Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1622/21.1BELSB |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 01/06/2022 |
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Relator: | RUI PEREIRA |
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Sumário: | ![]() |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TCA SUL I. RELATÓRIO 1. A..., residente na Rua ..., Lisboa, intentou no TAC de Lisboa contra a Câmara Municipal de Lisboa (considerando-se a acção regularmente proposta contra o Município de Lisboa, nos termos do artigo 10º, nº 4 do CPTA) e contra a “GEBALIS – Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa, EM, SA” uma providência cautelar de “Intimação para Abstenção de uma Conduta por Parte da Administração”, na qual peticionou “o decretamento provisório, com base no carácter de urgência e sem audição prévia das entidades requeridas com atribuição de efeito imediato ao pedido nos termos do disposto nos artigos 112º, nº 1, alínea i) e 131º do CPTA” e “ser notificada/intimada a Câmara Municipal de Lisboa e a GEBALIS para se absterem, sob pena de incorrerem no crime de desobediência e de por qualquer forma criarem obstáculos, impedir o normal uso do locado pela requerente, do companheiro e do filho mais velho esquizofrénico e dos 4 filhos menores com 16, 10, 6 e 3 anos de idade tal como doc. 1 já junto, para o fim a que se destina (habitação própria e exclusiva) da casa sita na Rua ...Carnide, até que lhe seja atribuída uma nova habitação ou fixada uma renda para a actual morada de família”. 2. O Senhora Juíza do TAC de Lisboa, por sentença datada de 24-9-2021, rejeitou liminarmente o requerimento cautelar por manifesta falta de fundamento da pretensão formulada. 3. Inconformada, a requerente recorre para este TCA Sul, tendo para o efeito formulado as seguintes conclusões: “1ª – A recorrente encontra-se a habitar na actual habitação por não ter outro sitio para onde ir e há vários anos que a recorrente aguarda pela (para) atribuição de uma casa social mas da GEBALIS, nunca recebeu qualquer resposta. 2ª – A recorrente, o companheiro e os cinco filhos menores não dispondo de qualquer outra habitação. 3ª – Tem assistido a entregas de chaves a pessoas que não concorreram tal como sucedeu recentemente que um seu conhecido que tendo aceite a casa atribuída por concurso viu a mesma ser-lhe retirada e ocupada (foi entregue sem concurso pelo Presidente da CML) ao que consta por uma distinta senhora que não concorreu e que lhe ficou com a casa por alegadamente ser mulher de um policia municipal. 4ª – Por terem sido despejados por impossibilidade de pagamento, o que obrigou a recorrente a encontrar uma solução rápida, tendo pernoitado numa carrinha durante algum tempo e não tendo outra alternativa foi obrigada a encontrar um abrigo na sua actual habitação sem terem capacidade financeira para o arrendamento do mercado livre e a habitação social tem vindo a ser-lhe negada e prejudicarem mais ninguém pois a casa estava devoluta há dois anos, ali permanecem até que os serviços das requeridas encontrem alguma alternativa. Neste contexto, com a recorrente e o seu numeroso agregado familiar não teve outro remédio senão entrar numa casa que se encontrava abandonada e com a porta aberta. 5ª – A recorrente já tentou que a GEBALIS a recebesse para assinar um contrato de arrendamento com uma renda apoiada e de acordo com os rendimentos do agregado familiar. 6ª – Desde há vários anos atrás que a recorrente tem feito tudo para que junto da GEBALIS lhe fosse regularizada a situação visto que pretendia pagar a renda e naturalmente ter recibos na sua posse. 7ª – Temendo pela dignidade e integridade da vida do nascituro temem pelo eminente despejo tal como outros exemplos da sua família e amigos que foram despejados, foi a recorrente, o companheiro e os 5 filhos obrigados a pernoitar ao relento sem proceder aos tramites impostos por lei do reencaminhamento para outras entidades competentes, para mais não foi facultado qualquer suporte físico nem lhe foi comunicado qual o procedimento administrativo que gerou esta ameaça por parte da requerida, pelo que logo temeu a iminente entrada daqueles na sua habitação. 8ª – Recorde-se que a casa corresponde à residência da recorrente grávida e do companheiro e não dispondo de qualquer outra habitação. 