Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:50/20.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/01/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:LIBERDADE DE EXPRESSÃO;
DEVER DE RESPEITO E URBANIDADE;
PROTEÇÃO DOS BENS PESSOAIS AO BOM NOME E REPUTAÇÃO DE TERCEIROS;
OPINIÃO PESSOAL SUPORTADA NA INVOCAÇÃO DE FACTOS;
REGULAMENTO DISCIPLINAR DAS COMPETIÇÕES ORGANIZADAS PELA LIGA PORTUGUESA DE FUTEBOL.
Sumário:i) A relação que se estabelece entre a publicitação de uma opinião – direito que integra a liberdade de expressão – e a proteção dos bens pessoais ao bom nome e reputação de terceiros, exige seja feita uma ponderação quando estes direitos entrem em conflito, devendo aferir-se em que moldes aquela opinião, pelas expressões que usa e pelas imputações que faz, ataca desproporcionadamente a honra e consideração desses terceiros.
ii) Nesta aferição há que ter em conta o contexto em que o direito foi exercido, designadamente, as concretas expressões utilizadas, na conjuntura futebolística de grande competição, por referência a um jogo importante para o posicionamento da equipa perdedora no resultado do campeonato e, bem assim, a circunstância de as declarações em causa terem sido divulgadas logo após o terminus do jogo, o que revela que não foram premeditadas.
iii) Acresce que as expressões utilizadas, tendo por base factos concretos, devidamente identificados, não são de molde a convencer de que se tratou de um intencional ataque à integridade dos árbitros, pois não foram para além da crítica ao seu desempenho profissional e não revelam uma carga ofensiva, por gratuita e achincalhante, inequívoca.
iv) Em virtude do que, no caso em apreço, se conclui estarmos ainda perante uma situação que se enquadra dentro do limite da razoabilidade que se exige a um democrático exercício do direito de liberdade de expressão.
Votação:Com Declaração de Voto
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) apresentou recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 15.05.2020, que anulou a decisão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (CD_FPF), de aplicação de pena disciplinar de multa ao S... - Futebol Sad., no âmbito do processo disciplinar n.º 70-2018/19, no valor de 9.560.00 (nove mil quinhentos e sessenta euros), pela prática da infracção disciplinar “lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros”, prevista e punida no art. 112.°, n°s 1 e 4, do Regulamento de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RD_LPFP).

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso concluindo nos seguintes termos:

«(…) 1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 18 de maio de 2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora Recorrida, que correu termos sob o n.º 35/2019.

2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral (por maioria) em anular a sanção de multa aplicada pelo Conselho de Disciplina no processo disciplinar n.º 70-2018/2019, que correu termos naquele órgão, por aplicação do artigo 112.º n.ºs 1 e 4, do RD da LPFP.

3. Em causa nos presentes autos estão declarações proferidas pela Recorrida no seu Twitter oficial com o seguinte teor:

"Um campeonato desvirtuado

Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente.

Este domingo, contra o S..., assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do S....

Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre P…… (17'.).

Aos 57', porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do S..., apesar de não existir falta de E…..

Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar com J…., (61') e F….. (78'79) a escaparam a claras infrações merecedoras do 2.º cartão amarelo.

Nos momentos de decisão, o S... foi sempre impedido de disputar 3.º lugar, sendo também flagrante a forma como o nosso competidor direto foi constantemente favorecido, jornada após jornada, para que o topo da tabela refletisse a hierárquica crónica."


4. O Acórdão recorrido padece de graves erros na aplicação do Direito, com os quais a Recorrente não se pode conformar.

5. Ora, desde logo, cabe chamar à colação que o bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.

6. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.

7. Assim, quando analisado o artigo 112..º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.

8. Por outro lado, não se pode olvidar que a Recorrida tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.

9. A Recorrida tem, designadamente, o dever de "manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva" {artigo 19.º, n.ºs 1 e 2, do RDLPFP18); "usar de correção, moderação e respeito relativamente a outros promotores de espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes), sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo" (artigo 35.º, n.º 1 alínea h) do RD da LPFP); de "zelar porque dirigentes, técnicos, jogadores, pessoal de apoio, ou representantes dos clubes ajam de acordo com os preceitos das alíneas h) e i)" (artigo 35.º, n.º 1 alínea h) do RC da LPFP); de "incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de (...) intolerância nas competições" (Regulamento de Prevenção da Violência da Liga Portugal); e de manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes." (artigo 51.º, n.º 1 do Regulamento de Competições da LPFP).

10. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir publica e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.

11. Quando uma pessoa (singular ou coletiva), qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..

12. Com efeito, para que a Recorrida seja condenado pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112.º, n.ºs 1 e 4, ambos do RD da LPFP é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.

13. Ao contrário daquilo que entende o TAD, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.

14. Em suma, o Acórdão recorrido erra ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que o TCA proceda a uma correta aplicação do direito ao caso.

15. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.

16. O TAD entendeu, no seu aresto, que o conteúdo das declarações produzidas e difundidas pela Recorrida em órgão de comunicação social de sua propriedade, não têm qualquer relevância disciplinar pois não configuram uma lesão da honra e reputação dos órgãos ou equipas de arbitragem, mas sempre tendo por referência às normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes de injúria ou difamação.

