Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:59/22.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:10/24/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:ARBITRAL
ERRO DE JULGAMENTO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES
Sumário:I. Ao contrário do que decorre do regime de recurso das decisões proferidas pelos tribunais tributários de 1.ª instância, o mérito das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é sindicável num conjunto muito limitado de situações e nunca no âmbito da sua impugnação junto do Tribunal Central Administrativo.

II. Na impugnação da decisão arbitral junto do TCA, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, tal decisão pode ser anulada, sendo que a impugnação pode ser apresentada considerando um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma, não podendo, pois, abranger qualquer erro de julgamento.

III.O princípio do contraditório configura-se como um princípio basilar no nosso ordenamento, visando prevenir a existência de decisões surpresa, ou seja, de decisões com as quais as partes não podiam legitimamente contar.

IV.A igualdade das partes, enquanto reflexo da tutela jurisdicional efetiva, evidencia-se pelo reconhecimento do mesmo estatuto substancial às partes.

V. Apesar de o princípio do inquisitório dever enformar a atuação dos tribunais tributários arbitrais, a sua violação não é cominada com a anulação da decisão arbitral.

Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão

I. RELATÓRIO

O……… N…– Combustíveis ……………, S.A. (doravante Impugnante) veio apresentar impugnação da decisão arbitral, proferida pelo tribunal arbitral coletivo constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo a que aí foi atribuído o n.º ………./2021-T, ao abrigo dos art.ºs 27.º e 28.º do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – RJAT).

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“ I.

A Requerente apresentou, junto do Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária, um pedido de pronúncia arbitral que teve por objeto uma liquidação efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira – ora Requerida - de ISP, CSR, Taxa do Adicionamento sobre as emissões de CO2 e Juros Compensatórios, no montante global de € 234.226,79, no âmbito do processo de Conferência Final n.º PCF 23/2020, que correu os seus termos AT – Divisão Operacional do Sul, no âmbito do qual foi efetuada uma ação de natureza inspetiva (ANI n.º ..................028) à atividade comercial de compras e vendas de combustíveis da Requerente, tendo por âmbito o controlo do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) incidente sobre os combustíveis referentes ao período compreendido entre 01/01/2016 e 10/07/2019.


II.

De acordo com o Processo de Conferência Final exarado no âmbito da ação inspetiva suprarreferida, durante o período em análise, a Requerente teria comercializado 358.337 litros de gasóleo rodoviário e 57.775 litros de gasolinas, para os quais não existiria origem documentada, inexistindo em consequência a devida prova da sua regular introdução no consumo e apurando-se, então, a existência de uma dívida no montante total de € 203.842,65, correspondendo € 151.894,26 a ISP, € 44.801,79 a CSR e € 7.146,60 à Taxa do adicionamento sobre as emissões de CO2.

III.

A Requerente apresentou um pedido de pronúncia arbitral, invocando a ilegalidade da liquidação supra identificada, e visando a anulação de tal ato tributário.

IV.

A decisão impugnada considerou que a Requerente comercializou 358.337 litros de gasóleos e 57.775 litros de gasolinas cuja origem não se encontra documentada, logo sem a devida prova da sua regular introdução no consumo, sendo que o ónus da prova incidia sobre a Requerente que não trouxe aos autos elementos que pusessem em causa as conclusões da AT

V

A decisão impugnada considerou ainda que, das várias faturas emitidas pela principal fornecedora da Requerente, a R............., com indicação dos diferenciais resultantes da conversão das quantidades de combustíveis a que se referem, à temperatura de 15°C, a Requerente apenas juntou faturas que titulam aquisições que tiveram lugar em meses de Verão, com omissão das faturas emitidas nos meses mais frios do ano.

VI.

A decisão impugnada valorizou erroneamente em desfavor da Requerente os Boletins Climatológicos Anuais de Portugal Continental, para os anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, emitidos pelo IPMA - Instituto Português do Mar e da Atmosfera, juntos como anexos à sua resposta.

VII.

A Requerente discorda da decisão ora impugnada, e entende que a mesma viola os princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos pelo artigo 16º, alínea b), do decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, porquanto não valorou devidamente as provas oferecidas pela Requerente para suporte das suas alegações, sobrevalorizando os documentos apresentados pela AT, designadamente os boletins meteorológicos atinentes a Portugal Continental, os quais espelham temperaturas médias considerando as 24 horas de cada dia, e que não espelham os horários em que os carregamentos de combustíveis foram efetuados pela Requerente à sua fornecedora R..............

VIII

Os documentos ns. º 2 a 143, juntos pelas Requerente no pedido de pronúncia arbitral, demonstram claramente que esta adquiriu combustíveis à R............. que evidenciavam alterações positivas de volume em função da temperatura, em relação às correspondentes faturas, que não foram levadas em linha de conta pela AT para efeitos de uma contabilização correta das quantidades de combustíveis efetivamente adquiridas.

IX.

A prova testemunhal oferecida pela Requerente, e desvalorizada na decisão impugnada, evidenciou que, durante a maior parte do ano, inclusive no Inverno, os combustíveis comprados pelo sujeito passivo à R............. foram carregados nos entrepostos de A…… e B…………., a temperaturas superiores a 15º graus, o que acarretava um aumento do respetivo volume.

X.

98. Dos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas, foi também claramente dito que mais de 90% da totalidade dos combustíveis adquiridos pela Requerente durante o período em causa nos autos foi fornecido pela R..............

XI.

A decisão impugnada descurou ainda o facto, confirmado pela testemunha da AT, de que a ação inspetiva não tomou em consideração as alterações da densidade do combustível em função da temperatura, nas compras efetuadas pelo sujeito passivo à R..............

X.

Sabendo-se, até à luz do senso comum, que os valores mais baixos da temperatura ambiente ocorrem durante a noite, e tendo sido demonstrado, como aliás resulta também do senso comum, que a Requerente carregava os combustíveis R............., habitualmente, nos horários normais de laboração, resulta claro e manifesto que a temperatura média anual do país durante o ano não consiste num indicador minimamente credível para se determinar a variação do volume do combustível adquirido, tomando ainda em consideração que, sendo Portugal um país do Sul da Europa, é também um dos países com mais elevadas temperaturas, principalmente diurnas, o que acarreta, inevitavelmente, um acréscimo do volume do combustível na grande parte do tempo.

XI.

Resultou assim provado, na opinião da Requerente, que esta foi indevidamente tributado por ganhos de volume resultantes da variação de temperatura, que não foram considerados pela AT, não ocorrendo, assim, qualquer omissão de operações de aquisição de combustíveis pelo sujeito passivo, sendo evidente que a AT qualificou incorretamente o volume das aquisições de combustíveis do sujeito passivo, violando assim o disposto no artigo 8º, n.º 2, al. a) da LGT, e ainda o artigo 91º, n.º 1, do CIEC.

XII.

A decisão impugnada invoca o facto da Requerente não ter procedido à junção de todas as faturas da fornecedora R............. atinentes ao período de cerca de quatro anos em causa nos autos, todavia nunca a notificou para que procedesse a tal junção.

