Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:880/13.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:10/24/2024
Relator:LUÍSA SOARES
Descritores:OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FISCAL
INSOLVÊNCIA
GERÊNCIA DE FACTO
CULPA
Sumário:I- A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (artigo 81.º, n.º 1 do CIRE).
II. Se o prazo legal de pagamento voluntário das dívidas termina em data posterior à declaração de insolvência, a questão subsume-se normativamente no artigo 24.º, nº 1, alínea a), da LGT impendendo sobre a Administração Tributária, o ónus da prova da culpa.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contra-Ordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

Vem a AT- Autoridade Tributária e Aduaneira, interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que deferiu a oposição à execução fiscal deduzida por L...........com referência ao processo executivo n.º 3131201001003593 instaurado em nome da sociedade “G.... & Filhos, Lda.”, por dívidas de IVA do ano de 2006 no montante de € 39.417,90.

A Recorrente, nas suas alegações, formulou conclusões nos seguintes termos:

“I – Vem o presente recurso reagir contra a Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo nos presentes autos em 19-02-2020, a qual julgou procedente a oposição à execução fiscal n.º 3131201001003593, a qual corre termos no Serviço de Finanças de Amadora 1 e foi instaurada, originariamente, contra a sociedade “G.... & FILHOS, LDA.”, com o NIF 5..., para a cobrança de dividas fiscais relativas a IVA do ano de 2006, já devidamente identificadas nos autos, no valor de € 39.417,90 (trinta e nove mil, quatrocentos
e dezassete euros e noventa cêntimos) e acrescido.

II – A Sentença recorrida, tendo-se socorrido da matéria factual dada como assente no seu segmento III. Fundamentação, a qual aqui damos por plenamente reproduzida para todos os efeitos legais, consignou que o Oponente nunca poderia ser responsabilizado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT, dado que, no momento do pagamento da dívida exequenda, já não era gerente (quer de direito, quer de facto) da sociedade devedora originária e, ainda que assim não se considere, por mero efeito da declaração de insolvência daquela sociedade, ficou o Oponente totalmente privado do exercício dos respectivos poderes de gestão.

III – Ora, o presente recurso tem como desígnio demonstrar o desacerto a que, na

perspectiva da Fazenda Pública e com o devido respeito, chegou a Sentença recorrida, ao considerar que, i) a declaração de insolvência privou, imediatamente, o Oponente do exercício dos respectivos poderes de gerência e, ii) relativamente ao facto de não ter dado por provado o exercício da gerência por parte do ora Oponente, em face do que resulta provado na alínea A) da factualidade constante da Sentença, de fls. 209 a 211 dos autos físicos e, ainda, do doc. n.º 2 junto pela Fazenda Pública em anexo à contestação.

IV - Com efeito, dado que não existe qualquer normativo que estabeleça uma presunção legal relativa ao exercício da gerência de facto, designadamente que ela se presume a partir da gerência de direito, é consabido que a responsabilidade tributária subsidiária só pode operar contra quem exerceu, de facto, a gestão da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado, e que, ao abrigo de qualquer um dos regimes estabelecidos no n.º 1 do artigo 24.º da LGT, “é pressuposto da responsabilidade subsidiária o exercício de facto da gerência, cuja prova impende sobre a Fazenda Pública, enquanto entidade que ordena a reversão da execução”, cfr. acórdão do TCA Sul de 31-10-2013, proc. n.º 06732/13.

V – Contudo, com base na prova de que o revertido tinha a qualidade de gerente de direito e demais circunstâncias do caso, nomeadamente as posições assumida no processo e provas produzidas ou não pelo revertido e pela Fazenda Pública, o Tribunal que julga a matéria de facto pode concluir que um gerente de direito exerceu a gerência de facto, se entender que, nas circunstâncias do caso, há uma probabilidade forte («certeza jurídica») de esse exercício da gerência ter ocorrido e não haver razões para duvidar que ele tenha acontecido, cfr. acórdão do STA de 10-12-2008, proc. n.º 861/08.

VI – Posto isto, cumpre referir, em primeiro lugar e contrariamente ao que foi veiculado na Sentença sob recurso, que o facto de ter sido nomeado um Administrador de Insolvência para a sociedade devedora originária não significa que o gerente deva demitir ou dispensar das suas funções, precisamente porque aquele é, como o próprio nomen indica, um administrador judicial, estando as suas funções determinadas e limitadas pela natureza da insolvência.

VII – Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 82.º do CIRE, os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, dado que, dentro dos vários actos praticados pelos gerentes em representação da sociedade devedora originária, estão os típicos actos de gestão ou administração corrente, actos nos quais o Administrador de Insolvência não se deve imiscuir, uma vez que as suas funções encontram-se adstritas à natureza do processo insolvência

VIII – E mais, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 81.º do CIRE, a declaração de insolvência priva de imediato o insolvente e respectivos gerentes dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente. Não se afirma que a declaração de insolvência priva, tout court, os respetivos gerentes dos poderes de administração e disposição, tal como é afirmado na Sentença recorrida.

