Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:47/19.3BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:LEI DA AMNISTIA
REINCIDÊNCIA
REGULAMENTO DISCIPLINAR
AUDIÊNCIA PRÉVIA DO ARGUIDO
PRINCÍPIOS DA CULPA, DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA, DO CONTRADITÓRIO E DO PROCESSO EQUITATIVO
VALOR DA CAUSA
Sumário:I. No caso de comprovada reincidência na prática de infração disciplinar, a recorrente não beneficia da amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, atento o disposto no respetivo artigo 7.º, n.º 1, al. l), A,
II. Decorre do disposto nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que no âmbito de processo disciplinar não pode ser aplicada sanção ao arguido, sem que previamente lhe seja assegurada a possibilidade de apresentar a sua defesa.
III. Prevendo o Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), no respetivo artigo 214.º, que no procedimento disciplinar sumário é excluída a audiência prévia do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, esta disposição regulamentar contende com aqueles normativos constitucionais e como tal padece de inconstitucionalidade material, cabendo ao Tribunal recusar a sua aplicação.
IV. Ao não permitir ao arguido contraditar a presunção de veracidade dos elementos reportados pela equipa de arbitragem e delegados da Liga prevista no artigo 13.º, al. f), do RDLPFP, que assim se torna inilidível, esta disposição regulamentar é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por contender com os princípios da culpa, da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo, consagrados nos artigos 32.º, n.º 2, e 20.º, n.º 4 da CRP, cabendo também aqui ao Tribunal recusar a sua aplicação.
V. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 77.º, n.º 1, da LTAD, e 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário nos processos do TAD, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais: Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
Futebol Clube do Porto, SAD, recorre da decisão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) de 04/02/2019 do TAD, que confirmou a sua condenação pela prática da infração prevista e punida pelo artigo 187.º, n.º 1, al. a), do Regulamento de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
Termina as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“I
i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 04.02.2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187.M a) do RD. alegadamente cometida no jogo realizado no dia 01.10.2017, no Estádio José Alvalade, punindo-a em multa no valor de € 765,00, e fixando as custas no total de € 4.150.00.
-II-
ii. Os factos julgados como provados não preenchem todos os pressupostos típicos das infracções disciplinares pelos quais a arguida foi condenada, nomeadamente, o pressuposto da violação do dever de implementação de meios de prevenção da prática de factos social e desportivamente incorrectos por parte dos seus sócios e simpatizantes e de comissão de factualidade típica a título doloso ou, pelo menos, negligente.
iii. Porquanto a culpa é pressuposto de responsabilização pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 187.°-1, a) do RD, a punição pela prática da infracção pressupõe que seja julgada como provada - com fundamento em robustas provas - uma actuação inadimplente e culposa do clube na verificação dos factos.
iv. A sofreguidão do Tribunal a quo na condenação da recorrente é tal que, mesmo perante hiatos factuais e probatórios no que à culpa da recorrente concerne nos factos ocorridos determinou que fossem mantidas as sanções disciplinares.
v. Não se julgando como provada factualidade essencial ao preenchimento dos tipos legais (187.°-1, a) do RD), vê-se necessariamente prejudicada a decisão recorrida.
-III-
vi. Considerando a infracção p. e p. pelo art. 187.°-1, a) do RD em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube do Porto - Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube do Porto - Futebol SAD.
vii. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar. pelo que. não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.
viii. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.
ix. E precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.
x. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°. f). do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
xi. A míngua de meios de prova demonstrativas da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres regulamentares, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual se rege o Tribunal arbitrai; recorrendo a um critério de primeira aparência.
xii. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
xiii. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
xiv. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.°, n.os 2 e 10 da CRP). no princípio do Estado de Direito (art. 2.° da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002. Proc. 033881 e Ac. do STA dc 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt).
xv. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).
xvi. A figura da “prova de primeira aparência" ou *'prova prima facie" é própria do direito civil, inserindo-se no quadro das presunções judiciais (art. 349.° do Código Civil) e pode, embora com cautelas e cum grano salis, funcionar nos pleitos cíveis, mas é um corpo completamente estranho no direito e processo sancionatórios, desde logo porque contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência.
xvii. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,
xviii. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar. inerente no seu direito de defesa (art. 32.°, n.os 2 e 10 da CRP). ao direito a um processo equitativo (art. 20.M da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.° da CRP) - a interpretação dos artigos 222.°-2 e 250.°-l do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se. resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
xix. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.°297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação:a a actuação culposa da recorrente.
