Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:134/24.6BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/03/2024
Relator:ELIANA CRISTINA DE ALMEIDA PINTO
Sumário:I - No âmbito do direito disciplinar desportivo, atenta natureza sancionatória do processo e o disposto no artigo 16.º, n.º 1 do RD LPFP que, sob a epígrafe Direito subsidiário, dispõe que na “... determinação da responsabilidade disciplinar é subsidiariamente aplicável o disposto no Código Penal e, na tramitação do respetivo procedimento, as regras constantes do Código de Procedimento Administrativo e, subsequentemente, do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações...”, rege o princípio da livre apreciação de prova, que deverá ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz, salvo quando a lei dispuser diferentemente – cfr. artigo 127.º do CPP.
II - Esta apreciação, assim, surge legalmente condicionada, ex vi artigo 16.º, n.º 2, do mesmo RD, pelos relatórios oficiais e declarações complementares das equipas de arbitragem e dos delegados da LPFP, ao estabelecer-se, na alínea f) do artigo 13.º do RD LPFP que rege, sob a epígrafe Princípios fundamentais do procedimento disciplinar, que os factos presenciados pelas equipas de arbitragem e pelos delegados da FPF no exercício de funções, constantes das declarações e relatórios de jogo, gozam de uma presunção de veracidade, ilidível, pois que pode ser fundadamente posta em causa - cfr. alínea f) in fine, do citado artigo 13.º.
III - Mas a prova em procedimento disciplinar não pode resultar de meras presunções, sendo que inexistem nos autos provas irrefutáveis que permitam concluir pela prática das infrações disciplinares imputadas ao jogador individualmente punido, no local do incidente.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL interpõe recurso jurisdicional da decisão do TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO que concedeu provimento ao recuso interposto e, em consequência, anulou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina que condenou D........ numa sanção de suspensão de 30 dias e, acessoriamente, numa sanção de multa de 25 UC, por alegada prática da infração disciplinar prevista no artigo 145.°, n.° 2, alínea b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
Inconformada, a recorrente interpôs recurso desta decisão junto deste Tribunal, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“...
1) O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido no âmbito do processo de ação arbitral necessária n.º 20/2024, que declarou procedente a ação interposta pelo ora Recorrido e determinou a revogação do acórdão de 19 de Março de 2024, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, através do qual, para o que ora interessa, se decidiu aplicar ao Recorrido a sanção de suspensão de 30 (trinta) dias e, acessoriamente, com a sanção de multa de 25 UC, isto é, 1.020,00 €(mil e vinte euros), pela prática da infração disciplinar p. e p. artigo 145.º, n.º 2, al. b), do RDLPFP;
2) Em concreto, o Recorrido havia sido punida pelo Conselho de Disciplina por, sinteticamente, ter agredido um apanha-bolas, ao agarrar e puxar a bola com violência quem o apanha-bolas tinha na mão e, ato contínuo, atingir esse apanha-bolas na boca, com o cotovelo, provocando ferimento no lábio inferior deste, que sangrou e empurrar esse apanha-bolas, provocando o seu desequilíbrio;
3) A decisão que ora se impugna é passível de censura, porquanto existe factualidade erradamente dada como não provada, bem como erros de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado, designadamente na aplicação dos artigos 230.º, n.º 3, 13.º, al. f), 145.º, do RDLPFP e 119.º, al. f) do CPP;
4) O processo de inquérito e o processo disciplinar têm distinta identidade e autonomia - cfr. artigo 213.º do RDLPFP;
