Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:65306
Secção:Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/25/2001
Relator:Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
CULPA
DOLO E NEGLIGÊNCIA
PROVA
PRINCÍPIO DE IN DUBIO PRO REO
Sumário:I. A culpa é um elemento constitutivo da contra-ordenação, diferenciado da tipicidade e da ilicitude.
II. A culpa assume a modalidade de dolo, ou de negligência, e analisa-se na possibilidade de um juízo de censura ou de reprovação da conduta do agente, por, em face das circunstâncias, poder e dever agir de outro modo.
III. Em processo contra-ordenacional, vale o princípio de in dubio pro reo quanto à prova do tipo de culpa- como, de resto, o mesmo princípio vale em relação à prova de qualquer outro facto relevante para a decisão de aplicação e de graduação das coimas.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1.1 “F....- Fábricas Têxteis Associadas, ACE”, e outros, devidamente identificados nos autos, vêm interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Castelo Branco, de 26-2-1997, proferida nos presentes autos de contra-ordenação fiscal, em que foram condenados – cf. fls. 83 e seguintes.

1.2 Em alegação, os recorrentes formulam conclusões que se apresentam do seguinte modo – cf. fls. 96 a 102.
a) Tendo falecido Fernando .. em 28-1-1995, deve declarar-se extinto o procedimento contra-ordenacional quanto a este, nos termos da alínea a) do artigo 193.º do Código de Processo Tributário.
b) No caso dos autos não existiu actuação dolosa dos gerentes da firma, nem da matéria constante dos autos se pode inferir tal conduta dolosa.
c) Pelo que a douta sentença, ao convolar a actuação meramente culposa dos gerentes em actuação dolosa, infringiu os artigos 29.º e 31.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, n.º 1, visto dever aplicar as coimas com base no n.º 2 daqueles artigos.
d) De igual modo, não se alcança dos autos que os recorrentes tenham situação económica satisfatória, dado que as firmas que integram a F.T.A. recorreram ao processo de recuperação de empresas, estando presentemente encerradas, não sendo a situação económica dos recorrentes satisfatória, mas muito débil.
e) Também o Tribunal a quo na sua douta sentença não levou em conta este aspecto devidamente ponderado com a actuação meramente culposa.
f) Violou, pois, a douta sentença, por erro de interpretação, quer o n.º 2 do artigo 29.º, quer do artigo 31.º, quer ainda o artigo 19.º, todos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, devendo ser aplicadas aos recorrentes coimas no limite mínimo.

1.3 Não houve contra-alegação.

1.4 O Ministério Público neste Tribunal emitiu o parecer de que o recurso não merece provimento, devendo o acórdão do Tribunal Central Administrativo confirmar na ordem jurídica a sentença impugnada (arguidos FTA e Alfredo Henrique Pessoa da Fonseca) e declarar a extinção do procedimento contra-ordenacional por morte do arguido Fernando ... – cf. fls. 108 a 110.

1.5 Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.
Atento o teor das conclusões da alegação, e também a posição do Ministério Público, as questões que importa resolver são as seguintes:
a) saber se é, ou não, caso de extinção do procedimento contra-ordenacional contra o ora recorrente Fernando...;
b) saber se é dolosa, ou antes meramente negligente, a conduta contra-ordenacional dos recorrentes.

2.1 Com interesse para a decisão julgamos provada a seguinte matéria de facto.
a) O ora recorrente, Fernando ..., faleceu no dia 28-1-1995 – cf. o assento de óbito de fls. 103.
b) Por carta registada com aviso de recepção, assinado no dia 28-3-1994, os arguidos, ora recorrentes, foram notificados do despacho de 18-3-1994, proferido pelo Director Distrital de Finanças, nos presentes autos de contra-ordenação fiscal – cf. fls. 43 a 52.
c) Pelo despacho dito em b), foram aplicadas à ora recorrente as coimas de 30 000$00, de 15 000$00, de 300 000$00, de 300 000$00, de 200 000$00, de 120 000$00, de 300 000$00, e de 180 000$00, respectivamente por cada um dos meses de Abril a Novembro inclusive, do ano de 1991, por falta de entrega de IVA relativo a esses meses, no montante total de 4 558 934$00; e, por falta de envio da declaração periódica de Dezembro do mesmo ano, foi aplicada à ora recorrente a coima de 10 000$00 – cf. fls. 43 e 44.
d) E, a cada um dos ora recorrentes, pelas mesmas faltas, foram aplicadas pelo mesmo despacho administrativo, as coimas, respectivamente em relação a cada um dos apontados meses, de 15 000$00, de 7.500$00, de 150 000$00, de 150 000$00, de 100 000$00, de 60 000$00, de 150 000$00, e de 90 000$00; e, por falta de envio da declaração periódica de Dezembro/91, foi aplicada a cada um dos recorrentes a coima de 5 000$00 – cf. fls. 43 e 44.
e) Refere ainda o mesmo despacho administrativo que «na aplicação das coimas teve-se em conta o regime mais favorável, conforme o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal» – cf. especialmente fls. 44.
Não se prova que os arguidos, ora recorrentes, tenham actuado, conscientemente e de livre vontade, com o propósito de praticar os factos contra-ordenacionais por que foram autuados.
Não se prova que a situação económica dos ora recorrentes seja satisfatória.

