Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:197/23.1BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/16/2024
Relator:MARGARIDA REIS
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
REVOGAÇÃO DO ATO IMPUGNADO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
PROCESSO CRIME
ART. 47.º DO RGIT
Sumário:I - Tendo sido revogado o ato de liquidação impugnado, assim como correspondente ato de liquidação de juros compensatórios e consequentemente, anulado o processo de execução fiscal onde corria a respetiva cobrança coerciva, deixa de subsistir qualquer efeito da liquidação que obste à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
II - Não é prejudicada a defesa no processo-crime com a extinção da instância na impugnação, pois os efeitos da anulação da liquidação operada pela AT também poderão ser apreciados no processo penal tributário - se existir alguma conexão -, como não pode deixar de ser atento o disposto no art. 48.º do RGIT.
III - A interpretação propugnada na sentença do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC não viola o disposto nos arts. 20.º e 32.º da CRP, por impedir o seu acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
Indicações Eventuais: Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. Relatório

S... - Investimentos Têxteis, S.A., inconformada com a sentença proferida em 2024-12-01 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto à impugnação judicial que intentou tendo por objeto a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 42860936, referente ao mês de fevereiro de 2012, no montante de EUR 50.994,22, vem dela interpor o presente recurso.

A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:


CONCLUSÕES

I.


O presente recurso vem interposto da douta decisão proferida nos autos que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.


II.

A Recorrente não se pode conformar com tal entendimento por entender e sustentar que essa inutilidade se não verifica.

SENÃO VEJAMOS,


III.

A Recorrente foi no dia 17/10/2022 notificada da liquidação adicional em sede de IVA por referência ao período de tributação de 201202M e respetivos juros compensatórios – liquidação essa, efetuada a coberto do procedimento de inspeção tributária credenciada pela OI201204772.

IV.

Por discordar com a liquidação ali efetuada, a Recorrente apresentou a competente impugnação judicial que originou os presentes autos e onde sinteticamente suscitou vários vícios a liquidação em crise, designadamente, (i) falta de notificação da eventual decisão do procedimento de inspeção – preterição de formalidades essenciais; (ii) falta de fundamentação da liquidação adicional; (iii) caducidade do direito à liquidação; (iv) impugnação da factualidade subjacente à liquidação adicional entre outras desconformidades como resultam abundantemente descritas na impugnação apresentada – pedindo, a final, a anulação da liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios.

V.

Citada, veio a Administração Fiscal proceder à junção do PA do qual consta a informação elaborada pelos serviços onde além do mais consta a revogação do ato de liquidação adicional de IVA 201202M e respetivos juros compensatórios, porquanto, “não houve a notificação do RIT, nem, naturalmente, se procedeu à emissão das Notas de Liquidação; ocorreu um erro informático central, que viabilizou a emissão da liquidação em apreço;

(…) corrigir esta situação, criada por um desajuste informático (…)”


VI.

Atenta a informação prestada pela Administração Fiscal, veio a ser proferida sentença que julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

VII.

Para escorar tal entendimento, a decisão em mérito considerou “Decorre do probatório supra que o pedido formulado pelo impugnante de ver anulado o acto de liquidação de IVA para o exercício de 2010 foi satisfeito pela AT, em face da revogação do acto de liquidação.”

VIII.

Como é sabido a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de ter todo o interesse e utilidade, conduzindo, por isso, à extinção da instância (art.º 287º, al. e), do Código de Processo Civil).

IX.

A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio - José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 1, anotação 3 ao art. 287.º, pág. 512.

X.

No entanto, efeitos há que foram produzidos pela liquidação adicional (revogada) e que mantêm a sua vigência e produção dos seus efeitos ainda hoje na ordem jurídica em absoluta transgressão dos normativos reguladores da matéria em causa nos autos, violando de forma grosseira os direitos e interesses legalmente tutelados da Recorrente.

XI.

Pois, apesar da anulação da liquidação adicional em crise, a verdade é que derivado dessa mesma liquidação foi instaurado o processo de execução fiscal tendente à cobrança coerciva do tributo o qual, supostamente, também ele anulado.

XII.

No entanto, não podemos ignorar que apesar das anulações efetuadas, quer quanto à liquidação adicional, quer quanto ao processo de execução fiscal – ambas as situações produziram efeitos na ordem jurídica e afetaram a esfera jurídica da Recorrente.

