Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:489/14.0 BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:11/16/2023
Relator:MARIA CARDOSO
Descritores:INCIDENTE
QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL
CONTABILISTA CERTIFICADO
Sumário:I. Os contabilistas certificados, como outros profissionais, de que são exemplo, médicos e advogados, estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções.
II. A violação do dever de sigilo profissional é punível, não só disciplinarmente (cfr. artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e 89.º, n.º 4, alínea d) do EOCC), como também criminalmente (cfr. artigo 195.º do CPP).

III. Porém, esse dever de sigilo profissional não é absoluto, podendo ser levantado através da quebra do dever de sigilo, (i) por consentimento da entidade a que o contabilista certificado presta serviços, (ii) por autorização do Conselho Directivo da OCC e (iii) por decisão judicial.

IV. Perante a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, o interesse na realização da justiça e na tutela do direito à produção da prova, apresenta-se claramente superior o interesse público na boa administração da justiça, que exige a descoberta da verdade material subjacente à produção da prova, com vista ao apuramento dos factos em discussão, devendo, pois, o mesmo prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto ao contabilista certificado.

Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

1. Nos autos de impugnação judicial n.º 489/14.0BELRA, veio a ser instruído oficiosamente o presente incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha J......, arrolada nos presentes autos pelos Impugnantes, e submetido o mesmo à apreciação deste Tribunal Central Administrativo do Sul, nos termos dos artigos 497.º, n.º 2, e 417.º, n.º 4, do CPC e 135.º, n.º 3, do CPP.

2. No decurso da diligência de inquirição de testemunhas, pela testemunha arrolada pelos Impugnantes, contabilista certificado, foi pedida escusa, com fundamento no sigilo profissional.

3. A Mmª. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria promoveu as diligências necessárias ao levantamento do sigilo profissional e, após, proferiu despacho que concluiu pela legitimidade da escusa da prestação de depoimento, mas no entendimento que o seu depoimento se revela imprescindível para a descoberta da verdade material nos presentes autos suscitou o incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunhas, a que se seguiu a remessa dos autos para esta instância, a fim da testemunha ser dispensada do segre profissional, mediante o seu levantamento.

4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, e dada vista ao Exmo. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer, tendo concluindo que afigura-se-nos ser de ordenar o levantamento do dever de sigilo invocado pela testemunha, dever de confidencialidade previsto no n.º 1, do art.º 64.º da LGT, a fim de que esta preste o seu depoimento no âmbito dos presentes autos.

5. Com dispensa dos vistos legais, por não revelarem especial complexidade as questões a tratar (artigo 657.º, n.º 4 do CPC), vêm os autos à conferência para decisão.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO INCIDENTE:

A questão a apreciar consiste em saber se, no confronto e valoração dos interesses a sopesar, a testemunha, contabilista certificada, deve prestar depoimento não obstante os factos que se pretendem esclarecer serem sujeitos ao dever de sigilo profissional.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

Com relevo para a decisão importa considerar os seguintes factos que se extraem dos autos:

1. No âmbito da diligência de inquirição de testemunhas, e no decurso do inquérito preliminar pela testemunha J......, arrolada pelos Impugnante foi pedida escusa, com fundamento no sigilo profissional (cfr. acta de inquirição de testemunhas de 19/01/2021).

2. Pela Mmª. Juíza a quo foi proferido o seguinte despacho:

Considerando que no decurso do inquérito preliminar à testemunha se verifica que a mesma enquanto contabilista certificado deduziu escusa com fundamento em segredo profissional e atento os factos que estão em discussão nos presentes autos, promovam-se as diligências necessárias junto da respectiva ordem profissional no sentido de autorizar o levantamento do sigilo- confrontar artigos 497, nº 3 e 417 nº 4 do C.P.C.

Notifique»

3. A Ordem dos Contabilistas Certificados remeteu Ofício ao Tribunal a quo, cujo teor é o seguinte:


“(texto integral no original ; imagem)”

“(texto integral no original ; imagem)”


4. A Mmª. Juíza do TAF de Leiria suscitou oficiosamente o incidente de levantamento do sigilo profissional, proferindo o seguinte despacho:

Nos presentes autos foi arrolado pelos Impugnantes como testemunha J......, para ser inquirido sobre os factos articulados nos artigos 9.º a 25.º e 29.º a 62.º da petição inicial, cf. petição inicial a fls. 16 e requerimento a fls. 550 do SITAF.

Posteriormente foi proferido despacho em 05/09/2019, a fls. 576 do SITAF, após renúncia ao mandato, determinando a notificação pessoal dos Impugnantes com a advertência expressa de que, não sendo nestes autos obrigatória a constituição de Mandatário, a falta de constituição de novo mandatário não impede o prosseguimento dos autos.