IX – Até por perscrutação do n.º 2 do artigo 65.º do CIRE se verifica, em nosso modesto entendimento, que existe uma deliberada intenção do legislador em estabelecer uma separação entre aquelas que são as obrigações e deveres do Administrador da Insolvência por referência à própria massa falida, daquelas que persistem na esfera do gerente da devedora originária ainda que insolvente, em tudo o que não colida com os deveres e funções do primeiro.

X – Portanto, a qualidade de gerente de uma sociedade ou as funções que do ponto de vista da legislação comercial lhe estão cometidas por força da sua nomeação nessa qualidade, não se confundem com a qualidade de administrador de insolvência nem com as funções a este atribuídas nos termos do Código de Insolvências e Recuperação de Empresas, cfr. acórdão do TCA Sul, de 21-05-2015, proc. n.º 06381/13.

XI – Paralelamente, e “[n]ão explicitando a lei no que consiste a gerência, vem a doutrina e a Jurisprudência referindo que, como tal, se deve considerar aquela em que os gerentes praticam actos de disposição ou de administração, de acordo com o objecto social da sociedade, em nome representação desta, vinculando-a perante terceiros, atentos os contornos normativos que dela é feita nos artºs 252º, 259°. 260º e 261º do Cód. Sociedade. Com. - (cfr., entre outros, os Acs. do STA de 4-2-81, in AD 236º; de 3-10-85, in AD 237° e Acs. T.T. 2ª Instância de 12-11-91, (n CTF 365°, pág. 259 e de 24-6-84, in CTF 376º, pág. 257)”, vide o acórdão do TCA Sul, de 20-06-2000, proc. n.º 3468/00.

XII – Donde se extrai, sem margens para hesitações, que, o Oponente, ao proceder à assinatura de documentos, da sociedade devedora originária, encontra-se a praticar um acto que exterioriza a vontade desta, vinculando-a e representando-a perante terceiros, o que, por si só, consubstancia o exercício efectivo da gerência, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

XIII – Veja-se, agora, o que emerge dos presentes autos, nomeadamente do doc. n.º 1 junto pela Fazenda Pública em anexo à contestação, que aqui damos por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consubstanciados em contratos de adesão a serviços de telecomunicações celebrados entre a sociedade devedora originária e determinada empresa de telecomunicações, cfr. alínea A) do probatório fixado na Sentença recorrida.

XIV – Portanto, resultou provado que o Oponente possui uma intervenção pessoal e activa na vinculação da sociedade devedora originária, o que significa que a viabilidade funcional desta era concretizada com a intervenção do Oponente, o que se subsume, integralmente à noção de gerência de facto. Mesmo que sejam estes os únicos factos praticados pelo Oponente enquanto gerente da sociedade, eles revelam o exercício, ainda que restrito, da gerência, como decorre do n.º 4 do artigo 260.° do CSC, cfr. acórdão do TCA Sul de 09-10- 2007, proc. n.º 01953/07.

XV – E mais, atente-se ao doc. n.º 2 junto pela Fazenda Pública em anexo à contestação, o qual damos aqui por inteiramente reproduzido para os devidos efeitos legais, consubstanciado na declaração modelo 3 de IRS do Oponente para o ano de 2006, bem como aos documentos constantes de fls. 209 a 211 dos autos físicos, os quais damos aqui por inteiramente retratados para os devidos efeitos legais, consubstanciados nas declarações modelo 10/anexo da sociedade devedora originária.

XVI – De onde emerge matéria factual merecedora da dignidade de constar dos factos assentes da Sentença recorrida, pois que se reputa relevante para a decisão da causa e, por tal motivo, deve ser aditado ao probatório, nos termos do disposto no artigo 640.º do CPC, ex vi da alínea e) do artigo 2.º do CPPT, segundo a qual, durante os anos de 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008, o Oponente auferiu rendimentos de categoria A pagos pela sociedade devedora originária, o que não foi completamente obliterado na Sentença recorrida.

XVII – E a tal nunca se oporá o facto de o Oponente ter renunciado à gerência da sociedade devedora originária em 19 de Junho de 2007, cfr. alínea D) da factualidade dada como assente na Sentença recorrida, porquanto o mecanismo da responsabilidade subsidiária dos gerentes apenas pode operar perante a verificação da gerência de facto, ou seja, do exercício real e efectivo do cargo, cfr. acórdãos do TCA Norte, de 20-12-2011, de 02-07- 2009 e de 14-01-2010, procs. n.ºs 00639/04.5BEVIS, 81/03.TFPRT.22 e 82/03.TFPRT.22, respectivamente.

XVIII – O que equivale a dizer que não é relevante, para efeitos da efectivação da

responsabilidade tributária subsidiária que ora se encontra em discussão, que a Oponente seja ou não gerente de direito da originária devedora ou que tenha registado a renúncia a tal gerência.