XIII.

Nesse circunstancialismo, a simples anulação da liquidação adicional sindicada não poderá por si só conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, não sem antes, aquilatar dos efeitos produzidos pela mesma no decurso da sua vigência.

XIV.

O que importará, a anulação, em igual medida, dos efeitos entretanto produzidos como o sejam, os atos insertos na normal tramitação do processo de execução fiscal ou até mesmo aqueles que foram despoletados pela liquidação adicional sindicada – os juros compensatórios.

XV.

Daí que, ressalvado o respeito devido, a decisão em mérito ao não aquilatar de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado, enferma de nulidade nos termos do artigo 615.º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPC.

SEM PRESCINDIR,


XVI.

mas ainda que assim não fosse, os fundamentos que estiveram subjacentes à revogação do despacho deviam ter sido descortinados em Tribunal.

XVII.

Na verdade, não se mostra plausível que a Administração Tributária se escude num erro informático para se retratar de uma liquidação que sabe ser errada e cuja quantia apurada sabe não ser devida.

XVIII.

Tanto assim é que o fundamento subjacente à anulação da liquidação supostamente não se aplica a outras liquidações de idêntica natureza e que emergem precisamente do mesmo facto – a mesma ação inspetiva.

XIX.

Daí, sermos levados a questionar - se umas liquidações são anuladas, qual a razão das restantes não o serem?

XX.

A esta questão a Administração Tributária não consegue dar resposta.

POR OUTRO LADO,


XXI.

Não será despiciendo referir que atento os fundamentos expostos na impugnação judicial aqui deduzida a mesma, assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário.

XXII.

Porquanto, relativamente ao mesmo período de tributação em discussão nos autos, contra o Impugnante foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal, processo que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, Proc. nº 189/12.6TELSB.

XXIII.

O despacho de acusação proferido naquele processo-crime estriba-se, quase que exclusivamente no relatório de inspeção tributária de onde advém a liquidação adicional aqui em mérito.

XXIV.

Ou seja, o ponto nevrálgico, quer do processo-crime, quer dos presentes autos de impugnação emerge da mesma situação fáctica – relatório de inspeção tributária.

XXV.

E, como tal, existindo liquidação adicional, e sendo sindicada por via da impugnação judicial – tal implica, forçosamente, o escrutínio de toda a situação por banda do Tribunal não podendo, contudo, demitir-se de tal função.

XXVI.

Porquanto, o desfecho dos presentes autos, pela prejudicialidade que assume relativamente ao processo-crime, inelutavelmente se haveriam de refletir neste.

XXVII.

Daí que, ressalvado o respeito devido, andou mal o Tribunal a quo ao não julgar o mérito da causa, atenta a prejudicialidade dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do artigo 47.º do RGIT.

SEM PRESCINDIR,


XXVIII.

A interpretação desenvolvida na douta decisão recorrida à alínea e) do artigo 277.º do CPPT, quando interpretada no sentido do não conhecimento do mérito da causa, em decorrência de uma ulterior anulação da liquidação sindicada, no caso da mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal nos termos do artigo 47.º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e por violar os direitos de defesa artigo 32.º (garantias de processo criminal) ambos da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

Termina pedindo:

TERMOS EM QUE,

- Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta sentença recorrida, farão Vossas Excelências a habitual JUSTIÇA!


***

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

***

O Digno Magistrado do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

***

Questões a decidir no recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT.

Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a sentença impugnada padece de nulidade por omissão de pronúncia ou de erro de julgamento de direito por ali se ter feito uma incorreta interpretação e aplicação ao caso do regime legal que rege a inutilidade superveniente da lide, previsto na alínea e) do art. 277.º do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, do “regime de prejudicialidade” existente entre a impugnação judicial em questão e o processo-crime, previsto no art. 47.º do RGIT, e porque a interpretação ali preconizada da alínea e) do artigo 277.º do CPC é inconstitucional, por impedir o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no art. 20.º e por violar os direitos de defesa previstos no art. 32.º, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).


