| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:
1. Relatório
S… Sénior, Lda. e S… (doravante AA., Requerentes ou Recorrentes) instauraram, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, providência cautelar contra o Instituto da Segurança Social, I.P., peticionando a suspensão de eficácia de ato administrativo, consubstanciado na deliberação do Conselho Diretivo da Segurança Social n.º 171/2024, de 2.5.2024 que determinou o encerramento administrativo imediato do estabelecimento de apoio social denominado S… Sénior, fixando o prazo de 30 dias para a cessação da atividade.
Em 24 de março de 2025, o referido Tribunal julgou totalmente improcedente a providência cautelar.
Inconformadas, as Requerentes interpuseram recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:
“A. O presente Recurso vem interposto da Sentença proferida em 24.03.2025, e notificada às Recorrentes em 17.06.2025, e nos termos da qual se decidiu julgar improcedente a providência cautelar requerida, por ausência de verificação do pressuposto relativo ao fumus boni iuris, tendo a apreciação dos demais pressupostos sido prejudicada em face da necessária cumulação daqueles.
B. Nos termos e para os efeitos da aplicação conjugada do disposto nos n.ºs 4 e 5, do CPTA, deve ser atribuído efeito suspensivo ao presente Recurso, já que resulta evidente que da execução do acto administrativo suspendo resultam danos para as Recorrentes superiores àqueles que poderiam resultar para o interesse público da sua não execução, devendo, para o efeito, a atribuição de efeito devolutivo ser imediatamente recusada e substituída por decisão que ordene a prestação de Garantia por parte das Recorrentes.
C. A este propósito as Recorrentes demonstraram que, sem a atribuição do referido efeito suspensivo, poderia a Recorrida executar de imediato o acto administrativo suspendendo, ficando aquelas impossibilitadas de obter a sua única fonte de rendimento, com todos os prejuízos daí advenientes, nomeadamente em matéria de incapacidade de subsistência e de incapacidade de satisfação de compromissos, bem como em matéria de solvabilidade.
D. Resultando ainda evidente prejuízo imediato para os seus trabalhadores que ficarão sem emprego, afectando igualmente, a única fonte de rendimento dos mesmos, o que, compromete, naturalmente, as suas respectivas necessidades básicas de subsistência e sobrevivência e ainda dos respectivos agregados familiares, sendo por isso susceptível de comprometer a dignidade humana daqueles.
E. Mais tendo demonstrado que tal execução determinaria o realojamento imediato de cerca de 20 (vinte) utentes das Recorrentes, praticamente repentino e sem qualquer preparação emocional e psicológica para a saída dos mesmos do estabelecimento social em apreço, sendo tal encerramento susceptível de causar prejuízos de difícil reparação (e no limite mesmo irreparáveis), nomeadamente no que concerne ao transtorno causado nos idosos, atenta a alteração repentina das suas rotinas, espaço e residência, não sendo sequer previsível que grande parte deles seja efectivamente realojado.
F. Já em sede de “motivação de Recurso”, as Recorrentes demonstraram cabalmente que a Sentença recorrida enferma de nulidade por omissão total da apreciação e enunciação da matéria de facto, o que determina igualmente a ininteligibilidade da mesma.
G. A este propósito, veja-se que a Sentença recorrida apesar de enunciar, em sede de apreciação de direito, alguns dos factos alegadamente dados como provados, é certo que a mesma é totalmente omissa quanto à exposição da matéria de facto, bem como quanto à exposição da fundamentação e apreciação da mesma, tudo em contrariedade e violação do disposto no artigo 94.º, do CPTA e ainda no artigo 607.º, do CPC, aplicável ex vi disposto nos artigos 1.º e 140.º, n.º 3, ambos do CPTA.
H. Traduzindo-se esta omissão total numa verdadeira nulidade da Sentença recorrida em virtude da não especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão em apreço, e que, por sua vez determina a inteligibilidade e obscuridade da Sentença recorrida, (cfr. neste sentido, o Ac. Acórdão do TCA Sul, de 28.09.2017 e de 23.11.2023, no âmbito dos Processos n.ºs 105/17.9BCLSB e 200/09.8 BELSB, respectivamente; Ac. do Supremo Tribunal Administrativo, de 27.03.2025, no âmbito do Processo n.º 0119/23.0BCLSB).
I. Nestes termos, forçosamente se conclui que a Sentença recorrida é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a Decisão, e, consequentemente, por conter ambiguidade(s) ou obscuridade(s) que a tornam ininteligível, o que expressamente se invoca para todos os devidos efeitos legais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) e c), e n.º 4 do CPC aplicável ex vi do disposto nos artigos 1.º e 140.º, n.º 3, ambos do CPTA, nulidades essas que desde já se invocam para todos efeitos legais.
J. Acresce que, a Sentença recorrida é ainda nula em virtude da verificação da verdadeiras nulidades processuais que a inquinam irremediavelmente, pois que, tendo as Recorrentes expressamente requerido o depoimento de parte e inquirição de testemunhas para prova dos factos subjacentes ao “fumus bonis iuris” e “periculum in mora”, não poderia o Tribunal a quo, sem mais, proferir a Sentença recorrida sem proferir previamente o devido despacho fundamentado sobre a desnecessidade da produção de tal prova, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 118.º n.º 5, do CPTA.
K. Certo é que, mesmo existindo um qualquer Despacho a este propósito, em nenhum caso, se pode, sem mais, determinar a (imediata) dispensa de prova, quando esta se revele indispensável para a apreciação e decisão da causa (mesmos nos termos especiais do Processo de caracter urgente, cfr. n.º 1, do artigo 118.º, do CPTA).
L. Sendo que a natureza urgente de um processo não legitima a preterição de outros valores e garantias assegurados, designadamente, os do foro probatório, com tutela constitucional derivada do corolário do Princípio da Tutela Jurisdicional Efetiva (cf. artigos 20.º e 268.º, da CRP).
M. Pelo que, não poderia o douto Tribunal a quo, expressa ou implicitamente (como veio a ocorrer), decidir dispensá-la, impedindo assim as Recorrentes de produzirem a necessária prova para defesa cabal do seu direito e interesse, e bem assim de conhecerem a necessária fundamentação que subjaz à restrição do direito de defesa e tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa).
N. Ora, não tendo sido produzida a prova requerida, que se revela imprescindível e necessária, é a Sentença nula por défice de actividade instrutória, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 3.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi dos artigos 1.º e 35.º do CPTA, consubstanciando a Sentença em apreço uma verdadeira decisão surpresa.
O. E que é veio influir de forma clara e determinante, quer no exame, quer na decisão da causa, assim se violando um princípio básico do direito processual, o do contraditório, não se permitindo que ao processo fossem trazidos todos os elementos necessários à prolação de uma decisão de acordo com as várias soluções plausíveis ao Direito.
P. Nestes termos, devem as nulidades supra ser declaradas em virtude das omissões verificadas, determinando-se a necessária anulação da Sentença recorrida e a descida dos autos para efeitos de produção de prova expressamente requerida pelas Recorrentes, conforme desde já se requer com todas as demais consequências legais.
Q. Acresce que, para além das sobreditas nulidades, a Sentença recorrida enferma ainda de erro de julgamento e apreciação quanto ao pressuposto da aparência do direito das Recorrentes, i.e. do “fumus boni iuris”, tendo as Recorrentes demonstrado que o Tribunal a quo erra, com o devido respeito, na interpretação do disposto no artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março, e em consequência na apreciação dos pressupostos de facto e de direito subjacentes à sua aplicação.
R. Como é consabido, a aplicação do sobredito enunciado normativo depende assim da verificação de deficiências graves condições de instalação, segurança, funcionamento, salubridade, higiene e conforto, que ponham em causa os direitos dos utentes ou a sua qualidade de vida.
S. Resulta efectivamente demonstrado pelas Recorrentes que inexiste qualquer situação de perigo (potencial, iminente ou mesmo efectivo) para o direito dos utentes e a sua qualidade de vida, o qual sempre constituiria pressuposto para a decisão de encerramento administrativo do estabelecimento social em apreço e que não se verifica efectivamente.
T. Pois que, as “deficiências graves” imputadas não consubstanciam mais do que verdadeiras irregularidades relativas à organização, arrumação e limpeza do estabelecimento e que se encontram definitivamente regularizadas, não configurando verdadeiras deficiências subsumíveis à previsão do disposto no artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março.
U. Sendo certo que as Recorrentes garantem a satisfação de todas as necessidades dos utentes, potenciando a adaptação dos serviços prestados, as actividades e os cuidados às necessidades, capacidades, limitações, expectativas e preferências de cada um dos utentes, promovendo a valorização da satisfação dos interesses individuais dos seus utentes, quanto a crenças, cultura e expectativas quanto aos serviços oferecidos pelas mesmas.
V. Cumpre ainda referir, no que concerne em concreto ao licenciamento devido, que as Recorrentes estão a promover, continua e interruptamente, todas as diligências e actos necessários à efectivação do mesmo, observando todas as indicações e/ou informações fornecidas pelas entidades administrativas envolvidas, nomeadamente com a Câmara Municipal de Lisboa, sendo que o mesmo ainda não foi obtido por causa não imputável às Recorrentes.
W. Com efeito, não podem as Recorrentes se conformar as conclusões constantes do acto administrativo suspendendo, nomeadamente, por inexistir qualquer nexo de causalidade entre a prestação de serviços pelas mesmas e bem assim as condições em que os utentes se encontram, e um qualquer perigo para os direitos dos utentes e a sua qualidade de vida.