XIX - Sendo que, todas as circunstâncias do caso concreto, já acima devidamente

identificadas, permitem concluir que o Oponente era gerente de facto no período de pagamento das dívidas em cobrança, sendo responsável para que a sociedade “G.... & FILHOS, LDA.”, com o NIF 5..., não cumprisse o dever fundamental de pagar os impostos.

XX – Impunha-se, pois, ao Douto Tribunal a quo, perante a causa de pedir esgrimida, o comportamento processual do Oponente e a prova produzida pela Fazenda Pública, que não logrou ser contrariada pelo Oponente, convencer-se que esta foi sua gerente de facto e que, como tal, a reversão operada pelo órgão de execução fiscal recaiu sobre pessoa responsável pelo pagamento da dívida.

XXI – Destarte, com o devido e muito respeito, a Sentença sob recurso, ao decidir como efectivamente o fez, estribou o seu entendimento numa inadequada valoração da matéria de direito e de facto relevante para a boa decisão da causa, tendo violado o disposto nas supra mencionadas disposições legais.

TERMOS EM QUE, E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA ORA RECORRIDA, COM AS DEMAIS E DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!”


* *
O Recorrido apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.ª Salvo melhor opinião, uma vez que, na realidade, incide unicamente sobre matéria de direito, o recurso em crise deveria ter sido interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo e não para o TCA Sul.

2.ª A infração das regras da competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal, com todas as legais consequências.

3.ª In casu, é evidente que, apesar de aflorar alguns aspetos de facto que consideraria relevantes para a decisão da causa, o recurso interposto Recorrente cinge-se, na realidade, unicamente a matéria de direito, não tendo procedido à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

4.ª Efetivamente, tal como se confirma pela leitura das conclusões das alegações de recurso, para além de não se impugnar – muito menos nos termos legais – a matéria de facto considerada na decisão a quo, o recurso visa, na realidade, pôr em causa o entendimento do Tribunal recorrido sobre o modo como aplicou o conceito de gerência de facto para efeitos de apuramento da legitimidade do Oponente como responsável subsidiário.

5.ª Sem conceder, ao contrário do que sustenta a Recorrente, a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura.

6.ª Carece de mérito o entendimento sustentado pelo Recorrente sobre as questões de direito suscitadas no seu recurso.

7.ª É errado o entendimento do Recorrente ao sustentar que, após a declaração de insolvência, o Oponente, ora Recorrido, conservou poderes de gestão da sociedade Executada, pelo que se mantém a sua legitimidade como responsável subsidiário por dívidas fiscais vencidas após o decretamento da insolvência.

8.ª No caso em análise, encontramo-nos face à reversão de dívidas de IVA, sendo que a responsabilidade subsidiária imputada ao Recorrido assenta no fundamento na alínea b) do referido artigo 24º da LGT, a qual contempla a responsabilização dos gestores que "não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento".

9.ª Considera-se, porém, que a responsabilidade do gestor ao abrigo desta alínea só subsiste quanto a dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do cargo.

10.ª Ora, como resulta dos autos, o Recorrido renunciou à gerência em 19 de junho de 2007 (cfr. alínea D) da factualidade assente).

11.ª Acresce que a sociedade Executada foi declarada insolvente em 16 de fevereiro de 2009, tendo, nessa data, sido nomeado, e empossado nas respetivas funções, o Administrador da Insolvência (cfr. alínea F) da factualidade assente).

12.ª Resulta ainda da matéria de facto que as dívidas exequendas resultam de IVA referente a períodos diversos do exercício de 2006, todas com data de pagamento voluntário até 31 de dezembro de 2009 (cfr. alínea M) da factualidade assente);

13.ª Conclui-se, assim, que, na data do vencimento da obrigação tributária, o Oponente, ora Recorrido, não só já tinha renunciado à gerência, como não poderia exercer (nem tal foi alegado pela Autoridade Tributária) quaisquer poderes como gestor de facto após o decretamento da insolvência.

14.ª Tendo o Oponente ficado inibido da gestão de facto da empresa em data anterior ao do pagamento voluntário da dívida (que ocorreu em 31 de dezembro de 2009), não podia ter sido responsabilizado pela Recorrente ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 24.º da Lei Geral Tributária.

15.ª Acresce que, mesmo que se pretendesse aplicar o disposto na alínea a) do artigo 24.º da LGT, a Autoridade Tributária também não deu satisfação ao ónus probatório dos pressupostos de que dependeria a reversão, desde logo, que aquela demonstrasse – e não o fez - a culpa do Oponente na insuficiência do património social para a satisfação da dívida tributária.

16.ª Não pode, assim, ser imputada ao Recorrido qualquer responsabilidade pelo pagamento da dívida exequenda, devendo considerar-se infundado o funcionamento contra o Oponente do mecanismo da reversão.