9ª – A recorrente nem sequer o RSI aufere não tendo qualquer actividade remunerada, não tendo possibilidades económicas que lhes permitam arrendar uma casa. 10ª – A recorrente, ao concorrer durante estes anos consecutivos e por estar em situação de desespero por ter não ter outro sitio onde viver, adquiriu a legítima expectativa de ter acesso a uma habitação social pois que está demonstrado que carece da mesma. 11ª – A recorrente está grávida, não tem qualquer rendimento e apenas tem condições para pagar uma renda de 4 ou 5 euros, o que só é possível numa habitação social. 12ª – Com base em estado (de) necessidade o garantir a segurança, a saúde, e até o direito à vida da recorrente e do bebé a nascer, faz com que se verifiquem os requisitos objectivos e subjectivos do estado de necessidade não apenas desculpante, mas verdadeiramente dirimente da responsabilidade criminal. 13ª – Acresce ainda que tal como resulta do Acórdão do TCAS nº 383/19.9BELSB, estando demonstrada a efectiva carência habitacional tal como a recorrente alega, a entidade requerida GEBALIS enquanto entidade de gestora de um parque de habitação social esta obrigada, quando confrontada com o requerimento da providência a averiguar a existência de efectiva carência habitacional e sendo a mesma evidente, deverá ser emitido juízo de prognose favorável por parte do tribunal se a GEBALIS cumprir a obrigação legal imposta pela Lei nº 32/2016, de 24/8, facilmente concluirá que a recorrente afinal tem direito à atribuição de uma habitação social atenta a fragilidade da sua situação económica sob a forma de atribuição em emergência social. 14ª – Em suma, a pretensão da recorrente com base no estado de necessidade e na situação de emergência social tem direito a que seja previamente ouvida a entidade requerida à qual tem a obrigação não apenas de informar mas sobretudo de acompanhar e comunicar ao tribunal se afinal a recorrente tem ou não carência habitacional em situação de urgência e só depois, eventualmente após a inquirição das testemunhas se pode concluir pela legalidade ou não do recurso à providência cautelar de abstenção, a qual nos termos legais deveria merecer um despacho judicial no prazo de 48 horas de deferimento relegando-se para a fase posterior à oposição a apreciação do mérito da providência. 15ª – Assim, por se afigurar que a recorrente tem direito ao deferimento provisório da providência e que o momento oportuno para se conhecer da legalidade ou não da pretensão só tem lugar após a apresentação da oposição por parte da entidade requerida, se requer a V. Exª se digne deferir provisoriamente a mesma. 16ª – Se a GEBALIS não se dignar fixar o valor da renda à recorrente, dentro dos parâmetros legais a sobrevivência do agregado familiar estará grave e irremediavelmente afectada. 17ª – Nos termos do disposto no artigo 65º, nº 1 da CRP, todos têm direito para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. 18ª – Tal disposição tem como sujeito passivo o Estado e naturalmente que incumbindo-lhe competências quer para gerir um parque habitacional perfeitamente delimitado. Logo, a notificação da GEBALIS no que respeita à omissão culposa da regularização da situação não só era oportuna como perfeitamente ilegal ao abrigo da CRP. 19ª – Efectivamente, ao abrigo da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2016, resulta do artigo 28º, nº 6 que os agregados alvos de despejo com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais. Trata-se uma disposição naturalmente imperativa”. 4. O Município de Lisboa e a “Gebalis, EM, SA” apresentaram contra-alegações, nas quais defendem que o recurso não merece provimento. 5. O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste TCA Sul não emitiu parecer. II. OBJECTO DO RECURSO 6. Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nºs 1, 2 e 3, todos do CPCivil, “ex vi” artigo 140º do CPTA, não sendo lícito a este TCA Sul conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso. 7. E, tendo em conta as conclusões do recurso, a única questão suscitada resume-se em determinar se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de direito ao ter rejeitado liminarmente o pedido cautelar formulado pela requerente. III. FUNDAMENTAÇÃO A) DE FACTO 8. A sentença recorrida deu como assente o seguinte facto: Cerca do dia 17-9-2021, ou seja, três dias antes da instauração da presente providência, a requerente e o seu agregado familiar (composto pelo companheiro e 5 filhos) passou a ocupar o fogo municipal devoluto, sito na Rua ..., … Lisboa, e aí passou a residir, não tendo contrato de arrendamento ou outro qualquer título para ocupar esse imóvel (confissão, cfr. artigos 1º a 5º do requerimento cautelar). B) DE DIREITO 9. A sentença recorrida começou por analisar, de forma genérica, os requisitos de que a lei faz depender a concessão das providências cautelares, após o que entrou na apreciação do caso concreto à luz do quadro normativo vigente, para concluir que a requerente da providência (e o respectivo agregado familiar) ocupavam um fogo municipal que se encontrava devoluto sem qualquer título jurídico, de forma ilegal, não autorizada e abusiva. 