108. A decisão impugnada desvalorizou ainda todos os depoimentos prestados pelas testemunhas da Requerente sobre esta matéria, que confirmaram que os combustíveis adquiridos pela Requerente à R............. eram, ao longo de todo o ano, carregados a uma temperatura superior a 15 graus.

Termos em que deverá o presente pedido de impugnação ser julgado procedente por provado, anulando-se, em conformidade, a douta pronúncia arbitral, e substituindo-se por outra que proceda à anulação dos atos de liquidação a posteriori de: Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) no montante de €158.273,58, de Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) no montante de €47.892,80, de Taxa do Adicionamento Sobre as Emissões de CO2, no montante de € 7.146,60, e juros Compensatórios (JC), no montante de €20.913,81, todos liquidados no âmbito do processo de Conferência Final n.º PCF 23/2020.

Fazendo-se, assim, a mais elementar,

Justiça!”.

Foi ordenada a notificação da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Impugnada ou AT) para alegar, nos termos consignados no art.º 144.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi art.º 27.º, n.º 2, do RJAT, tendo sido apresentadas contra-alegações, nas quais foram formuladas as seguintes conclusões:

“A. A aqui Impugnante deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao qual foi atribuído o n.º ………./2021-T, de anulação do ato de liquidação “a posteriori” RL n.º ………..502, de 29/09/2020, praticado pela Alfândega de …………., no âmbito do processo de Conferência Final n.º PCF 23/2020, relativo a Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), Taxa do Adicionamento Sobre as Emissões de CO2 e juros compensatórios (JC), no montante total de 234.226,79 €.

B. A liquidação ora contestada teve origem no Relatório da ação de natureza inspetiva OI nº 201900028 efetuada pela Divisão Operacional do Sul da Direção de Serviços de Antifraude Aduaneira na sede da ora Impugnante, tendo por objetivo verificar o cumprimento das regras de introdução no consumo e comercialização de produtos sujeitos a ISP, conforme estipulado no CIEC e por extensão o período compreendido entre 01/01/2016 e 10/07/2019, no decurso da qual foram apuradas: a) Irregularidades na venda de 91.445 litros de Gasóleo Colorido e Marcado (GCM) abastecidos (conforme quadro n.º 5 do Relatório de inspeção Aduaneira), violando o disposto nos pontos 5.º, 6.º e 8.º da Portaria nº 361-A/2008, de 12 de maio e no nº 5 do artigo 93.º do CIEC, situações que deram lugar à constituição da dívida no montante total de 9.470,33 € a título de ISP e CSR, b) Resultando da reconstituição de existências de gasolinas e gasóleos comercializados pela empresa, desde 01/01/2016 até 30/06/2019, o apuramento de divergências consubstanciadas na diferença, para mais, entre as quantidades (em litros) dos combustíveis efetivamente adquiridas e as quantidades posteriormente vendidas, concluindo-se pela comercialização de 358.337 litros de gasóleos e 57.775 litros de gasolinas para os quais não existe origem documentada, logo sem a devida prova da sua regular introdução no consumo (conforme quadro n.º 12 do Relatório de inspeção Aduaneira), na aceção do conceito constante no artigo 9.º, n.º 1, alínea b) do CIEC, dando lugar à constituição da dívida no montante total de 203.842,65 €, a título de ISP, CSR e adicionamento sobre as emissões de CO2.

C. Tendo sido proferida a decisão de improcedência total das pretensões apresentadas no pedido de pronúncia arbitral.

D. Vem a Impugnante interpor impugnação para o Tribunal Central Administrativo Sul imputando à decisão a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos pelo artigo 16º, alínea b), do decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT).

E. Salvo o devido respeito a Impugnante labora numa grande confusão, num salto lógico enviesado, o que revela desconhecer, ou faz por desconhecer, o alcance da decisão proferida e dos seus fundamentos decisórios.

F. Efetivamente, ao invocar em abstrato a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, sem concretizar os factos concretos que a consubstanciam, por um lado, limitando-se a afirmar que a decisão arbitral valorizou erroneamente as provas apresentadas pela AT em desfavor da Impugnante, por outro, o que a Impugnante pretende, de forma enviesada, é uma análise de mérito da decisão arbitral.

G. i.e., a Impugnante pretende tão somente uma análise de mérito da decisão arbitral. Efetivamente,

H. E sem necessidade de elaboradas e aturadas lucubrações, basta olhar para o teor da decisão Impugnada, para a qual se remete, a qual descreve exaustivamente as posições das partes e fundamenta a decisão, nomeadamente quanto à matéria das existências de gasolinas e gasóleos, para se concluir que não há qualquer violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, quer na perspetiva da igualdade de meios processuais de que as partes dispunham para apresentar e fazer vingar as respetivas teses e exercer o contraditório, quer na forma como o tribunal se pronunciou sobre todas as questões invocadas e toda a prova produzida por ambas as partes.

I. Razão pela que, repete-se, a impugnante invoca em abstrato a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, sem concretizar os factos que a consubstanciam, limitando-se a afirmar que a decisão arbitral valorizou erroneamente as provas apresentadas pela AT em desfavor da Impugnante.

J. Dessa forma, o que motiva a presente impugnação é apenas o facto de o tribunal ter decidido contrariamente às pretensões da Impugnante, e o que a Impugnante pretende, de forma enviesada, é tão somente uma análise de mérito da decisão arbitral a qual não é lícita a esse Venerando Tribunal conhecer.

K. Atendendo ao exposto, em sintonia do que se vem aqui contra-alegando, decaem liminarmente os argumentos tecidos pela Impugnante que aqui, repetidamente, tenta, em vão, aquilo que lhe é vedado pelo RJAT, i.e., um recurso de mérito

Termos pelos quais e com o douto suprimento de V. Exa. deve a presente impugnação ser julgada improcedente, por não provado, e, consequentemente, manter incólume a decisão impugnada”.

O Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP) foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CPTA.

Colhidos os vistos legais, vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Houve violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. Para a apreciação da presente Impugnação estão provados os seguintes factos:

1) A 09.04.2021, a ora Impugnante apresentou junto do CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral (cfr. fls. 1 a 52 da certidão do processo arbitral, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2) Na sequência do referido em 1), foi constituído tribunal arbitral coletivo, tendo dado origem ao processo n.º ………/2021-T (cfr. fls. 292 da certidão do processo arbitral).

3) No âmbito do processo referido em 2), foi proferida, a 08.02.2022, decisão arbitral, constando da mesma designadamente o seguinte:

“… III - Fundamentação

A. Da Matéria de Facto

Com base nos documentos juntos pelas partes e no testemunho prestado neste Tribunal Arbitral, consideram-se provados os seguintes factos:

1.A Requerente é uma sociedade anónima, com o NIF ………………, que tem como atividade principal o comércio a retalho de combustíveis para veículos a motor, em estabelecimentos especializados, cujo código CAE é 47300.