5) Contrariamente ao sufragado pelo Tribunal a quo, e como tem sido prática consolidada na justiça disciplinar desportiva, o inquérito pode ter por objeto a suspeita da prática de um ilícito disciplinar, em que, inclusive, pode haver informação sobre quem são os eventuais agentes, mas a restante matéria de facto se apresenta pouco clara ou insuficientemente esclarecida;
6) No caso concreto, cumpriu o processo de inquérito instaurado para averiguar da eventual existência de infrações disciplinar e se, concretamente, aferir da eventual relevância disciplinar do que os Delegados da LPFP fizeram constar no respetivo Relatório, não como relato de factos percecionados diretamente pelos Delegados, mas de um reporte aos mesmos do Delegado ao jogo da sociedade desportiva visitada - Vitória SC, SAD - F........, sobre um alegado empurrão de dois jogadores da sociedade desportiva visitante - Sporting CP, SAD a um apanha-bolas, fazendo-o cair - sem mais informações;
7) A nulidade insanável prevista no artigo 119.9, alínea f), do CPP, aplica-se aos casos em que o recurso a processo especial de natureza criminal é indevido porquanto por essa via se nega ao Arguido a aplicação da forma comum que é mais garantística;
8) No presente caso, em sede disciplinar, a aplicação da forma especial de inquérito para apreciar da existência de indícios disciplinares constitui um plus de garantias atribuídas aos visados/Arguidos pois caso não houvesse indícios disciplinares nem haveria conversão em processo disciplinar, nem sequer a constituição dos visados como Arguidos;
9) Mostra-se legítimo e necessário o recurso ao processo de inquérito como única via possível de realizar uma primeira definição dos contornos fácticos-jurídicos - os indícios de concreta(s) infração(ões) disciplinar(es) - no caso vertente, o que veio a acontecer, como demonstra a conversão do processo de inquérito no presente processo disciplinar;
10) Pelo que não existe nenhum erro na forma do processo na tramitação dos presentes autos, não havendo quaisquer fundamentos quanto à nulidade sustentada pelo Tribunal a quo;
11) O artigo 230.º, n.º 3 do RDLPFP tem o seu âmbito de aplicação circunscrito à instrução preparatória (prévia à acusação) que é levada acabo na constância de um processo disciplinar sob aforma comum, e não em sede de processo de inquérito;
12) Como o próprio Tribunal a quo afirma, "após a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar, o Demandante foi notificado e pôde defender-se nessa altura", pelo que, não se verificou qualquer violação dos direitos de defesa do Recorrido, cumprindo-se o disposto no artigo 237.º, n.º 5 do RDLPFP - cfr. fls. 558 a 581;
13) Não se verifica qualquer violação do disposto nos artigos 230.º, n.º 3, 13.9, alínea d) do RDLPFP e nos artigos 32.º, n.º 10 e 169.º, n.º 3 da CRP e 119.º, al. alínea f) do CPP, por parte do Acórdão do CD da Recorrente, não se verificando a nulidade por preterição dos direitos de defesa do Recorrido;
14) O Tribunal a quo, erradamente, dá como não provada factualidade que resulta cristalina da prova produzida nos autos;
15) Entendeu o Tribunal a quo, que não resultou provada a seguinte factualidade: "1) O Demandante agrediu o apanha-bolas M........ no decorrer do jogo oficial n.º 203.01.111.0, disputado entre a Vitória SC, SAD e a Sporting CP, SAD, no dia 9de Dezembro de 2023;
16) O Conselho de Disciplina da Recorrente fundamentou a sua decisão nos documentos juntos aos autos (relatórios oficiais de jogo, esclarecimentos prestados pela equipa de arbitragem), dos depoimentos das testemunhas, das imagens de jogo e CCTV, do registo áudio e vídeo do sistema de gravação VAR e esclarecimentos prestados por VAR e AVAR, tendo sido analisados de forma crítica e conjugada, quer cada um deles isoladamente, quer todos eles de forma conjunta e global, à luz das regras da experiência e da lógica;
17) Tal factualidade encontra suporte probatório nas imagens televisivas do jogo (fls. 19, em particular de 02:07:02 a 02:07:49), nas imagens CCTV (fls. 40, em particular de 1:58 a 2:32), nos esclarecimentos escritos e depoimentos prestados nos autos por A........, M........, E........ e R........ de fls. 75, 153-154, 161 e 162, 168 a 169;