X. E bem assim por não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários à efectivação da decisão de encerramento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março, consubstanciando tal circunstância um verdadeiro vício do acto administrativo que determina a sua necessária revogação.
Y. Tendo o douto Tribunal a quo, ainda que sumariamente, concluído pela legalidade do acto administrativo e assim pela ausência de fumus boni iuris, verifica-se, pois, um verdadeiro erro de apreciação/julgamento da Sentença recorrida, a este propósito, em face da ausência de verificação de “deficiências graves” subsumíveis à previsão do artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março.
Z. No mais, cumpre ainda referir que não pode a ausência de licenciamento, por si só – i.e. desacompanhada das supra referidas “deficiências graves” –, ditar o encerramento do estabelecimento em apreço, não encontrando tal possibilidade qualquer enquadramento legal ao abrigo do artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março,
AA. Pois que, como é consabido, a ausência de licenciamento obedece ao procedimento e tramitação estatuída nos artigos 39.° - A, Artigo 39.°-B, al. a), 39.°-E, al. a) e 39.°-H, do referido diploma, procedimento e enquadramento legal que, manifestamente não foi o prosseguido pela Recorrida e de que não é o objecto nos autos, não se encontrando em apreciação pelo douto Tribunal a quo.
BB. Com efeito, a ausência de licenciamento, por si só, não consubstancia uma verdadeira causa de encerramento do estabelecimento nos termos do enunciado normativo supra, não sendo possível extrair de tal ausência qualquer nexo de causalidade com a alegada ausência das necessárias condições de funcionamento do estabelecimento social.
CC. No mais, sempre se diga que não estamos perante um caso de impossibilidade e/ou inviabilidade do licenciamento em apreço, resultando, ao invés, que o estabelecimento em apreço detém efectivas condições (físicas e legais) para licenciamento pretendido e que se encontra a ser efectivamente instruído pelas Recorrentes.
DD. Não sendo possível, no mais, concluir que a ausência de licenciamento atesta e/ou confirma a ausência de condições de utilização e funcionamento do estabelecimento em apreço, e bem assim a existência de um perigo iminente ou mesmo efectivo para os utentes da 1.ª Recorrente como perfilha o douto Tribunal a quo.
EE. Em face do exposto resulta, pois, que o acto administrativo suspendendo assenta num erro quanto aos pressupostos do seu decretamento, pois que os mesmos não se verificam, constituindo este erro um verdadeiro vício que determina a revogação do acto administrativo suspendendo.
FF. Termos em que, enferma de erro quanto aos pressupostos a Decisão de encerramento, nos presentes autos, proferida pela Recorrida, pelo que mal andou o douto Tribunal a quo ao considerar que não se verifica tal erro para assim decidir, a final, pela não verificação do pressuposto fumus boni iuris.
GG. Acresce ainda que, a Sentença recorrida enferma ainda de erro de apreciação e julgamento quanto ao segmento decisório relativo à ausência de violação do princípio da proporcionalidade e dos princípios de justiça, razoabilidade, boa-fé e prossecução do interesse público.
HH. A este propósito, é inequívoco que impunha-se no presente caso, e atentos os interesses envolvidos – mormente a estabilidade, saúde e bem-estar emocional, psicológico e físico dos utentes que se encontram alojados no estabelecimento social em apreço e assim a sua dignidade da pessoa humana, bem como os interesses dos trabalhadores dependentes da 1.ª Recorrente, nomeadamente ao direito de trabalho destes –, que a Recorrida tivesse concedido (e imposto) um prazo razoável para a sanação das irregularidades, antes do decretamento do encerramento imediato, o que efectivamente não fez.
II. Não obstante ter entendido que não se verificava a existência de qualquer perigo iminente, mas ao invés um perigo meramente potencial, concluindo pela inexistência de urgência quanto ao realojamento dos utentes do estabelecimento em causa.
JJ. Assim, é inequívoco que inexistindo qualquer urgência no encerramento do estabelecimento social em apreço e não existindo qualquer norma legal que impusesse o encerramento imediato deveria a Recorrida optar por uma decisão menos gravosa para as Recorrentes, os seus trabalhadores dependentes e os utentes em causa do que o encerramento imediato, o que efectivamente não fez.
KK. Tudo em violação dos princípios supra referidos, pois que, na verdade, como é consabido, por acção do princípio da proporcionalidade, tal decisão sempre deveria obedecer a uma ponderação entre as situações iminentes e de perigo real, encontrando-se a Administração Pública, aqui a Recorrida, obrigada a escolher dentro dos diversos meios ou medidas idóneas e congruentes aquelas que sejam menos gravosas, ou seja, que causem menos danos - ou seja, prevê-se intervenção mínima em perfeita consonância com o princípio de favor libertatis (cfr. neste sentido, o Acórdão proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, em 29.12.2019, no âmbito do Processo n.º 42/18.0YFLSB e o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 11.10.2007, no âmbito do Processo n.º 00029/04).
LL. Nestes termos, a Recorrida ao ter decidido pelo imediato encerramento administrativo, sem procurar averiguar a concreta materialidade subjacente e sem ter concedido prazo adequado para a correcção e demonstração da mesma, violou o princípio da proporcionalidade (em sentido estrito e na sua vertente da necessidade), e os princípios da justiça, razoabilidade e boa-fé, e, essencialmente, do princípio da prossecução do interesse público.
MM. Motivo pelo qual se revela o acto administrativo suspendendo como manifestamente ilegal e inadmissível por violação directa e inequívoca daqueles princípios fundamentais, sendo por isso o mesmo nulo nos termos do disposto na alínea c), do n.º 2, do artigo 161.º, do CPA, ou, caso assim não se entenda, no limite, sempre seria o acto administrativo em apreço, anulável nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 163.º, do CPA.
NN. Termos em que, torna-se evidente a procedência da Acção principal para efeitos de obtenção de uma decisão judicial que ordene a anulação do acto administrativo suspendendo em função dos vícios de que o mesmo padece, enfermando assim a Sentença recorrida de erro de julgamento e apreciação quanto ao preenchimento do pressuposto relativo ao fumus boni iuris, do qual depende o decretamento da presente providência cautelar.
OO. Nestes termos, deve ser proferido Acórdão por este Venerando Tribunal Superior a revogar a Sentença recorrida e a decidir sumariamente pela existência de fumus bonis iuris, com a determinação de descida dos autos para produção da prova requerida e conhecimento subsequente do pressuposto do periculum in mora e a ponderação dos interesses em apreço, em conformidade com o disposto no artigo 120.º, do CPTA, conforme desde já se requer para todos os efeitos e demais consequências legais.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO,
a. Deve o presente Recurso Jurisdicional ser julgado procedente, por provado,
E, em consequência,
b. Deve ser julgada procedente a nulidade da Sentença recorrida por omissão total da apreciação e enunciação da matéria de facto e ininteligibilidade da sentença recorrida com todas as demais consequências legais, designadamente a revogação da Sentença proferida;
c. Devem ser julgadas procedentes as nulidades relativas à preterição da produção de prova requerida e omissão de prolação de Despacho fundamentado, devendo, em consequência a Sentença recorrida ser anulada com todas as demais consequências legais, designadamente o prosseguimento dos autos para produção de prova requerida;
CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA,
d. Deve o presente Recurso Jurisdicional ser julgado procedente, por provado por relação ao(s) erro(s) de julgamento assacados à Sentença recorrida, devendo esta ser revogada, decidindo-se a causa concreta no sentido da procedência do fumus boni iuris com a determinação de descida dos autos para produção da prova requerida e conhecimento subsequente do pressuposto do periculum in mora e a ponderação dos interesses em apreço, em conformidade com o disposto no artigo 120.º, do CPTA, nos termos e com os fundamentos supra expostos.
Assim se fazendo acostumada JUSTIÇA!”
O Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
“A. A sentença proferida em 24 de março de 2025 julgou improcedente a providência cautelar requerida, com base na existência de deficiências graves e ausência de licenciamento do estabelecimento.
B. O tribunal a quo considerou que não havia sequer comunicação prévia apresentada para efeitos de licenciamento, configurando uma situação de irregularidade grave e persistente.
C. A decisão baseou-se nos pressupostos legais do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, concluindo pela inexistência de fumus boni iuris.
D. A sentença entendeu que não houve violação dos princípios da proporcionalidade, justiça ou boa-fé, dada a gravidade das infrações.
E. As Recorrentes alegaram nulidades na sentença (omissão de pronúncia, ininteligibilidade e preterição de prova), mas tais argumentos devem ser rejeitados por não se verificarem os vícios apontados.
F. A dispensa de prova testemunhal é legítima, dado que os factos relevantes estão documentalmente provados.
G. A sentença foi rigorosa e fundamentada, refletindo a realidade apurada pelos serviços de fiscalização.
H. Ficou demonstrado que o estabelecimento não possuía licenças e apresentava deficiências graves em segurança, higiene e salubridade.
I. A atuação administrativa deve ser considerada legal e necessária para proteger os utentes, não sendo admissível a continuidade da atividade em tais condições.
J. A ausência de fumus boni iuris é suficiente para indeferir a providência cautelar, independentemente da verificação dos demais requisitos.
