Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2326/09.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:10/24/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CRÉDITO INCOBRÁVEL
FURTO
INCERTEZA SOBRE A EXISTÊNCIA DO CRÉDITO
Sumário:I. Quando são suscitadas questões na petição inicial que não são conhecidas, não havendo entre estas e as demais apreciadas pelo Tribunal a quo qualquer nexo de prejudicialidade, a sentença é nula por omissão de pronúncia.

II. O art.º 39.º do CIRC consagra, como pressupostos para um determinado crédito ser considerado incobrável, que essa incobrabilidade resulte de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência e que, relativamente ao mesmo, não seja admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta se mostre insuficiente.

III. Subjacente ao primeiro dos pressupostos mencionados em II. está a certeza da incobrabilidade do crédito.

IV. Incobrabilidade do crédito não se confunde com a incerteza quanto à mensuração do mesmo. Um crédito, para ser incobrável, tem de existir.

V. Esta interpretação não colide com o princípio da tributação pelo rendimento real nem com o princípio da igualdade, porquanto o nosso ordenamento consagra expedientes ao dispor do credor, permitindo, pois, a possibilidade de se dar cumprimento ao disposto no art.º 39.º do CIRC – o que afasta, per se, uma situação de dupla tributação.

Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão

I. RELATÓRIO

T………… & L…. - Empreendimentos …………., SGPS, Lda. (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 10.05.2021, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa, que versou sobre a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), referente ao exercício de 2002.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“A) O presente recurso vem interposto contra a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial n.º 2326/09.9BELRS, no âmbito do qual se encontrava em discussão a legalidade dos atos de liquidação adicional de IRC relativos ao exercício de 2002, que apuraram um valor total a pagar de € 227.602,56, bem como, a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra tais atos de liquidação;

B) A sentença recorrida enferma, desde logo, do vício de omissão de pronúncia, na medida em que o Tribunal a quo se absteve de se pronunciar sobre algumas das ilegalidades que foram invocadas em sede de impugnação – e imputadas ao ato de liquidação de IRC em crise e à respetiva decisão de indeferimento da reclamação graciosa: a violação do princípio da tributação pelo lucro real, vertido no artigo 103.º, n.º 3, da CRP e a dupla tributação invocada pela Recorrente;

C) De resto, um dos argumentos que tinham sido invocados pela AT, no âmbito do processo de reclamação graciosa que precedeu a impugnação judicial, visou precisamente o afastamento daquele princípio constitucional, quando a AT procedeu a uma acérrima defesa do princípio da tributação pelo lucro tributável;

D) Também o Tribunal Recorrido fez completa tábua rasa da dupla tributação, quando a Recorrente alegou na p.i. da impugnação que o valor do furto, que nunca recebeu, foi considerado como proveito em 1990 e nunca foi considerado como custo, nem em 1990, nem em 2002;

E) O Tribunal a quo centrou a sua argumentação na análise, por um lado, da indispensabilidade do custo e, por outro, na incobrabilidade da dívida, em função das normas plasmadas nos artigos 23.º e 39.º do Código do IRC;

F) Para a Recorrente, a pronúncia sobre a violação do princípio da tributação pelo lucro real e a invocada dupla tributação eram obrigatórias, pois, de outra forma, não era possível aferir de forma adequada se a correção realizada pela AT era ou não devida, pelo que a sentença deverá ser declarada nula, por omissão de pronúncia, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 125.º, do CPPT e do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615,º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º do CPPT, sendo proferida nova decisão nos autos que contemple a análise daqueles vícios/questões;

G) Para além disso, a interpretação que o Tribunal Recorrido fez, da prova produzida nos presentes autos, foi manifestamente desajustada e dessa errónea análise resultou também um erro na aplicação do Direito;

H) Quanto ao erro na apreciação da matéria de facto, o Tribunal reconhece a existência do furto, não questiona o montante de dinheiro furtado, mas entende que o valor do furto não pode concorrer para o apuramento do lucro tributável, nomeadamente através da sua dedutibilidade enquanto custo fiscal;

I) O Tribunal procede a uma inadequada leitura da prova e dos factos, ao considerar que não ficou comprovado que a Recorrente tenha reclamado judicialmente o crédito em causa, o que contraria a prova produzida e, em concreto, o depoimento testemunhal prestado em juízo;

