Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:196/23.3BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/16/2024
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:INUTILIDADE DA LIDE
SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
QUESTÃO PREJUDICIAL-ARTIGO 47.º DO RGIT
TUTELA JURISDICIONAL
Sumário:I - A inutilidade e a concreta desnecessidade de manutenção da lide deve ser aferida em termos objetivos, na medida em que a mesma torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por o efeito visado já ter sido atingido por outro meio, não podendo sê-lo na causa pendente
II - A suspensão do processo penal tributário, fundada na pendência de impugnação judicial consignada no artigo 47.º do RGIT, só se justifica nos casos em que a existência da infração penal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal, carecendo, portanto, de uma apreciação casuística e despacho prévio onde se afira da coincidência de fundamentos e, no caso afirmativo, se os mesmos têm, em concreto, relevância para a questão suscitada no processo penal.
III - O princípio da suficiência do processo penal, previsto no artigo 7.° do CPP, impõe a competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessem à decisão da causa, assim consignando que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e que nele se resolvem todas as questões relevantes, independentemente da sua natureza
IV - Se a sentença julgou extinta a instância impugnatória, por inutilidade superveniente da lide, face à anulação do ato tributário impugnado, não tendo, por conseguinte, sido analisada a questão prejudicial que terá motivado a suspensão do processo penal, a mesma deve ser decidida no domínio do processo penal, em obediência ao princípio da suficiência do processo penal.
V - Tal decisão em nada pode traduzir uma denegação de tutela e violação do artigo 20.º da CRP, porquanto não resulta desse normativo e bem assim da própria sujeição à reserva de lei das garantias dos contribuintes, plasmado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que o Tribunal possa obviar formalidades, condições e cominações expressamente consignadas na lei.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

S…, S.A., (doravante Recorrente ou S…), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que teve por objeto a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 42860938, referente ao período de março de 2012, no valor de €57.097,75 e que julgou, como segue:

“a) Extinta a presente instância, por inutilidade superveniente da lide, na parte respeitante ao pedido de anulação do acto tributário impugnado;

b) Improcedente o pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.”


***

A Recorrente apresentou alegações de recurso nas quais formulou as conclusões que infra se reproduzem:

“I.O presente recurso vem interposto da douta decisão proferida nos autos que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.

II.A Recorrente não se pode conformar com tal entendimento por entender e sustentar que essa inutilidade se não verifica.

SENÃO VEJAMOS,

III.A Recorrente foi no dia 17/10/2022 notificada da liquidação adicional em sede de IVA por referência ao período de tributação de 201203M e respetivos juros compensatórios – liquidação essa, efetuada a coberto do procedimento de inspeção tributária credenciada pela OI201204772.

IV.Por discordar com a liquidação ali efetuada, a Recorrente apresentou a competente impugnação judicial que originou os presentes autos e onde sinteticamente suscitou vários vícios a liquidação em crise, designadamente, (i) falta de notificação da eventual decisão do procedimento de inspeção – preterição de formalidades essenciais; (ii) falta de fundamentação da liquidação adicional; (iii) caducidade do direito à liquidação; (iv) impugnação da factualidade subjacente à liquidação adicional entre outras desconformidades como resultam abundantemente descritas na impugnação apresentada – pedindo, a final, a anulação da liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios.

V.Citada, veio a Administração Fiscal proceder à junção do PA do qual consta a informação elaborada pelos serviços onde além do mais consta a revogação do ato de liquidação adicional de IVA 201203M e respetivos juros compensatórios, porquanto, “não houve a notificação do RIT, nem, naturalmente, se procedeu à emissão das Notas de Liquidação; ocorreu um erro informático central, que viabilizou a emissão da liquidação em apreço (…) corrigir esta situação, criada por um desajuste informático (…)”

VI. Atenta a informação prestada pela Administração Fiscal, veio a ser proferida sentença que julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

VII. Para escorar tal entendimento, a decisão em mérito considerou “Decorre do probatório supra que o pedido formulado pelo impugnante de ver anulado o acto de liquidação de IVA para o exercício de 2010 foi satisfeito pela AT, em face da revogação do acto de liquidação.”

VIII.Como é sabido a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de ter todo o interesse e utilidade, conduzindo, por isso, à extinção da instância (art.º 287º, al. e), do Código de Processo Civil).