17.ª Por fim, no que concerne à repetida invocação da alegada assinatura de documentos pelo Recorrido, importa salientar que tal circunstância, por si só, não demonstra, nem nunca demonstraria o exercício de quaisquer poderes de gerência pelo Oponente “no prazo legal de pagamento das dívidas”.

18.ª Depois, a mera assinatura de tais propostas de adesão não demonstra a prática de quaisquer atos de gestão pelo Recorrido no prazo relevante para a constituição da responsabilidade subsidiária (terminado em 31 de dezembro de 2009), razão pela qual não pode tal fundamento invocado pela AT deixar de improceder.

19.ª Ao contrário do que erradamente consta do recurso em crise, a assinatura de uma mera proposta de adesão a um serviço telefónico móvel não comprova qualquer gestão de facto pelo Recorrido;

20.ª A assinatura de tais meras propostas de adesão não deixa de ser insuficiente para que se possa concluir que o Recorrido exerceu a efetiva gerência da sociedade.

21.ª Por fim, sempre se dirá que não resulta provado (nem consta, ademais, da fundamentação do despacho de reversão) que a assinatura do Recorrido tenha sido aposta naquelas propostas de adesão na qualidade de gerente da sociedade devedora;

22.ª Não é, assim, possível concluir que o ora Recorrido praticou atos de disposição ou administração do património da devedora originária, muito menos no período relevante para efeitos da presente reversão fiscal, i.e., no período em que se venceu o prazo legal de pagamento (voluntário) da dívida exequenda de imposto liquidada pela AT.

V – O QUE SE ROGA.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DOUTAMENTE A SUPRIR POR V. EXAS., SEM EMBARGO DA QUESTÃO PRÉVIA SUSCITADA SOBRE A INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TCA SUL, DEVE O RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENTE E A DECISÃO RECORRIDA SER MANTIDA NOS SEUS PRECISOS TERMOS E COM TODOS OS RESPETIVOS EFEITOS.

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!”.


* *
O Exmº. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu douto parecer defendendo seja concedido provimento ao recurso.
* *
Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cfr. artigo 635°, n.° 4 e artigo 639°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se a sentença, ao julgar procedente a oposição à execução por ilegitimidade do oponente, enferma de erro de julgamento por:
i) não ter dado por provado o exercício da gerência por parte do oponente;
ii) considerar que a declaração de insolvência privou de imediato o oponente dos respetivos poderes de gerência.

Importa ainda decidir da alegada incompetência deste Tribunal em razão da hierarquia suscitada pelo Recorrido.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“Com relevância para a decisão, considera-se provada a seguinte factualidade constante dos autos:

A) Em 20 de Setembro de 2001, o Oponente, L..., com o NIF 228...., assinou documentos em nome da sociedade referentes a contratos a celebrar com a T..... – cf. Doc. 1 junto pela Fazenda Pública - (Contestação (201650) Contestação (005332421) Pág. 13 de 21/01/2014 16:10:13 e seguintes)

B) Entre 2004 e 2006, o Oponente prestou serviços de formador a diversas empresas. – cf. recibos verdes (Petição Inicial (189768) Petição Inicial (005287444) Pág. 116 de 28/06/2013 15:23:21 e seguintes)

C) Em 6 de Dezembro de 2005, o Oponente concluiu a licenciatura em Engenharia

Informática. – cf. Doc. 10 junto pelo Oponente – Certificado de Licenciatura emitido pela Universidade Autónoma de Lisboa (Petição Inicial (189768) Petição Inicial (005287444) Pág. 113 de 28/06/2013 15:23:21 e seguintes)

D) Em 19 de Junho de 2007, o Oponente renunciou à gerência da sociedade G....& Filhos, Lda. - cf. Ap. 21/20070725, constante da Certidão Permanente, referente à matrícula n.º 505.194.880, extraída em 4 de Fevereiro de 2013, de fls. 196 a 198 do PEF apenso

E) Em 16 de Fevereiro de 2009, foi declarada a insolvência da sociedade, G…

& Filhos, Lda., com o NIF 50…, e nomeado Administrador da

Insolvência, o Dr. V..... – cf. Doc. 1 junto pelo Oponente – Informação publicada pelo Tribunal do Comércio de Lisboa – 4º Juízo, referente ao processo n.º 61/09.7TYLSB (104…) e cf. Doc. junto pelo Oponente – sentença proferida no processo n.º 61/09.7TYLSB, pelo Tribunal do Comércio de Lisboa – 4º Juízo (Requerimento (237730) Requerimento (005467912) de 27/02/2015 00:00:00)

F) Na sentença a que se refere a alínea anterior foi, além do mais, determinada a entrega imediata ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade e a apreensão de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos. – cf. Doc. junto pelo Oponente – sentença proferida no processo n.º 61/09.7TYLSB, pelo Tribunal do Comércio de Lisboa – 4º Juízo (Requerimento (237730) Requerimento (005467912) de 27/02/2015 00:00:00)