K. As Recorrentes não demonstraram estar em condições de prestar garantia idónea, o que inviabiliza a atribuição de efeito suspensivo.
L. Pelo que, a atribuição de efeito suspensivo ao recurso deverá ser recusada, por não se verificarem os pressupostos legais exigidos pelo artigo 143.º do CPTA.
M. A manutenção da atividade do estabelecimento representaria risco grave para os utentes, sendo o interesse público prioritário face ao interesse económico das Recorrentes.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENTE MANTENDO-SE A DOUTA SENTENÇA DO TRIBUNAL A QUO, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”
Após se pronunciar no sentido de indeferimento do requerido efeito suspensivo do recurso interposto, o mesmo foi admitido com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.
Com dispensa dos vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
2. Delimitação do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação das apelantes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA), cumpre a este Tribunal apreciar se,
a. Foram cometidas nulidades processuais decorrentes da preterição de despacho de dispensa de prova e, bem assim, da não produção de prova requerida (e do défice instrutório), ou se o Tribunal incorreu em erro ao não produzir a prova requerida;
b. A sentença padece de,
b.1. Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e ininteligibilidade;
b.2. Erro de julgamento de direito quanto à não verificação do fumus boni iuris.
Como questão prévia, haverá que apreciar da atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
3. Fundamentação de facto
3.1. Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
“A. A 1.a A. é uma sociedade comercial que tem como o objeto social a prestação de atividades de apoio social para pessoas idosas, através de estrutura residencial para pessoas idosas, cfr documento 2 junto com o Requerimento Inicial - RI, que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
B. A 2.a A., é sócia-gerente da 1a A., cfr documento 2 junto com o RI, que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
C. A 1a A. explora uma Estrutura Residencial … (E…), sita na Rua E…, no Paço do Lumiar, em Lisboa, cfr fls 14 do PA que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
D. Em sequência de uma denúncia enviada pelo DCIAP relativa ao estabelecimento social supra mencionado, foi aberto nos serviços da Entidade Requerida o processo de averiguações (PROAVE) n° 202300009216 (E…) e 202300019578 (Centro de dia), cfr fls 1 do PA que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
E. Em 31.10.2023 foi realizada ação de fiscalização ao referido E…, pelos técnicos da entidade Requerida, cfr fls 148 a 158 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
F. No dia 18.12.2023 foi elaborada, pelas técnicas da entidade Requerida, F… e A…, a informação n° 510/NFES/2023, cfr fls 160 a 188 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
G. Da referida informação técnica ressaltam as seguintes conclusões e propostas,
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
cfr fls 160 a 188 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
H. Sobre tal informação foram exarados os seguintes despachos superiores
«Imagem em texto no original»
cfr fls 160-A do PA que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
I. Mediante ofício da Entidade Requerida dirigido à 1a A., com a referência ISS serviços Centrais SAI.SCC-1402/2024 de 16.2.2024, sobre o assunto "Notificação de intenção de encerramento", foi transmitida tal intenção, cfr fls 189 do PA que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
J. Em sequência a ia A. apresentou resposta, cfr fls 255 a 357 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
K. Em 1.4.2024 pelas técnicas da entidade Requerida, F… e A…, o Relatório Final/informação n° 103/NFES/2023, cfr fls 361 a 370 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
L. De tal informação ressaltam as seguintes conclusões e propostas,
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
cfr fls 361 a 370 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
M. Sobre tal informação foram exarados os seguintes despachos superiores,
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
cfr fls 377 a 378 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
N. ATO SUSPENDENDO - E, pelo Conselho Diretivo da Entidade Requerida,
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
cfr fls 361 a 370 e 371 do PA que se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais;
O. Mediante ofício da Entidade Requerida dirigido à 1a A., com a referência ISS Serviços Centrais SAI.SCC-3973/2024- 31.5.2024, sobre o assunto "Notificação de ordem definitiva de encerramento", foi transmitido o seguinte,
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
cfr fls 360 do PA que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;
P. O mesmo ato foi transmitido ao I.M. das Requerentes mediante ofício da Entidade Requerida dirigido à 1a A., com a referência ISS serviços Centrais SAI.SCC-3980/2024- 31.5.2024, sobre o assunto "Notificação de ordem definitiva de encerramento", cfr fls 374 do PA que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais;”
3.2. Consignou-se na sentença a respeito dos factos não provados,
“Inexistem outros factos com interesse para a decisão da alegada exceção, em face da prova produzida.”
3.3. E em sede de motivação de facto consta da sentença,
“Analisando criticamente a prova produzida cfr artigo 607.° n° 4 CPC, a convicção do Tribunal assentou na prova documental junta aos autos pelas partes, conforme referido a propósito de cada alínea do probatório.
Prova documental que não foi impugnada pelas partes e sobre os quais não existem indícios que ponham em causa a sua genuinidade.”
4. Fundamentação de direito
4.1. Da atribuição de efeito suspensivo ao recurso
Em sede de alegações pugnaram as Recorrentes pela atribuição de efeito suspensivo ao recurso. Aduzem que da execução do ato administrativo suspendendo resultam danos para as Recorrentes, porquanto ficam impossibilitadas de obter a sua única fonte de rendimento, com as consequências ao nível da incapacidade de subsistência, satisfação de compromissos e solvabilidade, para os seus trabalhadores que ficarão sem emprego e para os seus utentes que terão que ser realojados, de forma repentina e sem preparação emocional e psicológica.
Como emerge do artigo 143.º, n.º 2 al. b) do CPTA os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares têm efeito meramente devolutivo.
Prevendo-se nos n.ºs 3 a 5 deste artigo 143.º que,
“ 3 — Quando a suspensão dos efeitos da sentença seja passível de originar situações de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação para a parte vencedora ou para os interesses, públicos ou privados, por ela prosseguidos, pode ser requerido ao tribunal para o qual se recorre que ao recurso seja atribuído efeito meramente devolutivo.
4 — Quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos, o tribunal pode determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos.
5 — A atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso é recusada quando os danos que dela resultariam se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua não atribuição, sem que a lesão possa ser evitada ou atenuada pela adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos.”
Como resulta destes dispositivos o pressuposto da aplicação das medidas previstas no n.º 4 é que estejamos perante situação em que é o Tribunal que, ao abrigo do disposto no n.º 3, atribui, a requerimento do interessado, efeito meramente devolutivo ao recurso, por reconhecer que a suspensão dos efeitos da sentença é passível de originar situações de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação para a parte vencedora ou para os interesses por ela prosseguidos.
Assim, o n.º 4 do artigo 143.º do CPTA não é aplicável às situações em que o efeito meramente devolutivo do recurso é fixado nos termos da lei.
Nem tão pouco se encontra prevista a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, antes fixando a lei que os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares têm efeito meramente devolutivo [artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA].
Pelo que se indefere o requerido, mantendo, tal como entendeu o Tribunal a quo, o efeito meramente devolutivo.
4.2. Das nulidades processuais (e do erro de julgamento quanto à recusa de produção de prova)
Aduzem as Recorrentes que, tendo requerido a produção de prova testemunhal e por declarações de parte, visando a demonstração do preenchimento dos pressupostos da tutela cautelar, concretamente do fumus boni iuris quanto à ausência de “deficiência grave” que determinou o ato suspendendo nos termos do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.3, as diligências adotadas e a adotar, o procedimento de licenciamento do estabelecimento e a regularização das insuficiências deste, a desproporcionalidade da decisão, e do periculum in mora, o Tribunal a quo não só não proferiu despacho sobre a sua desnecessidade nos termos do artigo 118.º, n.º 5 do CPTA, como não admitiu a produção de prova por si requerida mostrando-se esta indispensável à cabal defesa dos direitos e interesses das Recorrentes, não podendo a sumariedade e a celeridade do meio processual determinar a recusa da prova.
Consideram que a ausência de despacho fundamentado nos termos do artigo 118.º, n.º 5 do CPTA configura nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do CPC, e que não tendo sido produzida a prova requerida a sentença é nula por défice instrutório, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 3.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi dos artigos 1.º e 35.º do CPTA, consubstanciando a sentença em apreço uma verdadeira decisão surpresa.
Apreciando.
“As nulidades processuais configuram um qualquer desvio ao formalismo processual prescrito para a forma processual correspondente ao processo decorrente de se ter praticado um ato que a lei adjetiva não admita (proíba), se omitir um ato que esta prescreva, ou por se praticar um ato imposto ou permitido pela lei adjetiva, mas com preterição das formalidades por aquela requeridas, incorrendo-se em «error in procedendo», erro esse que se reconduz ao cometimento de uma nulidade processual quando a lei o determine expressamente (nulidade principal) ou quando não o faça, o desvio cometido à lei adjetiva possa influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa, ressalvadas as situações em que a própria lei adjetiva estatua uma consequência jurídica para esse desvio.” (Ac. do STA de 27.2.2025, proferido no processo 086/24.2BALSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/51ed9274016a65c680258c45005b5f2e?OpenDocument&ExpandSection=1).
Assim, subdividindo-se as nulidades processuais em nulidades principais e nulidades secundárias, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos, as primeiras estão previstas, taxativamente, nos artigos 186.º a 194.º e 196.º a 198.º do CPC, estando, por seu turno, as nulidades secundárias/irregularidades incluídas na previsão geral do artigo 195.º CPC, cujo regime de arguição está sujeita ao contemplado no artigo 199.º CPC.