II. Fundamentação

II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) – DOS FACTOS PROVADOS

Compulsados os autos e analisada a prova documental apresentada, encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a decisão:

A) Em 14.10.2022, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação adicional de IVA n.º 42860936, referente ao mês de Fevereiro de 2012, no valor de € 50 994,22 (cfr. doc. de fls. 61 dos autos);

B) A presente impugnação judicial deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada em 31.03.2023 (cfr. doc. de fls. 1 a 3 dos autos);

C) Em 10.04.2023, foi elaborado pela Direcção de Finanças de Setúbal “Parecer” sob o assunto “Revisão do Acto Tributário – n.º 4 do art 78º da LGT – Processo n.º 220....”, em que concluiu, no que ora releva, o seguinte:

“Encontram-se, pois, reunidas as condições para a revisão do ato tributário por iniciativa da Administração Tributária, sob a forma de Revisão Oficiosa, com enquadramento na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e no n.º 1 do artigo 98.º do CIVA.

Não tendo o sujeito passivo sido notificado dos Relatórios de Inspeção tributária pelos motivos expostos, entendemos que as liquidações de IVA emitidas e não impugnadas e os respetivos juros compensatórios dos períodos constantes do quadro supra, referentes às Ordens de Serviço OI201204772 e OI201605671, no valor total de €2.206.249,87, devem ser anuladas, não sendo devidos juros indemnizatórios por não se verificarem os requisitos do disposto no artigo 43.º da LGT.

Remeta-se o presente Procedimento de Revisão à DSIVA, para apreciação e decisão, face ao valor da causa.” - (cfr. doc. de fls. 322 a 327 dos autos);

D) Em 12.04.2023, sobre o Parecer referido na alínea que antecede, recaiu o Despacho da Directora de Finanças de Setúbal com o seguinte teor: “Concordo. Remeta-se à DSIVA para apreciação e superior decisão” (cfr. doc. de fls. 322 dos autos);

E) Em 15.05.2023, foi elaborada Informação pela Direcção de Serviços do IVA, sob o assunto “RO N.º 220.... – S... INVESTIMENTOS TÊXTEIS, S.A.”, e que, no que ora releva, tem o seguinte teor:

(…)

10. Reportando-nos à situação sub judice, verifica-se que a S... foi objeto de um procedimento inspetivo externo, de âmbito geral, levado a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto, ao abrigo das Ordens de Serviço 01201204772 e 01201605671, relativas aos anos de 2010/2011 e 2012, respetivamente.

11. E que, devido a um automatismo introduzido no Sistema Informático da AT (SIIIT), decorrente da desmaterialização do procedimento inspetivo, ocorreu um erro informático central, o qual despoletou o encerramento das suprarreferidas Ordens de Serviço, originando, assim, que fossem, erradamente, efetuadas as notificações das liquidações de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, relativas aos períodos dos anos em causa.

12. Será, contudo, de registar, que a S... já reagiu, através da interposição da Impugnação Judicial n.º 780/22.2BEALM, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, contra a liquidação n.º 2022 22000356 relativa ao período 2010.01 M, no valor de € 5.930,79 (entretanto já anulada).

13. Constituem, assim, objeto do presente pedido as liquidações adicionais de IVA e as liquidações dos correspondentes juros compensatórios, no valor total global de €2.206.249,87, a seguir identificadas:

(…)

17. Atendendo a que está em causa, como já referido, um “erro imputável aos serviços’’ a que se alude na segunda parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, estão reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários por iniciativa da administração tributária, não podendo esta legalmente demitir-se de o fazer. (…)

19. A administração tributária está, pois, obrigada a eliminar da ordem jurídica todos os atos de liquidação injustos, como, aliás, decorre da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mas tal dever não deve depender da existência de um ato tributário manifestamente ilegal ou de erro imputável aos serviços.

20. Este dever de rever atos injustos é, assim, um verdadeiro poder dever estribado no dever de a administração tributária atuar segundo o princípio da justiça, constitucionalmente consagrado. (…)

21. Nesta conformidade, verificando-se os pressupostos para se proceder a revisão oficiosa, com fundamento na segunda parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, por estarem em causa liquidações, não devidas, resultantes de um erro imputável aos serviços, impõe-se que se proceda à revisão dos atos tributários prevista no art.º 78.º da LGT.

III- PROPOSTA DE DECISÃO


22. Diante do exposto, propõe-se o deferimento do presente pedido de revisão.

23. Por conseguinte, merecendo a presente informação despacho superior concordante, deverá proceder-se à revisão dos suprarreferidos atos tributários de liquidação de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, no valor total de €2.206.249,87, com as demais consequências legais.”