IX.A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio - José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 1, anotação 3 ao art. 287.º, pág. 512

X.No entanto, efeitos há que foram produzidos pela liquidação adicional (revogada) e que mantêm a sua vigência e produção dos seus efeitos ainda hoje na ordem jurídica em absoluta transgressão dos normativos reguladores da matéria em causa nos autos, violando de forma grosseira os direitos e interesses legalmente tutelados da Recorrente.

XI.Pois, apesar da anulação da liquidação adicional em crise, a verdade é que derivado dessa mesma liquidação foi instaurado o processo de execução fiscal tendente à cobrança coerciva do tributo o qual, supostamente, também ele anulado.

XII. No entanto, não podemos ignorar que apesar das anulações efetuadas, quer quanto à liquidação adicional, quer quanto ao processo de execução fiscal –ambas as situações produziram efeitos na ordem jurídica e afetaram a esfera jurídica da Recorrente.

XIII. Nesse circunstancialismo, a simples anulação da liquidação adicional sindicada não poderá por si só conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, não sem antes, aquilatar dos efeitos produzidos pela mesma no decurso da sua vigência.

XIV. O que importará, a anulação, em igual medida, dos efeitos entretanto produzidos como o sejam, os atos insertos na normal tramitação do processo de execução fiscal ou até mesmo aqueles que foram despoletados pela liquidação adicional sindicada – os juros compensatórios.

XV. Daí que, ressalvado o respeito devido, a decisão em mérito ao não aquilatar de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado, enferma de nulidade nos termos do artigo 615.º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPC.

SEM PRESCINDIR,

XVI. mas ainda que assim não fosse, os fundamentos que estiveram subjacentes à revogação do despacho deviam ter sido descortinados em Tribunal.

XVII. Na verdade, não se mostra plausível que a Administração Tributária se escude num erro informático para se retratar de uma liquidação que sabe ser errada e cuja quantia apurada sabe não ser devida.

XVIII. Tanto assim é que o fundamento subjacente à anulação da liquidação supostamente não se aplica a outras liquidações de idêntica natureza e que emergem precisamente do mesmo facto – a mesma ação inspetiva.

XIX. Daí, sermos levados a questionar - se umas liquidações são anuladas, qual a razão das restantes não o serem?

XX.A esta questão a Administração Tributária não consegue dar resposta.

POR OUTRO LADO,

XXI. Não será despiciendo referir que atento os fundamentos expostos na impugnação judicial aqui deduzida a mesma, assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário.

XXII.Porquanto, relativamente ao mesmo período de tributação em discussão nos autos, contra o Impugnante foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal, processo que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, Proc. nº 189/12.6TELSB.

XXIII. O despacho de acusação proferido naquele processo-crime estriba-se, quase que exclusivamente no relatório de inspeção tributária de onde advém a liquidação adicional aqui em mérito.

XXIV. Ou seja, o ponto nevrálgico, quer do processo-crime, quer dos presentes autos de impugnação emerge da mesma situação fáctica – relatório de inspeção tributária.

XXV. E, como tal, existindo liquidação adicional, e sendo sindicada por via da impugnação judicial – tal implica, forçosamente, o escrutínio de toda a situação por banda do Tribunal não podendo, contudo, demitir-se de tal função.

XXVI. Porquanto, o desfecho dos presentes autos, pela prejudicialidade que assume relativamente ao processo-crime, inelutavelmente se haveriam de refletir neste.

XXVII. Daí que, ressalvado o respeito devido, andou mal o Tribunal a quo ao não julgar o mérito da causa, atenta a prejudicialidade dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do artigo 47.º do RGIT.

SEM PRESCINDIR,

XXVIII.A interpretação desenvolvida na douta decisão recorrida à alínea e) do artigo 277.º do CPPT, quando interpretada no sentido do não conhecimento do mérito da causa, em decorrência de uma ulterior anulação da liquidação sindicada, no caso da mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal nos termos do artigo 47.º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e por violar os direitos de defesa artigo 32.º (garantias de processo criminal) ambos da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

TERMOS EM QUE,

- Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta sentença recorrida, farão Vossas Excelências a habitual JUSTIÇA!”