17. E é aí que reside o grande equívoco dos Exmos. Árbitros. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.

18. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito "ao bom nome e reputação", cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.

19. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (artigo 112.º do RD da LPFP) é, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.

20. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.

21. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação dos árbitros a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.

22. Com efeito ao contrário do que entendeu o tribunal a quo e como supra se demonstra, as declarações da Recorrida não se limitam a remeter para erros das equipas de arbitragem, referindo e deixando a entender claramente que tais erros são premeditados, conscientes e com o intuito de beneficiar outro(s) competidor(es);

23. Para além de imputar a tais equipas de arbitragem a prática de atos ilegais, as expressões sub judice encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.

24. Neste sentido, o STA já se pronunciou em processo cuja matéria era muito idêntica à dos presentes autos, tendo entendido, de forma clara que imputações destas "atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa.".

25. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da Recorrida à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas expressões usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.

26. Não se nega que expressões como a usada pela Recorrida são corriqueiramente usadas no meio do desporto em geral e do futebol em particular.

27. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.

28. O facto de os visados serem figuras públicas, sob maior escrutínio não pode legitimar que tudo se diga, não os destituindo do direito à honra e consideração, sob pena de se negar a protecção da honra das figuras públicas, conforme sufragou já o Tribunal da Relação;

29. Não se tratará nesta sede do legítimo exercício do direito à liberdade de expressão, este deverá ser harmonizado com outro direito fundamental, o direito ao bom nome e à reputação, na esteira do que entende a melhor doutrina do Professor Gomes Canotilho e também do Professor Jorge Miranda, que alerta que deve ter-se em consideração o direito geral de personalidade, bem como a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa nesta matéria (Acórdão de 26-03-2014 - RP201403262163/10.8TAPVZ.P1), onde se afirma que deve atender-se ao princípio jurídico- constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível, razão pela qual, afirmamos nós, se é legítimo o direito de crítica por parte do arguido, já a imputação desonrosa não o é, como se verificou nos presentes autos.

30. O mesmo entendimento tem sido seguido e sufragado nalgumas decisões tiradas deste TCA supra mencionadas, e bem assim, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão tirado do processo 66/2018.7BCLSB, com objeto semelhante ao dos presentes autos;

31. Em apreço nas declarações em crise, estão afirmações de que os agentes de arbitragem visados erraram intencional e premeditadamente no sentido de beneficiar outro(s) competidor(es) e impedir a Recorrida de ''disputar o 3.º lugar, tendo o competidor direto sido "constantemente favorecido, para que "o topo da tabela refletisse a hierarquia crónica", "em prol do status quo vigente", levando a um "campeonato desvirtuado", como a própria Recorrida intitula as declarações em crise.

32. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.

33. É aliás de salientar que as declarações dos agentes desportivos têm grande relevância e podem fomentar fenómenos de intolerância e violência no mundo do desporto em geral e no futebol em

particular, sendo um assunto de grande relevância social e de grande importância na consciencialização dos diversos "atores" desportivos, sobre a sua acrescida responsabilidade junto das massas que notoriamente influenciam.

34. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.

35. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal o quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo do artigo 112.º, n.ºs 1 e 4, do Regulamento Disciplinar da LPFP. (…)» (sublinhados nossos).


A Recorrida, S... - Futebol SAD., contra-alegou pugnando pela manutenção do decido, nos seguintes termos:

«(…)

A. A decisão recorrida não merece qualquer reparo ou censura porquanto não se mostram preenchidos os requisitos exigíveis para a punição pelo ilícito disciplinar p. e p. pelo art. 112.° do RD, em virtude de estar em causa um juízo crítico plenamente reconduzível ao legítimo exercício da liberdade de expressão que assiste à demandante.

B. Uma avaliação isenta e imparcial das afirmações reduzidas a escrito, conduzirá a uma única conclusão: as declarações proferidas pela recorrida não colidem com a honra e bom nome de quem quer que seja, nem se manifestam como um comportamento incorrecto ou indecoroso de tal modo inapropriado que manifesta e objectivamente viole a verdade e integridade da competição.

C. Ao contrário do que pretende fazer transparecer a Recorrente, resume-se o presente caso à emissão de um juízo crítico opinativo que, desde logo pela ausência de gravidade que evidencia, não deverá merecer qualquer censura disciplinar. Sendo certo, além do mais, que as declarações reduzidas a escrito são totalmente fundadas e legitimas, reflectindo, tão somente, a avaliação da recorrida face à actuação profissional dos árbitros visados.

D. Quer isto dizer, que não estamos perante um qualquer ataque mesquinho, pessoal e gratuito, com um intuito meramente injurioso. Mas antes perante afirmações que se ancoram num determinado desempenho (ou juízo valorativo sobre esse desempenho), não contendendo com o núcleo essencial das qualidades morais dos visados; e que têm, além do mais, uma base factual, concreta e real, que legitima a formulação de tais afirmações, ainda que abstractamente lesivas da honra e da reputação de terceiro.

E. Não podendo descurar-se que para a formação dos concretos juízos de valor vertidos no artigo em apreço concorreram diversas realidades que se têm como objectivas e públicas, e que fundaram e reforçaram a convicção manifestada nas afirmações formuladas, evidenciando a existência de erros grosseiros de arbitragem, e um desempenho profissional que fica muito aquém daquele que seria o esperado de árbitros desta categoria.

