Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1866/18.3BELSB
Secção:JUÍZA PRESIDENTE
Data do Acordão:03/25/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CONFLITO DE COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
Sumário:A competência para decidir ação, que deu entrada em juízo em 12 de outubro de 2018 e em que está em causa a obtenção do pagamento de uma indemnização, com fundamento na responsabilidade extracontratual de ordem profissional relacionada com processo disciplinar, é do Juízo Administrativo Comum.
Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão

[art.º 36.º, n.º 1, alínea t), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)]


I. Relatório

O Senhor Juiz do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (doravante TAC de Lisboa) veio requerer oficiosamente, junto deste TCAS, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do art.º 36.º do ETAF, a resolução do Conflito Negativo de Competência, em Razão da Matéria, suscitado entre si e o Senhor Juiz do Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal, uma vez que ambos se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da ação ali intentada por R ……………. (doravante A.) contra a Ordem ………….. (doravante R.).

Chegados os autos a este TCAS, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 112.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). As partes nada disseram.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP), nos termos do art.º 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência ser atribuída ao Juízo Administrativo Comum.

É a seguinte a questão a decidir:

a) A competência para decidir ação, que deu entrada em juízo em 12 de outubro de 2018 e em que está em causa a obtenção do pagamento de uma indemnização, com fundamento na responsabilidade extracontratual da Ordem dos ..........................., cabe ao Juízo Administrativo Social do TAC de Lisboa ou ao Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal?

II. Fundamentação

II.A. Para a apreciação do presente conflito, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1) Em 12.10.2018, o A. instaurou no TAC de Lisboa uma ação administrativa de responsabilidade civil extracontratual, contra a Ordem …………, na qual formulou os seguintes pedidos:

“Nestes termos e nos demais de Direito, e por aplicação dos artºs 7º a 10º da L 67/2007, de 31/12, e demais normativo legal aplicável, deverá a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência ser condenado a Ré Ordem dos ……………..em representação do seu funcionário P………, ou em responsabilidade solidária, condenando-se a pagar ao A.:

a) a quantia de € 800.000,00 (oitocentos mil euros) por danos patrimoniais e não patrimoniais;

b) os juros de mora contabilizados sobre a quantia a atribuir, que se vencerem desde a data da citação até integral pagamento.

c) honorários a advogado neste processo nos Tribunais Administrativos, nos parâmetros fixados.

d) juros à taxa legal desde a citação;

e) a todas as verbas atrás referidas devem acrescer quaisquer quantias que eventualmente sejam devidas a título de imposto que incida sobre as quantias recebidas pela A. do R. , ora Ordem dos ...........................;

f) Em custas e demais encargos legais e em quaisquer outros eventualmente pagos ou a pagar pelo A.

g) O impedimento de Paulo Graça para exercer funções disciplinares na Ordem dos ........................... durante 40 anos” (cfr. documentos com os n.ºs 005529709, 005529706, 005529707 e 005529708, de registo no SITAF neste TCAS).

2) Foi proferida decisão, no TAC de Lisboa – Juízo Administrativo Comum, a 12.10.2023, da qual se extrai designadamente o seguinte:

“(…) No caso sub judice, o Requerente configura a presente ação como sendo responsabilidade civil extracontratual, onde pede a condenação da Ré ao pagamento de indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de atos ilegais praticados por um seu funcionário, no âmbito de processos disciplinares instaurados ao Requerente.

Deste modo, trata-se de um litígio relativo à efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito de um processo disciplinar, pelo que o juízo social deste Tribunal é o competente em razão da matéria para conhecer do presente processo – cf. artigo 44º-A, nº1, al. b), ponto ii) do ETAF, conjugado com o artigo 2º, nº 1, alínea b) do DL 174/2019, de 13/12, e artigo 1.º, alínea a), Portaria 121/2020, de 22/05, tendo em conta que a supracitada alteração legislativa teve efeitos interpretativos.

Destarte, cumpre declarar este Juízo Comum materialmente incompetente para conhecer do objeto desta ação, sendo de ordenar a remessa dos autos ao Juízo Administrativo Social deste Tribunal, nos termos dos artigos 14º, nº1 e 89º, nº2, também do CPTA, como infra se determinará.