(cfr. doc. de fls. 339 a 340 dos autos);

F) Em 18.05.2023, sobre a Informação a que se refere a alínea que antecede, recaiu o Despacho do Subdirector Geral com o seguinte teor: “Concordo, pelo que defiro a presente Revisão Oficiosa, nos termos e com os fundamentos expostos” - (cfr. doc. de fls. 338 dos autos).


***

DOS FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultou provado que:

i. A Impugnante tenha procedido ao pagamento da quantia mencionada na alínea A).


***

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

A decisão da matéria de facto com base no exame das informações e dos documentos, não impugnados, que dos autos constam, todos objecto de análise concreta, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.


*

Quanto ao facto não provado, o mesmo resultou da total ausência de prova nesse sentido.

Importa ter presente que o pagamento de impostos em montante que exceda os € 500,00 não pode ser feito em numerário, nos termos do artigo 63.º-E, n.º 5, da LGT. Assim, a prova deste facto apenas poderia ser feita através de documentos. Não tendo a Impugnante junto aos autos qualquer documento para prova deste facto e impendendo sobre si o respectivo ónus da prova (vide artigo 74.º, n.º 1, da LTG), impõe-se dar o mesmo como não provado.


*

II.2. Fundamentação de Direito

Alega a Recorrente que a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia, pois nela não foram apreciadas “todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado”.

Esta matéria encontra-se prevista no art. 125.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, dali decorrendo que são nulidades da sentença a não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão e a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar.

Há muito que se encontra pacificado – na jurisprudência e na doutrina – o que se deve entender para este efeito como constituindo omissão de pronúncia, que diz respeito, tão só, às situações em o tribunal de primeiro conhecimento da causa deixe de se pronunciar sobre as questões suscitadas pelo Recorrente.

É o que resulta, por exemplo, do Acórdão do STA proferido em 2020-04-20, no proc. 02145/12.5BEPRT 01190/17, no qual se sumaria “Nos termos do preceituado no citado art. 615, n.º 1, al. d), do C.P.Civil, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões (que não as meras “razões” ou “argumentos”) que devesse apreciar (seja por que foram alegadas pelas partes, seja por que são de conhecimento oficioso, nos termos da lei)”.

Com efeito, nesta matéria, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem afirmando reiteradamente que “só pode ocorrer omissão de pronúncia quando o juiz não toma posição sobre questão colocada pelas partes, não emite decisão no sentido de não poder dela tomar conhecimento nem indica razões para justificar essa abstenção de conhecimento, e da sentença também não resulta, de forma expressa ou implícita, que esse conhecimento tenha ficado prejudicado em face da solução dada ao litígio” (cf. Acórdão do STA proferido em 2012-09-19, no proc 0862/12, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Por conseguinte, só haverá omissão de pronúncia “quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões” (cf. Acórdão do STA proferido em 2014-05-28, no proc. 0514/14, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Ora, o que resulta claro da leitura da sentença recorrida é, precisamente, que ali se entendeu que a ação perdeu – integralmente - o seu objeto com a revogação da liquidação impugnada, inexistindo, por esse motivo, quaisquer “circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado” a ponderar.

Não tem por isso razão a Recorrente, não padecendo a sentença da nulidade que lhe é por si assacada.

Mais alega a Recorrente que a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito por ali se ter feito uma incorreta interpretação e aplicação ao caso do regime legal que rege a inutilidade superveniente da lide, previsto na alínea e) do art. 277.º do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT.

Para tanto, argumenta que não obstante a liquidação impugnada através da impugnação judicial ter sido revogada, não podia ter-se concluído pela inutilidade superveniente da lide, pois “efeitos há que foram produzidos pela liquidação adicional (revogada) e que mantêm a sua vigência e produção dos seus efeitos”, referindo a propósito a circunstância de associada à liquidação do IVA em causa terem sido liquidados juros compensatórios e de ter sido instaurado um processo de execução fiscal.

Vejamos.

A inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos surgidos na pendência do processo, a decisão a proferir deixa de ter qualquer efeito útil, porque o escopo visado com a ação é atingido por outro meio, perdendo a ação, deste modo, o seu objeto.