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A Recorrida DRFP optou por não apresentar contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Compulsados os autos e analisada a prova documental apresentada, encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a decisão:

A) Em 11.10.2022, foi emitida em nome da Impugnante a liquidação adicional de IVA n.º 42860938, referente ao período de Março de 2012, no valor de € 57.097,75, com data limite de pagamento 31.12.2022 (cfr. doc. de fls. 62 e 330 dos autos);

B) A presente impugnação judicial deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada em 31.03.2023 (cfr. doc. de fls. 1 a 4 dos autos);

C) Em 10.04.2023, foi elaborado pela Direcção de Finanças de Setúbal “Parecer” sob o assunto “Revisão do Acto Tributário– n.º 4 do art 78º da LGT – Processo n.º 2208202302000571”, em que concluiu, no que ora releva, o seguinte:

“Encontram-se, pois, reunidas as condições para a revisão do ato tributário por iniciativa da Administração Tributária, sob a forma de Revisão Oficiosa, com enquadramento na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e no n.º 1 do artigo 98.º do CIVA.

Não tendo o sujeito passivo sido notificado dos Relatórios de Inspeção tributária pelos motivos expostos, entendemos que as liquidações de IVA emitidas e não impugnadas e os respetivos juros compensatórios dos períodos constantes do quadro supra, referentes às Ordens de Serviço OI201204772 e OI201605671, no valor total de €2.206.249,87, devem ser anuladas, não sendo devidos juros indemnizatórios por não se verificarem os requisitos do disposto no artigo 43.º da LGT.

Remeta-se o presente Procedimento de Revisão à DSIVA, para apreciação e decisão, face ao valor da causa.” - (cfr. doc. de fls. 14 a 25 do doc. de fls. 302 do SITAF);

D) Em 12.04.2023, sobre o Parecer referido na alínea que antecede, recaiu o Despacho da Directora de Finanças de Setúbal com o seguinte teor: “Concordo. Remeta-se à DSIVA para apreciação e superior decisão” (cfr. doc. de fls. 14 do doc. de fls. 302 do SITAF);

E) Em 15.05.2023, foi elaborada Informação pela Direcção de Serviços do IVA, sob o assunto “RO N.º 2208202302000571 – S…, S.A.”, e que, no que ora releva, tem o seguinte teor:

(…)

10. Reportando-nos à situação sub judice, verifica-se que a S… foi objeto de um procedimento inspetivo externo, de âmbito geral, levado a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto, ao abrigo das Ordens de Serviço 01201204772 e 01201605671, relativas aos anos de 2010/2011 e 2012, respetivamente.
11. E que, devido a um automatismo introduzido no Sistema Informático da AT (SIIIT), decorrente da desmaterialização do procedimento inspetivo, ocorreu um erro informático central, o qual despoletou o encerramento das suprarreferidas Ordens de Serviço, originando, assim, que fossem, erradamente, efetuadas as notificações das liquidações de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, relativas aos períodos dos anos em causa.
12. Será, contudo, de registar, que a S… já reagiu, através da interposição da Impugnação Judicial n.° 780/22.2BEALM, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, contra a liquidação n.° 2022 22000356 relativa ao período 2010.01 M, no valor de € 5.930,79 (entretanto já anulada).
13. Constituem, assim, objeto do presente pedido as liquidações adicionais de IVA e as liquidações dos correspondentes juros compensatórios, no valor total global de €2.206.249,87, a seguir identificadas:



(…)
17. Atendendo a que está em causa, como já referido, um “erro imputável aos serviços’’ a que se alude na segunda parte do n.° 1 do art,° 78.° da LGT, estão reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários por iniciativa da administração tributária, não podendo esta legalmente demitir-se de o fazer. (…)
19. A administração tributária está, pois, obrigada a eliminar da ordem jurídica todos os atos de liquidação injustos, como, aliás, decorre da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mas tal dever não deve depender da existência de um ato tributário manifestamente ilegal ou de erro imputável aos serviços.
20. Este dever de rever atos injustos é, assim, um verdadeiro poder dever estribado no dever de a administração tributária atuar segundo o princípio da justiça, constitucionalmente consagrado. (…)
21. Nesta conformidade, verificando-se os pressupostos para se proceder a revisão oficiosa, com fundamento na segunda parte do n.° 1 do art.° 78.° da LGT, por estarem em causa liquidações, não devidas, resultantes de um erro imputável aos serviços, impõe-se que se proceda à revisão dos atos tributários prevista no art.° 78.° da LGT.
III- PROPOSTA DE DECISÃO
22. Diante do exposto, propõe-se o deferimento do presente pedido de revisão.
23. Por conseguinte, merecendo a presente informação despacho superior concordante, deverá proceder-se à revisão dos suprarreferidos atos tributários de liquidação de IVA e dos correspondentes juros compensatórios, no valor total de €2.206.249,87, com as demais consequências legais.” (cfr. doc. de fls. 34 a 39 do doc. de fls. 302 do SITAF);