(…)

Nestes termos e com os fundamentos supra expostos, jugo este Juízo Administrativo Comum materialmente incompetente e, em consequência, ordeno a remessa dos autos ao Juízo Administrativo Social deste Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa” (cfr. documento com o n.º 005529849 de registo no SITAF neste TCAS).

3) A decisão referida em 2) foi notificada às partes e ao IMMP e, após o trânsito, os autos foram remetidos à secção central e distribuídos no Juízo Administrativo Social (documentos com os n.ºs 005529850, 005529851, 005529852 e 005529853 de registo no SITAF neste TCAS).

4) Foi proferida decisão no TAC de Lisboa – Juízo Administrativo Social, a 23.12.2024, da qual se extrai designadamente o seguinte:

“… A questão que aqui se coloca está em saber se a apontada alteração, introduzida pelo Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ao citado artigo 44º-A do ETAF, tem natureza interpretativa (como defende o Senhor Juiz do Juízo Comum) ou inovatória. Dito de outro modo, importa saber se a alteração verificada é imediatamente aplicada a todas as ações para efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas para as quais é competente o juízo administrativo social, aí se incluindo os instaurados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ou se, diferentemente, apenas se aplica às ações entradas em juízo a partir de 29 de agosto de 2023 (cf. artigo 9º do citado diploma).

Sobre esta questão – da natureza interpretativa ou inovatória da alteração ao artigo 44.º-A do ETAF, na redação em vigor - já se pronunciou, em diversas ocasiões, o Tribunal Central Administrativo Sul, nomeadamente nas decisões singulares proferidas no âmbito dos processos nº 1640/22.2BELRS, 19.04.2024; nº 2462/16.5BELRS, de 22.04.2024, nº 165/21.8BELRS e 716/22.0BESNT, ambas de 26.04.2024 (disponíveis in http://www.dgsi.pt/jtcae.).

(…)

No mais, e no que para aqui importa – ações referentes para efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas para as quais é competente o juízo administrativo social - se atentarmos na asserção “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados (…) com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.” , somos levados a concluir que o legislador de 2023, através do DL 74-B/2023, de 28 de agosto, entendeu, inovadoramente, que o Juízo Administrativo Social era o juízo mais preparado para o julgamento de todas as pretensões fundadas em responsabilidade civil em que o fundamento desta decorre de atos ou omissões para os quais é competente o juízo administrativo social.

Diga-se, por último, quanto à “aplicação no tempo” do DL 74-B/2023, de 28/08, que o artigo 8º de tal diploma previu expressamente a aplicação aos processos pendentes das alterações respeitantes à “alínea b) do artigo 26.º do ETAF e ao artigo 280.º do CPPT” e, bem assim, a norma revogatória contida na “alínea a) do artigo 6º” (o nº 2 do artigo 83º do Regime Geral das Infrações Tributárias).

Face a tudo quanto vem dito, não se vê qualquer razão para reconhecer natureza interpretativa à nova redação do artigo 44º-A, nº1, alínea b), do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8.

Cabe ainda convocar para aqui o estatuído do art.º 5º do ETAF, nos termos do qual “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”, de conteúdo análogo ao artigo 38.º da Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário que dispõe no seu nº 1 que “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.”.

Em face do que vem dito e tendo presente, por um lado, que no caso dos autos, a presente ação de efetivação de responsabilidade civil deu entrada em juízo no dia 12 de outubro de 2018, por conseguinte, em momento anterior à publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8 e, por outro lado, que o litígio aqui em dissidio não era, no quadro do direito anterior (Decreto-Lei nº 114/2019) objeto de uma previsão legal expressa, só nos resta concluir que a competência material para apreciar o presente litígio, não cabe ao juízo de administrativo social do TAC de Lisboa mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal - artigo 5º do ETAF, alínea b) do nº 1 do artigo 44º-A do ETAF, na redação dada pela Lei nº 114/2019, de 12/9 e artigo 2º, nº1, alínea a) do DL nº 174/2019, de 13/12 (criação de juízos de competência especializada/ ETAF), conjugado com a alínea a) do artigo 1º da Portaria nº 121/2020, de 22/5 (Entrada em Funcionamento dos Juízos Especializados dos Tribunais Administrativos e Fiscais) – cf. Acórdão do TCA Sul, de 21/08/2024, Proc. n.º 1727/19.9BELSB.