xx. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções” que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelo art. 187.M. a) do RD.
xxi. É inconstitucional, por violação do princípio jurídico- constitucional da culpa (art. 2.° da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32.°-2 e -10 da CRP), a interpretação dos artigos 13.° í) e 187.°-1 a) o RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais; e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2.° e 30.°-3 da CRP).
-IV-
xxii. O parâmetro da violação do dever de prevenção adoptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187.°, n.° 1, a), do RD, correspondente ao comportamento incorrecto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.
xxiii. Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido, não se podendo assacar responsabilidade disciplinar ao clube face a tal impossibilidade (neste sentido o acórdão de 18-07- 2018, nos processo n.° 69/2017 e 72/2017 do Tribunal Arbitral do Desporto).
xxiv. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva.
xxv. Pelo que, não podia o Tribunal a quo confirmar a condenação da recorrente pela prática da infracção p. e p. pelo art 187.°-1, a) do RD.
- V-
xxvi. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando- se o valor da acção no montante de € 765,00 daí se extraindo as devidas consequências.
xxvii. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.°-1 e 268.°-4 da CRP).
xxviii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
xxix. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.°- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.a linha), da Portaria n.° 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.°/l/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.° da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-! e 268.°-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.° da CRP).
Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, decidindo pela absolvição da recorrente por falta de verificação dos pressupostos típicos da infracção pela qual foi condenada.
Sem prescindir requer-se seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitral recorrida e assim também a condenação da recorrente pela infracção disicplinar p. e p. pelo art. 187.°, n.° 1, a), do RDLPFP, e anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, conforme o alegado em III supra.
Sempre subsidiariamente, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, absolver a recorrente, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para que reaprecie a matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneos com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante.
Sendo interpretados os arts. 13.° e 187.°, n.° 1, alíneas a) do RD da LPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, ou ainda que determinam uma responsabilização disciplinar dos clubes independentemente de qualquer conduta, activa ou omissiva, própria e independentemente do dolo ou negligência que lhe possam ser concretamente assacados em relação às condutas dos seus sócios ou simpatizantes, deverá a sua aplicação ser recusada (204.° da CRP), com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa e da intransmissibilidade da responsabilidade penal (arts. 32.°-2 e 10 e art. 30.°-3 da CRP), ambos inerentes ao princípio do Estado de Direito plasmado no art. 2.° da CRP.
Sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.°, n.os 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.a linha, da Portaria n.° 301/2015, com o previsto nos artigos 76.71/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.° da CRP), com as legais consequências”.
A recorrida FPF apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da FCP e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos.
2. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo, os adeptos da Recorrente desrespeitaram um minuto de silêncio e entoaram cânticos ofensivos contra a equipa adversária.
3. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenham sido adeptos da FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, quer os relatórios da equipa de arbitragem, quer os relatórios dos delegados da LPFP, têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.?, al. f) do RD da LPFP).
5. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube.
6. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.
7. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
8. Assim, os Relatório dos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de ta! documento (artigo 13.2, al. f) do RD da LPFP).
9. Isto não significa que os Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
10. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.2 do Código Civil.
11. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
12. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
13. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
14. Do conteúdo do Relatório dos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que a Futebol Clube do Porto incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes da Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos (única forma dos Delegados e Forças de Segurança identificarem os espectadores, para além da bancada).
15. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.
16. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
17. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por três vezes em sede de recurso de revista.
18. Carece de fundamento a alegação de que a norma do artigo 187.5 é inconstitucional, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
19. Também não merece qualquer censura o valor atribuído à causa porquanto a Recorrente tem um interesse que vai muito para além da mera revogação da decisão disciplinar, tanto que invoca a inconstitucionalidade das normas aplicadas.
20. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
21. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 187.2, a|. a) do RD da LPFP”.
O Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Por requerimento datado de 02/12/2020, a recorrente veio suscitar a inconstitucionalidade da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Notificada deste requerimento, a recorrida nada veio dizer.
*

Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, as questões a decidir consistem em aferir:
- da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
- da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa;
- da insuficiência da decisão da matéria de facto provada para preenchimento do ilícito disciplinar;
- da violação dos princípios da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo e do Estado de direito;
- do erro na modificação do valor da causa;
- do erro quanto à fixação das custas, por inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5, da Portaria n.º 301/2015, que viola os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
*

II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
4.1.1 No dia 1 de outubro de 2017, no Estádio José Alvalade, realizou-se, o jogo entre Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD e Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD, a contar para a 8.a jornada da "Liga …".
4.1.2 Os adeptos afetos à Demandante, situados na Bancada Topo Norte, não respeitaram o minuto de silêncio que se realizava em nome de J… P…, entoando cânticos não percetíveis e assobios.
4.1.3 Os adeptos afetos à Demandante, situados na Bancada Topo Norte, gritaram por cinco vezes “Filhos da puta, filhos da puta até morrer”.
4.1.4 Na presente época desportiva, à data dos factos, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares.
*

II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber:
- da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
- da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa;
- da insuficiência da decisão da matéria de facto provada para preenchimento do ilícito disciplinar;
- da violação dos princípios da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo e do Estado de direito;
- se ocorre erro na modificação do valor da causa;
- se ocorre erro quanto à fixação das custas, por inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5, da Portaria n.º 301/2015, que viola os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.


a) da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, cf. o respetivo artigo 1.º.
De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 2, al. b), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, consideram-se abrangidas pelo previsto neste diploma as “sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”.
E nos termos do artigo 6.º deste diploma legal, “[s]ão amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.
Contudo, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, al. l), não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os reincidentes.
Atento o ponto 4.1.4 do probatório, não será então aplicável a Lei da Amnistia ao caso dos autos.