G) Em 7 de Maio de 2009, o Administrador de Insolvência enviou cartas a devedores da sociedade, a fim de regularizar saldos devedores no valor de, pelo menos, € 151.943,50. – cf. Doc. 2 a 8 – cartas remetidas pelo Dr V.... a diversas empresa, no âmbito do processo de insolvência n.º 61/09.7TYLSB, com o Assunto “Regularização de Saldos devedores” (Petição Inicial (189768) Petição Inicial (005287444) Pág. 105 de 28/06/2013 15:23:21 e seguintes)

H) No âmbito das suas funções, e a fim de tratar dos assuntos referente à insolvência da sociedade G....& Filhos, Lda., o Administrador de Insolvência tratava de todos os assuntos com J...., que identificava como sendo o responsável da sociedade. – cf. depoimento do próprio - testemunha V...., e cf. referido em documentação diversa produzida no âmbito daquele processo, designadamente, no Doc. 12 junto pelo Oponente - parecer elaborado nos termos do artigo 188º do CIRC (onde constam empréstimos

efetuados àquele sócio, e a menção à solicitação de informações “ao gerente de direito e de facto da sociedade insolvente, Sr. J....”, e onde se refere, além do mais, que “competia ao gerente J...., na qualidade de responsável de todos os atos da gestão empresarial, a obrigação de …” (Outro(s) (006105123) de 14/10/2019 17:21:25), e carta de 25 de Maio de 2009, dirigida a J.... a pedir informações referentes à gestão da sociedade (Outro(s) (006105124) Pág. 3 de 14/10/2019 17:21:44) e resposta deste (Outro(s) (006105124) Pág. 5 de 14/10/2019 17:21:44 e seguintes)

I) Em 28 de Novembro de 2009, foi inscrita a declaração de insolvência da sociedade, G....& Filhos, Lda. e a nomeação do Administrador Judicial em Insolvência, V..... – cf. Ap. 8/20090219 e 8/20090910, constante da Certidão Permanente, referente à matrícula n.º 505.194.880, extraída em 4 de Fevereiro de 2013, de fls. 196 a 198 do PEF apenso

J) Em 2 de Junho de 2011, transitou em julgado a decisão proferida no incidente de qualificação da insolvência da sociedade G....& Filhos, Lda., que foi considerada culposa e determinou a inibição de J..... – cf. Certidão emitida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 4, referente ao processo n.º 61/09.7TYLSB-D (Outro(s) (006105112) Pág. 2 de 14/10/2019 17:13:09)

K) No processo de insolvência da sociedade G....& Filhos, Lda. Foram reclamados pela Fazenda Nacional, e reconhecidos, os seguintes créditos:

– cf. Relação de Créditos Reconhecidos e Não Reconhecidos, referente ao processo n.º 61/09.7TYLSB-G (6105261 3/16)

L) Em 24 de Abril de 2013, o Oponente recebeu uma carta referente ao PEF n.º

3131201001003593, denominada "CITAÇÃO (Reversão)", pagamento de dívida no valor de 39.417,90, de cujo teor se extrai:

"FUNDAMENTOS DA REVERSÃO

Inexistência ou insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão (art.º 23/n.º 2 da LGT):

Fundamentos de emissão central.

Insuficiência de bens da devedora originária (art.° 23/2 e 3 da LGT): decorrente de

situação líquida negativa (SLN) declarada pela devedora originária na última declaração referente à Informação Empresarial Simplificada (IES) e/ou em face de

insolvência declarada pelo Tribunal.

Gerência (administrador, gerente ou director) de direito (art.º 24/1/b da LGT), no

terminus do prazo legal de pagamento ou entrega do imposto em questão, conforme cadastro da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT);

Gerência de facto, decorrente da remuneração da categoria A, auferida ao serviço da devedora originária no período em questão (direito constante nos artigos 255.° e/ou 399.° do Código das Sociedades Comerciais". – cf. Ofício n.º 002389, do Serviço de Finanças de Amadora-1 e comprovativo de envio e receção postal, a fls. 205 e 206 do PEF apenso

M) A carta descrita na alínea anterior foi acompanhada da descrição da quantia

exequenda, com o seguinte teor:

– cf. Ofício n.º 002389, do Serviço de Finanças de Amadora-1 e mapa anexo, a fls. 205 e 206 do PEF apenso, de fls. 203 a 205 do PEF apenso

N) Em 20 de Fevereiro de 2019 foi encerrado o incidente de liquidação da massa

insolvente da sociedade G....& Filhos, Lda. – cf. despacho proferido no processo n.º 61/09.7TYLSB-G, que tramita no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 4 (Outro(s) (006105112) Pág. 4 de 14/10/2019 17:13:09)


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Factos não provados

Não foram alegados outros factos com relevo para a decisão de mérito e que importe registar como não provados.