Sendo, consequentemente, de considerar o presente Tribunal incompetente em razão da matéria relativamente ao litígio sub judice, o que determinará, após trânsito em julgado da presente decisão, que seja suscitado o correspondente conflito de competência entre Tribunais da Jurisdição Administrativa, porquanto já anteriormente o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa se havia julgado incompetente em razão da matéria para conhecer e dirimir o presente processo …” (cfr. documento com o n.º 005529870 de registo no SITAF neste TCAS).

5) Quando os presentes autos chegaram a este Tribunal, ambas as decisões judiciais tinham transitado em julgado (cfr. plataforma SITAF).


*

II.B. Apreciando.

Considerando o quadro processual descrito, cumpre decidir qual o juízo de competência especializada administrativa materialmente competente para o conhecimento dos autos.

Vejamos, então.

Nos termos do art.º 36.º, n.º 1, alínea t), do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respetivo tribunal central administrativo”, sendo que, no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos art.ºs 135.º a 139.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Estabelece-se no n.º 1 do art.º 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” segue o regime da ação administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. art.ºs 109.º e ss. do CPC).

Por sua vez, o art.º 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”.

Entende-se (como tem sido pacífico na jurisprudência deste TCAS) que, apesar de o art.º 136.º do CPTA manter a redação originária, a mesma não afasta a aplicação da norma constante do n.º 1 do art.º 111.º do CPC, a qual deve ser também aplicada no contencioso administrativo, com as devidas adaptações, ex vi art.º 135.º, n.º 1, do CPTA.

Ademais, o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (art.º 13.º do CPTA).

Atenta a data de entrada em juízo da presente ação administrativa [12.10.2018], data por referência à qual se fixa a competência (cfr. art.º 5.º do ETAF), é ainda de considerar o disposto no art.º 44.º-A, do ETAF, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro e na sua redação originária, nos termos do qual:

“1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei…”.

Como referido na decisão de 17.07.2024 deste TCAS (Processo: 171/19.2BELSB):

“[O] Juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, ou seja, abarcando as matérias que não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados. A competência material especializada prevalece sob a competência material comum precisamente porque esta é residual.

Na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador de 2019 atendeu ao objeto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social ao direito especial da função pública e ao denominado direito da segurança social.

(…) A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

Como é entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina, a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91 e, por todos o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4-7-2006, proc.11/2006, e ainda o Ac. do STJ de 14-5-2009, proc. 09S0232, sublinhando todavia que o tribunal, apesar de atender apenas “aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada (causa de pedir e pedidos) não está vinculado às qualificações jurídicas do autor”.

É ainda pertinente chamar à colação o entendimento unânime entre ambos os TCA, no tocante à densificação do alcance da competência do Juízo Administrativo Social. Assim, escreveu-se na decisão deste TCAS de 23.06.2023 (Processo: 658/21.7 BESNT)

“[A] norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho”.

Ademais, no sentido da natureza inovatória da redação dada ao art.º 44.º-A, n.º 1, alínea b), do ETAF, pelo DL n.º 74-B/2023, de 28 de agosto, chama-se à colação a decisão deste TCAS de 19.04.2024 (Processo: 1640/22.2BELRS), onde se refere:

“[O] legislador de 2023 (…) incluiu (…) [,] no âmbito da esfera de competência do juízo administrativo social, todos os litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar (em geral e não apenas os emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas).

Disso deu conta o preâmbulo do aludido diploma quando refere que Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…).”( sublinhado nosso).

(…) Vejamos (…) se podemos afirmar o caráter interpretativo da LN [o Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, na parte em que alterou o artigo 44º-A no segmento que aqui nos ocupa – nº1, alínea b), ii)], ou seja, vejamos se a LN passa no teste que nos permitirá saber se a mesma é interpretativa.