10. E, de igual modo, afastou também o entendimento da requerente de que tal ocupação e utilização do imóvel desde “há 3 dias” lhe confere “a legítima expectativa de aí vir a residir”, pois está em causa um fogo municipal, que deve ser afecto para a habitação social dos mais carenciados, como é o seu caso, mais alegando o direito à habitação previsto no artigo 65º da CRP e que não pode ter lugar o despejo, sem que a mesma seja encaminhada para uma alternativa habitacional, nos termos da lei (artigo 28º, nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19/12), com os seguintes fundamentos: i. No caso dos autos não está em causa, nem foi proferido qualquer acto administrativo de despejo do imóvel em causa nesta providência, razão pela qual é totalmente inócuo e desprovido de sentido jurídico a invocação de que “não pode ter lugar o despejo, sem que a mesma seja encaminhada para uma alternativa habitacional, nos termos da lei”; ii. Alegando a grande carência económica e habitacional e a falta de alternativa habitacional, a requerente decidiu ocupar à revelia a habitação social em apreço, o que fez por sua iniciativa e sem que lhe tivesse sido atribuída a habitação por parte das entidades requeridas, fosse por arrendamento, por cedência precária, por concurso ou por qualquer outro título válido que legitimasse a sua utilização. Ora, estando em causa uma ocupação abusiva que a própria requerente confessa, também não faz qualquer sentido e carece de total fundamento que a mesma se arrogue no direito de poder continuar a habitar no local e exigir/solicitar que as requeridas lhe fixem uma renda ou celebrem um contrato que permita a sua habitação no locado, contrariando, aliás, a lei e os procedimentos atribuição de habitação social (seja junto do INRU, seja junto das requeridas designadamente por arrendamento ou concurso), e os mais elementares princípios da boa-fé e legalidade; iii. Não tem razão a requerente ao pretender a atribuição do fogo municipal apenas e só com base no direito à habitação constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 65º da CRP), na medida em que esta norma legal tem uma natureza programática, não sendo de concessão automática, pois o direito à habitação está dependente de concretização legal, só podendo exigir-se o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei, isto é, o direito à habitação constitucionalmente consagrado não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo, não conferindo à requerente um direito imediato a uma prestação efectiva, mediante a disponibilização de uma habitação, antes garantindo o estabelecimento de critérios objectivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público; iv. Ora, a atribuição de habitações municipais é feita nos termos do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, sendo precedida de procedimento concursal em que são apreciadas as candidaturas e classificadas as candidaturas em conformidade com as normas regulamentares aplicáveis; v. No caso concreto, a factualidade alegada e indiciariamente assente não permite, ainda que perfunctoriamente, reconhecer à requerente o direito a habitar, legalmente, com o seu companheiro, o fogo municipal em causa, pelo que não se mostra verificado o “fumus boni iuris”, requisito legal este essencial ao decretamento da providência cautelar requerida, antes pelo contrário, a situação dos autos traduz uma ocupação ilícita, sem título, além de que inexiste ainda qualquer acto administrativo ou notificação de despejo/desocupação, pois tal não foi sequer alegado pela requerente. 11. Assim, decidiu a Senhora Juíza “a quo” que não permitindo a causa de pedir alegada concluir, com o mínimo de probabilidade, pela procedência da acção principal, no sentido de que assiste à requerente o direito de habitar o imóvel em causa nos autos, é de julgar manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada no presente processo, sendo, por conseguinte, de rejeitar liminarmente o requerimento inicial, nos termos do disposto no artigo 116º, nº 2, alínea d) do CPTA. Adiante-se já que o assim decidido é para manter. 