Notificados os Impugnantes através dos ofícios a fls. 577-578 do SITAF, conforme avisos de receção a fls. 581-582 do SITAF, não constituíram mandatário, tendo prosseguido a ação com a realização de diligência de inquirição de testemunhas.

Na diligência de inquirição de testemunhas foi deduzida escusa durante o inquérito preliminar por parte da testemunha, J......, Contabilista Certificado, com fundamento em sigilo profissional, cf. ata de inquirição de testemunhas a fls. 605-607 do SITAF.

Auscultada a Ordem dos Contabilistas Certificados, foi pela mesma emitida pronúncia conforme ofício a fls. 609-612 do SITAF.

Assim, compulsados os presentes autos verifica-se que a testemunha em causa foi a única arrolada pelos Impugnantes, sendo certo que, tal como se extrai do Relatório de Inspeção Tributária a fls. 173 do SITAF, esta testemunha acompanhou a ação de inspeção tributária tendo sido ainda indicada como perito dos Impugnantes no âmbito do procedimento de pedido de revisão oficiosa, como se alcança da ata de reunião n.º 17/2012 e do laudo pericial pela mesma elaborado em 04/10/2012, cf. laudo a fls. 217-224 do SITAF.

Deste modo, a matéria controvertida nos presentes autos, referente à atividade de prestação de serviços de contabilidade exercida pelo Impugnante, no ano de 2011, não se basta com a prova documental já produzida, pois são alegados factos pelos Impugnantes na petição inicial, mormente os articulados nos artigos 36.º a 42.º e 56.º e 57.º, que requerem a produção de prova testemunhal.

Por conseguinte, pese embora se mostre legítima a escusa, por parte da testemunha arrolada pelos Impugnantes, face à pronúncia emitida pela Ordem dos Contabilistas Certificados, afigura-se, atenta a inexistência de outros meios probatórios, que o seu depoimento se revela imprescindível para a descoberta da verdade material nos presentes autos.

Termos em que se deduz oficiosamente o incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha arrolada nos presentes autos pelos Impugnantes, J...... e se submete o mesmo à douta apreciação do Venerando Tribunal Central Administrativo do Sul, cf. artigos 497.º, n.º 2, e 417.º, n.º 4, do CPC e 135.º, n.º 3, do CPP.

Notifique e após subam os autos ao Venerando Tribunal Central Administrativo do Sul.»


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2. DE DIREITO

Compulsados os autos, constata-se que os impugnantes deduziram a presente impugnação judicial contra a liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2011, com origem em acção inspetiva no âmbito da qual foram propostas, no Relatório de Inspeccção Tributária (RIT), correcções aos rendimentos declarados com recurso a métodos indirectos. Na petição inicial requereram produção de prova testemunhal. Tendo arrolado como única testemunha, J......, contabilista certificiado.

As correcções propostas em sede de RIT foram mantidas no pedido de revisão deduzido pelos Impugnantes.

A identificada testemunha acompanhou a acção de inspecção tributária e foi indicada como perito pelos Impugnantes no pedido de revisão, procedimento no qual participou na comissão de revisão e subscreveu o Laudo Pericial.

Nos presentes autos, na diligência de inquirição de testemunhas, a identificada testemunha chamada a depôr, no decurso do inquérito preliminar, na qualidade de contabilista certificado, pediu escusa com fundamento no sigilo profissional.

Deduzida que foi pela testemunha em causa, escusa a depôr, nos termos do artigo 497.º, n.º 3 do CPC, e suscitado oficiosamente o incidente de levantamento do sigilo profissional, cumpre apreciar sobre a legitimidade da escusa e da quebra do dever de sigilo invocado, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 417.º ex vi artigo 497.º, n.º 3, ambos do CPC.

Vejamos.

Nos termos do artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP), aplicável por força do disposto no n.º 4, do artigo 417.º do CPC, «o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, (…), pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade,(…) e a necessidade de protecção de bens jurídicos.»

O artigo 72.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados dispõe:

«1 – Nas suas relações com as entidades a que prestem serviço, constituem deveres dos contabilistas certificados:

(…)

d) Guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho directivo da Ordem; (…)»

Por sua vez, o artigo 10.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, com a epígrafe «Confidencialidade», preceitua:

«1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda.

2 - O sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções.

4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho diretivo, em casos devidamente justificados.

5 - Os membros dos órgãos da Ordem não devem revelar nem utilizar informação confidencial de que tenham tomado conhecimento no exercício dos cargos associativos, exceto nos casos previstos na lei.»