Em primeiro lugar, importa saber se há uma declaração expressa contida no texto do diploma nesse sentido. E aqui, percorrido o texto do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, a resposta é negativa.

Tem igualmente significado a afirmação expressa do carácter interpretativo constante do preâmbulo do diploma. Aí, tal afirmação também não se mostra feita.

Por último, se o diploma nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto (e até em conjugação com o teor do seu preâmbulo) quando for manifesta a referência (tácita) da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Também aqui, a resposta terá que ser negativa.

É verdade, e este Tribunal não o desconsidera, que (…) do preâmbulo do DL nº 74-B/2023, de 28/08, consta, além do mais, a propósito da competência dos juízos administrativos sociais, a referência a “interpretações divergentes” e “clarificação”. (…)

[A] clarificação do âmbito da competência do juízo administrativo social diz respeito aos litígios relativos a questões de proteção social (vide, entre outras, a Decisão do Presidente do TCA, de 01/07/22, no processo nº 196/21.8 BESNT).

No mais, e no que para aqui importa – processos relativos ao exercício do poder disciplinar - se atentarmos na asserção “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar”, somos levados a concluir que o legislador de 2023, através do DL 74-B/2023, de 28 de agosto, entendeu, inovadoramente, que o Juízo Administrativo Social era o juízo mais preparado para o julgamento de todos os litígios relativos ao exercício do poder disciplinar e não apenas ao exercício daquele poder, no âmbito de um vínculo de trabalho em funções públicas. Daí, entende-se, o legislador ter consagrado a autonomização do conhecimento dos processos relativos ao exercício do poder disciplinar.

De resto, até ao DL 74-B/2023, não cremos que tenha havido “interpretações divergentes” sobre o âmbito das competência, entre os juízos administrativos comuns e sociais, quanto aos processos relativos ao exercício do poder disciplinar, pois era pacífico, na redação do artigo 44º-A de 219, que ao juízo administrativo social só competia apreciar e decidir as causas relativas ao exercício do poder disciplinar que decorressem do vínculo de trabalho em funções públicas; todos os demais processos relativos ao exercício do poder disciplinar eram da competência do Juízo Administrativo Comum.

(…).

Face a tudo quanto ficou exposto, não se vê qualquer razão para reconhecer natureza interpretativa à nova redação do artigo 44º-A, nº1, alínea b), do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, nos termos que aqui fomos chamados a apreciar, antes – isso, sim – natureza inovatória”.

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, cumpre sublinhar que o A. formulou o pedido mencionado em 1) do ponto II.A., fundando o seu pedido em atos que reputa de ilegais, praticados pelos órgãos da R., no âmbito de processo disciplinar m.i. na petição inicial.

Há que, como referido, ter em conta, para a decisão do presente conflito, a redação originária do art.º 44.º-A do ETAF.

Ora, in casu, não está em apreciação qualquer litígio emergente do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou relacionado com formas públicas ou privadas de proteção social, nos termos já assinalados na jurisprudência a que se fez menção e que aqui se reitera. Por outro lado, como referido já, aos litígios atinentes a processos disciplinares fora do âmbito da relação de trabalho em funções públicas só é de aplicar a redação atual do art.º 44.º-A do ETAF se a propositura da ação for ulterior à data de entrada em vigor desta redação.

Sendo, in casu, aplicável a redação originária do art.º 44.º-A do ETAF, não existe sustentação para considerar competente o Juízo Administrativo Social, dado o âmbito desta redação a que nos referimos e que não abrange situações como a dos autos.

Como tal, conclui-se que a competência material, in casu, é do Juízo de Administrativo Comum do TAC de Lisboa [art.º 5.º e art.º 44.º-A, n.º 1, alínea b) (na redação originária), ambos do ETAF, art.º 2.º, alínea a), do DL n.º 174/2019, de 13 dezembro, conjugado com a alínea a) do art.º 1.º da Portaria n.º 121/2020, de 22 de maio].

III. Decisão

Face ao exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas.

Registe e notifique.

Baixem os autos.


Lisboa, d.s.

A Juíza Desembargadora Presidente,

(Tânia Meireles da Cunha)