F. Face aos factos que lhe estão subjacentes, a opinião emitida não deixa de ter, pois, uma base factual mínima (dir-se-á, inclusive, mais do que suficiente). Pelo que, sendo este o circunstancialismo contextual que envolveu a publicação em apreço nos autos, não poderia o Tribunal a quo deixar de o valorar positivamente a favor da recorrida, assim fazendo prevalecer o direito à liberdade de expressão que à mesma assiste.

G. Até porque, como vem sublinhando o TEDH, o único limite, fundado na protecção da honra, que há-de reconhecer-se à manifestação de juízos de valor desprimorosos da personalidade do visado pela crítica é o da crítica caluniosa sob a forma de um "ataque pessoal gratuito" (TEDH: L….. c. Portugal).

H. Nesta esteira aberta pelo TEDH, o nosso Supremo Tribunal de Justiça pronuncia-se no sentido de que "tratando-se de juízos de valor exclui-se a prova da sua exactidão (acórdão do Tribunal constitucional de 24 de Março de 2004, n.º 201/04), impossível de realizar e atentatória da liberdade de expressão, importando somente que não se encontrem totalmente desprovidos de base factual, caso em que podem revelar-se excessivos (acórdão proferido no caso Rizos, acima mencionado)" (AC. do STJ de 13-01-2005, Proc. 04B3924, www.dgsi.pt).

I. Mobilizando este parâmetro de aferição de ilicitude típica da infracção p. e p. pelo art. 112.° do RD para as afirmações em apreço, terá de convir-se que as falhas de arbitragem grosseiras em que os visados incorreram nos jogos em apreço são por si só suficientes para que sobre eles pudesse ser lançado o juízo de suspeição nos termos em que o foi.

J. Ademais, por muito que possa ferir susceptibilidades alheias, criticar implica censurar negativamente. Censura essa que - enquanto manifestação da liberdade individual - só deixa de ser legítima quando exprime uma antijuricidade objectiva, violando direitos que são personalíssimos. O que claramente não sucede in casu.

K. De modo que, a conduta da recorrida não consubstanciou a prática de qualquer facto disciplinarmente relevante, seja porque nem sequer assumiu relevo típico, seja porque (embora típica) não chegou a ser ilícita, uma vez que realizada no exercício legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão.

L. Sendo certo que, quando estão em causa condutas expressivas adoptadas em contexto futebolístico — em particular no que concerne a debates que confrontam clubes rivais e que se consubstanciem em denúncias de práticas de actos ilícitos ou censuráveis para conquistar competições nacionais ou internacionais - deve, inclusive, ser atribuída uma garantia reforçada ao exercício da liberdade de expressão (TEDH: Axel Springer AG v. Germany, 2012, § 90).

M. Principalmente, num campeonato que vinha sendo marcado por sucessivas revelações de suspeitas de corrupção na arbitragem, tendo sido várias as investigações jornalísticas e, sobretudo, judiciárias levadas a cabo acerca de suspeitas de favorecimento e de falseamento de resultados a favor e por parte do S... — o que evidencia, desde logo, o ambiente de forte contestação e animosidade clubística que envolveu as manifestações (escritas) em causa nestes autos.

N. Face ao exposto, impõe-se a conclusão de que a conduta da recorrida não merece qualquer censura, não podendo subsumir-se nas normas disciplinares imputadas, nem em qualquer outra, assim se exigindo a improcedência do presente recurso, devendo manter-se na íntegra o sentido e teor da decisão absolutória proferida. (…)» (sublinhados nossos).

O DMMP junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, proncunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão aos Mmos. Juízes Adjuntos, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas conclusões de recurso, traduzem-se em apreciar se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento ao ter revogado a condenação em multa pela prática da infracção prevista e punida no art. 112.°, n°s 1 e 4, do RD_LPF.

II. Fundamentação

II.1. De facto

O TAD deu como assentes os factos que aqui se reproduzem ipsis verbis:

«(…)

1. No dia 28.04.2019, a contar para a 31.° jornada da Liga N..., disputou-se no Estádio Municipal de B... entre a aqui demandante e a S.. - Futebol, SAD, (prova documental, não impugnada pelas partes);

2. O jogo teve como árbitro principal T….. e J….. como VAR; (prova documental, não impugnada pelas partes);

3. O jogo terminou com o resultado 1-4, favorável ao adversário da Demandante. (prova documental);

4. Foram elaborados os relatórios técnicos de observação sobre o desempenho dos árbitros e dos árbitros assistentes, incluindo o VAR, de fls., no jogo n.° 13101 em apreço, cujos teores integrais por razões de economia processual aqui se dão por inteiramente reproduzidos; (prova documental não impugnada pelas partes)

5. Após o final do jogo, foi publicado um Comunicado na página oficial da Demandante e no Twitter S...Ofical da autoria desta, com os seguintes dizeres:

"Campeonato Desvirtuado - Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente.

Este domingo, contra o S..., assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do S....

Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre P... (17').

Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do S..., apesar de não existir falta de E...

Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com J...... (61') e F... (78’ e 79') a escaparem a claras infrações merecedoras de segundo cartão amarelo..." (prova documental de fls., não impugnada pelas partes)

6. No dia 30.04.2019, o Conselho de Arbitragem da Demandada, remeteu email para o Conselho de Disciplina da Demandada, com os seguintes dizeres " Exmos. Srs., Por solicitação do CA da FPF, vimos remeter link com declarações do clube S..., relativos ao jogo da Liga N... "B... x B...”, realizado no dia 28.04.2018, para o qual solicitamos a v/análise para eventual procedimento disciplinar.

https://www...