18) O visionamento das imagens televisivas juntas aos autos, permitem percecionar que M........ - apanha-bolas - se encontra no chão, apontando para o Recorrido que se dirige de novo na sua direção - fls. 19, em particular de 02:07:02 a 02:07:49), nas imagens CTV (fls. 40, em particular de 1:58 a 2:32;
19) A testemunha R........, Diretor de Segurança da Vitória SC SAD, afirma que quando acorreu ao local dos factos, M........ – apanha bolas - lhe transmitiu que havia sido agredido pelo Recorrido - depoimento a fls. 168 e ss;
20) A testemunha E........ colega de equipa do Recorrido, afirmou em sede de inquirição; que quando se virou para o apanha bolas o mesmo já se encontrava no chão, sendo que, o mesmo apontou para o Recorrido enquanto falava com o Diretor de Segurança da Vitória SC, SAD - a fls. 153;
21) Tudo isto está em consonância com o depoimento de M........ - o apanha-bolas agredido - que não tinha qualquer razão para mentir, desde o momento dos factos;
22) Ademais, a versão de M........ mantém-se estável no que à essencialidade da conduta praticada pelo Recorrido diz respeito;
23) Afirma M........ que "... por volta do minuto 90, foi assinalado um canto a favor do SCP. Nesse momento, o depoente tinha uma bola nas mãos, que o jogador D........ lhe tentou tirar. O depoente resistiu, agarrando a bola, uma vez que estava uma outra bola em campo, pelo que, de acordo com as normas aplicáveis, não poderia devolver ao campo a bala que segurava. Porque o depoente resistiu, D........ puxou a bola com cada vez mais força, até que atingiu o depoente na boca, com o cotovelo. Consequentemente, o depoente sofreu um ferimento no lábio inferior, onde sangrou..." - a fls. 161 ess.;
24) Pelo exposto, devia o Tribunal a quo ter considerado provada a seguinte factualidade: "...1) O Demandante agrediu o apanha-bolas M........ no decorrer do jogo oficial n.º 203.01.111.0, disputado entre a Vitória SC, SAD e a Sporting CP, SAD, no dia 9 de Dezembro de 2023...";
25) A situação é manifestamente clara em face da prova carreada e que habilita os factos dados como provados: a conduta descrita nos Factos Provados 11) e 17) do processo disciplinar - que em suma correspondem ao facto dado como não provado pelo Tribunal a quo - praticados pelo Recorrido ao agarrar e puxar a bola que o apanha-bolas tinha na mão, com violência e, ato contínuo, atingir esse apanha-bolas na boca, com o cotovelo, provocando ferimento no lábio inferior deste, que sangrou e empurrar esse apanha-bolas, provocando o seu desequilíbrio;
26) Para que se preencha o tipo da infração imputada (artigo 145.º, n.º 2, al. b), do RDLPFP), necessário se torna que, voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa: (i) um jogador; (ii) cometa uma agressão; (iii) contra os demais agentes desportivos não previstos no n.º 1 do mesmo normativo;
27) Devido à intensidade da conduta mantida pelo Recorrido que atinge o apanha-bolas na boca com o cotovelo (provocando sangramento) e o empurra provocando o seu desequilíbrio, causando-lhe desconforto e dor, pratica um comportamento disciplinarmente censurável;
28) A conduta praticada pelo Recorrido, pela sua intensidade e desvalor de ação, é objetivamente sancionável pelo tipo de agressões [p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 2, al. b), do RDLPFP] porquanto constitui uma lesão da integridade física do agente desportivo visado;
29) Não resta qualquer dúvida que o Recorrido sabia e desejou tal comportamento e resultado (atuando com dolo necessário) não atuando ao abrigo de qualquer causa excludente da responsabilidade;
30) Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte do Tribunal Arbitral, andou mal o Colégio de Árbitros ao decidir anular a condenação do Recorrido, devendo o mesmo ser revogado.