Refira-se que o princípio do contraditório, nos termos prescritos pelo artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º do CPTA, segundo o qual “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”, “impõe que as partes tenham uma intervenção ativa na composição do litígio, com a efetiva possibilidade de, não só responder a tudo o que a contraparte apresenta no processo (numa dialética processual de ação-reação, em que cada uma das partes apresenta a sua solução para o litígio), mas também de influenciar a decisão final, numa manifestação do caráter democrático do processo que, no limite, lhe imprime maior celeridade (a parte vencida, se convencida, não recorre), maior qualidade (porque todas as questões são decididas ponderando uma maior variedade de argumentos) e, consequentemente, legitima a função jurisdicional enquanto poder do Estado.
Este direito geral ao contraditório é, por vezes, especificado na lei, como acontece no artigo 415.º, n.º 1, do CPC – “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas” -, sendo que na sua ratio está a intenção do legislador, também constitucional, de as partes poderem discutir a solução apresentada pelo Autor, a solução trazida pelo Réu, mas também qualquer solução de terceira via, para utilizar a feliz expressão utilizada na doutrina italiana, equacionada pelo Juiz (por se tratar, por exemplo, de questão de conhecimento oficioso, de facto que não carecia de alegação ou de meio de prova trazido ao processo ao abrigo do poder de inquisitório do Juiz, que as partes não tenham debatido na primeira e na segunda via proposta para a composição do litígio).
Deste modo, ao impor ao abrigo do princípio do contraditório, no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, que as partes tenham a possibilidade de se pronunciarem sobre todas as questões, nomeadamente as de facto, pretendeu o legislador evitar que aquelas, atuando com uma diligência normal, fossem confrontadas com uma decisão prejudicial que não tinham a obrigação de prever e que não tiveram possibilidade de influenciar: a chamada decisão-surpresa.
São, assim, dois os interesses tutelados no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil: por um lado, o legislador pretendeu que o Juiz, no âmbito do seu dever de gestão processual, praticasse todos os atos necessários a concretizar a possibilidade de as partes influenciarem a composição do litígio; por outro, o legislador quis evitar a prolação de decisões-surpresa.” (Ac. deste TCA Sul de 7.11.2024, proferido no processo 754719.0BELLE, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/ba492c8d90f3c71480258bd6004307f7?OpenDocument).
Não se desconhecendo o debate doutrinário e jurisprudencial referente ao não cumprimento do princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa (vd. a este respeito o Ac. deste TCA Sul de 7.11.2024, proferido no processo 754719.0BELLE, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/ba492c8d90f3c71480258bd6004307f7?OpenDocument), consideramos que “não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa (…). [A] ocorrência daquele vício como que se reflecte na sentença proferida, ou seja, tem efeitos reflexos sobre esta, mas não constitui, por si só, causa da sua nulidade, nomeadamente por excesso de pronúncia, pois a mácula da omissão da prática do acto pré-existe à sua prolação” ( Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.5.2024, proferido no processo 16858/22.0T8SNT-A.L1-2, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b10b26afba5d333380258b1f003bc312?OpenDocument).
Assim, “quando o Juiz profere uma sentença com recurso a uma terceira via em vez de tramitar o processo em obediência ao rito processual que se encontra previsto na lei, com a observância do contraditório, vicia o seu conteúdo de forma imediata, e, de forma mediata, ao omitir uma formalidade de cumprimento obrigatório, isto é, ao desviar, por omissão, o rito processual imposto por lei, gera uma irregularidade processual que, por influir no exame ou na decisão da causa, deve ser classificada como nulidade processual.
Ou seja, a sentença que, sem contraditório, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz:
- Fica imediatamente viciada quanto ao seu conteúdo; e
- Mediatamente, afeta o rito processual, na medida em que ofende a lei adjetiva, pois o dever omitido que constitui a nulidade processual secundária encontra-se funcionalizado à prolação da sentença – cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de abril de 1997 – processo n.º 21.070.
Em suma, no momento em que é proferida sentença que, sem contraditório, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz, ela emerge viciada no seu conteúdo e gera, simultaneamente, uma nulidade processual.” (Ac. deste TCA Sul de 7.11.2024, proferido no processo 754719.0BELLE, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/ba492c8d90f3c71480258bd6004307f7?OpenDocument).
Feito este enquadramento, é, desde logo, de evidenciar que a verificar-se a preterição do despacho a que se reporta o artigo 118.º, n.º 5 do CPA, pelo qual o juiz recusa a utilização de meios de prova, esta subsumir-se-ia normativamente no artigo 195.º do CPC, isto é, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa.
Sucede que, no caso dos autos, não ocorreu a omissão de prática de um ato prescrito por lei.
É que, como é bom de ver, precedendo a sentença, o Tribunal a quo proferiu efetivamente o despacho que as Recorrentes reputam omitido. Isto é, o Tribunal a quo proferiu despacho pelo qual, de forma fundamentada, indeferiu a produção de prova requerida por considerar que,
“Compulsados os autos, analisado o alegado pelas partes e os documentos juntos autos, considero que estes elementos de prova são suficientes à prova indiciária de toda a matéria de facto relevante para a decisão da presente providência cautelar.
Termos em que se mostra, por isso, inútil, porque desnecessária, a prova testemunhal requerida.”
Daí que, naturalmente, não foi omitido o ato prescrito na lei, não ocorrendo a tal respeito qualquer nulidade, sequer irregularidade, processual.
Como também não foi cometida nulidade processual decorrente da não produção da prova testemunhal e por declarações de parte.
Com efeito, é que, no âmbito das providências cautelares, em conformidade com os n.ºs 1, 3 e 5 do art.º 118.º do CPTA,
“1 - Juntas as oposições ou decorrido o respetivo prazo, o processo é concluso ao juiz, podendo haver lugar a produção de prova, quando este a considere necessária.
3 - O juiz pode ordenar as diligências de prova que considere necessárias, não sendo admissível a prova pericial.
5 - Mediante despacho fundamentado, o juiz pode recusar a utilização de meios de prova quando considere assentes ou irrelevantes os factos sobre os quais eles recaem ou quando entenda que os mesmos são manifestamente dilatórios.” (sublinhados nossos).
Ou seja, conforme dimana deste normativo, a produção de prova situa-se na esfera decisória do tribunal que, desde logo, pondera a sua necessidade e decide em conformidade. Isto é, “não é por demais relembrar que o próprio Juiz, se assim o entender, tem a faculdade (e não a obrigação) de ordenar produção de prova, conforme dimana dos n.ºs 1 e 3 do artigo 118.º do CPTA” (Ac. do TCA Sul, de 31.10.2024, proferido no processo sob o n.º 683/23.3BEALM, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Acrescente-se que como se sumariou no Acórdão do TCA Norte, de 30.09.2022, proferido no processo sob o n.º 00169/22.3BECBR, consultável em www.dgsi.pt, “nos procedimentos cautelares a produção de prova para além da já produzida nos articulados é excepcional, e depende do livre arbítrio do juiz na consideração da sua necessidade, como decorre claramente da parte final do n.º 1 do citado artigo 118º. E, consequentemente, a decisão final nestes procedimentos tanto pode ter lugar logo após a última oposição, a regra, como após produção de prova, a excepção, face ao disposto no n.º 1 do citado artigo 119º. As partes já contam, ou devem contar, face a estes preceitos, que a seguir aos articulados e, salvo circunstâncias excepcionais, se segue a decisão final. Não constitui, portanto, qualquer surpresa a dispensa de produção de prova e decisão de mérito logo após os articulados em procedimento cautelar, porque essa é a regra numa das alternativas processuais previstas na lei.”
Em face do exposto, a realização de diligências probatórias não pode ser entendido como um ato que tem de ser realizado obrigatoriamente, por forma a que a sua omissão configure uma nulidade processual.
Donde, consequentemente, ainda que não tenha havido lugar à produção da prova requerida pelas Recorrentes, a sua omissão, não configura nulidade processual que se repercuta na sentença determinando a nulidade, designadamente por preterição do contraditório, que lhe assacam as Recorrentes.
Questão diversa é a de saber se, ao recusar a produção prova, o Tribunal errou por, como (também) alegam as Recorrentes, a mesma se mostrar indispensável à decisão. Situamo-nos aí não no domínio das nulidades (processuais) como erroneamente qualificam as Recorrentes, mas sim do erro de julgamento (error in judicando) de direito de que poderá enfermar o despacho proferido. Pelo que é nessa dimensão que se impõe apurar da razão das Recorrentes na alegação que fazem quanto à necessidade da produção da prova por si arrolada para a decisão da causa.
Embora seja inegável que o direito à prova é parte essencial do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), na vertente do direito a um processo equitativo, constituindo-se como peça fundamental para a realização efetiva do direito de ação judicial, o mesmo não corresponde a um direito absoluto na sua essência, isto é, não é um direito ilimitado. Podendo, pois, comportar restrições, designadamente colocadas em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo.
Em conformidade, como já aqui demos nota, no âmbito das providências cautelares, à luz dos n.ºs 1, 3 e 5 do art.º 118.º do CPTA, atenta a celeridade e eficiência que devem pautar o processo cautelar, a produção de prova – e, portanto, o direito a esta - só tem lugar quando o juiz a considere necessária, devendo ler-se o n.º 1 do art.º 118.º do CPTA em conjugação com os seus n.ºs 3 e 5.