2.A Requerente tem dois CAEs secundários: 056301 (cafés) e 055111 (hotéis com restaurante).

3.A Requerente comercializa: gasolina sem chumbo 95 octanas (GSC95); gasolina sem chumbo 98 octanas (GSC98); gasóleo rodoviário simples (GRS); gasóleo rodoviário aditivado (GRA); gasóleo colorido e marcado (GCM) e gasóleo de aquecimento (GA).

4. A Requerente possui postos de abastecimento de combustíveis em Almeirim, Pombal, Golegã, Azambuja e Torres Vedras e também efetua entregas de combustíveis ao domicílio.

5. A Requerente foi submetida a uma ação de natureza inspetiva (ANI) em obediência à Ordem de Serviço 48/2019, de 20 de maio, que correu os seus termos na Divisão Operacional do Sul da AT com o n.º ………………028, dirigida à atividade comercial de compras e vendas de combustíveis da Requerente, tendo por objeto o controlo do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) incidente sobre os combustíveis referentes ao período compreendido entre 01/01/2016 e 10/07/2019.

6. O principal fornecedor da Requerente é a R..............

7. A Requerente tem outros fornecedores, cuja identidade não indicou.

8. A Requerente, no período abrangido pela ação inspetiva, comercializou 358.337 litros de gasóleos e 57.775 litros de gasolina para os quais não existe origem documentada.

9. Nos anos abrangidos pela ação inspetiva, os valores médios anuais das temperaturas do ar foram: em 2016, 15,91.ºC; em 2017, 16,33.ºC; em 2018 15,37.ºC e em 2019, 15,58.ºC.

10. A Requerente juntou, a título de exemplo, 13 faturas para justificar a variação da densidade dos combustíveis por influência da temperatura do ar, todas referentes a abastecimentos ocorridos nos períodos mais quentes dos anos analisados pela Requerida: 2016 – junho (2 faturas) e julho (2 faturas); 2017 – agosto (2 faturas); 2018 – julho (2 faturas) e agosto (3 faturas) e 2019 – maio (2 faturas).

11. No período abrangido pela ação inspetiva, a Requerente realizou 29 vendas, num total de 3020,76 litros, de GCM a entidades não beneficiárias de cartão eletrónico microcircuito.

12. As faturas do anexo 5 do RIT com os n.ºs 1 a 5, 10, 13 a 16, 18 a 21 e 27 foram emitidas a entidades não beneficiárias de cartão eletrónico microcircuito.

13. No período abrangido pela ação inspetiva, a Requerente comercializou 10.716,04 litros de GCM, em 51 vendas, a beneficiários de cartão eletrónico microcircuito, mas sem certificação.

14. As faturas do anexo 6 do RIT com os n.ºs 1 a 7, 11 a 17, 20, 24, 47,49, 50 e 51 foram emitidas a entidades beneficiárias de cartão eletrónico microcircuito, mas sem certificação.

15. No período abrangido pela ação inspetiva, a Requerente realizou 108 vendas, num total de 11.280 litros de GCM, sem a inclusão do NIF dos compradores nas respetivas faturas.

16. No período abrangido pela ação inspetiva, a Requerente comercializou 66.429 litros, em 354 vendas de GCM, registadas no POS-TPA sem emissão das correspondentes faturas.

17. A Requerente foi notificada pela Alfândega de P……………. para proceder ao pagamento da dívida no montante total de 234.226,79 €, através do ofício AP/4178/2020, de 29/09/2020, daquela alfândega.

18. A Requerente não efetuou o pagamento da dívida apurada e decorridos os prazos procedeu-se à extração da certidão de dívida, a fim de se proceder à cobrança coerciva em sede de execução fiscal.

B. Do Direito

Quanto às vendas de gasóleo colorido marcado

a) Quanto ao GCM, há desde logo que realçar ser este um produto petrolífero e energético que beneficia, relativamente ao ISP (Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos) de taxas mais reduzidas, em virtude de com a redução se prosseguirem objetivos de promoção económica, que justificam que o Estado abdique de arrecadar a totalidade da receita fiscal que de outro modo arrecadaria, de acordo com o consignado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 93º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC).

Estão em causa benefícios fiscais que se traduzem na diminuição de impostos a arrecadar, o justifica que o Estado crie mecanismos especiais de controlo da verificação dos requisitos a observar para a venda dos produtos aos beneficiários da redução. Assim, a Portaria n.º 361-A/2008, de 12 de maio ( e outras antes dela) estabelece as regras de comercialização do GCM e os respetivos mecanismos de controlo tendo em vista a correcta afectação do produto aos destinos que beneficiam de isenção ou de aplicação de taxas reduzidas do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

Como foi dito no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 130/2020, de 3 de março, é através do regime de venda de gasóleo colorido e marcado que, como se afirma na Portaria n.º 361-A/2008, «são concretizadas parte substancial das isenções e das reduções de taxa do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP)». Trata-se de um «produto de venda condicionada», que só pode ser vendido em postos de abastecimento autorizados «aos beneficiários de uma isenção ou redução de taxa de ISP que sejam titulares de cartões de microcircuito (…) através dos quais são registadas todas as transações de gasóleo colorido e marcado no sistema informático gerido pela Sociedade Interbancária de Serviços (SIBS)» (artigos 3.º e 5.º da Portaria).

Ao Estado incumbe receber, manter e verificar esses registos (artigos 9.º e 15.º), bem como emitir os cartões de microcircuito a conceder aos beneficiários do regime fiscal privilegiado, nos termos previstos na Portaria n.º 117-A/2008. A emissão dos cartões é precedida de uma verificação pela Administração dos pressupostos de concessão do benefício, sendo certo que, nos termos do artigo 6.º da Portaria n.º 117-A/2008, os cartões «são pessoais e intransmissíveis, sendo os respetivos titulares responsáveis pela sua regular utilização». Os detentores dos cartões encontram-se ainda obrigados a comunicar qualquer situação de extravio ou anomalia, bem como a devolver o cartão no prazo de cinco dias úteis caso cessem os pressupostos de atribuição do benefício fiscal (artigo 8.º da Portaria).

Aquela Portaria define, como se viu, os requisitos que devem ser observados pelos vendedores de GCM nas vendas deste produto, a fim de os adquirentes beneficiarem da redução da taxa e os proprietários ou responsáveis legais pela exploração dos postos de venda autorizados não incorrerem na obrigação de ressarcir o Estado pelo pagamento do montante de imposto resultante da diferença entre o nível de tributação aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa aplicável ao gasóleo colorido marcado (n.º 5 do art.º 93º do CIEC).