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Motivação Da Matéria De Facto

A decisão da matéria de facto assenta na análise dos documentos constantes dos autos e do PEF apenso, nomeadamente das informações oficiais e dos documentos juntos, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, conforme referido a propósito de cada alínea do probatório.

Neste segmento cumpre referir que foi inquirido nestes autos o Administrador de

Insolvência, o qual além de descrever a situação em que se encontrava empresa, reiterou que não identificava o Oponente como responsável da empresa, tendo sempre contactado e reconhecido como tal, o seu pai, J.....”.


IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou procedente a oposição à execução fiscal tendo considerado o oponente parte ilegítima face à declaração de insolvência da sociedade devedora originária e por falta de prova pela AT da gerência de facto.

Dissente do assim decidido, veio a Recorrente invocar erro de julgamento da apreciação da matéria de facto e de direito alegando por um lado, que a prova produzida nos autos evidencia a gerência de facto pelo oponente, ora Recorrido, e por outro, que a declaração de insolvência não obsta à responsabilização do oponente.

Tendo sido suscitada a incompetência em razão da hierarquia pelo Recorrido nas suas contra-alegações, cumpre, antes de mais, aferir da competência deste Tribunal Central Administrativo Sul em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso, pois a infração às regras de competência em razão da hierarquia determina, nos termos do disposto no art. 16.°, n.° 1 do CPPT, a incompetência absoluta do tribunal.

A competência do Tribunal em razão da hierarquia constitui questão que o tribunal deve conhecer oficiosamente ou mediante arguição, com prioridade sobre qualquer outra, até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. Ac. do STA de 09/04/2014, proc. n.° 0161/14).

Se face às conclusões de recurso, podemos constatar que as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva aplicação e interpretação de normas jurídicas, então será competente o STA, pelo contrário, será competente o TCA, se aquelas questões implicam a necessidade de dirimir questões de facto “seja por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, seja porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, seja ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos” (Ac. do STA de 09/04/2014, proc. n.° 0161/14).

O critério jurídico para diferenciar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação, ou se, por outro lado, também apela à consideração de quaisquer factos materiais ou ocorrências da vida real, independentemente da sua pertinência, merecimento ou acerto para a solução do recurso.

Vejamos o caso em apreço.

Nas conclusões das alegações de recurso ora apresentadas, verifica-se que a Recorrente, insurge-se contra a decisão recorrida também por deficiente apreciação e valoração dos factos, discordando do decidido no que respeita ao juízo de apreciação da prova efetuada pelo Tribunal recorrido.

Desta forma se conclui que os fundamentos do presente recurso não versam exclusivamente matéria de direito, pelo que improcede a questão prévia de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da hierarquia, suscitada pelo Recorrido.

Prosseguindo.

A Recorrente defende que foi feita prova da gerência de facto do Recorrido na medida em que os documentos juntos ao processo permitem considerar como provada a prática de vários atos de gerência e, que a sua intervenção em atos/documentos demonstra uma intervenção pessoal e ativa na vinculação da sociedade, invocando ainda que nos anos de 2001 a 2008 o oponente auferiu rendimentos da categoria A pagos pela sociedade devedora originária, concluindo que tais circunstâncias permitem afirmar que era gerente de facto no período de pagamento das dívidas, sendo responsável pelo incumprimento do pagamento dos impostos em causa.

Mas desde já afirmamos que não lhe assiste razão.

No caso em apreço a dívida exequenda é referente a IVA de 2006, cuja data limite de pagamento ocorreu em 31/12/2009 (cfr. alínea M) do probatório), pelo que o regime aplicável de responsabilidade subsidiária dos gerentes/administradores é o decorrente do art.° 24.° da Lei Geral Tributária.

Consagra o nº 1 do art. 24.° da LGT:
“Os administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”.

Assim, do regime constante da disposição legal acima transcrita, resulta que o chamamento dos “administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados”, os quais são subsidiariamente responsáveis em relação à dívida e solidariamente responsáveis entre si, depende da verificação do exercício efetivo de gerência, ou seja a existência de uma situação de gerência de facto (Acórdão do STA de 09/04/2014, proc. n.º 0954/13), não bastando a mera titularidade do cargo de gerente, isto é, a gerência nominal ou de direito.

A responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores, por dívidas da executada originária, tem por pressuposto o exercício efetivo do cargo de gerente ou administrador.

Como se salienta no Acórdão do STA, de 02/03/2011 no recurso nº 0944/10, “Como se conclui da inclusão nesta disposição das expressões «exerçam, ainda que somente de facto, funções» e «período de exercício do seu cargo», não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respectivas funções, ponto este que é pacífico, a nível da jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, desde logo se vê que a responsabilidade subsidiária depende, antes de mais, do efectivo exercício da gerência ou administração, ainda que somente de facto, à semelhança do que o artigo 13.º do CPT também já consagrava”.