Melhores cumprimentos.” (prova documental de fls.)

7. Por Despacho do Presidente do CD da Demandada, datado de 30.04.2019, deliberou a instauração de processo disciplinar n°. 70.2018/2019, o qual culminou em 04.06.2018 com a prolação de Acórdão condenando a Demandante com aplicação da sanção de multa de €9.560.00 (nove mil quinhentos e sessenta euros), pela prática da infracção disciplinar p.p. pelo art.° 112 n°.s 1 e 4 do RDLPFP; (prova documental de fls.)

8. A decisão de condenação da S... - Futebol SAD prende-se com as afirmações vertidas no artigo intitulado "Um campeonato desvirtuado", factualidade julgada como provada no ponto [5.º] dos factos provados, (prova documental de fls., e facto alegado e não impugnado pela contraparte)

[9]. À data dos factos, o campeonato de futebol encontrava-se numa fase decisiva, sendo cada jogo e cada resultado especialmente importante para a competição, exigindo-se rigor e um acrescido profissionalismo às equipas de arbitragem (prova documental de fls., e facto alegado e não impugnado pela contraparte);

[10]. Ao longo dos vários meses de competição, foram incontáveis as denúncias públicas de comportamentos susceptíveis de afectar sobremaneira a verdade desportiva e a integridade no desporto, como foram mais que muitas as investigações jornalísticas e policiais acerca de suspeitas de favorecimento e falsear de resultados por parte do S... (facto público, para além de alegado e não impugnado pela contraparte);

[11]. As condutas por parte da equipa de arbitragem no jogo em apreço foram discutidas e divulgadas em diversos meios de comunicação, (facto público, para além de alegado e não impugnado pela contraparte);

[12]. A fls. 139 do PD n°.70-2019/20, Edição do Jornal "O ..." de 29.04.2020, constam os dizeres: Em jogos desta natureza estar T….. com a ajuda de um VAR como J….. é meio caminho para muitas análises. Sem estaleca nem andamento!’; (prova documentai de fls., facto alegado e aceite pelas partes]

[13]. A fls. 139 do PD n°.70-2019/20, Edição do Jornal "O ..." de 29.04.2020, constam os dizeres: "T…… errou demasiado no aspeto técnico e disciplinar e mostrou uma condição física deficiente. O VAR optou por não ajudar"; "Atuação muito medíocre do árbitro e do VAR, pois cometeram lapsos graves, influenciando o resultado final em prejuízo do B..."; (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)

[14]. A fls. 142 do PD n°.70-2019/20. Edição do "Jornal ... de 29.04.2020, o artigo publicado intitula “DUAS CARAS E UM PASSO GIGANTE RUMO AO TÍTULO. A perder ao intervalo, o B... goleia e isola-se na frente da Liga. Um penálti inexistente e outro duvidoso ajudaram a concretizar uma reviravolta que pode ter decidido o campeonato", (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)

[15]. A fls. 142 do PD n°.70-2019/20, Edição do "Jornal de Notícias de 29.04.2020, constam os dizeres: "O primeiro penalti do B... não existiu – E….. não toca em F…. - e o segundo das águias é duvidosos. Poupou a expulsão a F….., já amarelado, após carga sobre P.......". (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)

[16]. A fls. 144 do PD n°.70-2019/20, Edição do jornal C... de 28.04.2020, constam os dizeres: “A...... contesta primeiro penalti a favor do B...: "Ridículo”. Treinador criticou a decisão de T......em assinalar penalti sobre J......, no lance que deu empate ao Benfica. A...... criticou a decisão de T......em assinalar penálti sobre J......, no lance que deu empate diante do S.... “Ridículo!”, disparou o treinador no instagram, colocando uma imagem do lance entre o avançado encarnado e R......, em que o árbitro apitou castigo máximo”, (prova documental de fls., facto alegado e aceite pelas partes)

[17]. Tendo sido, ainda, afirmado pelo comentador televisivo R......, no programa “J..." do canal SIC, que “o S... jogou com 11 jogadores e meio”, contando com a ajuda do árbitro; mais admitindo, no programa televisivo "P...", a existência de uma “arbitragem a favor da S...". (facto alegado e não impugnado pela contraparte)

[18]. No jogo da 10.a jornada da Liga N..., disputado entre o CD T... e o S..., em que foi árbitro J...... (VAR no jogo aqui em apreço} o jogador S...... pisa dentro da área um adversário do T... - cf. ficheiro vídeo do jogo disponível para visualização em https:.... (facto alegado e não impugnado pela contraparte)

[19]. O árbitro J...... vê-se envolvido em trocas de e-mails que indiciam a prática pela S... - Futebol, SAD de actos de corrupção desportiva e tráfico de influências envolvendo agentes desportivos, como delegados da Liga e árbitros; (facto público, para além de alegado e não impugnado pela contraparte)

[20]. A decisão recorrida reconhece que “Importando, contudo, ter presente que no relacionamento social existe sempre aquela margem de actuação que se deve ter como jurídico-disciplinarmente aceitável, por não revestir objectivamente, no concreto circunstancialismo a valorar [donde não pode arredar-se a constatação de que o chamado mundo do futebol e especificamente as questiúnculas entre os grandes clubes são alimentadas, exploradas e maximizadas pelos diversos meios de comunicação), carácter ofensivo da honra ou consideração dos visados" (fls. 21); (prova documentai de fls., facto alegado e aceite pelas partes)


Assentou o Colégio Arbitral a sua convicção tendo em conta o acervo documental constante do processo disciplinar, factos públicos que dispensam prova, bem como conjugando regras de experiência comum e o respectivo princípio da livre apreciação da prova. (…)».