Nesta matéria há que ter presente que se trata de um procedimento enquadrado nos deveres de cooperação dos particulares com a Administração Tributária. Como escreve Saldanha Sanches (in Manual de Direito Fiscal, 2007, pag 248) foi criado um complexo de actuações exigidas pela lei (actos devidos) e a cuja violação corresponde uma sanção autónoma (autónoma no sentido de que esta pode surgir mesmo que eventualmente se não venha a verificar a existência de uma dívida de imposto). Falamos, nomeadamente, de deveres de liquidar e cobrar a outrem o imposto, com posterior entrega à Administração (no Imposto sobre o Valor Acrescentado, como vimos), de deveres de calcular o imposto em dívida e de o entregar no prazo da lei (no IRC) ou de declarar todos os rendimentos tributáveis e assim permitir à Administração o cálculo do imposto devido por qualquer pessoa singular (no IRS).

O princípio da colaboração está afirmado na Lei Geral Tributária no art.º 59º, n.ºs 1 e 4 e é reforçado quando a adesão ao sistema de faturação foi requerido pelo próprio sujeito passivo.

b) No caso dos presentes autos e em relação a transações de GCM, esses deveres de colaboração/cooperação são particularmente importantes nos casos de vendas: (1) a clientes não titulares de cartão microcircuito válido (Quadro 1 do RIT); (2) a titulares de cartão microcircuito válido sem certificação (Quadro 2 do RIT); (3) sem inclusão do NIF do adquirente na fatura (Quadro 3 do RIT) e (4) com registos POS-TPA para as quais não foi emitida fatura (Quadro 4 do RIT).

Importa salientar que o Acórdão do Tribunal Constitucional não tem eficácia erga omnes, uma vez que foi interposto no âmbito de um recurso de um acórdão, nos termos da alínea d) do n.º 2 do art.º 280º da CRP. Por essa mesma razão, pronunciou-se apenas em relação à questão concreta que lhe foi colocada, que foi a da venda de GCM sem a emissão de fatura. Assim, não se pronunciou sobre as situações identificadas no parágrafo anterior em (1), (2) e (3).

Analisando cada uma das referidas situações especificamente, contata-se quanto se segue.

(1) Em relação às vendas a clientes não titulares de cartão microcircuito válido o pedido de pronúncia arbitral é improcedente porque nas 29 irregularidades apuradas pela Requerida encontra-se comprovado, através das faturas emitidas, nomeadamente dos NIF delas constantes, que o GCM foi vendido a quem não era um beneficiário reconhecido.

Dúvidas não podem restar, portanto, de que esta situação é violadora do disposto no n-º 5 do art.º 93º do CIEC. Estando em causa adquirentes que não são beneficiários reconhecidos, por inerência tais vendas não ficaram nem poderiam ficar devidamente registadas no sistema eletrónico de controlo. O facto de terem sido efetuados registos no POS com cartões eletrónicos pertencentes a outra pessoa reconhecida como beneficiário não torna o adquirente do GCM constante das faturas um beneficiário reconhecido, nem comprova o destino dado ao produto.

Visa-se assegurar, através de um eficiente controlo da atribuição e utilização dos cartões eletrónicos, que o consumo do GCM se concretize nas atividades legalmente elencadas, através dos equipamentos identificados, evitando-se assim um aproveitamento indevido do benefício fiscal, que seria estranho às finalidades de interesse económico-social que se encontram na origem da concessão do mesmo.

Tendo em conta a diferente identidade dos adquirentes constantes das faturas de compra, por um lado, e dos titulares de cartão microcircuito identificados pela Requerente como utilizados a esse propósito, por outro, não resulta de modo algum provado que aquelas faturas de compra se encontrem relacionadas com estes registos do POS.

(2) Em relação às vendas a adquirentes com cartão microcircuito válido sem certificação, também improcede o pedido de pronúncia arbitral porque esta tipologia de situações é caracterizada pela emissão de faturas divergentes ou não comprováveis, o que significa que a Requerente não conseguiu provar que as vendas foram efetivamente objeto do correspondente registo no sistema de controlo POS do posto.

Assim, consoante os casos, verificaram-se os seguintes casos inaceitáveis: as quantidades constantes das faturas divergem das quantidades registadas no POS, não sendo assim possível estabelecer uma relação inequívoca entre os dois elementos (fatura-registo POS) (linha 1, 6); o talão dos POS apresentado é ilegível, não sendo assim possível estabelecer qualquer relação com a fatura em questão (linhas 4, 5, 19); não existe coincidência entre o adquirente do produto identificado na fatura através do NIF e o titular do cartão eletrónico indicado pela Requerente, pelo que não se encontra comprovado uma relação inequívoca entre os dois elementos e consequentemente não se encontra cumprido o disposto no n.º 5 do artigo 93.º do CIEC (linhas 7, 20);o talão do POS apresentado pela Requerente encontra-se relacionado com outra fatura, pelo que não possui ligação com a fatura de venda em questão (linhas 11, 12, 13, 24); o talão do POS apresentado pela Requerente reporta-se a uma data posterior, inclusive, respeitando ao ano fiscal seguinte, pelo que não foi demonstrada uma relação inequívoca com a fatura em questão (linhas 14, 15, 16, 17, 49, 50 e 51).

(3) Quanto ás vendas sem inclusão do NIF dos adquirentes nas faturas, assiste razão à Requerida ao defender que não se pode aceitar a justificação apresentada pela Requerente, nem se compreende a sua afirmação de que as faturas incluem a indicação do NIF do adquirente, já que apenas contêm a indicação “C.F.” ou “999999990”, conforme pode ser confirmado: pela cópia das faturas; no próprio mapa apresentado pela Requerente e por esta designado “Anexo 3”; e - no anexo 7 do RIT.

A inclusão do NIF na fatura constitui um elemento da máxima importância no controlo do benefício fiscal associado ao GCM, pois o registo no POS não comprova por si só que ocorreu uma venda ao titular do cartão utilizado. De facto, o registo no POS não constitui título adequado para comprovar que existiu uma transmissão de bens. Tal título é constituído pela fatura (cfr. artigos 3.º e 29.º do CIVA).

Como muito bem afirma a AT na sua Resposta, os dois elementos (fatura com identificação do adquirente e registo no POS) são complementares e encontram-se interligados como duas faces da mesma moeda: a emissão de fatura com a identificação do adquirente comprova quem adquiriu o produto; o registo do abastecimento no POS, realizado com o cartão eletrónico do beneficiário demonstra que o adquirente está habilitado, e pode naquele momento fazê-lo.

(4) Por fim, relativamente às vendas sem emissão de fatura, mais uma vez se verifica que nos casos identificados no anexo 8 ao RIT não foi possível estabelecer uma relação inequívoca entre os movimentos de registo no POS e as faturas de venda de GCM indicadas pela Requerente. Aliás, grande parte dos documentos que a Requerente designou de “faturas” e apresentou à inspeção como tratando-se de faturas relacionadas com os movimentos do POS em questão, são documentos desconhecidos pela AT, não constando dos ficheiros SAFT. Noutro elevado número de casos, as faturas apresentadas como justificação do abastecimento registado no POS/TPA não identificam o adquirente, pelo que não é possível estabelecer uma correspondência com o registo no POS.