É também pacífico na jurisprudência o entendimento de que é à Fazenda Pública como titular do direito de reversão que compete fazer a prova da efetividade da gerência. Na verdade, ao abrigo do regime previsto no art.º 24.º, n.º 1, da LGT, já não existe qualquer presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, se dê por provado o efetivo exercício da função de gerente, pelo que compete à Fazenda Pública o ónus da prova desse pressuposto da responsabilidade subsidiária, aí se incluindo o exercício de facto da gerência.

Importa apurar se os factos dados como provados na sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra permitem concluir pelo exercício da gerência de facto por parte do Recorrido.

In casu resultou assente que:
i) Em 20/09/2001 o Recorrido assinou contratos com a T.... (cfr. alínea A) do probatório);
ii) o Recorrido renunciou à gerência da sociedade devedora originária em 19/06/2007 (cfr. alínea D) do probatório);
iii) Em 16/02/2009 foi emitida a declaração de insolvência da sociedade devedora originária, tendo sido determinada a entrega imediata ao administrador de insolvência dos elementos da contabilidade e a apreensão de todos os seus bens (cfr. alíneas E) e F) do probatório).

Pretende ainda a Recorrente o aditamento ao probatório, que foram efetuados pagamentos ao oponente, pela sociedade executada, de rendimentos da categoria A de IRS nos anos de 2001 a 2008.

Para que ocorra a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade mediante uma atividade continuada e não derivada de atos isolados. Dir-se-á, portanto, que a gerência é, assim, antes do mais, a investidura num poder.

Destarte, consistindo a gerência de facto de uma sociedade comercial no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam pela vinculação e representação da sociedade, nomeadamente, através das relações com os clientes, com os fornecedores, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade, ter-se-á de concluir face a todo o exposto que, in casu, nada foi demonstrado no sentido de o Recorrido ser um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo pacto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros.

A circunstância do Recorrido ter assinado em 20/09/2001 (data muito anterior à dívida exequenda relativa a 2006) de documentos em nome da sociedade referentes a contratos com a T...., não releva para a apreciação do exercício da gerência no período a que respeita a dívida.

De salientar que em 19/06/2007 o Recorrido renunciou à gerência da sociedade, e que a dívida exequenda, sendo referente a IVA de 2006, contudo a data limite de pagamento ocorreu em 31/12/2009 (data em que o Recorrido já não era gerente de direito).

Resta acrescentar que o facto de o Recorrido ter auferido rendimentos da categoria A pagos pela sociedade devedora originária nos anos de 2001 a 2008 não tem a virtualidade de comprovar positivamente a alegada gerência de facto para o período em causa (nesse sentido Ac. do TCA Sul de 11/01/2023- proc. 1043/13.0BELRS e de 13/09/2023 – proc. 2186/14.8BELRS, entre outros).

Perante a factualidade provada e não impugnada, temos de concluir não ter a AT produzido prova demonstrativa de que o Recorrido exerceu a gerência de facto, sendo que, como antes já dissemos, era sobre a Fazenda Pública que recaía o ónus de provar o exercício da mesma.

Pelo que tais factos, per se, desacompanhados de atos que manifestem e exteriorizem a vontade societária não permitem ilidir o ónus probatório que impende sobre a administração tributária.

A Recorrente vem ainda alegar a incorreta apreciação jurídica que conduziu à procedência da oposição por ilegitimidade do oponente, alegando que não pode concluir-se que o oponente se encontrava impedido juridicamente de exercer a administração da sociedade devedora originária por força da nomeação do administrador da insolvência precisamente porque a administração da sociedade, ainda que insolvente, e a sua massa não se confundem e, nesta conformidade, seria possível a coexistência dos dois administradores (o da sociedade e o administrador da massa falida).

Vejamos.

Resultou da factualidade assente que a sociedade devedora originária foi declarada insolvente em 16/02/2009, tendo sido nomeado um administrador de insolvência e determinada a entrega imediata a este dos elementos da contabilidade e de todos os bens da sociedade (cfr. alíneas E) e F) do probatório). Mais resultou provado que a dívida exequenda é referente a IVA de 2006, cuja data limite de pagamento ocorreu em 31/12/2009 (cfr. alínea M) do probatório).

Resultou ainda assente que os fundamentos da reversão contra o ora Recorrido são os seguintes:
“FUNDAMENTOS DA REVERSÃO
Inexistência ou insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão (art.º 23/n.º 2 da LGT):
Fundamentos de emissão central.
Insuficiência de bens da devedora originária (art.° 23/2 e 3 da LGT): decorrente de situação líquida negativa (SLN) declarada pela devedora originária na última declaração referente à Informação Empresarial Simplificada (IES) e/ou em face de insolvência declarada pelo Tribunal.
Gerência (administrador, gerente ou director) de direito (art.º 24/1/b da LGT), no terminus do prazo legal de pagamento ou entrega do imposto em questão, conforme cadastro da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT);
Gerência de facto, decorrente da remuneração da categoria A, auferida ao serviço da devedora originária no período em questão (direito constante nos artigos 255.° e/ou 399.° do Código das Sociedades Comerciais". (cfr. alínea L) do probatório).