2.2 O artigo 2.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (Decreto Lei n.º 20-A/90 de 15-1) reza que, para efeitos do presente regime jurídico, constitui infracção fiscal todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei anterior.
No mesmo sentido dispõe, aliás, a Lei Quadro das Contra-Ordenações (aprovada pelo Decreto Lei n.º 433/82 de 27-10), no seu artigo 8.º: só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
E, por exemplo, o n.º 2 do artigo 29.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (Decreto Lei n.º 20-A/90 de 15-1) prevê que a falta de entrega de prestação periódica possa ser imputável ao arguido a título de negligência.
Entendemos, assim, que a lei faz uma menção muito clara de que a culpa é um elemento constitutivo da infracção fiscal, bem diferenciado da tipicidade e da ilicitude. A culpa não é imanente à simples prática de um qualquer facto ilícito típico; antes tem autonomia em relação a esse facto.
Neste ponto, preferimos dizer – com Eduardo Correia, e Figueiredo Dias, em Direito Criminal, I, pp. 315 e 316 – que «não basta, na verdade, que uma conduta seja tipicamente antijurídica; é preciso também que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa»; e que a culpa «se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente», «por não ter agido de modo diverso».
A culpa – como é sabido – pode revestir a forma de dolo, ou de negligência.
A culpa, em sentido restrito, traduz-se na omissão de um dever objectivo de cuidado, ou na omissão da diligência exigível. O agente devia ter usado de uma diligência que não empregou.
Em suma: a culpa, em qualquer das suas modalidades, traduz-se sempre num juízo de censura em relação à actuação do agente, que, pela sua capacidade, e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
E, quanto à prova do tipo de culpa (dolo, ou mera negligência) que concorra no caso concreto, como, de resto, relativamente a qualquer outro facto relevante para a decisão de aplicação e graduação da coima, vale o princípio de in dubio pro reo.
Com efeito, em processo de natureza penal (como é o de contra-ordenação fiscal) compete em último termo ao juiz, oficiosamente, o dever de instruir e esclarecer o facto sujeito a julgamento: não existe aqui, por conseguinte, qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre o acusador ou o arguido.
À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto ilícito, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados.
E, se, por outro lado, aquele mesmo princípio, obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.
É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1994, 1.º vol., pp. 211 a 213.

2.3 No caso sub judicio, e conforme se retira do que se deixou consignado no probatório, não se prova que os ora recorrentes tenham actuado, conscientemente e de livre vontade, com o propósito de praticar os factos contra-ordenacionais por que foram autuados.
Nem se prova sequer que a sua situação económica seja satisfatória.
Com efeito, nada se prova neste aspecto; apenas se refere, sem algum fundamento, aliás, que a situação dos recorrentes é «aparentemente satisfatória» – cf. fls. 39, 40, e 41.
O que é certo e seguro, porém, é que os autos não fornecem o mínimo elemento de facto donde possa retirar-se que os ora recorrentes tenham actuado com dolo no caso.
Pelo que, em nosso entendimento, deve a decisão neste capítulo pautar-se pela moderação que é imposta pela consideração do princípio de in dubio pro reo, e, consequentemente, punir a actuação dos arguidos, ora recorrentes, apenas a título de mera negligência.
Estamos, portanto, em desacordo com a sentença recorrida, ao acoimar os ora recorrentes a título de conduta dolosa, sem a prova, fora de toda a dúvida razoável, de factos donde esse dolo possa ser inferido.
E concordamos antes com a decisão administrativa, que, levando em consideração a mera negligência dos ora recorrentes, lhes aplicou as coimas acima discriminadas.
Quanto ao recorrente Fernando..., por ter falecido, deve efectivamente, em relação a ele, ser julgado extinto o procedimento contra-ordenacional, por força do disposto na alínea a) do artigo 193.º do Código de Processo Tributário.

2.4 Do exposto podemos extrair, entre outras, as seguintes proposições, que se alinham em súmula.
I. A culpa é um elemento constitutivo da contra-ordenação, diferenciado da tipicidade e da ilicitude.
II. A culpa assume a modalidade de dolo, ou de negligência, e analisa-se na possibilidade de um juízo de censura ou de reprovação da conduta do agente, por, em face das circunstâncias, poder e dever agir de outro modo.
III. Em processo contra-ordenacional, vale o princípio de in dubio pro reo quanto à prova do tipo de culpa – como, de resto, o mesmo princípio vale em relação à prova de qualquer outro facto relevante para a decisão de aplicação e de graduação das coimas.

3. Termos em que se decide:
- julgar extinto o procedimento contra-ordenacional quanto ao recorrente Fernando Lopes da Costa Calçada;
- revogar a sentença recorrida;
- e manter a decisão administrativa de aplicação de coimas;
- deste modo, se concedendo provimento ao recurso.
Sem custas.

Lisboa, 25 de Setembro de 2001