b) da inconstitucionalidade do artigo 214.º do RDLPFP

Nesta sede, veio sustentar a recorrente, já na pendência da fase recursiva, ser materialmente inconstitucional a norma contida no artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Conforme se assinalou em acórdão do STA perante a suscitação superveniente de questão idêntica, aresto proferido em 23/09/2021 no proc. n.º 0145/19.3BCLSB (disponível em www.dgsi.pt), “a natureza oficiosa do conhecimento da inconstitucionalidade prevalece perante o argumento da ‘estabilidade da instância’, bem como perante o da limitação do objeto do recurso pelo teor das conclusões das alegações e contra alegações”.
Pelo que cumpre conhecer da mesma.
Decorre dos autos que o ato punitivo foi proferido no âmbito de procedimento disciplinar sumário.
Sendo-lhe, pois, aplicável o indicado normativo, o qual, com a epígrafe ‘obrigatoriedade de audição do arguido’ dispõe que “[s]alvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar”.
Confirma-se que, no caso dos autos, não foi dada oportunidade ao arguido de se pronunciar em momento prévio ao da aplicação da sanção disciplinar.
O Tribunal Constitucional já emitiu pronúncia sobre a questão em apreço, no acórdão n.º 594/2020, proferido em 10/11/2020 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/), do qual consta o seguinte:
“A República Portuguesa, enquanto Estado Democrático de Direito, garante a existência de um processo disciplinar justo. Sendo um instrumento para apurar e punir infrações disciplinares, o processo disciplinar apresenta relações com o Direito Processual Penal, designadamente na medida em que se encontra também necessariamente subordinado a princípios e regras que assegurem os direitos de defesa.
A Constituição assume aquela relação, no artigo 32.º, sob a epígrafe “garantias do processo penal”, ao assegurar, no n.º 10, as garantias do direito de audiência e defesa nos processos contraordenacionais e em «quaisquer processos sancionatórios». Esta norma constitucional foi introduzida pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios.
De acordo com Germano Marques da Silva e Henrique Salinas «O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09, esclarecendo-se ainda, no Ac. n.º 469/97, que esta exigência vale não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo» (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (coord.), vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 537).
Pronunciando-se sobre o sentido da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 135/2009, do Plenário, ponto 7:
«(…) [C]omo se sustentou nos Acórdãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tãosó ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466)».
No Acórdão n.º 338/2018, da 3.ª Secção, ponto 14, o Tribunal voltou a afirmar:
«No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)».
Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).
Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.
14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.
Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.”
Aí se decidindo a final julgar “inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.
Decisões idênticas foram entretanto tomadas nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 742/2020, de 10/12/2020, e n.º 177/2021, de 06/04/2021 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/)
Em conformidade com o exposto, verifica-se que a norma constante do artigo 214.º do RDLPFP é materialmente inconstitucional, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da aplicação da sanção disciplinar no âmbito de procedimento disciplinar sumário, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, previstos nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP.
Como tal, é de recusar a aplicação da referida norma regulamentar, donde decorre a nulidade do ato punitivo.
Com a procedência da presente questão, queda prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas quanto à invalidade do referido ato.


c) do valor da causa

Nesta sede, sustenta a recorrente que a modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01, ao invés do total da multa por que foi condenada, foi feita cm violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da ação no montante de € 765,00.
Quanto a este ponto, é por demais evidente o erro do acórdão recorrido.
Estamos no âmbito de um processo disciplinar, no âmbito do qual se concluiu pela aplicação de multas à aqui recorrente.
Prevê o artigo 77.º, n.º 1, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro (Lei do Tribunal Arbitral do Desporto - TAD), que “[o] valor da causa é determinado nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
E de acordo com o invocado artigo 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, como aqui à evidência ocorre, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Como tal, o valor da causa corresponde a € 765,00 (setecentos e sessenta e cinco euros).


d) das custas

Mais invoca a recorrente que as custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efetiva e não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça.
A Portaria n.º 301/2015, prevê no respetivo artigo 2.º o seguinte:
“1 - A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante. (…)
4 - São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção da prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.
5 - A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I.”
O Tribunal Constitucional já se pronunciou quanto à presente questão, no acórdão n.º 543/2019, proferido em 16/10/2019, decidindo não julgar inconstitucionais as normas aludidas da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro.
Aí se entendeu que “não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.
Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00).
Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade.
Sem prejuízo da pronúncia no sentido da não violação dos princípios da proporcionalidade, do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva, tal decisão não fecha a porta à possibilidade das citadas regras, que fixam o montante das custas no âmbito nos processos do TAD, poderem dar azo a um valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor da causa, de forma patentemente desproporcional e injusta.
No caso dos autos, o valor das custas processuais terá de ser recalculado e será, à luz do citado diploma legal, inferior ao valor do processo.
Sem reflexos, contudo, no segmento decisório, atenta a necessária reformulação do valor das custas no TAD, em função da modificação do valor da causa.

Em suma, será de conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou a recorrente pela prática da infração prevista e punida pelo artigo 187.º, n.º 1, al. a), do Regulamento de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).

*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
§ conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou a recorrente pela prática da infração prevista e punida pelo artigo 187.º, n.º 1, al. a), do RDLPFP;
§ fixar o valor da causa no montante de € 765,00 (setecentos e sessenta e cinco euros).
Custas a cargo da recorrida.

Lisboa, 19 de dezembro de 2023

(Pedro Nuno Figueiredo)

(Carlos Araújo)

(Rui Pereira)