II.2. De direito

No presente recurso está em causa saber se as declarações da Recorrida – cfr. ponto 5 da matéria de facto -, são ou não consideradas ofensivas para os órgãos federativos e respectivos membros e de equipas de arbitragem do jogo mencionado.

E já vimos que o acórdão recorrido, do TAD, entendeu que as ditas declarações não eram ofensivas, ao salientar que «(…) À data dos factos, o comunicado e a conta Twitter S... Oficial, respaldam um contexto inequívoco: futebol profissional (Liga N...), recta final do campeonato, reportando-se o jogo que subjaz à 31ª. Jornada [o campeonato é composto por 36 jornadas], erros de arbitragem com alegada influência no jogo, tendo a Demandante referenciado quatro erros em concreto, em relação aos quais especialistas de arbitragem consideram assistir razão à Demandante, e com influência directa no resultado e por via disso, podendo influenciar o resultado podendo reflectir alterações na tabela classificativa; derrota contra o líder do campeonato e prejuízo invocado que beneficia não apenas aquele mas também o competidor directo para o 3.° lugar; (o competidor da Demandante no jogo era a S... Futebol SAD, que disputava o 1.º lugar, sendo que na tabela classificativa outra sociedade anónima desportiva, beneficiou directamente da derrota da Demandante na disputa do 3°.lugar, aumentando a diferença pontual para 6 pontos, como resulta do doc.de fls.142 do PD n°. 70-18/19) (…)»

«(…) que se impõe concluir pela verificação em concreto de base factual mínima nas declarações constantes do comunicado oficial da Demandante, que não foi a única a promover a critica, ainda que viril mas assente em diversos factos concretos. Na apreciação das mesmas impõe-se situar as expressões no "enquadramento preciso em que foram ditas, (cfr. Ac. TRP de 18.01.2017 relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Maria Manuela Paupério, consultado in www.dgsi.pt.

Por outro lado, não são conhecidas quaisquer denúncias para efeitos disciplinares ou procedimentos criminais dos alegados visados, o árbitro T......e o VAR J......, seja com referencia a Demandante seja com referencia aos diversos autores das corrosivas criticas que lhes foram brindadas (…)»

«(…) vejamos, se a linguagem contida no comunicado da Demandante em contraponto académico e de raciocínio ultrapassa a fronteira que abate o afastamento da punição. Podendo mesmo socorrer-nos dos próprios exemplos citados pela Demandada, desde logo no AC STA, de 16.02.19. É que, contrariamente ao que sucede nos presentes autos, daquele aresto importa verificar quais as declarações que lhe deram voz, pois ali se condena considerando que "...Além de que se afirma que “nesta jornada” ocorreram factos equiparados aos alegados casos de corrupção em causa no “Apito Dourado”, imputando aos árbitros comportamento semelhante aos em causa naquele caso. Ou seja, imputa-se aos árbitros, a título pessoal, comportamentos que podem configurar indício de corrupção...” Como facilmente se verifica, nas declarações ora em apreço, nenhuma alusão, pessoal, em concreto ou abstracto é feita quanto a qualquer indício de corrupção do árbitro T......ou do VAR J....... (…)

Também não poderá colher a argumentação da Demandada segundo a qual a Demandante, com as afirmações apostas no comunicado oficial "quis afirmar de forma expressa, que os mesmos decidiram lances de forma intencional e que as suas actuações foram deliberadas para a prejudicar e simultaneamente beneficiar a S... SAD.” (pág.25 do Acórdão Recorrido). (…)

(…) a verdade é que, atenta a factualidade elencada, os erros que invoca influíram no resultado, de forma decisiva, e contribuíram para a interferência na tabela classificativa. E se o árbitro/VAR, na perspectiva da Demandante, tiveram influência directa no resultado por força dos erros que lhes apontaram, percebe-se o raciocínio lógico que espraiam para expressar a falência da arbitragem. Esta alegação da Demandante não ultrapassa o direito fundamental de liberdade de expressão. “E, ainda que interferisse, seria num grau muito leve quando comparado com a alternativa de o arguido estar calado a propósito das mesmas questões, em constrição - que seria de intensidade média ou alta - do direito previsto no artigo 37.º-1-2 da CRP; ou seja, haveria desproporcionalidade se entendêssemos como entenderam o CD/FPF (…).

(…) as declarações proferidas pela Demandante assentam “numa base factual mínima, que ainda que possa não corresponder a factos realmente provados, concede ao declarante fundamento bastante para que, em boa-fé, acredite nas afirmações que produz." E, dos autos não se mostra provado, sequer alegado, que a Demandada as produziu com má-fé que desvirtue o acreditar no que afirmou e reproduziu.