J) Quanto a essa testemunha, Tribunal Recorrido não podia simplesmente desvalorizar, na totalidade, o seu depoimento, ao ponto de nada se extrair deste meio de prova, pois o mesmo logrou, no mínimo, justificar a contabilização do crédito como incobrável, no ano de 2002, na qualidade de contabilista certificada da empresa;

K) O que importava demonstrar era que a Recorrente regularizou a situação referente à provisão contabilística constituída no ano de 1990 e, mais importante que isso, que já não tinha qualquer expectativa, no ano de 2002, de vir a poder cobrar o crédito em questão e essa prova foi realizada por documentos, mas também pela aludida testemunha (cf. depoimento, a partir dos 00:02:00 min, acima parcialmente transcrito);

L) Só em 2002 é que a Recorrente teve a certeza de que nunca iria receber aquele montante, em decorrência direta do facto de ter sido proferida uma decisão definitiva condenatória, em sede criminal, datada de 18/01/2002, contra os funcionários em causa, da qual resultou a condenação dos mesmos na devolução de um valor máximo de € 10.000,00 (€ 5.000,00 cada) – cfr. Pontos A. e L. do segmento probatório e págs. 16 e 17 da sentença;

M) Pelo que não podia o Tribunal concluir, perante tal prova, que “do probatório não resulta a realização de qualquer tentativa de recuperação do dinheiro desaparecido, o que se evidenciaria através da dedução do correspondente pedido de indemnização civil, fundado na prática do crime de abuso de confiança”;

N) É evidente que o montante que os funcionários foram condenados a pagar à Recorrente – por muito insignificante que possa ter sido – terá necessariamente que resultar a dedução de um pedido de indemnização cível formulado naquele processo-crime, pois, caso contrário, o Tribunal da Relação de Lisboa não os condenaria no pagamento de qualquer montante à Recorrente;

O) Com o devido respeito, não é verdade que não existam nos autos evidências da realização, por parte da Recorrente, de tentativas de recuperação dos valores que lhe foram furtados (e dos créditos que esses valores posteriormente geraram), pois a sua devolução foi solicitada em sede própria, neste caso, junto as autoridades judiciais e de polícia criminal;

P) Para além disso, ao reconhecer que tais funcionários foram condenados, cada um, ao pagamento à Recorrente de um valor máximo de € 5.000,00, o Tribunal Recorrido deveria ter concluído que, quanto ao valor remanescente do crédito, não existia qualquer expectativa de recebimento, ainda que se aceitasse que fosse deduzido, ao montante total do crédito, o valor que aqueles funcionários foram condenados a devolver, independentemente de esse montante vir a ser ou não efetivamente devolvido;

Q) O Tribunal Recorrido desvalorizou a prova documental e testemunhal produzidas, não deu qualquer relevância aos indícios que resultavam dessa prova e considerou, sem qualquer fundamento factual que o justificasse – porque nem sequer foi realizada prova em sentido contrário – que a Recorrente não tentou recuperar os valores que lhe foram comprovadamente furtados;

R) Pelo que é manifesto o erro de julgamento da matéria de facto em que incorreu o Tribunal a quo, em face da errónea valoração da prova produzida, não podendo deixar de ser anulada a sentença de que ora se recorre;

S) Paralelamente ao erro de apreciação dos factos e da prova produzida, o Tribunal Recorrido também procedeu, no entendimento da Recorrente, a uma errónea interpretação e aplicação no caso sub judice das normas fiscais, nomeadamente, dos artigos 23.º e 39.º do Código do IRC, na redação aplicável à data (2002), bem como, do artigo 103.º, n.º 3, da CRP;

T) Desde logo porque, tendo ficado demonstrada a incobrabilidade do crédito, em conformidade com o critério definido pelo Tribunal Recorrido – isto é, a realização de diligências judiciais para recuperação do dinheiro -, não existem de facto obstáculos para a não aceitação fiscal deste custo;

U) Acresce que a Recorrente atuou nesta situação de molde a cumprir escrupulosamente os princípios contabilísticos e fiscais aplicáveis, nomeadamente, do princípio da prudência: num primeiro momento, enquanto teve alguma expectativa de recuperar o valor do furto, não deduziu fiscalmente a provisão e, num segundo momento, quando já não tinha legitimamente essa expectativa, anulou a provisão e considerou o crédito como incobrável, deduzindo-o ao lucro tributável do período de tributação em que essa expectativa se gorou;