Resulta das normas acabadas de transcrever que os contabilistas certificados, como outros profissionais, de que são exemplo, médicos e advogados, estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções.

A violação do dever de sigilo profissional é punível, não só disciplinarmente (cfr. artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e 89.º, n.º 4, alínea d) do EOCC), como também criminalmente (cfr. artigo 195.º do CP).

Porém, esse dever de sigilo profissional não é absoluto, podendo ser levantado através da quebra do dever de sigilo, (i) por consentimento da entidade a que o contabilista certificado presta serviços, (ii) por autorização do Conselho Directivo da OCC e (iii) por decisão judicial.

Na situação dos autos, a testemunha foi arrolada pelos Impugnantes, devendo prestar depoimento sobre os factos alegados na petição inicial.

Resulta dos autos, que o Impugnante marido é cliente do Sr. contabilista certificado arrolado como testemunha, pelo que se poderia equacionar a possibilidade de se estar perante uma situação de autorização tácita do Impugnante, uma vez que arrolou o seu contabilista como única testemunha, o qual acompanhou a inspecção tributária e foi perito no pedido de revisão, pelo que bem poderia conduzir à conclusão que está a renunciar à tutela do sigilo profissional.

No entanto, entendemos que o levantamento do sigilo profissional pelos clientes a quem o contabilista certificado presta serviços deve ser feito por declaração escrita pelo legal representante do cliente.

Ora, dos autos não consta qualquer declaração expressa nesse sentido.

E, por sua vez, o Conselho Directivo da OCC referiu que desconhece os factos/documentos sujeitos a sigilo profissional a que irá ser inquirido a testemunha

Prosseguindo.

A legitimidade da escusa, por parte da testemunha, foi reconhecida por despacho judicial, face ao dever de sigilo imposto aos contabilistas certificados e pronúncia emitida pela Ordem dos Contabilistas Certificados.

A Mma. Juíza a quo entendeu, em face da matéria controvertida nos presentes autos, referente à actividade de prestação de serviços pelo Impugnante no ano de 2011, que não se basta com a prova documental, que o depoimento da testemunha arrolada pelo Impugnantes se revela imprescindível para a descoberta da verdade material nos presentes autos.

Ora, atenta a qualidade da testemunha o conhecimento que detém da matéria dos autos, adquirida pelo exercício das suas funções, através da organização e execução da contabilidade do Impugnante, pelo acompanhamento efectuado ao longo da acção inspectiva e no âmbito do pedido de revisão, afigura-se-nos também que o seu depoimento pode ser essencial para o esclarecimento do circunstancialismo fáctico em discussão nos autos e, por isso, imprescindível para a descoberta da verdade material. Sem esquecer que os Impugnantes têm direito a fazer valer a sua tese através do depoimento da pessoa que lhes prestou serviços de contabilidade.

Assim, perante a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, o interesse na realização da justiça e na tutela do direito à produção da prova, apresenta-se claramente superior o interesse público na boa administração da justiça, que exige a descoberta da verdade material subjacente à produção da prova, com vista ao apuramento dos factos em discussão, devendo, pois, o mesmo prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto ao contabilista certificado.

Face ao exposto, mostra-se justificada a quebra do sigilo profissional, a que a testemunha em causa esta sujeita, devendo ter lugar a prestação do seu depoimento.


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Conclusões/Sumário:

I. Os contabilistas certificados, como outros profissionais, de que são exemplo, médicos e advogados, estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções.

II. A violação do dever de sigilo profissional é punível, não só disciplinarmente (cfr. artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e 89.º, n.º 4, alínea d) do EOCC), como também criminalmente (cfr. artigo 195.º do CPP).

III. Porém, esse dever de sigilo profissional não é absoluto, podendo ser levantado através da quebra do dever de sigilo, (i) por consentimento da entidade a que o contabilista certificado presta serviços, (ii) por autorização do Conselho Directivo da OCC e (iii) por decisão judicial.

IV. Perante a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, o interesse na realização da justiça e na tutela do direito à produção da prova, apresenta-se claramente superior o interesse público na boa administração da justiça, que exige a descoberta da verdade material subjacente à produção da prova, com vista ao apuramento dos factos em discussão, devendo, pois, o mesmo prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto ao contabilista certificado.


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IV – DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul, em determinar que, com quebra do sigilo profissional, a testemunha em causa, contabilista certificado, preste depoimento, na diligência de inquirição de testemunhas.

Custas pela parte vencida a final, com taxa de justiça que se fixa pelo mínimo.

Notifique.

Lisboa, 16 Novembro de 2023.



Maria Cardoso - Relatora
Tânia Meireles da Cunha – 1.º Adjunto
Jorge Cortês- 2.º Adjunto

(assinaturas digitais)