A ação de impugnação judicial em apreço tinha como objeto a peticionada anulação da liquidação de IVA de 2012 impugnada, e que, tal como resulta provado nos autos, foi revogada pela Administração fiscal, no âmbito da revisão oficiosa do tributo em questão (cf. pontos E e F, da fundamentação de facto).

Por outro lado, o que claramente resulta dos autos é que, por um lado, o ato por força do qual foi revogada a liquidação de IVA em apreço procedeu também à revogação expressa da liquidação dos correspondentes juros compensatórios (cf. pontos E e F, da fundamentação de facto), e por outro, que o processo de execução fiscal onde se encontrava em cobrança coerciva a quantia correspondente foi anulado, nos termos do disposto no art. 176.º, n.º 1 alínea b) do CPPT, circunstância de que o próprio Recorrente revela ter conhecimento (cf. conclusões XI e XII das alegações de recurso).

Ora, por força da respetiva anulação, deixam de subsistir quaisquer atos emanados no seio do processo de execução fiscal, pelo que também nesta matéria, o Recorrente não tem razão.

Ou seja, e dito por outras palavras, constituindo objeto da ação a anulação do ato impugnado, o mesmo deixa de existir com a sua revogação por parte da Administração fiscal, sendo ainda certo que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, não subsistem quais “efeitos” do mesmo, visto que também a correspondente liquidação de juros compensatórios foi revogada e que, em consequência, o processo de execução fiscal foi anulado, como de resto é reconhecido pelo próprio Recorrente.

Alega ainda o Recorrente que ao determinar a extinção da instância em consequência da inutilidade superveniente da lide, a sentença incorre em erro de julgamento de direto por violar o “regime de prejudicialidade” existente entre a impugnação judicial e o processo-crime, previsto no art. 47.º do RGIT, e porque a interpretação que assim se faz do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC é inconstitucional, por impedir o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no art. 20.º e por violar os direitos de defesa previstos no art. 32.º, ambos da CRP.

Não tem, no entanto, razão.

De facto, e como foi já afirmado no parecer exarado nos autos pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste tribunal, e no qual nos revemos, a ação de impugnação judicial é autónoma relativamente ao processo-crime, não constituindo a pendência do processo-crime fundamento, por si só, para o prosseguimento necessário e obrigatório da ação em que se discuta a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o que, aliás, não decorre do disposto no art. 47.º do RGIT, ou de qualquer outra norma.

Por outro lado, e como é também ali bem referido, não se vê como possa ficar prejudicada a defesa no processo-crime com a extinção da instância na impugnação, pois os efeitos da anulação da liquidação operada pela AT também poderão ser apreciados no processo penal tributário - se existir alguma conexão -, como não pode deixar de ser atento o disposto no art. 48.º do RGIT.

De facto, se a Administração tributária conclui que não existiu fundamento para a liquidação de IVA, revogando-a, caso o processo-crime tenha por fundamento a liquidação revogada, ali terá de ser retirada a devida consequência da revogação do ato.

Donde se conclui que também não tem qualquer fundamento a alegação da Recorrente, no sentido de que a interpretação propugnada na sentença do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC viola o disposto nos arts. 20.º e 32.º da CRP, por impedir o seu acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

Assim sendo, e em face do exposto, o presente recurso deve ser julgado integralmente improcedente.


***

Atento o decaimento do Recorrente, é sua a responsabilidade pelas custas, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT.

***


Conclusão:

Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

I. Tendo sido revogado o ato de liquidação impugnado, assim como correspondente ato de liquidação de juros compensatórios e consequentemente, anulado o processo de execução fiscal onde corria a respetiva cobrança coerciva, deixa de subsistir qualquer efeito da liquidação que obste à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

II. Não é prejudicada a defesa no processo-crime com a extinção da instância na impugnação, pois os efeitos da anulação da liquidação operada pela AT também poderão ser apreciados no processo penal tributário - se existir alguma conexão -, como não pode deixar de ser atento o disposto no art. 48.º do RGIT.

III. A interpretação propugnada na sentença do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC não viola o disposto nos arts. 20.º e 32.º da CRP, por impedir o seu acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao presente recurso.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 16 de maio de 2024 - Margarida Reis (relatora) – Rui Antonio dos Santos Ferreira – Maria Costa Alemão.