V) E a jurisprudência é unânime em considerar que a eventual não constituição de uma provisão poderá ser motivo que impeça a relevação futura do crédito como incobrável, como se constata a título exemplificativo do Acórdão do STA, de 18/06/2014, proferido no processo n.º 01463/12 ou do Acórdão do mesmo STA, de 18/05/2005, proferido no processo n.º 132/05, acima parcialmente transcritos;

W) Mesmo que se entenda que esta situação não se encontra expressamente prevista nana letra da lei do artigo 39.º do Código do IRC – por não estarmos perante um processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência -, tal norma tem que ser interpretada de forma a abarcar também as situações em que os contribuintes ajam de forma mais adequada e prudente e, em concreto, não tenham qualquer expectativa de recuperar o crédito;

X) Se assim não for, verificar-se-á uma de duas situações: ou a violação do princípio da tributação pelo lucro real ou uma dupla tributação;

Y) De facto, ficou demonstrado que a Recorrente pagou imposto sobre um rendimento que não teve e, quando essa situação se consolidou na ordem jurídica, em 2002 - através do registo contabilístico do montante em causa na conta POC #6920001 (dívidas incobráveis) -, a AT não permitiu a dedução fiscal do custo;

Z) Não só o Tribunal Recorrido validou, através da desconsideração do custo em 2002, a tributação, em sede de IRC, de um valor que a Recorrente efetivamente não recebeu, como também sancionou a evidente dupla tributação verificada no caso vertente: por um lado, através dessa tributação, em 1990 e, por outro lado, através da desconsideração do custo, em 2002;

AA) A realidade que foi sujeita a tributação, quer em 1990, quer em 2002, é a mesma: a perda ocorrida na esfera da Recorrente, em resultado do furto;

BB) Para além do mais, a jurisprudência tem também sido unânime em considerar que, numa situação como esta, o custo apenas não poderia ser deduzido no caso de mercadorias que tenham sido objeto de seguro e de indemnização paga pela respetiva seguradora, como se constata por exemplo do Acórdão do STA, de 29/06/2011, proferido no processo n.º 943/10 ou do Acórdão do TCA Sul, de 02/07/2002, proferido no processo n.º 6540/02 (acima parcialmente transcritos);

CC) Conclui-se assim que o Tribunal a quo também incorreu num erro de aplicação e interpretação do Direito ao caso concreto, quer quando não sancionou a ocorrência da violação do princípio da tributação pelo lucro real, vertido no artigo 103.º, n.º 4, da CRP – pelo facto de a Recorrente ter visto serem tributados valores que não correspondem, de forma alguma, a proveitos, sejam do exercício de 1990 ou do de 2002;

DD) Quer quando não determinou a anulação do ato de liquidação, com fundamento numa manifesta dupla tributação dos valores em causa – em 1990, quando foram tributados como vendas e em 2002, quando o custo não foi fiscalmente aceite;

EE) Quer, por fim, quando não enquadrou esta situação – podendo fazê-lo, em face da prova documental e testemunhal produzida – no espírito da norma plasmada no artigo 39.º do CIRC, atenta também a atuação diligente e prudente que a Recorrente teve em qualquer um dos anos em causa;

FF) Razão pela qual também deve ser anulada a sentença recorrida.

TERMOS EM QUE deverá ser julgado procedente, por provado, o presente recurso, devendo, em consequência, ser anulada a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa e, em consequência, as liquidações de IRC e de Juros Compensatórios do ano de 2002, assim se fazendo Justiça!”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) A sentença é nula, por omissão de pronúncia?

b) O Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da prova produzida?

c) O Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto?

d) O Tribunal a quo errou na aplicação da disciplina legal correspondente?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A. A Impugnante foi alvo de uma acção de inspecção tributária referente ao exercício de 2002, efectuada pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária da Direcção-Geral dos Impostos, “com o objectivo de verificar o cumprimento das obrigações fiscais inerentes à aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS)”, por que optou o Grupo T…………..& L., constituído pela Impugnante – sociedade dominante - e pelas sociedades S…………. Imobiliária, S. A., A…………… Imobiliária, S. A. e T………… & L………. Açucares Portugal, S. A., em cujo Relatório final, elaborado em 2 de Junho de 2006, se asseverou, entre o mais, o seguinte (cf. artigo 4.º da p. i., não impugnado pelo Representante da Fazenda Pública e Relatório final de inspecção, a fls. 48 e segs. do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):