Pede que o TCA Sul dê provimento ao recurso e revogar o Acórdão Arbitral proferido.
...”.
***
D........, apresentaram contra-alegações, defendendo que:
“ ...
A) Por via do presente recurso, a Recorrente pretende impugnar a decisão proferida pelo TAD no âmbito do processo arbitral n.º 20/2024, a qual, julgando totalmente procedente a ação arbitral apresentada pelo Recorrido contra a decisão do Conselho de Disciplina da FPF tirada no processo disciplinar n.º 59-2023/2024, determinou a sua revogação e absolveu o Recorrido da prática de qualquer infração disciplinar
B) Em suma, a Recorrente pugna pela validade da decisão do Conselho de Disciplina da FPF por entender que não houve erro na forma de processo, não houve violação dos direitos de defesa do Recorrido e, finalmente, que a prova constante dos autos é suficiente para sustentar a sua condenação;
C) Todavia, a pretensão recursória da Recorrente falece em todos os sentidos;
D) Nos termos do artigo 213.°, n.º 2, do RDLPFP, "...Os processos especiais aplicam-se nos casos expressamente previstos no presente Regulamento e o processo comum a todos os casos a que não corresponda processo especial", dispondo o artigo 266.° do RDLPFP que "Sempre que existirem indícios da prática de uma infração disciplinar, mas não dos seus agentes, a Secção Disciplinar, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer interessado, instaurará o competente processo de inquérito...";
E) Como tal, resulta com meridiana clareza que o processo especial de inquérito apenas poderá ser aplicado nos casos em que (i) existam indícios da prática de uma infração disciplinar e (i) não existam indícios de quem são os agentes que praticaram a infração;
F) Nessa medida, uma vez que o Conselho de Disciplina da FPF instaurou o processo especial de inquérito sabendo perfeitamente a identidade do Recorrido - produzindo prova que visavam a sua condenação - dúvidas não existem que se verifica erro na forma do processo, determinando a nulidade de todo o procedimento disciplinar, bem como das diligências probatórias aí realizadas.
G) Acresce que o erro na forma de processo teve implicações negativas para o Recorrido na medida em que ele se viu impedido de participar e intervir nas diligências instrutórias realizadas no âmbito de inquérito, sendo certo que caso houvesse sido seguida a forma comum de processo disciplinar o Conselho de Disciplina haveria necessariamente de observar o regime disposto no artigo 230.° n.º 3 do RDLPFP nos termos do qual “...O arguido tem direito a estar presente ou representado e a intervir me todas as diligências instrutórias que não sejam de mera junção documental...;
H) Além disso, ainda que se viesse a entender que não houve erro na forma de processo, afigura-se inequívoco que, após a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar, o Conselho de Disciplina da FPF deveria invariavelmente de garantir o cumprimento dos termos do artigo 230.°, n.º 3, do RDLPFP;
I) Isso mesmo resulta expressa e diretamente do artigo 268. °, n.º 1, do RDLPFP ao determinar que na sequência da instauração do processo disciplinar se devem seguir "os demais termos previstos no presente regulamento, designadamente, nos artigos 227.º e seguintes", incluindo, naturalmente, o artigo 230.°, n.º 3, do RDLPFP;
J) Algo que, independentemente de tudo, o Conselho de Disciplina da FPF haveria de dar cumprimento atendendo aos pedidos expressa e sucessivamente formulados pelo Recorrido para que lhe fosse concedida a oportunidade de exercer os seus direitos de defesa ao abrigo do artigo 230.°, n.º 3, do RDLPFP, designadamente o direito de interrogar, contraditar e pedir esclarecimentos às testemunhas inquiridas sem a sua presença e intervenção, bem como o de controlar a veracidade e a exatidão dos depoimentos assim produzidos;
K) Daí resultando, uma vez mais, a violação dos direitos defesa do Recorrido;