E, relembremos que, concernente às opiniões ou juízos sobre factos, quando suscetíveis de afetar a honra de terceiros, uma vez que a verdade daqueles é indemonstrável, a sua ilicitude e consequente punibilidade haverá de depender de um juízo de proporcionalidade relativamente ao fim visado, inexistente no caso sub-judice em que não se evidencia, também, que a Demandada tivesse como propósito único, caluniar, rebaixar, mesquinhar ou humilhar, seja o árbitro, seja o VAR seja ainda o CA da Demandada. (…)

Vejamos então.

A questão jurídica controvertida, foi já apreciada várias vezes por este TCA Sul, designadamente, nos acórdãos de 16.01.2020 e de 13.02.2020, P.154/19.2BCLSB e P.155/19.0BCLSB, respetivamente, e dos quais se pode concluir – cfr. sumário do primeiro dos acórdãos referido, no qual a primeira signatária foi adjunta -, o seguinte:

1. O cometimento do tipo de ilícito disciplinar de difamação p. e p. no artº 112º nº 1RDLPFP, tal como o ilícito penal correspondente, consiste no uso de expressões idóneas a ofender a honra e consideração alheias e, do ponto de vista do elemento subjectivo exige que o agente a tenha consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, sempre tendo em linha de conta o meio social e cultural em que os factos se inserem e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem” ou seja, o recurso ao conceito jurídico de “ homem médio” e “bom pai de família”.

2. O tipo de ilícito difamatório exige que as palavras ou expressões usadas não tenham outro sentido que não seja o de ofender; dito de outro modo, que inequívoca e em primeira linha as palavras ou expressões usadas visem gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome do visado.

3. Considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação seja em que domínio de matérias for, no caso dos autos, de erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se auto-censurarem, derivas que o edifício jurídico português não permite.

4. O artº 37º nº l da CRP consagra o princípio da liberdade de expressão e informação, determinando que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de ser informado, sem impedimentos, nem discriminações".”

Sobre este aresto recaiu, em sede de recurso de revista, uma decisão em sentido diverso, do Supremo Tribunal Administrativo, nos seguintes termos – cfr. acórdão do 04.06.2020, P. 154/19.2BCLSB:

I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.

II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79.º/2 da CRP)”.

Mais recentemente, no acórdão de 02.07.2020, P.139/19.9BCLSB, concluiu também aquele Colendo tribunal, que:

I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha.

II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

Por seu turno, também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), tem exigido que o direito à liberdade de expressão seja apreciado em equilíbrio com os direitos ao bom nome, à reputação e à imagem, visando a salvaguarda de uma sociedade democrática e considerando a envolvência de cada caso concreto, numa ótica de proporcionalidade.

Para o efeito, remetemos para a publicação deste Tribunal Europeu “Guide sur l’article 10 de la Convention européenne des droits de l’homme. Liberté d’expression.” Conseil de l’Europe/Cour européenne des droits de l’homme. Première édition – 31 mars 2020”(1), da qual consta uma vastíssima resenha da citada jurisprudência do TEDH sobre a matéria(2).

Nessa publicação, salienta-se a necessidade de distinguir um juízo de valor gratuito e ofensivo de um juízo de valor alicerçado em factos e proferido no âmbito de um debate de ideias, remetendo-se para o Ac. L….. c. Portugal, P. nº 37698/97, de 28/09/2000, ou para o Ac. n.º 733/06, L….. e outros c. Malta, de 24/07/2007, ou n.º 25968/02, Dyuldin e Kislov c Russia, de 31/10/2007 (cf. pp. 39 e 40 da indicada publicação).

De destacar, igualmente, o Ac. n.º 49418/99, Hrico c. Eslováquia, em que o TEDH discutiu a publicação de críticas relativamente a julgamentos produzidos por um juiz do supremo tribunal e onde considerou que tais criticas correspondiam a juízos de valor que tinham uma base factual suficiente para se considerarem no âmbito da liberdade de expressão (cf. p. 39 da indicada publicação).

Entre as afirmações que foram consideradas pelo TEDH como ainda cabendo na liberdade de expressão salientam-se, a título de exemplo, o apelidar de um titular de um órgão de um clube futebolístico de “patrão dos árbitros” (cf. Ac. do TEDH C….. e S….. - Sociedade Independente de Comunicação, SA c. Portugal, P. n.º 11182/03 e 11319/03, de 26/04/2007), a afirmação de que os dirigentes de dois clubes de futebol cometeram um crime de abuso de confiança fiscal (cf. Ac. P….. – Comunicação Social, SA. e outros c. Portugal, P. n.º 39324/07, de 07/12/2010), a afirmação de que o presidente de um clube de futebol era “o campeão nacional dos arguidos” e um “inimigo figadal” da selecção” (cf. Ac. do TEDH, Ac. S….. e P….. c. Portugal, n.º 33287/10, de 23/10/2013), entre muitos.

No Ac. n.º 43924/02, A…… c. Portugal, de 23/01/2007, o TEDH refere o seguinte: “(…) 23. O Tribunal lembra que, de acordo com a sua jurisprudência constante, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Tal como estabelece o artigo 10.º da Convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente. A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao Tribunal averiguar se a ingerência litigiosa correspondia a uma «necessidade social imperiosa». Os Estados Contratantes gozam de uma certa margem de apreciação para determinar se existe uma tal necessidade, mas esta margem anda de par com um controlo europeu que incide tanto na lei como nas decisões que a aplicam, mesmo quando estas emanam de uma jurisdição independente (vide L……. c. Portugal, n.º 37698/97, acima referido, § 30).