Cumprindo ao julgador, no âmbito das providências cautelares, ponderar se a produção de prova é ou não necessária para o apuramento da matéria de facto pertinente, há que ter em conta que, por um lado, a prova é sumária [art.º 114.º, n.º 2 al. g) do CPTA], feita com base perfunctória e indiciária, por outro, que a prova incide sobre os factos relevantes da causa que se devam considerar controvertidos ou necessitados de prova, considerando as soluções plausíveis da questão de direito, aferindo-se a sua relevância pelo objeto do litígio, e, ainda, que incidindo a prova sobre factos concretos que permitam dar como verificados os requisitos de que depende o decretamento da providência, ela excluirá conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos.
Acrescente-se que o juiz está sempre limitado pela proibição de prática de atos inúteis prevista no art.º 130.º do CPC. Daí que, na medida em que as condições de procedência das providências cautelares definidas no art.º 120.º, n.º 1 e n.º 2 do CPTA, são de verificação cumulativa, em termos tais que basta a não verificação de qualquer delas para que a providência seja julgada improcedente, resulta que na hipótese de se verificar que, à luz da alegação das partes, esta não é apta à demonstração do preenchimento de um dos requisitos, mostra-se desnecessária, consubstanciando um ato inútil e por isso proibido por lei, a realização de diligências de prova que se destinem (apenas) à demonstração dos restantes requisitos.
Isto posto, cumpre evidenciar que as Recorrentes se limitam a alegar que a prova por si requerida era imprescindível e necessária à decisão da causa e que esta se destinava a demonstrar “cabalmente a insuficiência dos pressupostos de facto (e por consequência de direito) inerentes à aplicação do disposto no artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março”, e «em concreto, para efeitos de demonstração da ausência de qualquer “deficiência grave”» (artigos 69.º a 71.º das alegações), “todas as diligências adoptadas, a adoptar, e ainda em processamento relativamente ao licenciamento do estabelecimento social em causa e regularização das insuficiências do mesmo” (artigo 72.º das alegações), “a desproporcionalidade da decisão de encerramento em apreço”, “porque o licenciamento está em curso, encontrando-se as Recorrentes a promover todos os actos, diligências e procedimentos para este efeito” (artigos 73.º e 74.º das alegações) e e, ainda, a “demonstração do pressuposto relativo ao periculum in mora” (artigo 75.º das alegações de recurso).
Contudo, não indicam quais são, afinal, os factos, por si alegados no requerimento inicial, sobre os quais se impunha a produção de prova por si requerida. Isto é, limitam-se a enunciar as matérias sobre as quais pretenderiam produzir a prova mas, sequer por referência aos (346) artigos do articulado apresentado, não evidenciam qual a factualidade que alegaram e, dentro desta, aquela que demandaria necessariamente a produção da prova testemunhal e por declarações de parte.
Essa omissão de concretização da factualidade que reputam carecida de prova, impossibilita que este Tribunal afira se estamos, ou não, perante factos, se estes são controvertidos, se podem ser provados testemunhalmente ou por declarações de parte e se são necessários à decisão. Impedindo, portanto, que se possa afirmar, como pretendem as Recorrentes, que os mesmos se mostravam necessários à decisão da causa.
Sem prejuízo, adianta-se que no juízo realizado quanto à desnecessidade de produção da prova requerida o Tribunal a quo não incorreu em erro.
A necessidade da prova, para os efeitos do n.º 1 do artigo 118.º do CPTA, não deixa de corresponder ao preenchimento de um conceito indeterminado cujo juízo decisório se situa na esfera do Tribunal, mas que encontra o seu conteúdo nos factos, relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, que são fundamentais e imprescindíveis para a decisão. Aferindo-se, pois, essa necessidade e pertinência da produção de prova em face do objeto do litígio, considerando a causa de pedir, em consonância com o pedido formulado, e as soluções plausíveis de direito e, portanto, não podendo deixar de se atentar ao conteúdo do ato administrativo suspendendo e ao regime normativo aplicável.
Por outro lado, como se deu nota no Ac. deste TCA Sul de 21.4.2021, proferido no processo 921/20.4BELRA (disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/cb52a46434417f3f802586be004b3f4e?OpenDocument ) “importa dizer que o juízo que é exigido ao juiz cautelar é um juízo provisório acerca da probabilidade de sucesso da Requerente, ora Recorrente, perante a invocação de determinado vício em sede de processo principal. Pelo que, pese embora em sede de juízo perfunctório o tribunal a quo tenha concluído pela sua não probabilidade de sucesso, a tal não obsta que em sede de ação principal a Recorrente, e ali A., se proponha a requerer todos os meios de prova que se revelem adequados para infirmar tal conclusão e a provar o que afirma.”
Atente-se que em causa está a pretensão cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo que determinou o encerramento administrativo do estabelecimento de apoio social das Recorrentes, assente, no essencial, na circunstância de se terem detetado irregularidades, traduzidas na falta de autorização de funcionamento e nas deficientes condições ao nível da segurança, recursos humanos, inadequação de instalações e no modo de funcionamento e organização, que traduziriam um risco potencial para os utentes [factos E. a G. e K. a N.].
A respeito do requisito do fumus boni iuris a alegação das Recorrentes não se situa, pelo menos não no essencial, na negação das irregularidades que foram detetadas, mas sim na circunstância de estarem a proceder, ou terem, entretanto, procedido à sua regularização. Seja mediante a submissão do pedido – que se encontraria em apreciação - de licenciamento, seja pela adaptação do espaço a 20 utentes e correção das irregularidades, prevendo um prazo de 60 dias e para o que promoveram a elaboração de projeto de alterações, a aquisição de serviços e equipamentos, quadro de pessoal, a elaboração de plano de atividades, a implementação de regime de ementa rotativa, para o que indicam prova documental (artigos 48.º a 108.º do RI). Mais concluem que as irregularidades detetadas não acarretam qualquer perigo para os direitos dos utentes (artigos 159.º a 180.º do RI) e que a ausência de licenciamento ou autorização de utilização não é suscetível, por si só, de determinar o encerramento administrativo do estabelecimento social (artigo 198.º a 203.º do RI). Retirando, também, da alegada regularização das deficiências e do prazo necessário para o efeito, que o encerramento determina a violação do princípio da proporcionalidade (artigos 224.º a 232.º do RI).
E daqui resulta que a prova adequada a possibilitar alcançar as conclusões pretendidas pelas Recorrentes, pondo em causa os juízos técnicos subjacentes ao ato suspendendo e à asserção de que as irregularidades não se verificam e/ou que não assumem a gravidade que lhes é atribuída ou contendem com o desenvolvimento da atividade, que supriu ou está em vias de suprir ou sanar as deficiências identificadas (nos termos que pelas Recorrentes são invocados), é predominantemente documental, devendo ser conjugada com prova pericial, inadmissível em sede cautelar.
A pretendida prova testemunhal e por declarações de parte, no contexto do que vem alegado pelas Recorrentes, assumir-se-ia inconclusiva e desnecessária à demonstração do erro nos pressupostos e dos demais vícios imputados ao ato suspendendo que convocam argumentos de direito e não de facto para a sua decisão.
Ademais nada obstando ao indeferimento da prova testemunhal e por declarações de parte, nos termos do art.º 118.º, n.ºs 1 e 5, do CPTA, quando perfunctoriamente se verifica que a prova testemunhal não poderia ter a virtualidade de alterar o sentido da decisão a proferir, e que só teria efeitos meramente dilatórios.
Com efeito, é que, na consideração das soluções plausíveis de direito, o Tribunal não poderia deixar de atentar na jurisprudência dos tribunais superiores e que reiteradamente tem afirmado a relevância que para este tipo de estabelecimento tem a falta de licença ou de autorização de funcionamento, considerando que “só o licenciamento efetivo permite o funcionamento destes estabelecimentos” (Ac. deste TCA Sul de 21.4.2021, proferido no processo 921/20.4BELRA, no mesmo sentido, Ac. do TCA Sul de 24.09.2020, proferido no processo sob o n.º 276/20.7BESNT, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/475636851530a1ab802585ee00545a33?OpenDocument, Ac. do TCA Sul de 29.5.2025, proferido no processo n.º 25160/24.1BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/6ff36142f3d1f08a80258c9e002dde68?OpenDocument).
E quanto ao periculum in mora a alegação das Recorrentes incide sobre a sua situação patrimonial e financeira, receitas obtidas e custos por estas suportados, cuja prova é documental, à sua imagem e bom nome e à condição dos utentes.
Sucede que, claudicando a providência por não se mostrar preenchido o requisito fumus boni iuris, o que determina a desnecessidade de prosseguir com a apreciação do requisito periculum in mora, os factos invocados a seu respeito não assumem relevo para a decisão a proferir, sendo, pois, inútil a produção de prova sobre tais aspetos.
Daí que a prova testemunhal e por declarações de parte requerida no processo se afigura inútil e desnecessária à decisão, não se podendo apontar à recusa da sua produção qualquer erro.