F) Em 18.05.2023, sobre a Informação a que se refere a alínea que antecede, recaiu o Despacho do Subdirector Geral com o seguinte teor: “Concordo, pelo que defiro a presente Revisão Oficiosa, nos termos e com os fundamentos expostos” - (cfr. doc. de fls. 34 do doc. de fls. 302 do SITAF).


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Ficou ainda consignado na decisão recorrida, enquanto factualidade não provada o seguinte:

“Não resultou provado que:

i. A Impugnante tenha procedido ao pagamento da quantia mencionada na alínea A).”


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Consta, igualmente, da sentença recorrida que a motivação da matéria de facto assentou no “[e]xame das informações e dos documentos, não impugnados, que dos autos constam, todos objecto de análise concreta, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

Quanto ao facto não provado, o mesmo resultou da total ausência de prova nesse sentido. Importa ter presente que o pagamento de impostos em montante que exceda os € 500,00 não pode ser feito em numerário, nos termos do artigo 63.º-E, n.º 5, da LGT. Assim, a prova deste facto apenas poderia ser feita através de documentos. Não tendo a Impugnante junto aos autos qualquer documento para prova deste facto e impendendo sobre si o respectivo ónus da prova (vide artigo 74.º, n.º 1, da LTG), impõe-se dar o mesmo como não provado.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada na parte em que julgou inútil a lide, atenta a anulação do ato tributário de liquidação impugnado.

Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.


Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, decidir as questões que infra se enumeram:


i. A decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia;


ii. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito, ao ter sentenciado a inutilidade superveniente da lide;


iii. Não se verificando o arguido erro de julgamento, se a aludida interpretação deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º da CRP e por violar os direitos de defesa consignados no artigo 32.º do mesmo diploma legal.


Comecemos pela nulidade por omissão de pronúncia.


A Recorrente alega que a decisão recorrida ao não aquilatar de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado, enferma de nulidade nos termos do artigo 615.º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPC.


Vejamos, então, se lhe assiste razão.


De harmonia com o disposto na primeira parte da alínea d), do nº 1, do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.


Na verdade, a nulidade da decisão por omissão de pronúncia apenas acontece quando a sentença deixe de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra questão submetida à apreciação do Tribunal (1-Vide, designadamente, Acórdão do STJ, proferido no processo nº 02S1599, de 16 de outubro de 2002 e STA 01109/12, de 07 de novembro de 2012.).


Dir-se-á, neste particular e em abono da verdade que, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. De notar para o efeito que, as questões não são passíveis de qualquer confusão conceptual com as razões jurídicas invocadas pelas partes em defesa do seu juízo de valoração, porquanto as mesmas correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa preceituada no citado normativo 615.º, nº 1, alínea d), do CPC.


Conforme doutrinado por Alberto dos Reis (2-Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), pág. 143) “[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.


No caso vertente, não se verifica qualquer nulidade por omissão de pronúncia uma vez que a decisão sub judice decretou a inutilidade superveniente da lide, face à anulação dos atos impugnados, externando no probatório essa asserção, e explicitando as razões atinentes ao efeito, e quanto às demais questões, entenda-se concatenadas com o mérito, ficaram, naturalmente, prejudicadas pela solução ajuizada. Com efeito, se o Tribunal a quo, de forma fundamentada, considera verificada a inutilidade superveniente da lide, por o pedido formulado de anulação ter obtido satisfação fora do processo, mas na pendência deste, não se impõe ao Juiz que indague das demais questões, entenda-se de mérito, concatenadas com essa apreciação.


É certo que, na esteira de razão da Recorrente, poderá o entendimento do Tribunal a quo padecer de alguma incorreta valoração de direito, mormente quanto à verificação da inutilidade superveniente da lide, particularmente, por alegada falta de ponderação dos efeitos subsequentes, mas a verdade é que mesmo procedendo tal entendimento tal não determina nulidade da sentença por omissão de pronúncia, quando muito erro de julgamento.


Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações improcede a arguida nulidade por omissão de pronúncia.


Atentemos, ora, no erro de julgamento de direito por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito.


A Recorrente aduz que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na medida em que não foram descortinados os fundamentos que estiveram subjacentes à revogação do ato, sendo certo que o motivo que terá motivado a anulação do ato tributário não sucederá em todas as liquidações que resultaram da ação inspetiva.


Mais advoga que, de todo o modo nunca poderia ser descurada a prejudicialidade dos presentes autos face ao processo penal, em ordem ao consignado no artigo 47.º do RGIT e à pendência de um processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal.


Sustenta, in fine, que todo o modo a interpretação desenvolvida na decisão recorrida quanto à alínea e), do artigo 277.º do CPPT, quando interpretada no sentido do não conhecimento do mérito da causa, em decorrência de uma ulterior anulação da liquidação sindicada, no caso da mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal nos termos do artigo 47.º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º da CRP e por violar os direitos de defesa consignados no artigo 32.ºdo mesmo diploma legal.


Comecemos por convocar a fundamentação jurídica em que se fundou a decretada inutilidade superveniente da lide e se a mesma é merecedora da censura que lhe é endereçada.


A decisão recorrida após estabelecer o respetivo enquadramento jurídico, e convocação da factualidade atinente ao efeito conclui que “[c]onsiderando que na pendência da presente acção desapareceu o objecto da mesma, com a anulação do acto impugnado, tal tem como corolário a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.”


Explicitando, depois, que “a esta conclusão não obsta a argumentação aduzida pela Impugnante no sentido de dever ser apreciado o mérito da impugnação judicial. Desde logo, porque tendo o processo de impugnação judicial como objecto actos tributários (cfr. artigo 97.º do CPPT), o desaparecimento do seu objecto não pode deixar de ter como consequência a satisfação da pretensão de anulação daquele acto.”


Apartando, ainda, que “[n]ão está inviabilizada a dedução de nova impugnação judicial contra as eventuais liquidações adicionais de IVA que vierem a ser emitidas, sendo certo que o facto de a Fazenda Pública conhecer a argumentação expendida pela Impugnante não constitui qualquer circunstância agravante da sua posição. Por fim, também não se identifica qualquer obstáculo derivado da circunstância de estar em curso processo de inquérito criminal.”


Aqui chegados, tendo presente a factualidade vertida nos autos, e a fundamentação supra expendida não se vislumbra que o Tribunal a quo, tenha incorrido nos erros de julgamento que lhe são assacados.


Senão vejamos.


Importa, desde logo, ter presente que o campo de aplicação do processo judicial tributário é definido pelo artigo 97.º, do CPPT, sendo o processo de impugnação judicial o meio próprio para impugnar atos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação, visando a sua anulação.


Com efeito, o processo de impugnação tem por objecto o ato tributário – em regra, a liquidação - e visa a declaração da sua ilegalidade- inexistência ou nulidade do ato impugnado ou a sua anulação- com base nos vícios expressamente alegados pelo Impugnante, e em ordem ao consignado no artigo 99.º do CPPT.


Neste concreto particular, há, outrossim, que convocar o consignado no artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi, artigo 2.º, alínea e), do CPPT, o qual preceitua que “[a] instância extingue-se com (…) e) [a] impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.”


Importando, igualmente, relevar que o citado normativo, tem subjacente o princípio da estabilidade da instância, a qual se inicia com a formulação de um pedido fundado numa pretensão material com convocação da sua tutela judicial (pretensão processual) decorrente de um facto jurídico causal, quer seja essencial ou instrumental, e da qual procede (causa de pedir).


Sendo que a inutilidade e a concreta desnecessidade de manutenção da lide deve ser aferida em termos objetivos, na medida em que a mesma torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por o efeito visado já ter sido atingido por outro meio, não podendo sê-lo na causa pendente (3-Vide, designadamente, Acórdão do STJ, prolatado no processo nº 501/10. 2TVLSB.S1, de 15.03.2012.).


