma habitação permanente no parque habitacional público existente, o município da área de localização da habitação a desocupar deve promover, cumpridos os requisitos de elegibilidade do Decreto-Lei nº 37/2018, de 4 de Junho, na sua redacção actual, a inclusão das situações referidas no número anterior no âmbito da sua Estratégia Local de Habitação ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 37/2018, de 4 de Junho, na sua redacção actual.
4 – O disposto no número anterior não prejudica que o município ou, existindo, outras entidades com competência para o efeito, encaminhem ou assegurem a implementação de uma solução de alojamento temporário, em articulação com o Instituto da Segurança Social, IP (ISS, IP), e o IHRU, IP, no âmbito das respectivas competências.
5 – A articulação referida no número anterior é operacionalizada através de sinalização junto dos serviços de acção social locais ou de outras entidades que, em função da matéria, sejam competentes, preferencialmente através da Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário, aprovada pelo Decreto-Lei nº 26/2021, de 31 de Março, ou de outras respostas sociais disponíveis.
6 – O disposto no número anterior não prejudica, complementarmente, a salvaguarda de soluções habitacionais de emergência através do município, em articulação com o IHRU, IP, no âmbito dos respectivos programas, sendo possível recorrer-se, se necessário, ao arrendamento de fracções ou de prédios destinados a habitação.
7 – O financiamento da solução habitacional prevista no número anterior é complementarmente elegível para apoio a uma solução habitacional transitória ao abrigo do disposto no artigo 14º do Decreto-Lei nº 29/2018, de 4 de Maio, na sua redacção actual” (sublinhados nossos)”.
18. Deste modo, é manifestamente prematuro o juízo contido na decisão recorrida, nomeadamente no tocante à falta de “fumus boni iuris”, pois a rejeição liminar do requerimento inicial, ao abrigo do nº 2 do artigo 116º do CPTA, exige o carácter evidente e óbvio da falta de fundamento da pretensão.
19. Este erro de julgamento não se traduz em qualquer condicionamento quanto ao juízo que, ponderadamente, venha a fazer-se, no momento próprio, quanto aos pressupostos processuais que têm de estar reunidos e aos requisitos necessários para a decretação da providência cautelar, previstos no artigo 120º do CPTA, ou seja, o erro de que enferma a decisão recorrida não impede que, a final, possa vir a ser julgado improcedente o presente processo cautelar.
20. Por conseguinte, impõe-se a conclusão de que a decisão recorrida incorreu em erro ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial, pelo que a mesma deverá ser revogada e, em consequência, ser determinada a baixa dos autos ao TAF de Almada, tendo em vista o prosseguimento do processo nessa instância (incluindo a apreciação do pedido de decretamento provisório da providência), se a tal nada vier, entretanto, a obstar.
21. Considerando que o Município de Almada, ora recorrido, ficou vencido, as custas do presente recurso jurisdicional serão por si suportadas (cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2 do CPCivil, aplicável “ex vi” artigo 1º do CPTA).


IV. DECISÃO
22. Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os Juízes da secção de contencioso administrativo deste TCA Sul em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogar a decisão recorrida e, em consequência, determinar a baixa dos autos ao TAF de Almada, tendo em vista o seu prosseguimento nessa instância, se a tal nada vier, entretanto, a obstar.
23. Custas a cargo do Município de Almada.

Lisboa, 13 de Setembro de 2023
(Rui Fernando Belfo Pereira – relator)
(Carlos Araújo – 1º adjunto)
(Catarina Jarmela – 2ª adjunta)