No caso concreto, estamos perante uma dívida tributária do ano de 2006 cuja data limite de pagamento voluntário ocorreu a 31/12/2009, data posterior à declaração de insolvência que ocorreu com a prolação de sentença e nomeação do administrador de insolvência em 16/02/2009.

Ora importa aferir se, na data limite do pagamento, o Recorrido dispunha do poder de decisão sobre o pagamento do imposto ou se os poderes de gestão e direção da sociedade insolvente já não se encontravam na sua esfera jurídica.

Para o efeito destacamos o disposto no art. 81.º, nº 1 do CIRE ao consagrar que “Sem prejuízo do disposto no título X [Administração pelo devedor], a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”, e o seu n.º 4 determina que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.

Desta disposição legal resulta que, a partir do momento em que é declarada a insolvência de uma sociedade, cessam os poderes de gestão e administração dos gerentes e administradores, os quais passam a competir ao administrador de insolvência (cfr. entre outros o Acórdão do TCA Sul de 27/09/2018 – proc. 1592/14.2BESNT).

O sistema jurídico-tributário integra um regime especial que legitima a instauração de execuções fiscais contra uma sociedade devedora mesmo após a sua declaração de insolvência e o seu prosseguimento contra os gerentes e/ou administradores através do instituto da reversão (artigos 180.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 23.º e 24.º da Lei Geral Tributária).
Se o prosseguimento da execução fiscal contra o revertido tem por objectivo o pagamento coercivo de créditos vencidos após aquela declaração de insolvência e num período de tempo em que o revertido já não detinha poderes de disposição nem de administração – por esses poderes estarem, na data de vencimento do crédito, cometidos ao administrador da insolvência por força da transferência preceituada no artigo 81.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas – é sobre a Fazenda Pública que recai o ónus de alegar e provar que a insuficiência de bens no património da devedora susceptíveis de garantir aquele pagamento é culposamente imputável ao revertido (artigo 24.º, n.º 1, al a) da Lei Geral Tributária)”. (cfr. Acórdão do TCA Sul de 14/02/2019 – proc. 3677/15.9BESNT).

Destaca-se ainda o entendimento vertido no Acórdão do TCA Sul de 17/09/2020 no proc. 2666/14.5BESNT no sentido que: “Além disso, a privação dos poderes de administração e disposição dos bens do devedor é um efeito necessário da declaração de insolvência porquanto se produz em todos os casos e por mero efeito da declaração de insolvência.
Nas palavras de LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO « [e]sta solução [a do art. 81º, nº 1] compreende-se, dado que a declaração de insolvência faz pressupor uma certa desconfiança na capacidade de administração do devedor, dado que aí pode ter residido a causa da sua situação de insolvência». (Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 167)
Nesta ordem de ideias, bem pode afirmar-se que terminando o prazo legal as dívidas exequendas em data posterior à declaração de insolvência, só poderia levar a concluir que se estava perante o regime previsto na alínea a) do artigo 24.º da LGT, e não perante a alínea b).
Nessa medida, compete à Administração Tributária provar que foi por culpa do Oponente que o património da devedora originária se tornou insuficiente para satisfação da dívida em cobrança coerciva.”.

Do quadro fáctico-jurídico acima exposto resulta que o oponente, ora Recorrido, com a declaração de insolvência da sociedade e a nomeação do administrador de insolvência, deixou de ter poderes de disposição e de administração da sociedade pelo que, na data limite de pagamento do imposto, esses poderes estavam atribuídos ao administrador da insolvência por força da transferência consagrada no artigo 81.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, sendo que é sobre a administração tributária que recai o ónus de alegar e provar que a insuficiência de bens no património da devedora suscetíveis de garantir aquele pagamento é culposamente imputável ao revertido (artigo 24.º, n.º 1, al a) da Lei Geral Tributária).

Reitera-se que a reversão deveria ter sido efetuada ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 art. 24º da LGT pelo que competia à administração tributária provar que foi por culpa do oponente que o património da devedora originária se tornou insuficiente para satisfação da dívida em cobrança coerciva, e, não tendo sido feita essa prova, deve o oponente ser considerado parte ilegítima na execução fiscal nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 204º do CPPT, tal como foi decidido pelo tribunal a quo.

Por tudo o que vem exposto entendemos que o oponente é efetivamente parte ilegítima na execução, sendo de negar provimento ao recurso mantendo-se assim a sentença recorrida.

* *
V- DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência as juízas da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.
Lisboa, 24 de outubro de 2024
Luisa Soares
Susana Barreto (em substituição)
Lurdes Toscano