Na prática, em todos os casos identificados no anexo 8 do Relatório de Inspeção aduaneira, temos um registo efetuado no POS que não apresenta relação com uma fatura. Ora, deste modo, não se encontra comprovado se o GCM em questão foi adquirido pelo titular do cartão utilizado. Essa transmissão de bens é comprovada através da emissão da fatura que identifique o adquirente, o que não sucedeu.

Em relação a estas vendas a Requerente invoca o Acórdão do Venerando Tribunal Constitucional, já antes mencionado, com o n.º 130/2020, de 3 de março, que decidiu Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 61.º, n.º 1, da Constituição, o segmento normativo do n.º 5 do artigo 93.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, na redação dada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que determina ser responsável pelo pagamento do montante de imposto, resultante da diferença entre o nível de tributação aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa aplicável ao gasóleo colorido e marcado, o proprietário ou o responsável legal pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público, em relação às quantidades vendidas a portador de cartão eletrónico para as quais não sejam emitidas as correspondentes faturas em nome do titular do cartão.

Fundamenta-se este acórdão, além do mais, no Acórdão do Tribunal da União Europeia de 2 de Junho, C-418/14, o qual, porém, assentava num pressuposto que não se verifica no caso presente: o acórdão do TJUE aplica-se a um caso de “falta de entrega de tal extrato no prazo fixado, é aplicável ao combustível vendido de imposto especial de consumo prevista para os carburantes, mesmo que se tenha constatado que não há dúvida de que esse produto se destinava a aquecimento (sublinhado nosso).

Com todo o respeito por outras opiniões, o acórdão do Tribunal Constitucional exige uma interpretação cum grano salis . O único critério objetivo, seguro, que o TC nos indica, através da sua remissão para o acórdão do TJUE é de que o princípio da necessidade se deve aplicar em casos como o presente, quando for possível determinar o destino dado ao combustível.

Ora, no nosso caso concreto, há dúvidas razoáveis de que essas vendas fossem feitas para os fins previstos no n.º 5 do art.º 93º do CIEC e da Portaria n.º 361-A/2008, de 12 de maio. Faltando nalguns casos por completo as faturas e noutros a titularidade de cartão, a respetiva certificação ou a omissão do NIF, é justificada e bem fundada a dúvida sobre quem e como adquiriu e utilizou esse combustível.

Sobre este ponto específico da importância dos elementos contabilísticos, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo por acórdão de 19 de março de 2009, no âmbito do processo n.º 0836/08, nos seguintes termos: IV- A alínea e) do n.º 2 do artigo 3º do CIEC e o n.º 7 da Portaria n.º 234/97, de 4 de Abril, não são material nem organicamente inconstitucionais, na parte em que prevêem a responsabilidade dos proprietários ou dos responsáveis legais pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público do gasóleo colorido e marcado pela diferença entre o montante do ISP liquidado e pago e a que seria devida se se tratasse de gasóleo rodoviário , em relação às quantidades vendidas e não devidamente registadas no sistema informático subjacente aos cartões com microcircuito atribuído. V- Nos termos do n.º 7 da Portaria n.º 234/97, de 4 /4, a venda do gasóleo colorido e marcado só pode ser efectuada a titulares de cartão com microcircuito e tem que ficar documentada no movimento contabilístico do posto. VI- Aquela titularidade constitui uma formalidade essencial, atenta a intenção do legislador de evitar a fraude fiscal. (disponível em www.dgsi.pt).

Esta doutrina mantém toda a sua atualidade. Com efeito, dispõe o n.º 8 da atual Portaria n.º 361-A/2008, de 12 de maio, que O registo no sistema informático, através dos terminais POS, de cada abastecimento efectuado, não dispensa a emissão da respectiva factura ou documento equivalente, emitida em nome do titular do respectivo cartão de microcircuito.

Por isso mesmo, parece-nos correta a demonstração da constitucionalidade do n.º 5 do artigo 93º do CIEC feita no ponto 3.4 da Decisão do CAAD proferida no processo n.º 459/2018-T, nos seguintes termos:

Aquela obrigação de emitir fatura, apesar do registo no TAP/POS, existe desde 2008, quando foi emitida a Portaria n.º 361-A/2008 e não a partir do Orçamento do Estado para 2015, ao contrário do que diz a Requerente. Com este Orçamento, através da nova redacção dada ao n.º 5 do artigo 93º, apenas se estendeu a estas situações de falta de emissão de factura a responsabilidade do proprietário ou responsável legal pela exploração do posto.

Por outro lado, aquelas obrigações especiais impostas na comercialização de GCM destinam-se a possibilitar à Autoridade Tributária e Aduaneira o controlo efectivo da utilização do benefício sem necessidade do “trabalho decerto aturado” que a Requerente reconhece que seria necessário para apurar a correspondência de cada uma das facturas aos registos informáticos.

Visando aquela obrigação de emitir facturas com identificação dos adquirentes facilitar o controlo da correcta utilização do benefício, através do cruzamento da informação em posse do vendedor e do adquirente, possibilitando a detecção de fraudes e a evasão fiscal, não se pode considerar aquela obrigação uma formalidade inútil ou desproporcionada, inclusivamente porque é manifesta a facilidade de lhe dar cumprimento pelo vendedor. Por isso, não se pode considerar que a exigência dessa formalidade e consequências para a sua omissão sejam incompatíveis com o princípio constitucional da proporcionalidade.

Por outro lado, esta formalidade da emissão de factura com identificação do adquirente tem precisamente em vista a mesma finalidade de evitar evasão fiscal que se prossegue com a exigência de registo no cartão da aquisição do adquirente, pelo que não se pode considerar injustificado que a omissão desta formalidade tenha a mesma consequência que tem a falta de registo no cartão.

Como bem refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, “mesmo que se verificasse a exacta coincidência de todos os dados – quantidades, valores, dia e hora – da factura com os do registo do cartão no TPA, tal coincidência não é meio de prova suficiente e adequada de que a venda foi efectivamente feita ao titular daquele cartão, porquanto, a experiência demonstra que pode ocorrer a venda a uma pessoa, mediante a utilização abusiva do cartão de outrem”. É a comprovação de que o adquirente foi o titular do cartão que se pretende reforçar com a exigência de identificação do adquirente na factura.

Sendo a exigência cumulativa um reforço das possibilidades de controle pela Autoridade Tributária e Aduaneira, facilitando-lhe a fiscalização que, sem essa formalidade, seria “trabalho decerto aturado” (como reconhece a Requerente), e sendo uma formalidade cujo cumprimento não se afigura apreciavelmente mais oneroso que o registo electrónico da transacção, não se pode considerar desajustada a imposição da mesma consequência para a omissão dessa formalidade, que é a responsabilização do proprietário ou responsável legal pela exploração do posto. A utilização abusiva de cartões de terceiros nos registos nos sistemas de controlo, podendo reconduzir-se à aquisição de GCM com benefício por quem a ele não direito, não é uma situação de evasão fiscal substancialmente distinta da aquisição por quem nem sequer é titular de cartão com microcircuito.