(…)

« Texto no original»

B. Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos Anexos I e II ao Relatório final de inspecção referido na letra anterior, a fls. 59 e segs. do PAT apenso;

C. A Impugnante foi notificada do acto de liquidação adicional de IRC n.° ……………………..645 e respectiva liquidação de juros compensatórios, relativos ao exercício de 2002, no valor total de € 227.602,56, valor que foi pago em 7 de Agosto de 2006 (cf. Doc. n.° 2, junto com a p. i. a fl. 30, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

D. Em 4 de Dezembro de 2006, a Impugnante apresentou reclamação graciosa, nos termos constantes de fls. 3 e segs. do procedimento de reclamação graciosa constante do PAT apenso (cf. ainda carimbo dos CTT aposto no respectivo envelope, a fl. 41, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

E. Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos 9 docs. juntos com a reclamação graciosa referida na letra anterior, a fls. 22 e segs. do procedimento de reclamação graciosa constante PAT apenso;

F. Por despacho de 30 de Outubro de 2009 proferido pelo Chefe da Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa, foi a reclamação graciosa referida na letra anterior indeferida, com base em informação dos serviços com o seguinte teor essencial (cf. Doc. n.° 3, junto com a p. i. a fls. 31 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e fls. 89 e segs. e 99 e segs. do procedimento de reclamação graciosa constante do PAT apenso, cujo teor se dá igualmente por integralmente reproduzido):


(…)

« Texto no original»

(…)

« Texto no original»

G. Em 6 de Novembro de 2009, foi a Impugnante notificada do despacho referido na letra anterior (cf. Aviso de recepção, a fl. 105 do procedimento de reclamação graciosa constante do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

H. A presente impugnação judicial foi enviada a juízo via correio registado em 23 de Novembro de 2009 (cf. carimbo dos CTT aposto no respectivo envelope, a fl. 46, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

I. Em 16 de Novembro de 1990, a A……….. Refinarias-A………….s, S. A., apresentou denúncia, junto da Polícia Judiciária, contra C…………. V………, “empregado da denunciante”, “cabendo-lhe as funções de controlo de crédito, desempenhando tarefas em estreita ligação com a secção de vendas, cobranças e caixa” e contra L………… M………., “empregado da S…………. – Sociedade ……………….., S. A.”, “desempenhando tarefas de caixa na secção de vendas” (cf. Doc. n.° 4, junto com a p. i. a fl. 39, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

J. No exercício de 1990, a Impugnante procedeu à constituição de uma provisão específica (“Outros processos judiciais”), no valor de € 614.743.83 (cf. Doc. n.° 5, junto com a p. i. a fl. 40, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e acordo das partes – cf. artigo 35.º da p. i. e artigo 18.º da informação para que remete a contestação);

K. A provisão constituída foi acrescida no quadro 17 da declaração de rendimentos modelo 22 do mesmo exercício de 1990 (cf. Doc. junto a fls. 28 e segs. do procedimento de reclamação graciosa constante do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e acordo das partes – cf. artigo 36.º da p. i. e artigo 18.º da informação para que remete a contestação);

L. Por missiva de 24 de Janeiro de 2002, a Impugnante foi informada pelo seu Advogado que por sentença proferida em 18 de Janeiro de 2002, “foram os Réus C ……….. V………… e L…………. M………….. condenados, respectivamente a 2 anos e 3 anos de prisão com pena suspensa por 4 anos, sujeita à condição de pagarem durante esse período à Alcântara a importância de Esc. 7.000.000$00, acrescida dos juros legais. O Tribunal considerou provada a prática de crime de abuso de confiança, mas quanto às quantias desviadas, só foi feita a prova da verba total de Esc. 7.000.000$00”, “não se afigurando haver interesse da nossa parte na interposição do recurso” (cf. Doc. n.° 7, junto com a p. i. a fl. 42, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

M. A Impugnante procedeu à anulação da provisão constituída, levando a “saldo para o ano seguinte” o valor de € 34.915,85 (cf. Doc. junto a fls. 37 e segs. Do procedimento de reclamação graciosa constante do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