(…) 28. Ao examinar, come se deve, o contexto do caso, bem como o conjunto das circunstâncias em que as expressões ofensivas foram proferidas, o Tribunal observa antes de mais que o debate em questão relevava claramente do interesse geral. (…) os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a um homem político que actua na sua qualidade de figura pública do que de um simples particular. O primeiro expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, tanto pelos seus adversários políticos como pelos jornalistas e a massa dos cidadãos, e deve mostrar uma maior tolerância, sobretudo quando ele próprio faz declarações públicas que podem ser objecto de crítica (Jerusalem c. Autriche, no 26958/95, § 38, TEDH 2001-II).

(…) 30. Ao analisar as referidas expressões, o Tribunal admite que o requerente utilizou uma linguagem provocadora e, no mínimo, deselegante para com o seu adversário político. Todavia, tal como o Tribunal já teve ocasião de assinalar, neste domínio a invectiva política extravasa muitas vezes o plano pessoal: são estes os contratempos do jogo político e do livre debate de ideias, garantes de uma sociedade democrática (L………. supra referenciado, § 34). Lidas globalmente, as expressões em causa dificilmente podem passar por excessivas…”.

Por seu turno, no Ac. n.º 53139/11, Do Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, de 04/10/2016, o THDH condenou Portugal e no texto do acórdão “recorda que quem participa de um debate em que se discutem assuntos de interesse geral, é-lhe permitido recorrer a algum grau de exagero ou de provocação ou, noutras palavra, de fazer declarações um tanto imoderadas (veja-se Marian Maciejewski c. Poland, n.o. 34447/05, § 79, 13 Janeiro 2015, com demais referências)(3).

Foi também o TEDH que veio explicitar «(…) que as opiniões não são verdadeiras nem falsas. Podem ter mais ou menos sustento factual, mas não passam de opiniões, de juízos de valor que variam de pessoa para pessoa, pelo que não faz sentido condenar uma pessoa por ter uma opinião falsa; já os factos serão verdadeiros ou falsos.(…)».(4)

Neste pressuposto, considerando o quadro jurídico fixado, importa analisar o caso concreto e aferir se as circunstâncias apuradas e descritas na matéria de facto que resultou provada preenchem, ou não, a infracção disciplinar prevista e punida pelo art. 112.º, n.º 1 e 4, do RD_LPFP, segundo os quais:

1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.

2. Se dos factos previstos na segunda parte do número anterior resultarem graves perturbações da ordem pública ou se provocarem manifestações de desrespeito pelos órgãos da hierarquia desportiva, seus dirigentes ou outros agentes desportivos, os limites mínimo e máximo das sanções previstas no número anterior são elevados para o dobro.

3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.

4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa."

Resulta dos autos que - cfr. ponto 5 da matéria de facto:

“Um campeonato desvirtuado

Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente.

Este domingo, contra o S..., assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do S....

Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre P…… (17'.).

Aos 57', porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do S..., apesar de não existir falta de E…..

Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar com J…., (61') e F….. (78'79) a escaparam a claras infrações merecedoras do 2.º cartão amarelo.

Nos momentos de decisão, o S... foi sempre impedido de disputar 3.º lugar, sendo também flagrante a forma como o nosso competidor direto foi constantemente favorecido, jornada após jornada, para que o topo da tabela refletisse a hierárquica crónica."

Da simples leitura deste facto, e considerando a doutrina que dimana da jurisprudência do STA e do TEDH, designadamente, a supra citada e transcrita, temos por certo que o exercício do direito da Recorrida à crítica e à indignação não colidiu com os direitos ao bom nome, honra e reputação do árbitro, do VAR ou ainda da Recorrente.

Vejamos porquê.

No caso em apreço, atenta a fase final do campeonato, e estando em causa a atuação dos árbitros – principal e VAR – no jogo em causa, a critica à arbitragem, feita nos moldes em que foi feita, não é agravada pelo imputado favorecimento do clube adversário, pois que a mesma surge como consequência lógica de tais erros e sua implicação no resultado final do jogo.

Acresce que, resulta do contexto em que tais declarações foram proferidas – logo após o jogo – cfr. ponto 5 da matéria de facto – e que, nesse contexto, a primeira e últimas frases, consubstanciam verdadeiros desabados, face ao desânimo provocado pelo resultado do jogo e pelos erros de arbitragem - segundo a perspetiva da Recorrida – que tinham acabado de suceder, e não críticas dirigias a pessoas ou instituições com o propósito único de caluniar, rebaixar, mesquinhar ou humilhar.

Num ambiente competitivo, na sua reta final, quando um ganha, ou outro perde.

Se os erros de arbitragem descritos prejudicaram a Recorrida, naturalmente que beneficiaram o clube adversário. Se os identificados erros foram cometidos pelos árbitros – principal e VAR – o alegado benefício decorre de algo que estes fizeram, ao ter errado, na opinião da Recorrida, por (i) não ter sido marcado um penálti por jogo perigoso com contacto sobre P……. (17'.), (ii) por ter sido marcado, indevidamente, aos 57', uma grande penalidade a favor do S..., apesar de não existir falta de E….. e, por fim, (iii) por não terem sido mostrados cartões amarelos a J……, (61') e F…… (78'79), que assim escaparam a claras infrações.