Por isso, o n.º5 do artigo 93º do CIEC não ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade, invocados pela Requerente.

Fundamenta-se ainda o acórdão do Venerando Tribunal Constitucional no artigo 61º da Constituição da República, considerando tratar-se de uma intromissão constitucionalmente proibida na iniciativa económica privada.

Permitimo-nos recordar, com todo o respeito pelo aresto em análise, que estamos no quadro dos deveres de cooperação livremente aceites pela Requerente quando requereu ser inscrita como vendedora de GCM.

Ao inscrever-se para vender aquele combustível, a Requerente voluntariamente assumiu que cumpriria todas as obrigações acessórias que necessariamente conhecia, uma vez que as mesmas, no essencial, vigoram há muitos anos.

Não há intromissão abusiva na vida das empresas quando elas próprias solicitam a participação num programa cujas características bem conhecem e cujas consequências, em termos de responsabilidade tributária, são facilmente compreensíveis.

Assim, pelo exposto, não consideramos aplicável ao caso concreto objeto dos presentes autos a doutrina do acórdão do Venerando Tribunal Constitucional.

Embora a Requerente haja, como se viu, apresentado documentos para fazer prova de que em alguns casos apontados pela AT não teria havido violação dos requisitos identificados, o certo é que não logrou fazer a pretendida prova.

Para avaliar a prova apresentada pela Requerente o Tribunal teve em atenção a metodologia seguida pela AT na ação inspetiva e descrita no RIT: Relativamente à comercialização de GCM, a ação inspetiva procedeu: à análise dos ficheiros SAF-T faturação da empresa, tendo confrontado os registos das vendas de GCM, por NIF de cliente, com os registos que constam da base de dados da Direção-Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), relativos aos POS/TPA utilizados pela empresa; à consulta na base de dados da DGADR, por número de identificação fiscal do beneficiário, relativamente aos utilizadores de cartões microcircuito. E, nestes termos, dúvidas não restaram ao Tribunal da ilegalidade dos factos imputados pela AT à Requerente na venda de GCM.

Em síntese, o Tribunal confirma as conclusões do RIT e considera que a Requerente procedeu à venda de 91.445 litros de GCM com violação do disposto no n.º 5 do art.º 93º do CIEC e dos pontos 5º, 6º e 8º da Portaria n.º 361-A/2008, de 12 de maio.

Quanto às existências de gasolinas e gasóleos

Para a realização do levantamento das existências de gasolinas e gasóleos comercializados pela Requerente (GSC 95, GSC 98, GRS, GRA, GCM, GA), desde 01/01/2016 até 30/06/2019, a AT utilizou, como se disse:

- a informação constante dos Inventários Fiscais de dezembro de 2015, 2016, 2017 e 2018;

- a informação constante do ficheiro enviado pela Requerente relativamente às existências de combustíveis no dia 30 de junho de 2019 e

- a informação constante de vários ficheiros, entregues também pela Requerente, onde se encontram discriminadas as quantidades de combustíveis compradas e vendidas, confrontadas com as contas correntes de fornecedores.

Da análise realizada aos elementos identificados no parágrafo anterior, a AT concluiu que no período em que incidiu a ação inspetiva, a Requerente comercializou 358.337 litros de gasóleos e 57.775 litros de gasolinas cuja origem não se encontra documentada, logo sem a devida prova da sua regular introdução no consumo (conforme quadro n.º 12 do RIT, que se dá aqui por reproduzido). Importa dizer que o ónus da prova incidia sobre a Requerente que não trouxe aos autos elementos que pusessem em causa as conclusões da AT (vd. art.º 74º, n.º 1 e 75º, n.º 2, b) da LGT).

A Requerente defendeu-se longamente, como supra se deixou exposto, com a alegação de que a diferença das existências é causada pela influência da temperatura ambiente na densidade dos combustíveis.

De acordo com as normas europeias a entrada dos produtos petrolíferos nos mercados dos países incluídos no quadro comunitário europeu é regulada por diversa legislação europeia, entre outras, pela diretiva 2003/96/CE do Conselho. Portugal transpôs esta diretiva em vários diplomas, nomeadamente através de normas contidas no Código dos Impostos Especiais de Consumo, que no n.º 1 do art.º 91º determina que a temperatura de referência para a conversão dos produtos petrolíferos para a respetiva unidade de referência (1000litros) é de 15 graus centígrados.

A Requerente alega, como se viu, que a temperatura média em Portugal é superior a 15ºC durante a quase totalidade do ano, considerando mesmo ser de 20ºC, pelo que o cálculo do volume de gasolinas e gasóleos realizado apenas em função das faturas emitidas pela Requerente (que não tiveram em conta esta temperatura de referência) teria necessariamente que ser superior à que consta das faturas, que foram emitidas pela fornecedora de acordo com a temperatura referencial.

Para justificar a sua posição, a Requerente fez juntar várias faturas emitidas pela sua principal fornecedora, a R............., com indicação dos diferenciais resultantes da conversão das quantidades de combustíveis a que se referem, à temperatura de 15ºC.

Sucede, porém, que todas aquelas faturas titulam aquisições que tiveram lugar em meses de Verão, com omissão das faturas emitidas nos meses mais frios do ano. Com efeito, foram apresentadas : 2016 – junho (2 faturas) e julho (2 faturas); 2017 – agosto (2 faturas); 2018 – julho (2 faturas) e agosto (3 faturas) e 2019 – maio (2 faturas).

Para além disso, não obstante a Requerente haver reconhecido que a R............. é a sua principal fornecedora mas não a única, não forneceu qualquer indicação das quantidades de combustível que no período de tempo objeto de análise teria adquirido aos restantes fornecedores.

Em relação à temperatura média de Portugal, a Requerente limitou-se a apresentar opiniões, sem que as haja alicerçado em qualquer justificação científica, ou seja, não logrou a Requerente provar o que alegou, sendo que, nos termos do consignado no art.º 74º da Lei Geral Tributária o ónus da prova era seu.

A AT, por seu turno, apresentou na sua resposta os resultados da consulta dos Boletins Climatológicos Anuais de Portugal Continental, para os anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, emitidos pelo IPMA-Instituto Português do Mar e da Atmosfera e apurou o valor médio anual da temperatura média do ar em Portugal, conforme discriminou: em 2016 – 15,91.ºC; em 2017 – 16,33; em 2018 – 15,37.ºC e em 2019 – 15,58.º, que foram juntos como anexos à resposta.

Assim, com médias de temperatura como as indicadas no parágrafo anterior, considera este o Tribunal não poder a variação de temperatura ser considerada justificação para a diferença das existências dos volumes de gasolinas e de gasóleos detetados na ação inspetiva. O mesmo é dizer-se, não encontrou este Tribunal uma razão válida que provasse a entrada regular no consumo de 358.337 litros de gasóleos e 57.775. Tanto mais quanto, diga-se mais uma vez, a Requerente apenas apresentou faturas emitidas para fornecimentos ocorridos durante o Verão.