4.3. Da nulidade da sentença
As Recorrentes imputam à sentença nulidade, ao abrigo da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por entenderem que da mesma, opostamente ao que resulta do artigo 94.º do CPTA e 607.º do CPC, não só não consta o relatório com a identificação das partes e do objeto do litígio e a enunciação das questões a decidir, como omite integralmente a exposição da matéria de facto, com a indicação dos factos provados e não provados e a apreciação e análise crítica da prova. Daí retiram que, em face da ausência dos indicados segmentos da sentença, esta torna-se obscura e ininteligível, não sendo possível descortinar as razões que subjazem à decisão, apontando-lhe a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
As nulidades da sentença são vícios da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença e encontram-se previstas no artigo 615.º, n.º 1 do CPC, no qual se prescreve que é nula a sentença se, além do mais, não especificar os fundamentos, de facto e de direito, que justificam a decisão [al. b)] e quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível” [al. c)].
O art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, sanciona o incumprimento do disposto no artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPTA, que dispõe em termos similares ao artigo 607.º, n.º 2 e 3 do CPC, e aplicáveis à decisão a proferir no âmbito das providências cautelares.
Refira-se que de tais normativos emerge que na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do objeto do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, expondo os fundamentos de facto e de direito, ou seja, “discriminando os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Como se deu nota no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2.11.2017, proferido no processo 42/14.9TBMDB.G1, consultável em www.dgsi.pt, “não basta que o juiz decida a questão posta; é indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz.
Neste sentido, a fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objetivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto.”
Refira-se que a respeito da nulidade tipificada no art.º 615.º, n.º 1 al. b) do CPC tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que só a falta absoluta de fundamentação que torne de todo incompreensível a decisão é que releva para efeitos da sobredita nulidade, não abrangendo as eventuais deficiências dessa fundamentação.
Por sua vez, a nulidade da sentença, fundada em ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, “implica que, seja na decisão, seja na fundamentação, se chegue a resultado que possa traduzir dois ou mais sentidos distintos e porventura opostos, que permita hesitar sobre a interpretação adoptada, ou não possa ser apreensível o raciocínio do julgador, quanto à interpretação e aplicação de determinado regime jurídico, considerados os factos adquiridos processualmente e visto o decisório in totum.” (Ac. do STJ de 12.01.2021, proferido no proc. 4258/18.0T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, “[p]ara efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. e), 2.ª parte do CPC, ambígua será a decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente e, obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido” (Ac. do STJ de 7.5.2024, proferido no processo 311/18.9T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Entendendo-se que “[é] obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. E é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes. Mas não é qualquer obscuridade ou ambiguidade que é sancionada com a nulidade da sentença pela alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC novo, mas apenas aquela que faça com que a decisão seja ininteligível.” (Ac. do TCA Norte de 12.4.2019, proferido no processo 00510/09.4BEBRG, disponível em www.dgsi.pt).
Feito este enquadramento evidencia-se que a sentença não padece das nulidades que lhe são apontadas.
Com efeito, é que opostamente ao alegado a sentença inicia com o relatório, onde procede à “Identificação das partes e objeto do litígio” (páginas 1 a 3), identifica as questões a decidir e procede ao saneamento dos autos (página 4) e, entre fls. 4 e 14, declara os factos provados (A. a P.) e indica os meios de prova, documentais, nos quais assentou a sua convicção, revelando que a “convicção do Tribunal assentou na prova documental junta aos autos pelas partes, conforme referido a propósito de cada alínea do probatório. Prova documental que não foi impugnada pelas partes e sobre os quais não existem indícios que ponham em causa a sua genuinidade.”. E, de igual modo, por considerar que, em face da prova produzida, inexistiam outros factos com interesse para a decisão, disso também dá conta.
Ou seja, o Tribunal a quo deu integral cumprimento ao disposto no artigo 94.º n.ºs 2 e 3 do CPTA e 607.º, n.ºs 2, 3 e 4, e, efetivamente, discriminou os factos que considerou provados, mais adiantando que não existiam factos não provados relevantes à decisão, procedendo à análise crítica da prova. Seguidamente, subsumiu essa factualidade que considerou provada ao regime jurídico que pugnou aplicável, procedendo à interpretação e aplicação do direito à materialidade da causa.
Não há, portanto, qualquer falta de fundamentação da sentença, designadamente na sua dimensão de facto, nem esta é absoluta, e, consequentemente, também não é ininteligível a sentença recorrida, em termos que determinassem a sua nulidade.
4.4. Do erro de julgamento de direito
Entendem as Recorrentes que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito quanto à decisão de julgar não preenchido o pressuposto da aparência do bom direito (fumus boni iuris).
Para o efeito aduzem que a deliberação de encerramento se circunscreveu às alegadas graves deficiências nos termos do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, nada constando quanto à ausência de licenciamento. Entendem que, à luz de tal normativo, se exige a efetiva verificação de deficiências graves nas condições de instalação, segurança-funcionamento, salubridade, higiene e conforto, que ponham em causa os direitos dos utentes ou a sua qualidade de vida, e que não podem ser presumidas em face da ausência de licenciamento do estabelecimento em apreço, não determinando a ausência de licenciamento por si só a verificação de uma situação de falta de condições de funcionamento do estabelecimento social.
Sustentam não se verificar o pressuposto para o encerramento, por terem demonstrado que as deficiências graves apontadas não existem, quer porque grande parte das irregularidades apontadas se subsumem a questões de organização de materiais e arrumos de espaço e não se encontram relacionadas com a ausência de condições físicas, quer porque regularizaram as questões apontadas - adaptação do espaço para a capacidade até 20 (vinte) utentes, existência de certificação de HACCP - Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controlo e Certificação de sistema de autocontrole alimentar, planos de limpeza, certificação de equipamentos, aquisição de mobiliário e equipamentos, implementação de plano de atividades formal e regime de ementa rotativa – ou se encontram a promover a regularização e sanação das irregularidades apontadas, considerando não lhes ser imputável o atraso na conclusão do licenciamento do espaço, face à necessidade de concertação com todas as entidades envolvidas (arquitetos e empreiteiros e entidades administrativas).
Aduzem que o estabelecimento em apreço oferece aos utentes um espaço totalmente dedicado ao bem-estar e acompanhamento personalizado de cada um, garantindo e assegurando conforto, privacidade e segurança e respondendo a todas as necessidades dos utentes, para as quais detêm uma equipa de profissionais disponíveis para desempenhar as funções necessárias, nunca se tendo demonstrado a existência de maus-tratos ou a existência de um perigo para os utentes. E que, nessa medida, estando o estabelecimento apto a responder a todas as exigências legais e necessárias ao cuidado da população idosa, não se verifica qualquer nexo de causalidade entre as condições em que os utentes se encontram, a prestação de serviços pelas Recorrentes, e um qualquer perigo para o direito dos utentes e a sua qualidade de vida.
Entendem, ainda, que a ausência de licenciamento, por si só - i.e. desacompanhada das "deficiências graves" -, não pode ditar o encerramento do estabelecimento em apreço, por tal não encontrar enquadramento no artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, representando apenas uma infração grave nos termos dos artigos 39.°-A, 39.°-B, al. a), 39.°-E, al. a) e 39.°-H, do referido diploma. E que não se encontra provado que o estabelecimento em apreço não tem condições (físicas ou legais) para licenciamento pretendido, encontrando-se este a ser instruído pelas Recorrentes, o que, não obstante os seus esforços, ainda não lograram obter, não por recusa, mas por se tratar de um procedimento moroso e burocrático, sujeito a regras rigorosas e a consultas da Câmara Municipal. Daí advogando não ser possível concluir que a ausência de licenciamento atesta e/ou confirma a ausência de condições de utilização e funcionamento do estabelecimento em apreço, e bem assim a existência de um perigo iminente ou mesmo efetivo.
Consideram, ainda, que o Tribunal erra na consideração da ausência de violação do princípio da proporcionalidade e dos princípios de justiça, razoabilidade, boa-fé e prossecução do interesse público, porquanto, em face da demonstração da sanação das irregularidades e das diligências adotadas para regularizar as demais, não se verificando a existência de qualquer perigo iminente e inexistindo urgência, foi determinado o encerramento, sem considerar a aplicação de decisão menos gravosa e adequada ao interesse público, concedendo prazo razoável para a sanação das irregularidades detetadas, como impunham os princípios em causa.
Vejamos.
O art.º 120.º do CPTA enuncia os critérios de que a lei faz depender a possibilidade de concessão de providências cautelares, nos seguintes termos,
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
2 - Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”
Quanto ao requisito do fumus boni iuris a lei exige que “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, isto é, sobre os Requerentes impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal. O juiz tem, assim, que verificar em sede cautelar o grau de probabilidade de êxito do requerente na ação principal.
De notar que o juízo sobre a aparência do direito deve ser positivo, mas não deixa de ser apenas perfunctório. Ao julgar a providência o juiz não antecipa o julgamento da ação, não formulando um juízo de certeza da procedência, mas cumpre-lhe adiantar se é plausível e provável o seu êxito. E só em caso afirmativo pode decretar a providência.
Em primeiro lugar, cumpre clarificar que, sabido que a fundamentação do ato pode (também) consistir na concordância com anteriores pareceres, informações ou propostas que integram o ato (artigo 153.º, n.º 1 do CPA), verifica-se que emerge da decisão suspendenda que esta ordena o encerramento do estabelecimento de apoio social que não se encontra licenciado e por apresentar deficiências graves nas condições de instalação, segurança, funcionamento, salubridade, higiene e conforto do estabelecimento, representando um perigo potencial para os direitos dos utentes e da sua qualidade vida, remetendo o ato quer para o conteúdo do relatório da unidade de fiscalização anexo (facto N.), quer para a informação n° 103/NFES/2023 e despachos sobre a mesma aposta (factos K. a M.) que indica no preâmbulo e sobre a qual é proferida a decisão.