Tratando-se de um campeonato na sua fase final, em que disputavam os lugares cimeiros – cfr. ponto 7 da matéria de facto – não é mais desonroso opinar uma intenção de favorecimento do que identificar os erros de arbitragem que a Recorrida descreveu.

E não havendo dúvidas que a crítica feita está consubstanciada em factos ocorridos - segundo a perspetiva da Recorrida, mas não só, se atendermos aos pontos 11 a 17 da matéria de facto -, baseada na descrição e identificação dos mesmos – cfr. factos descritos supra e cfr. ponto 5 da matéria de facto -, tem esta crítica uma natureza objetiva e, por esse motivo, está dentro do limite legítimo do exercido do direito de liberdade de expressão.

Como se disse, a primeira e a última frase do comunicado em causa – cfr. ponto 5 da matéria de facto – não podem ser consideradas autonomamente e fora do contexto – de fim de jogo; num campeonato na sua reta final e com erros cometidos - segundo a perspetiva da Recorrida -, que os identificou claramente. Estas mais não são do que desabafos conclusivos demonstrativos de desalento e frustração, muito mais do que imputações concretas sobre pessoas ou instituições, sem vislumbre de propósito inequívoco de caluniar, rebaixar, mesquinhar ou humilhar.

Os invocados erros de arbitragem, tendo prejudicado a Recorrida – segundo a leitura que a mesma fez do jogo -, naturalmente que beneficiariam diretamente a equipa adversária.

Punir a Recorrida por ter escrito o que uma pessoa normal, colocada que fosse na sua posição, no final de um jogo decisivo, perante os erros de arbitragem que identificou, com o resultado concreto do jogo em apreço e atendendo à fase final do campeonato, é pura questão linguística e não disciplinar.

Pelo que, se conclui que tal punição limita de uma forma desproporcional o direito à liberdade de expressão da Recorrida.

De notar também que nenhum dos árbitros apresentou queixa, o que não pode deixar de revelar que os mesmos encaram estas críticas como normais, no contexto em causa e no “calor” do desfecho de um campeonato - cfr. acórdão recorrido, supra transcrito - mas mesmo que o tivessem feito, o que se expos ser-lhes-ia inteiramente aplicável.

Diferente seria, pois, se tivéssemos perante um caso em que o excesso de linguagem e as ilações sobre a atuação dos órgãos desportivos e dos árbitros surgissem descontextualizadas ou pensadas friamente e sem substrato factual que os sustentasse claramente desonrosas, achincalhantes ou ofensivas.

Concluímos, assim, que o texto em causa não ultrapassa, no contexto em que foi escrito, a mera crítica às decisões tomadas pelos árbitros do jogo.

O direito à crítica constitui uma afirmação concreta do valor da liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo, consagrado no art. 37.°, n.° 1, da CRP, sendo que, no caso em apreço, as afirmações sob escrutínio não ultrapassam os critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação.

As expressões concretamente utilizadas não são, pois, de molde a convencer de que se trata de um intencional ataque à integridade dos árbitros como julgou o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, pois não foram para além da crítica ao seu desempenho profissional e não revelam uma carga ofensiva, por gratuita e achincalhante, inequívoca.

Nestes termos, e face a todo o exposto, julga-se improcedente o invocado erro de julgamento imputado à decisão recorrida.


III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida, do TAD, que anulou a decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, de aplicação da pena de multa, no valor de €9.560.00, ao S... – Futebol SAD.

Custas pela Recorrente (cf. art.s. 77.º, n.º 4, da Lei n.º 74/2013, de 06.09.; 2.º, n.ºs 2, 4, 5, Anexo I à Portaria n.º 301/2015, de 22.09.; 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC; 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 01.10.2020

Dora Lucas Neto


*
A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente Acórdão os senhores magistrados integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira (com declaração de voto).
*
Declaração de voto
A presente situação de facto, dado o contexto em que é publicado o texto, a alegada influência no resultado final e a fase do Campeonato, assim como o seu teor, como resulta do presente acórdão, permitem concluir de forma inversa à por nós sufragada no Proc. nº 53/20.5BCLSB, e justificar a não verificação da infração nos termos dos artigos 19º e 112º, nº 1 do RD_FPFP. Sendo o conteúdo do texto publicado, uma censura justificável e compreensível dentro dos limites do direito à crítica enquanto manifestação da liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo, consagrado no artigo 37.°, n.° 1, da CRP, não colidindo com os deveres ínsitos nos aludidos preceitos legais.
(Ana Cristina Lameira)

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(1).Disponível em https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_10_FRA.pdf
(2).Cfr. análise e resenha jurisprudencial referida no ac. deste TCA Sul, P.63/20, de 01.10.2020, que seguimos, no qual a aqui primeira signatária é ali também adjunta.
(3).v. também análise e resenha jurisprudencial referida no ac. deste TCA Sul, P.63/20, de 01.10.2020, que seguimos, no qual a aqui primeira signatária é ali também adjunta.
(4).Teixeira da Mota, Liberdade de Expressão – A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses, Revista Julgar, n.° 32, 2017, pgs. 181-184.