Acresce que considera também o Tribunal não ser de atender ao argumento invocado pela Requerente, de que a AT poderia (e deveria) ter consultado o acervo das faturas que as fornecedoras lhe terão passado. Com esta alegação não se compreende qual a razão justificativa para a Requerente não ter apresentado as faturas em falta (a existirem), sendo certo que a Requerida identificou as demais fornecedoras da Requerente, o que esta nunca fez.

Violou, assim, a Requerente o disposto no art.º 9º, n.º 1, alínea b) do CIEC (Código dos Impostos Especiais de Consumo). Dispõe o referido normativo que Para efeitos do presente Código considera-se introdução no consumo de produtos sujeitos a imposto: b) A detenção fora do regime de suspensão do imposto desses produtos sem que tenha sido cobrado o imposto devido. Esta violação, determina a exigibilidade do imposto, de acordo com o determinado no n.º 1 do art.º 8º do mesmo diploma legal, segundo o qual O imposto é exigível em território nacional no momento da introdução no consumo dos produtos referidos no artigo 5.º ou da constatação de perdas que devam ser tributadas em conformidade com o presente Código.

A referida violação deu lugar à constituição da dívida no montante total de €203.842,65, correspondendo: €151.894,26 a ISP; €44.801,79 a CSR e€7.146,60 ao adicionamento sobre as emissões de CO2.

Conclusões

Em síntese, relativamente às pretensões da Requerente apresentadas no seu pedido de pronúncia arbitral o Tribunal considera-as totalmente improcedentes.

(…)


Voto de vencido

Votei vencido, nas partes em que a decisão arbitral não declara a ilegalidade da liquidação dos impostos em causa – ISP, Adicionamento sobre as Emissões de CO2 e Contribuição de Serviço Rodoviário – sobre as transações que corresponderam a vendas de gasóleo colorido e marcado feitas pela Requerente a portadores de cartões eletrónicos (‘cartão gasóleo verde’), automaticamente registadas no sistema pelo uso dos referidos cartões, para as quais não foram emitidas faturas em nome dos titulares dos cartões, ou foram estas emitidas mas sem indicação do número de identificação fiscal (Quadros 3 e 4 do RIT).

Acompanho, nesta matéria, o juízo de inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 93.º do CIEC, no segmento em que estatui ser responsável pelo pagamento do ISP – com o corolário da tributação, mutatis mutandis, no Adicionamento sobre as Emissões de CO2, em aplicação do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 92.º-A do CIEC, e na Contribuição de Serviço Rodoviário, em aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 4.º e n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto – o proprietário ou o responsável legal pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público, pela diferença resultante da aplicação da taxa específica do gasóleo colorido e marcado, em vez da taxa referente ao gasóleo rodoviário (no regime geral de tributação deste), quando não são emitidas faturas (Acórdãos n.ºs 130/2020 e 329/2020, do Tribunal Constitucional).

As razões pelas quais julgaria verificar-se a referida inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 18.º e do n.º 1 do artigo 61.º da Constituição – razões que entendo válidas, a fortiori, para anular a liquidação sobre as transações em que foram emitidas faturas mas sem indicação do número de identificação fiscal, porquanto o juízo de violação do princípio da proibição do excesso é ainda mais impressivo – são as formuladas pelo Tribunal Constitucional no primeiro dos referidos arestos e reafirmadas no segundo.

«Embora a exigência de identificação do titular dos adquirentes na fatura não seja evidentemente adequada a prevenir, por si só, a utilização irregular de gasóleo colorido e marcado, concede-se que seja útil para sancionar e reprimir os comportamentos abusivos, na medida em que facilita o controlo pelas autoridades dos consumos efetuados pelos titulares dos cartões. Em consequência, não pode considerar-se desadequado o sancionamento do incumprimento da obrigação.

Acontece que o incumprimento é sancionado, nos termos do RGIT, com a aplicação de uma coima que pode atingir um valor expressivo (a fixar entre os 250€ e os 165.000€). Mostra-se por isso desnecessária a exigência adicional de suportar os impostos que seriam devidos se fosse efetuada venda a quem não era titular do direito ao referido benefício fiscal.

Nesse exato sentido argumentou o Tribunal de Justiça da União Europeia, no seu Acórdão de 2 de junho de 2016, C-418/14 ROZ-ŒWIT (disponível em eur-lex.europa.eu), que respeita a matéria com inegável parentesco com a do presente recurso, desde logo por se tratar da proporcionalidade de medidas de combate à fraude e evasão fiscal em domínio de impostos especiais de consumo harmonizado pelo direito da União Europeia.

Nesse aresto, o Tribunal de Justiça foi confrontado com a questão de saber se contraria o princípio da proporcionalidade «uma regulamentação nacional nos termos da qual, por um lado, os vendedores de combustível são obrigados a submeter, no prazo estabelecido, um extrato mensal das declarações dos compradores, segundo as quais os produtos comprados se destinam a aquecimento, e, por outro, na falta de entrega de tal extrato no prazo fixado, é aplicável ao combustível vendido a taxa do imposto especial de consumo prevista para os carburantes, mesmo que se tenha constatado que não há dúvida de que esse produto se destinava a aquecimento.»

O Tribunal começou por afirmar que, «constitui um instrumento de controlo que tem por objetivo a prevenção da evasão e da fraude fiscais a obrigação de entregar, junto das autoridades competentes, um extrato das declarações dos compradores», concluindo que a imposição de tal obrigação «não reveste um caráter manifestamente desproporcionado». Já no que diz respeito à consequência associada ao incumprimento da obrigação, entendeu que, «a aplicação automática da taxa de imposto especial de consumo prevista para os carburantes em caso de incumprimento da obrigação de entregar um extrato desse tipo viola o princípio da proporcionalidade.» Com efeito, «o facto de aplicar aos combustíveis de aquecimento em causa no processo principal a taxa de imposto especial de consumo prevista para os carburantes em razão da violação da obrigação, imposta pelo direito nacional, de apresentar um extrato das declarações dos compradores nos prazos fixados, quando se constatou que não havia dúvida de que esses produtos se destinavam a aquecimento, vai além do que é necessário para prevenir a evasão e a fraude fiscais.» O Tribunal de Justiça esclareceu ainda que, «nada impede um Estado-Membro de prever a aplicação de uma coima pela violação de uma obrigação como a que consiste na entrega às autoridades competentes de um extrato das declarações dos compradores do combustível de aquecimento vendido.» O que o princípio da proporcionalidade proscreve é que seja aplicada a taxa normal de imposto especial sobre o consumo a situações em que nada «indica que essas vendas foram realizadas com o objetivo de beneficiar de modo fraudulento da taxa de imposto especial de consumo preferencial atribuída aos combustíveis destinados a aquecimento».