Feitos estes considerandos e atentando no recorte probatório dos autos, nenhuma censura merece a decisão recorrida, porquanto estabeleceu uma correta interpretação do regime jurídico com a devida transposição para o recorte probatório dos autos.


Senão vejamos.


No caso vertente, e atentando no articulado inicial verifica-se que a pretensão material da Recorrente se coadunava com a anulação do ato de liquidação -por verificação de um conjunto de vícios, de violação de lei e de forma-devidamente elencados no IV das conclusões supra- e bem assim de um pedido condenatório concatenado com o pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios. E a verdade é que, a pretensão, ora, sindicada, ou seja, a pretensão anulatória perdeu, efetivamente, toda a utilidade.


Atentemos, então, mediante recurso ao recorte fático dos autos.


Na sequência de ação inspetiva credenciada pelas Ordens de Serviço OI201204772 e OI201605671, foi emitida, e no que para os autos releva, a liquidação adicional de IVA n.º 42860938, referente ao período de março de 2012, no valor de € 57.097,75, a qual foi objeto da presente impugnação, visando, como visto, a sua anulação por padecer de um conjunto de ilegalidades.

Resulta, porém, que em data posterior à dedução da impugnação judicial, e na sua pendência o ato tributário em contenda foi anulado (cfr. alíneas B), E) e F) do probatório), dando, assim, a AT integral satisfação ao pedido anulatório.

Ora, face ao exposto dimana perentório que a lide se tornou inútil porquanto ocorreu um facto posterior à sua instauração que implica a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial.

Segundo Lebre de Freitas, “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a procedência deixa de interessar – além por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outros meios (4-Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 633.).

É certo que a Recorrente advoga, em abono da sua pretensão, que não foram aferidos todos os efeitos do ato de liquidação, e que nem todos os atos dimanantes da mesma ação inspetiva foram objeto de idêntica anulação, mas a verdade é que tais alegações em nada relevam para efeitos de manutenção da lide.


Com efeito, em nada podem relevar, nesta sede, as alegações atinentes aos efeitos do processo de execução fiscal, na medida em que os mesmos terão de ser aferidos nessa sede, sem prejuízo, naturalmente, de existir a obrigação de reposição ex ante e da anulação dos atos consequentes, mas que em nada pode advogar ou fundar a manutenção de uma lide anulatória cujo desiderato já foi, integralmente, cumprido.


Não assistindo, igualmente, razão quanto aos concretos efeitos das liquidações de juros compensatórios, quando, ademais, resulta patente do probatório que as mesmas foram, integralmente, anuladas. Aliás, é a própria Recorrente que faz essa expressa menção e assunção nas suas alegações de recurso.


Ainda neste conspecto, há que evidenciar que não logra, outrossim, provimento o advogado quanto à prejudicialidade da presente lide face à penal, não só porque o artigo 47.º do RGIT não tem a abrangência que a Recorrente lhe pretende conferir, como também o facto de se decretar a anulação de um ato impugnado determina, como visto, a satisfação da pretensão, tendo, portanto, o julgador que julgar verificada a inutilidade superveniente da lide.


Com efeito, preceitua o artigo 47.º do RGIT sob a epígrafe de suspensão do processo penal tributário que:


“1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças.”

O que significa que o visado preceito estatui a suspensão do processo penal tributário, fundada na pendência de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, mas que a mesma só se justifica nos casos em que a existência da infração penal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal. Logo, não opera ope legis, carecendo, portanto, de uma apreciação casuística e despacho prévio onde se afira da coincidência de fundamentos e, no caso afirmativo, se os mesmos têm, em concreto, relevância para a questão suscitada no processo penal.


Daí resultando, por um lado, que o artigo 47.º do RGIT não tem o âmbito e abrangência que a Recorrente reclama para estes efeitos, -sendo certo que e sem embargo do exposto, nada nos presentes autos nos permitir inferir no sentido da concreta suspensão-e por outro lado, desvirtua o próprio princípio da suficiência do processo penal plasmado no artigo 7.º do CPP.

Com efeito, “o princípio da suficiência do processo penal, previsto no artigo 7° do CPP, impõe a competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessem à decisão da causa, assim consignando que o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e que nele se resolvem todas as questões relevantes, independentemente da sua natureza (5-Acórdão do TRP, proferido no processo nº 25/06, de 24.10.2012).”