N. A presente impugnação judicial foi enviada a juízo via correio registado em 23 de Novembro de 2009 (cf. carimbo dos CTT aposto no envelope que contém a a p. i., a fl. 46, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

O. A T……….. & L………… A…………. Portugal, S. A., dedica-se à actividade de exploração da indústria de refinação de açúcar (cf. artigo 8.º da p. i., não impugnado pelo Representante da Fazenda Pública)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Assenta a convicção do tribunal no exame dos documentos juntos aos autos e constantes do PAT apenso, atenta a fé que merecem e o facto de não terem sido impugnados e na posição processual assumida pelas partes nos articulados, tal como referido em cada letra do probatório. No seu depoimento, a testemunha inquirida apenas relatou o que ouviu dizer, o que constitui depoimento indirecto, que não pode ser valorado e fez a sua interpretação de factos contidos em documentos já referidos no probatório”.

II.C. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Entende, desde logo, a Recorrente que o Tribunal a quo fez uma análise desajustada e errónea da prova produzida, designadamente ao considerar que não ficou provada a reclamação judicial do crédito em causa, não podendo desvalorizar o depoimento da testemunha.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (1).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (2).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos.

Com efeito, lidas integralmente as alegações, verifica-se que, não obstante a Recorrente imputar à sentença um erro na matéria de facto, não indica que factos deviam ser considerados ou não provados e com base em que prova, nos termos exigidos pelo art.º 640.º do CPC.

Aliás, grande parte da alegação respeita, sim, a uma alegada incorreção na interpretação da matéria de facto provada, erro de julgamento que apreciaremos infra.

Como tal, nesta parte rejeita-se o recurso.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia

Considera, por outro lado, a Recorrente que a sentença recorrida padece de nulidade, por omissão de pronúncia, em virtude de o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre a violação do princípio da tributação sobre o lucro real e sobre a dupla tributação.

Vejamos.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC].

As questões de que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso.

Compulsada a petição inicial, verifica-se que ambas as questões, que não consideramos meros argumentos, foram invocadas, desde logo na própria análise da decisão proferida em sede de reclamação graciosa.

Perscrutando a sentença recorrida, verifica-se que nada foi dito a este respeito.

Como tal, assiste razão à Recorrente, ao afirmar que a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia, dado nada ter sido dito sobre tais questões nem o respetivo conhecimento resultar prejudicado pelo demais apreciado.

Nos termos do art.º 665.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, “[a]inda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”.

Assim, cumprirá conhecer tais questões alegadas pela Recorrente, o que será feito após o conhecimento do erro de julgamento.

III.B. Do erro de julgamento

Considera, por outro lado, a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao interpretar erroneamente a matéria de facto e ao errar na aplicação da disciplina legal correspondente.

Vejamos.

No caso em concreto, estamos perante uma correção a um valor considerado como dívida incobrável, em relação ao qual a administração tributária (AT) considerou não terem sido demonstrados os pressupostos consagrados no art.º 39.º do Código do IRC (CIRC), como resulta do relatório de inspeção tributária (RIT), onde consta o fundamento do ato de liquidação. Decorre ainda do RIT que a AT entendeu que as perdas com furtos não são tout court subsumíveis ao art.º 23.º do mesmo código.

Quanto à possibilidade de subsunção da situação dos autos ao referido art.º 23.º, o Tribunal a quo, sustentando-se em jurisprudência deste TCAS, afastou o entendimento da AT, o que não vem posto em causa, pelo que, nesta parte, nada há a acrescentar.

Foquemo-nos, então, no então art.º 39.º do CIRC, na vertente considerada não cumprida por parte do Tribunal a quo.

Nos termos da mencionada disposição legal, relativa a créditos incobráveis, na redação à época:

“Os créditos incobráveis podem ser diretamente considerados custos ou perdas do exercício na medida em que tal resulte de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, quando relativamente aos mesmos não seja admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta se mostre insuficiente”.

Da análise desta disposição legal verifica-se, pois, a consagração de dois pressupostos:

a) A incobrabilidade resultar de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência;

b) Relativamente aos mesmos, não ser admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta mostrar-se insuficiente.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, como resulta do RIT e já referimos, a AT efetuou a correção sob dois prismas: o primeiro, de que o custo em causa não era indispensável, nos termos exigidos no art.º 23.º do CIRC, em relação ao qual o Tribunal a quo já afastou a sua pertinência, isoladamente; o segundo, de que não estavam preenchidos os pressupostos para que se pudesse falar em crédito incobrável, nos termos consignados no art.º 39.º do CIRC.