Estas considerações aderem perfeitamente ao problema de constitucionalidade que se coloca nos autos. A obrigação de o vendedor pagar a diferença entre a taxa de imposto normal e a aplicável ao gasóleo colorido e marcado, nos casos em que não é emitida fatura em nome do titular do cartão, «vai além do necessário para prevenir a fraude e evasão fiscal». A função sancionatória é plenamente assegurada no plano contraordenacional, perfilando-se a sanção adicional imposta pela norma sindicada – com a estrutura de uma norma de incidência fiscal, ainda que servindo uma finalidade sancionatória − como um corpo estranho e funcionalmente redundante.

A medida seria razoável – porventura até indispensável − caso se pudesse presumir a utilização abusiva do regime da venda do gasóleo colorido e marcado nos casos em que é registada a operação no sistema eletrónico de controlo, não sendo emitida fatura em nome do titular do cartão. Porém, essa presunção – como vimos – não tem justificação alguma, razão pela qual a responsabilidade pelo pagamento da diferença entre o imposto devido com e sem benefício fiscal não tem natureza propriamente tributária. Nada no mero facto de não ter sido emitida a fatura em nome do titular do cartão, sendo apresentado o cartão e não sendo exigida demonstração de identidade, «indica que essas vendas foram realizadas com o objetivo de beneficiar de modo fraudulento da taxa de imposto» aplicável ao gasóleo colorido e marcado.

Assim, é de concluir que a norma sindicada reprova no teste da necessidade, consubstanciando uma restrição excessiva (artigo 18.º, n.º 2) da liberdade de iniciativa económica, consagrada no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição.» …” (cfr. fls. 641 a 667 da certidão do processo arbitral, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).


*

Não existem quaisquer outros factos, provados ou não provados, pertinentes para a apreciação da presente impugnação.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes

Considera a Impugnante que o coletivo arbitral violou os princípios do contraditório e da igualdade das partes, dado que houve uma valorização errónea em seu desfavor de determinada prova documental e que houve uma indevida valoração da prova por si produzida (designadamente os boletins meteorológicos atinentes a Portugal Continental e a prova testemunhal). Refere ainda que a decisão não tomou em consideração as alterações da densidade do combustível em função da temperatura, nas compras efetuadas pelo sujeito passivo à R.............. Logo, considera, resultou provado que a ora Impugnante foi indevidamente tributada. Acrescenta que nunca foi notificada para juntar as faturas que na decisão se refere não terem sido juntas.

Vejamos.

A sindicância das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é limitada às situações previstas no art.º 25.º (que prevê a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos circunscritos aí previstos) e nos art.ºs 27.º e 28.º, todos do RJAT.

Estes últimos, relativos à impugnação da decisão arbitral junto do Tribunal Central Administrativo, definem, de forma taxativa, os termos e os fundamentos dessa mesma impugnação.

Resulta desta disciplina que, ao contrário do que decorre do regime de recurso das decisões proferidas pelos tribunais tributários de 1.ª instância, o mérito das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é sindicável num conjunto muito limitado de situações (cfr. novamente o art.º 25.º do RJAT) e nunca no âmbito da sua impugnação junto do Tribunal Central Administrativo.

Centrando-nos, pois, na impugnação da decisão arbitral junto do TCA, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, tal decisão pode ser anulada, sendo que a impugnação pode ser apresentada considerando um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma.

Assim, nos termos desta última disposição legal, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em:

“a) não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

b) oposição dos fundamentos com a decisão;

c) pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia;

d) violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos no artigo 16.º”.

Portanto, a competência deste TCAS, neste domínio, circunscreve-se a estes casos, não podendo, pois, abranger qualquer erro de julgamento.

Nos termos do art.º 16.º do RJAT, para o qual remete a al. d) do n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma:

“Constituem princípios do processo arbitral:

a) O contraditório, assegurado, designadamente, através da faculdade conferida às partes de se pronunciarem sobre quaisquer questões de facto ou de direito suscitadas no processo;

b) A igualdade das partes, concretizado pelo reconhecimento do mesmo estatuto substancial às partes, designadamente para efeitos do exercício de faculdades e do uso de meios de defesa;

c) A autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas;

d) A oralidade e a imediação, como princípios operativos da discussão das matérias de facto e de direito;

e) A livre apreciação dos factos e a livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros;

f) A cooperação e boa fé processual, aplicável aos árbitros, às partes e aos mandatários;

g) A publicidade, assegurando-se a divulgação das decisões arbitrais devidamente expurgadas de quaisquer elementos suscetíveis de identificar a pessoa ou pessoas a que dizem respeito.”.

O princípio do contraditório, cujo respeito é ora questionado, configura-se como um princípio basilar no nosso ordenamento, em termos de direito processual, visando prevenir a existência de decisões surpresa, ou seja, de decisões com as quais as partes não podiam legitimamente contar (cfr. art.º 3.º, n.º 3, do CPC).

Assim, salvo em casos de manifesta desnecessidade, não pode o julgador decidir questões de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso (v.g. matéria de exceção), sem que tenha sido dada a oportunidade às partes de sobre elas se pronunciarem. “As questões (…) reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções” (1).

Quanto ao princípio da igualdade, também ele é basilar em termos processuais, como decorre do disposto no art.º 98.º da LGT e no art.º 4.º do CPC, refletindo o desiderato constitucionalmente consagrado no art.º 13.º da nossa lei fundamental. Também se sublinha que se trata de princípio subjacente ao direito a um processo equitativo, previsto no art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, p.22), “[n]ão se admitem atitudes subjetivistas conotadas com um certo paternalismo relativamente a determinados sujeitos processuais. O desiderato também não pode ser alcançado através de um automático e generalizado suprimento de falhas processuais imputáveis às partes, o que colidiria com os padrões da imparcialidade, da equidistância que o juiz deve respeitar e da autorresponsabilidade das partes”.

Feito este introito, cumpre apreciar.

Desde já se adiante que carece de razão a Impugnante.

Com efeito, tudo o alegado consubstancia, tão-só, um eventual erro de julgamento, que, como já mencionamos supra, não cumpre apreciar na presente sede.

Nada do alegado reflete que o princípio do contraditório e o da igualdade tenham sido atacados. Simplesmente o tribunal arbitral apreciou a prova em termos com os quais a Impugnante discorda, o que, mesmo a ocorrer, consubstancia um erro de julgamento.

Acrescente-se que o que decorre na conclusão XII, que poderia, em abstrato, configurar uma violação do princípio do inquisitório, não tem o alcance retirado pela Impugnante.

Com efeito, apesar de o princípio do inquisitório dever enformar a atuação dos tribunais tributários arbitrais, a sua violação não é cominada com a anulação da decisão arbitral, conduzindo, sim, eventual erro de julgamento, matéria, como já referimos, arredada da apreciação deste TCAS [cfr. v.g. os Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 24.06.2021 (Processo: 84/18.5BCLSB), de 24.11.2016 (Processo: 08707/15)].

Assim, atento o exposto, não assiste à Impugnante.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Julgar improcedente a presente impugnação;

b) Custas pela Impugnante;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 24 de outubro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Ana Cristina Carvalho)

(Maria da Luz Cardoso)



(1) António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, p. 727.