Desse relatório (facto G.) e da informação n° 103/NFES/2023, integrados ainda pelos despachos sobre os mesmos apostos (factos K. a M.), resulta de forma expressa ter sido apurado que o estabelecimento não possuía licenças de utilização e funcionamento, a emitir pelos serviços da Câmara Municipal e do Instituto da Segurança Social - dando-se, aliás, conta que “o licenciamento não é uma mera formalidade, sendo que a adjetivação de "preponderância' é inadequada, dado que, e conforme demonstrado, são graves as infrações e irregularidades apuradas constantes deste relatório nomeadamente no seu projeto que deste é parte integrante, e corroboradas pelo Relatório da Autoridade de Saúde. Releva-se o défice de recursos humanos, as instalações inadequadas, a desorganização e falta de manutenção de equipamentos, aliás, as imagens são manifestamente elucidativas, a inexistência de requisitos formais ao nível da documentação, inexistência de pareceres de entidades competentes em razão da matéria: v.g Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil. Tão pouco o imóvel detém licença de utilização da Câmara Municipal de Lisboa para a atividade destas respostas sociais lucrativas” -, e que não reúne condições de adequação necessárias para a prossecução das respostas sociais de E… (E…), apresentando deficiências ao nível das instalações, funcionamento, segurança e conforto.
Ou seja, não existem quaisquer dúvidas, opostamente ao que pretendem as Recorrentes, que o ato suspendendo se alicerçou no facto de o estabelecimento em apreço não estar licenciado, nem estar autorizado o seu funcionamento e, bem assim, nas demais deficiências que registou aquando a vistoria efetuada.
Em segundo lugar, no que não assiste razão às Recorrentes é na consideração de que o encerramento não poderia ser determinado em decorrência da falta de licenciamento ou autorização para a sua utilização e funcionamento.
Com efeito, no Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, que define o regime de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social, adiante designados por estabelecimentos, em que sejam exercidas atividades e serviços do âmbito da segurança social relativos a crianças, jovens, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como os destinados à prevenção e reparação das situações de carência, de disfunção e de marginalização social, estabelecendo ainda o respetivo regime sancionatório (artigo 1.º), a respeito do licenciamento da construção e autorização (Capítulo II), prevê-se que se consideram condições de instalação de um estabelecimento as que respeitam à construção, reconstrução, ampliação ou alteração de um edifício adequado ao desenvolvimento dos serviços de apoio social (artigo 6.º), estabelecendo-se a realização de vistoria a realizar pela câmara municipal, nos termos do disposto nos artigos 64.º e seguintes do RJUE, como pressuposto para a concessão de licença ou autorização de utilização (artigo 9.º). Nesse seguimento, a câmara municipal emite a licença ou autorização de utilização quanto tenha sido efetuada a vistoria e verificado que as instalações se encontram de harmonia com o projeto aprovado (artigo 10.º, n.º 1).
No caso de obras realizadas em edifícios que, nos termos do RJUE, não estejam sujeitas a controlo prévio, a lei demanda a sua comunicação ao ISS, I. P., nos termos do artigo 15.º-B, no prazo de 30 dias após a respetiva conclusão, quando tenham por efeito a instalação ou alteração de resposta social compatível com a licença ou autorização de utilização emitida pela câmara municipal respetiva (artigo 10.º-A, n.º 1).
No capítulo III deste diploma regula-se a “Autorização de funcionamento”, prevendo-se no artigo 11.º, epigrafado “Início da atividade” que,
1 - A abertura e funcionamento de um estabelecimento depende do cumprimento das condições de funcionamento específicas aplicáveis a cada resposta social, estabelecidas na legislação em vigor.
2 - Os estabelecimentos abrangidos pelo presente decreto-lei só podem iniciar a atividade após realização da comunicação prévia, sem prejuízo do disposto nos artigos 37.º e 38.º
3 - Compete ao ISS, I. P., acompanhar o início e o funcionamento dos estabelecimentos de apoio social.
4 - Os equipamentos sociais financiados no âmbito dos PRR e PARES podem entrar em funcionamento com a emissão da autorização de utilização e consideram-se concluídos designadamente para celebração de acordos de cooperação.
No caso das respostas de natureza residencial, designadamente estruturas residenciais para pessoas idosas e lares residências para pessoas com deficiência, a autorização de funcionamento pode ser obtida através de comunicação prévia com prazo [artigo 15.º-A, al. b)], sendo que, vindo a ser proferida decisão favorável é emitida, para cada resposta social, a licença de funcionamento (artigo 18.º), sem prejuízo de a resposta social apenas poder entrar em funcionamento uma vez decorrido o prazo de 30 dias para eventual oposição do ISS, I. P. , destinada a permitir a realização de visita pelo ISS, I. P., incidente sobre matéria de organização e funcionamento da resposta social, prévia ao início de atividade (artigo 18.º-A). A oposição do ISSP, IP à comunicação prévia com prazo obsta à entrada em funcionamento da resposta social e, só no caso de inexistir essa oposição do ISS, I. P., é que a resposta social pode entrar em funcionamento, emitindo-se então a licença de funcionamento (artigo 18.º-A, n.ºs 5 e 6 e 18.º).
Note-se, ainda, que os estabelecimentos de apoio social encontram-se sujeitos a avaliações e vistorias técnicas (artigo 31.º) e a ações de fiscalização (artigo 32.º).
Sendo que, a respeito do “Encerramento administrativo dos estabelecimentos” (Capítulo VI), da competência do conselho diretivo do ISS, IP, mediante deliberação fundamentada (artigo 36.º, n.º 1), estabelece-se no artigo 35.º, sob a epígrafe “Condições e consequências do encerramento administrativo” que,
1 - Pode ser determinado o encerramento imediato do estabelecimento nos casos em que apresente deficiências graves nas condições de instalação, segurança, funcionamento, salubridade, higiene e conforto, que ponham em causa os direitos dos utentes ou a sua qualidade de vida.
2 - A medida de encerramento implica, automaticamente, a caducidade da autorização de funcionamento, bem como a cessação dos benefícios e subsídios previstos na lei.
Feito este enquadramento o que importa atender é que nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1 e 2, 12.º e 15.º-A, al. b) do DL n.º 64/2007, de 14/03, o início (e prossecução) da atividade assistencial em estrutura residencial para pessoas idosas (E…) depende de comunicação prévia e do decurso de um prazo de 30 dias, durante o qual cabe ao ISS, IP a realização de vistoria para verificação do cumprimento das condições para o início da atividade, findo o qual o ISS, IP pode apresentar oposição, o que obsta à entrada em funcionamento da resposta social, ou, no caso de não o fazer, possibilita a entrada em funcionamento da E… e conduz à emissão da licença de funcionamento.
Estamos, pois, perante situação em que, embora a lei preveja que a produção de determinados efeitos jurídico-administrativos não depende da emissão de um ato administrativo, mas da mera comunicação prévia pelo interessado à Administração Pública, se exige que esta satisfaça os pressupostos que a lei estabelece para o exercício da atividade, e, bem assim, a inexistência de pronúncia da Administração em sentido contrário dentro de determinado prazo (artigo 134.º, n.ºs 1 e 2 do CPA).
Ou seja, à míngua da observância desta obrigação de comunicação prévia, acompanhada da satisfação das condições legais previstas para o exercício da atividade, e da verificação do seu cumprimento pela Administração com vista à manifestação de oposição, a atividade não pode ser exercida. Assim o sendo porque se assume como interesse público a proteger, assumida a responsabilidade acrescida do Estado quando “estão em causa serviços prestados aos grupos mais vulneráveis, como sejam crianças, jovens, pessoas com deficiência ou em situação de dependência e idosos”, a “preocupação com a qualidade dos equipamentos sociais no que respeita à segurança e ao bem-estar dos cidadãos” (conforme preâmbulo do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03).
Ora, se a própria atividade não se pode iniciar e o estabelecimento residencial de apoio social a idosos não pode funcionar sem a realização da comunicação prévia, com prazo para a realização da visita sobre a matéria de organização e funcionamento da resposta social no âmbito do qual o ISS, IP pode apresentar oposição, e sem cumprimento das condições específicas de funcionamento (artigo 11.º, n.ºs 1 e 2, 12.º, 18.º A do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03), naturalmente que em tais situações há lugar ao encerramento administrativo nos termos do artigo 35.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03.
Assim é não porque se presume que o estabelecimento “apresente deficiências graves nas condições de instalação, segurança, funcionamento, salubridade, higiene e conforto, que ponham em causa os direitos dos utentes ou a sua qualidade de vida”, no sentido de que provado o contrário se admita o funcionamento do estabelecimento, mas porque, simplesmente, em face da impossibilidade legal de se iniciar a atividade e de o estabelecimento funcionar não se atesta que o estabelecimento cumpra as condições legais de funcionamento e, consequentemente, não é possível concluir que não “apresente deficiências graves nas condições de instalação, segurança, funcionamento, salubridade, higiene e conforto, que ponham em causa os direitos dos utentes ou a sua qualidade de vida”.