12. Com efeito, o tribunal “a quo” concluiu que a presente providência não reunia as condições processuais imprescindíveis para o prosseguimento da tramitação da providência cautelar, em ordem ao julgamento do mérito da mesma, o que equivale a afirmar que a ausência dessas condições teria de conduzir necessariamente à rejeição liminar do requerimento inicial da providência cautelar, em conformidade com o preceituado na citada norma. 13. O decretamento de uma medida cautelar depende da verificação cumulativa de três requisitos: o “fumus boni iuris”, o “periculum in mora” e a formulação de uma convicção de preponderância na protecção dos interesses do requerente da providência cautelar em sede de ponderação entre os interesses públicos e privados e presença. 14. Assim, o sucesso duma providência cautelar depende directa e imediatamente da alegação de factos concretos demonstrativos da ocorrência daqueles requisitos cumulativos. O que quer dizer que, a falta da alegação de factualidade concreta, na qual possa ancorar-se o juízo a elaborar por banda do tribunal, determina irremediavelmente o fracasso da pretensão cautelar (cfr., no sentido transcrito, o acórdão deste TCA Sul, 14-05-2020, proferido no âmbito do processo nº 800/19.8BELSB). 15. Por conseguinte, logo que recebido o requerimento inicial, o tribunal deve, ainda antes da citação do requerido, exercer um controlo liminar por forma a indagar da verificação das condições mínimas de viabilidade da medida cautelar requerida. 16. Como sustentam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ao juiz cumpre “evitar o inútil prosseguimento de processos inexoravelmente condenados ao insucesso (…) quando considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada” (cfr. “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ª edição, 2018, pág. 949). 17. Ainda segundo os citados autores, a falta de fundamento da pretensão a que alude o artigo 116º, nº 2, alínea d) do CPTA “prende-se com a aplicação dos critérios de que depende a adopção das providências cautelares e há-de fundar-se num juízo negativo sobre o preenchimento de algum dos pressupostos de que depende a aplicação desses critérios: por via de regra, de acordo com o regime comum dos nºs 1 e 2 do artigo 120º, o periculum in mora, o fumus boni juris e a ponderação de danos” (ob. cit., pág. 951). 18. No caso do presente recurso, a ora recorrente em momento algum coloca em crise o entendimento sufragado na decisão recorrida no tocante à não verificação dos critérios de que depende a concessão da providência requerida, limitando-se a contrapor que agiu em estado de necessidade e que essa foi a única forma de exercer o direito constitucional consagrado no artigo 65º da CRP. 19. Porém, da análise do requerimento inicial apresentado pela recorrente, verifica-se que a mesma não enunciou um único facto apto a ancorar a formulação de um juízo de “fumus boni iuris”, limitando-se a alegar, de forma inteiramente conclusiva, a pretensa violação de preceitos constitucionais atinentes ao direito à habitação, que manifestamente não se verificam. 20. Ora, perante esta alegação, afigura-se acertado o entendimento da Senhora Juíza “a quo”, no sentido de que o requerimento inicial não reunia o mínimo de condições de viabilidade que permitissem a emissão de uma decisão de mérito sobre a medida cautelar pretendida, precedida, caso tal viesse a ser necessário, da pertinente actividade instrutória. 21. Importa ainda acrescentar que, no caso dos autos, não existe (ainda) qualquer litígio que oponha a ora recorrente – e requerente da providência – às entidades demandadas, pelo que sempre seria de questionar se aquela estaria ou não carecida de tutela cautelar, ou seja, sempre haveria que ponderar da desnecessidade da tutela cautelar, situação que também seria idónea a conduzir à rejeição liminar do requerimento cautelar (cfr. artigo 116º, nº 2, alínea e) do CPTA). 22. Por conseguinte, impõe-se negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida. IV. DECISÃO 23. Nestes termos, e pelo exposto, acordam os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida. 24. Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido (cfr. fls. 128 dos autos). Lisboa, 6 de Janeiro de 2022 (Rui Fernando Belfo Pereira – relator) (Dora Lucas Neto – 1ª adjunta) (Pedro Figueiredo – 2º adjunto) |