Como lapidarmente se elucida na decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo nº 48/11.0IDPRT-A.L1-3, datada de 12 de junho de 2015:

“Como resulta do disposto no n.º 1 deste preceito, (1) o princípio geral nesta matéria é o da suficiência do processo penal, (2) constituindo a suspensão do processo para decisão de questão prejudicial uma exceção (n.º 2) e uma exceção apertada, exigente nos seus pressupostos, como desde logo resulta do poder/dever de fixação de prazo para paragem do processo, tendo em vista a decisão da questão prejudicial (n.º 4, 1.ª parte) e, mais do que isso, (3) o retorno ao principio geral da suficiência se o prazo fixado não for cumprido (n.º 4, 2.ª parte).

Em face deste regime legal dúvidas não há de que o tribunal de instrução, como o tribunal de julgamento, são competentes para apreciar todas as questões suscitadas nos autos, ainda que da área fiscal, e de que a reclamante pode impugnar as suas decisões, mas nos termos gerais, e de que até poderá requerer a suspensão do processo-crime para decisão de qualquer questão fiscal que repute prejudicial, mas o que não pode é prejudicar e muito menos inutilizar os fins prosseguidos pelo processo penal.”

Numa situação similar, chama-se, outrossim, à colação a doutrina vertida no Aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 30/98.0IDCBR.C1, de 17 de março de 2009, extratando-se, designadamente, o seguinte:


“Se a sentença se limitou a julgar extinta a instância impugnatória, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e) do CPC, ex vi do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, por prescrição da obrigação tributária – não tendo, por isso, conhecido do objecto da impugnação –, em obediência ao princípio da suficiência do processo penal plasmado no artigo 7.º do CPP, as questões relevantes, maxime, as que se correlacionam com a simulação, devem ser decididas no domínio do processo penal.”

E por assim ser, não assiste razão à Recorrente quanto ao aludido erro de julgamento.

De relevar, in fine, que este foi também o sentido propugnado por este TCA, nos processos nºs 210/23, de 04.04.2024, 195/23 e 191/23, ambos de 24.04.2024, extratando-se, o sumário do primeiro dos Arestos citados:

“ I - No processo de impugnação judicial, de cariz objectivista, tendo por objecto um acto cuja legalidade se pretende apurar, podem ser cumulados com o pedido de anulação pedidos de pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, que podem ser consequências da anulação, mas não pode ser regulada a situação jurídica substantiva subjacente ao acto impugnado;

II - Não tendo sido apreciada no processo de impugnação a questão prejudicial que terá motivado a suspensão do processo penal (art. 47.º do RGIT), nos termos do art. 7.º n.º 4 do CPP, a mesma terá ali de ser decidida, ao abrigo do princípio da suficiência do processo penal (art. 7.º n.º 1 do CPP).”

Uma última nota para evidenciar que tal interpretação em nada determina uma violação dos artigos 20.º e 32.º da CRP.

De relevar, neste âmbito, que não obstante a Recorrente não substanciar, como era seu ónus, a aludida inconstitucionalidade a verdade é que, não se vislumbra, de todo, que a mesma possa traduzir uma denegação de justiça, e violação dos direitos de defesa.

E isto porque, no âmbito tributário, quaisquer atos tributários adicionais que sejam emitidos na sequência e decorrência da ação inspetiva podem ser objeto de discussão graciosa e contenciosa por parte da Recorrente, e por outro lado, no âmbito do processo penal, a questão será objeto de análise e devida ponderação, em nada sendo, portanto, coartada qualquer tutela jurisdicional efetiva.

Ademais, tal decisão em nada poderia traduzir uma denegação de tutela e violação do artigo 20.º da CRP, porquanto não resulta desse normativo e bem assim da própria sujeição à reserva de lei das garantias dos contribuintes, plasmado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que o Tribunal possa obviar formalidades, condições e cominações expressamente consignadas na lei.

Destarte, a sentença que assim o decidiu não padece dos erros de julgamento que lhe são assacados, mantendo-se, por conseguinte, na ordem jurídica.


***




IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM, deste Tribunal Central Administrativo Sul em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, e em consequência manter na ordem jurídica a decisão.
Custas pela Recorrente.
Registe. Notifique.


Lisboa, 16 de maio de 2024

(Patrícia Manuel Pires)

(Maria Isabel Silva)

(rui Ferreira)