Em matéria de créditos incobráveis, a leitura do art.º 23.º não pode ser feita isoladamente, sendo, pois, imprescindível a sua análise concatenada com as exigências do já referido art.º 39.º do CIRC.

Esta última disposição legal, como mencionado, exigia o preenchimento de dois requisitos.

Quanto ao segundo requisito, relativo à impossibilidade de constituição de provisão, o mesmo não foi discutido nos autos e tal não foi posto em causa.

Já quanto ao primeiro, desde logo o processo crime em causa não se enquadra no âmbito do art.º 39.º do CIRC [o que se extrai da decisão recorrida: Existe no preceito citado uma exigência específica de “existência de um processo judicial”, condicionante da possibilidade de serem relevados na contabilidade da credora os créditos desta, considerados incobráveis, que foi afirmada no preceito de forma inequívoca, o que se compreende para evitar abusos ou arbítrio dos sujeitos passivos credores impondo-se a estes uma atitude activa, com vista à cobrança do seu crédito (cf., por todos, acórdão do TCA Sul de 11 de Março de 2021, proferido no processo n.º 8298/14.0BCLSB)”].

Sublinhemos, em complemento fundamentador, que, de uma interpretação literal da norma, o processo crime (e eventual pedido de indemnização cível enxertado no mesmo) não integra nenhum dos casos referidos na mesma (processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência).

É, a este respeito, relevante atentar na motivação do legislador fiscal, subjacente à previsão dos específicos processos previstos no art.º 39.º do CIRC.

Assim, subjacente à previsão normativa em causa está a certeza da incobrabilidade (ou situações especificamente relacionadas com medidas tendentes à recuperação das empresas).

Aliás, nesse âmbito, é inclusivamente considerada suficiente a existência de documento no âmbito dos processos em causa que ateste a inexistência de bens, ainda que não seja a decisão final (cfr. a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.10.2012 – Processo: 0782/12).

Especificando, no âmbito dos processos elencados no art.º 39.º do CIRC, há toda uma tramitação que permite aferir da existência de bens na esfera do devedor.

Assim:

¾ No âmbito do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF, aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23 de abril), para além de toda a tramitação atinente à relação dos créditos, em vários momentos dos diversos processos ali mencionados é possível concluir-se pela incobrabilidade desses mesmos créditos (v., v.g., os art.ºs 186.º e 187.º do CPEREF);

¾ No âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de março, e que revogou o CPEREF), no qual o processo de insolvência é configurado como um processo de execução universal, tal situação ocorre igualmente (cfr. v.g., art.ºs 39.º, 172.ºa 184.º);

¾ Ao nível do processo de execução, e considerando a disciplina constante do CPC/1961, atento o exercício em apreciação, há toda uma disciplina atinente à localização de credores e de bens, que permite concluir pela incobrabilidade (cfr. v.g. os art.ºs 808.º, n.ºs 1 e 2, 872.º e ss.).

Por outro lado, todos estes procedimentos têm subjacente uma atuação do credor no sentido de tentar ver satisfeito o seu crédito.

Ora, tal objetivo não se encontra evidenciado in casu, parecendo, sim, que há alguma confusão entre a mensuração do crédito e a incobrabilidade do mesmo, entre a certeza da existência do crédito e a sua exigibilidade, o que é absolutamente distinto da sua incobrabilidade. Um crédito, para ser incobrável, tem de existir.

Como refere o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 11.04.2018 (Processo: 0939/14):

“Vista a lei, a primeira nota que deve ser aposta é a de que, resulta da letra do artigo 39º do CIRC que a consideração de custos ou perdas pela entidade credora, na circunstância de ocorrer um crédito incobrável, está condicionada a que tais créditos resultem de um processo judicial de entre os tipificados na norma. No reverso, não é admissível a consideração desses custos quando resultem de uma deliberação, como sucedeu no caso dos autos, de dissolução da sociedade devedora, participada também pela sociedade credora agora recorrente. Existe no preceito uma exigência específica de “existência de um processo judicial” condicionante da possibilidade de serem relevados na contabilidade da credora os créditos desta considerados incobráveis, que foi afirmada no preceito de forma inequívoca o que se compreende para evitar abusos ou arbítrio dos sujeitos passivos credores impondo-se a estes uma atitude activa, com vista à cobrança do seu crédito (…).