É que, com as necessárias adaptações ao procedimento de comunicação prévia, “só o facto do estabelecimento não possuir um conjunto amplo de autorizações e licenças para que pudesse funcionar, determinaria necessariamente o seu encerramento, sob pena de se sedimentar um sentimento de impunidade permissiva, sempre pernicioso.” (Ac. do TCA Norte de 12.4.2019, proferido no processo 00457/17.0BECBR, disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/a295f0b790b416248025840800470dfd?OpenDocument). E daí que “[…] nos termos do artigo 11.º deste diploma, preenchido o conceito de estrutura residencial para pessoas idosas, a mesma apenas podia iniciar a atividade após a concessão da respetiva licença de funcionamento […], sem a qual se impunha a determinação do seu encerramento, nos termos do disposto no artigo 35.º do mesmo diploma legal” (Ac. deste TCA Sul de 11.7.2024, proferido no processo 1568/22.6BELSB),
Com efeito, como têm entendido os tribunais superiores – embora, na sua maioria, ainda à luz da anterior redação do Decreto-Lei n.º 64/2007, que sujeitava o início da atividade à concessão da respetiva licença de funcionamento, mas com aplicação com as necessárias adaptações à sujeição a comunicação prévia com prazo - “a inexistência da competente licença não é, de todo, um mero pressuposto formal, ou de somenos importância. A existência do alvará é, efetivamente, basilar, e só pela sua atribuição se consegue garantir que determinada estrutura residencial está apta a corresponder às exigências legais e necessárias à instalação e cuidado da população idosa. Ele materializa e certifica, com a respetiva emissão, a existência das condições necessárias ao acolhimento e cuidado de um segmento populacional com características e necessidades de apoio social muito específicas”. (acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 24.09.2021, processo 00132/21.1BEPRT e, no mesmo sentido, os acórdãos deste Tribunal Central Administrativo Sul de 08.05.2014, de 12.11.2015 e de 21.04.2021, processos 11054/14, 12598/15 e 921/20.4BELRA, respetivamente, todos publicados em www.dgsi.pt)” (Ac. do TCA Norte de 3.2.2022, proferido no processo 1324/21.9BELSB, consultável em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/fd4a4e6f815839f4802587de005afc2d?OpenDocument).
E também recentemente, no Ac. deste TCA Sul de 29.5.2025, proferido no processo 25160/24.1BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/6ff36142f3d1f08a80258c9e002dde68?OpenDocument), se sumariou
I - Nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, e 15.º-A do DL n.º 64/2007, de 14/03, o início e prossecução da actividade assistencial em estrutura residencial para pessoas idosas (E…) depende de prévia autorização de funcionamento, obtida através, nomeadamente, de comunicação prévia.
II - Inexistindo tal autorização de funcionamento, o que ressalta à vista, em processo cautelar para adopção da providência de suspensão da eficácia de acto administrativo determinativo do encerramento de uma E…, é a aparência do mau direito ou a falta de fundamento da pretensão a formular no respectivo processo principal, e, como tal, a probabilidade de tal processo vir a ser julgado improcedente, no que em tudo redunda na falta de verificação do pressuposto cumulativo do “fumus boni iuris” exigido pelo artigo 120.º, n.º 1, do CPTA.
Mostra-se, portanto, inócua à demonstração pelas Recorrentes da aparência do bom direito com vista a obstaculizar, na pendência da ação principal, ao encerramento do estabelecimento, a alegação, e eventual prova, de que teria regularizado ou se encontraria a regularizar as deficiências encontradas na ação de fiscalização ou a ausência de comprometimento daquelas à prestação dos serviços às pessoas idosas, ou de que estabelecimento reúne as condições necessárias a obter a autorização ou licença de utilização dos serviços camarários, sendo-lhe inimputável o atraso no processo camarário, e o cumprimento das condições necessárias a obter a autorização de funcionamento, quando “até ao momento da prolação do acto suspendendo (“tempus regit actum”), não detinha qualquer autorização para o funcionamento da estrutura residencial para pessoas idosas que explorava, nem, muito menos, formulara junto dos serviços do ora Recorrido a comunicação prévia a que se refere o acima transcrito artigo 15.º-A do DL n.º 64/2007, de 14/03.” (Ac. do TCA Sul de 29.5.2025, proferido no processo 25160/24.1BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/6ff36142f3d1f08a80258c9e002dde68?OpenDocument).
Isto é, sem dispor de autorização de funcionamento, obtida nos moldes que resultam dos artigos 11.º, n.ºs 1 e 2, 12.º, 18.º - A do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, há lugar ao encerramento administrativo nos termos do artigo 35.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, razão pela qual não se mostra provável que a pretensão material a formular pelas Recorrentes no processo principal venha a ser julgada procedente.
E o mesmo se diga quanto à imputada violação do princípio da proporcionalidade e dos princípios de justiça, razoabilidade, boa-fé e prossecução do interesse público, assente na alegação de que se impunha a aplicação de decisão menos gravosa e, segundo as Recorrentes, mais adequada ao interesse público.
Recorda-se que “o princípio da proporcionalidade significa que, até onde seja compatível com a prossecução do interesse público, a Administração deve procurar, na sua atuação, ser o menos hostil possível aos interesses dos administrados (art. 7.º do CPA). Para isso terá que usar como critérios de decisão a adequação (a solução adotada deve ser a idónea ou apropriada à finalidade de interesse público tida em vista), a necessidade (proibição do excesso) e o equilíbrio (deve haver uma ponderação sobre os benefícios ou vantagens para o interesse público e os custos ou prejuízos impostos pela medida a adotar)” (Ac. do TCA Norte de 11.11.2022, processo 01158/17.5BEAVR, disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/670be47b729579138025890900513488?OpenDocument).
O princípio da justiça, assumida esta como “o conjunto de valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido em função da dignidade da pessoa humana” (Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2009, págs. 130 e 131), emerge como princípio densificável através de vários outros subprincípios (como o da igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade, da participação dos particulares ou da boa-fé), tendo como significado que Administração deve procurar alcançar o ideal da equidade do caso concreto, agindo de modo a que a cada qual se lhe dê o que lhe é devido. Enquanto a razoabilidade impõe que as decisões administrativas sejam coerentes com a ideia de Direito, rejeitando excessos ou irracionalidade.
Por sua vez, o princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, a que se reporta o artigo 4.º do CPA, estabelece que compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Finalmente, o princípio da boa fé, previsto no artigo 10.º do CPA, assume-se como “uma exigência de confiança, veracidade e exatidão na atuação administrativa” (Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, pág. 374).
Ora, o que sucede é que o campo primordial de atuação destes princípios situa-se em domínios onde seja atribuído poder discricionário ou margem de apreciação à Administração e não quando estamos, como sucede in casu, perante um ato que, à luz do ordenamento jurídico, não deixa “espaço à Administração para conformar o seu agir de modo a contornar as consequências mais dolorosas ou hostis da reposição da legalidade que daí eventualmente possam resultar para o interessado” (Ac. do TCA Norte de 11.11.2022, proferido no processo 01158/17.5BEAVR, disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/670be47b729579138025890900513488?OpenDocument).
No caso, o encerramento é a consequência imposta pelo cumprimento do princípio da legalidade perante a atuação das Recorrentes que dá início ao funcionamento de um estabelecimento residencial para pessoas idosas, prestando os correspondentes serviços de apoio social, em patente violação do regime legal de definição e verificação das condições de instalação e de funcionamento dos serviços prestados previsto nos artigos 11.º, n.ºs 1 e 2, 12.º, 18.º - A do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, ou seja, à míngua de autorização de funcionamento, obtida nos moldes que resultam daqueles normativos.
Daí que num domínio em que o modo de prossecução do interesse público, centrado quer na exigência da qualidade dos equipamentos sociais no que respeita à segurança e ao bem-estar dos cidadãos, quer no rigor na definição e verificação das condições de instalação e de funcionamento dos serviços prestados, que respeitam nomeadamente à segurança e qualidade de vida de utentes integrantes de grupos mais vulneráveis, se encontra já legalmente definido com a previsão de um regime que impõe, como condição sine qua non de funcionamento destas estruturas residenciais para pessoas idosas, a obtenção de uma autorização de funcionamento nos moldes que resultam dos artigos 11.º, n.ºs 1 e 2, 12.º, 18.º - A do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, não há lugar à consideração, por parte da Administração, de outras medidas que não passem pelo encerramento do estabelecimento. Antes o princípio da legalidade demanda que a atuação da Administração se paute pela obediência aos parâmetros legais que estabelecem o sentido da decisão.
E daí que também nesta dimensão não se possa considerar a probabilidade de procedência da ação principal, a determinar, portanto, a não verificação do pressuposto de que dependeria a adoção da medida cautelar requerida nestes autos correspondente ao fumus boni iuris.
Sem que, portanto, a sentença recorrida padeça do erro de julgamento que lhe vem apontado.
E daí que, considerando que as condições de procedência das providências cautelares definidas no art.º 120.º, n.º 1 e n.º 2 do CPTA são de verificação cumulativa, resulta que bastava a não verificação de qualquer delas para que a providência seja julgada improcedente, a significar que não cabia ao Tribunal a quo, como não cabe a este Tribunal ad quem, apreciar da verificação do periculum in mora ou proceder à ponderação de interesses (cf. art. 608.º, n.º 2 do CPC).
4.5. Da condenação em custas
Vencidas, são as Recorrentes condenadas nas custas do presente recurso (art.ºs 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).
5. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
b. Condenar as Recorrentes em custas.
Mara de Magalhães Silveira
Ana Cristina Lameira
Joana Costa e Nora (em substituição legal) |