Cremos ser esta a melhor interpretação a efectuar ao abrigo do disposto no artº 9º do C. Civil e que tem na lei a correspondência verbal suficiente sendo pois a base do processo hermenêutico que agora se impõe efectuar (quanto à melhor forma de efectivar este processo remetemos para a lição de Batista Machado em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina,1983 pags 182 e 188/189).
De resto, o ora Relator, no acórdão de 18/06/2014 tirado no recurso 01463/12, já havia considerado, quanto ao artº 39º do CIRC na redacção do D.L. 198/2001 de 3 de Junho, que este preceito estipula, claramente, a verificação de dois pressupostos, cumulativos, para que os créditos incobráveis possam ser directamente considerados custos ou perdas do exercício, no caso de 2005.

Um: que a incobrabilidade resulte (no caso concreto) de processo de insolvência.

Outro: que não seja admitida a constituição de provisão (casos do então artº 35º nº 3 do CIRC, designadamente os créditos sobre o Estado, regiões autónomas, autarquias locais e que não resultem da actividade normal da empresa).

Ou sendo admitida a constituição de provisão (todos os demais casos não previstos no nº 3 do artº 35º do CIRC) esta se mostre insuficiente.

E, em tal arresto sumariou-se: I - Para que o crédito em causa nos autos, pudesse ser directamente considerado como custo ou perda do exercício de 2005 tinha de ser incobrável, qualidade que devia resultar de processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, o que no caso não se verifica.

II - Se o credor tinha a possibilidade legal de constituir provisão para créditos de cobrança duvidosa mas não o fez no exercício de 2005 nem nos anteriores também não se verificam os pressupostos para aceitação do crédito como custo fiscal do exercício de 2005, ao abrigo do estatuído, à data, no artigo 39.° do CIRC.

Ora, ressalvadas as devidas distâncias, designadamente por nos presentes autos não se discutir a constituição ou não de provisão para o crédito da ora recorrente a verdade é que este crédito nunca podia ser considerado como custo ou perda do exercício de 2005 porquanto não integrava o conceito de crédito incobrável, entendidos estes créditos como aqueles que não podem ser recebidos pelo credor ou porque o devedor não queira pagar ou não tenha realmente com que pagar e relativamente aos quais se reconhece a perda, sem esperança de boa cobrança, designadamente por inexistência de bens penhoráveis evidenciada judicialmente (quanto a esta última asserção vide o Ac. deste STA de 10/07/2012 tirado no rec. 0782/12 disponível no site da DGSI). Ao invés, a ora recorrente participou na assembleia Geral Extraordinária de 22/12/2005 que deliberou a dissolução da devedora B……….. SA conforme acta nº 38 cuja cópia consta de fls. 47 e 48 dos autos e nessa medida pode afirmar-se que contribuiu para a incobrabilidade do crédito o que contraria o espírito do citado artigo 39º do CIRC que pressupõe uma actividade do credor através de via judicial para cobrança do seu crédito e o inêxito dessa acção por, devido a circunstâncias alheias à sua vontade, se constatar, no próprio processo, que tal crédito passou a incobrável”.

Assim, face ao explanado, não se acompanha o entendimento da Recorrente, considerando-se que, in casu, não se está perante crédito incobrável, nos termos exigidos no art.º 39.º do CIRC.

Apesar de nos afastarmos em parte, em termos de fundamentação, do decidido pela instância, na medida em que, partindo dos requisitos do art.º 39.º, acaba por mencionar alguns requisitos do art.º 35.º, aqui irrelevantes, concluímos que não estão reunidos os requisitos exigidos pelo CIRC para se considerar o valor em causa como crédito incobrável. Daí que seja irrelevante o alegado em torno do pedido de indemnização cível formulado, porquanto este não entra no âmbito do art.º 39.º do CIRC, nos termos já referidos.

Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

Passemos, então, à apreciação das questões cujo conhecimento foi omitido pelo Tribunal a quo.

III.C. Da violação do princípio da tributação pelo lucro real e da existência de dupla tributação

Considera a Impugnante que uma interpretação do art.º 39.º do CIRC, no sentido de uma situação como a in casu não caber nos casos aí tipificados, atenta contra o princípio da tributação pelo lucro real ou conduz a uma dupla tributação, questões cujo conhecimento foi omitido pelo Tribunal a quo.

Adiante-se que não se acompanha igualmente este entendimento.

Concretizando.

É desiderato constitucionalmente consagrado o de que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real (cfr. art.º 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – CRP).

Com efeito, nos termos do art.º 104.º, n.ºs 1 e 2, da CRP:

“1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.

2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

O princípio da igualdade, evidenciado, desde logo, nos n.ºs 1 e 2 do supracitado art.º 104.º da CRP, abrange quer a vertente da igualdade perante a lei fiscal, no sentido de não haver discriminação dos cidadãos face à referida lei, quer a vertente da igualdade tributária ou igualdade de sacrifícios; esta encontra-se estreitamente ligada ao princípio da capacidade contributiva, enquanto reflexo da igualdade material.

Como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 03.03.2004:

“A tributação segundo o rendimento real é, numa certa dimensão, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva. É ele que justifica que a Constituição estabeleça que o sistema fiscal não pode deixar de assegurar “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (art.º 103º, n.º 1) e que especifique, posteriormente, que os impostos devem ter em conta as “necessidades e os rendimentos [concretos] do [de cada] agregado familiar” e, finalmente, que a “tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

Mas o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, sendo constituído, simpliciter, “pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas [previstas na lei e] verificadas no mesmo período” (…) - o saldo entre os proveitos ou ganhos provenientes das mais diversas fontes, como vendas, bónus, comissões, rendimentos de imóveis, rendimentos de carácter financeiro, prestações de serviços, mais-valias realizadas, subsídios, etc., menos os custos ou perdas, como os encargos relativos à produção, distribuição e venda, encargos de natureza financeira e de natureza administrativa, encargos fiscais e parafiscais, reintegrações e amortizações, etc., acrescido das variações patrimoniais positivas ou diminuído das variações patrimoniais negativas, previstas na lei”.

Não obstante, não se considera que, in casu, este princípio esteja posto em causa.

Com efeito, como resulta do regime atinente à tributação de sociedades, nem todos os custos suportados pelas mesmas são custos para efeitos fiscais, circunstância ditada desde logo pela necessidade de apenas serem considerados como custos aqueles que têm relação (mais ou menos imediata) com a atividade da empresa e de serem de alguma forma limitadas situações relativas a custos que podem ser desviados para fins pessoais, por exemplo. Por outro lado, são definidos critérios para que determinados custos possam ser considerados custos fiscais, justamente para assegurar algum nível de controlo sobre os mesmos, de que é exemplo o regime a que nos temos vindo a referir.

Ora, in casu, o que sucede é que, para consideração dos créditos como incobráveis, o legislador previu as exigências a que já fizemos referência, para efeitos de garantia da efetiva incobrabilidade dos créditos. E nada foi alegado no sentido de que, in casu, tivesse sido impossível dar cumprimento ao disposto no art.º 39.º do CIRC.

Como tal, não tendo sido cumpridas as exigências desta disposição legal, não se pode considerar violado o princípio da tributação pelo lucro real, porquanto tratou-se de situação que a própria Recorrente não acautelou.

O mesmo raciocínio vale para a questão da alegada dupla tributação, porquanto há aqui uma situação não acautelada pela Recorrente, nos termos explanados. Como tal, tal dupla tributação não existe.

Uma palavra final se impõe, no tocante ao alegado em torno de o evento ser ou não segurável. Carece de pertinência fazer qualquer referência ao alegado, uma vez que tal não constitui fundamento da correção, que, como referimos, reside no RIT (e não em quaisquer observações feitas a latere em sede de reclamação graciosa, no seguimento do alegado pela ora Recorrente e que extravasam o fundamento da correção). O fundamento da correção é não se tratar de dívida incobrável.

Assim, não assiste razão à Impugnante.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Declarar parcialmente nula a sentença recorrida, por omissão de pronúncia, e, em substituição, julgar improcedente a impugnação nessa parte;

b) No mais, negar provimento ao recurso;

c) Custas pela Recorrente;

d) Registe e notifique.


Lisboa, 24 de outubro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Maria da Luz Cardoso)

(Teresa Costa Alemão)

(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.