L) Por conseguinte, seja pela nulidade decorrente erro na forma de processo com consequências para a posição processual do Recorrido, seja pela nulidade que afeta irremediavelmente a prova produzida em sede de inquérito, a decisão do Conselho de Disciplina da FPF encerra uma clara violação dos direitos ed defesa do Recorrido, designadamente os dispostos nos artigos 20.°, n.º 4, 32.°, n.º 5 å 10, 267.°, n.º 5, 268.° n.º 4 e 269.°, n°. 4, da CRP e no artigos 13° als. d) e h), 14°. n°. 7, 214.°, 230.°, n°. 3 e 26°. do RDLPFP, devendo o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e a decisão recorrida ser confirmada;
M) Por outro lado, a análise dos elementos probatórios constantes dos autos aponta inequivocamente no sentido de que a decisão recorrida se revela inteiramente correta ao concluir que inexiste prova suficiente para imputar ao Recorrido a prática de qualquer infração disciplinar;
N) Sendo certo ainda que as alegações de recurso da Recorrente, além de nem sequer conterem qualquer exercício de análise crítica sobre a apreciação feita pelo Tribunal a quo, consubstancia um ato destinado ao insucesso na exata medida em que pugna pela demonstração fáctica de um verdadeiro juízo conclusivo que, além do mais, constitui o thema decidendum do presente caso;
O) O recurso sobre a matéria de facto jamais poderia suceder nos termos apresentados pela Recorrente atenta a impossibilidade de uma mera conclusão ser relevada na matéria de facto;
Pede a manutenção da decisão recorrida que determinou a revogação das sanções disciplinares.
“...
***
O Ministério Público foi notificado para emitir parecer, nos termos do artigo 146.º/1. e 147.º/2 do CPTA.
***

II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Assim, cumprirá apreciar e decidir se se deve manter a decisão de aplicação da sanção de suspensão de 30 dias e acessoriamente a sanção de multa de 25 UC, pela prática da infração disciplinar punida e prevista pelo artigo 145.º, n.º 2, al. b) do RDLPFP, a D.........

III – FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO
Na decisão arbitral recorrida foi dada por assente, por provada, a seguinte factualidade:
“...
1) No dia 9 de Dezembro de 2023, pelas 18:00 horas, realizou-se o jogo n.° 11303 da jornada 13 da Liga Portugal Bwin entre as equipas da Vitória Sport Clube - Futebol, SAD ("Vitória SAD") e da Sporting SAD, no Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, em que o Demandante participou;
2) No relatório dos delegados da LPFP consta, designadamente, o seguinte: "[ao minuto 45+2 da 2.ª parte, gerou-se uma enorme discussão junto à zona de aquecimento ocupada pela Sporting CP-SAD, cuja origem não foi possível detectar";
3) No mesmo relatório, o delegado da LPFP menciona que lhe havia sido reportado por um agente desportivo da Vitória SAD que "...foi este informado pelo diretor de campo dessa sociedade desportiva que, ao minuto 45+2 da 2.ª parte, dois jogadores da sociedade desportiva visitante - Sporting CP, SAD - que se encontravam a aquecer na zona lateral do banco suplementar - D........ [Demandante] e N... - empurraram um apanha-bolas que aí se encontrava, fazendo-o cair, facto que os delegados nomeados ao jogo não visualizaram...”;
4) Por deliberação de 14 de Dezembro de 2023, o Conselho de Disciplina da Demandada determinou a instauração de processo de inquérito, "...tendo em vista apurar a relevância disciplinar da factualidade em apreço...”;
5) O Demandante estava identificado aquando da determinação referida no ponto anterior;
6) No decurso do processo de inquérito, foram realizadas diversas diligências probatórias pela Comissão de Instrutores, que visaram o Demandante e incidiram sobre a matéria de facto que lhe é imputada, designadamente o incidente supostamente ocorrido entre ele e o apanha bolas da Vitória SAD M........, visando apurar a responsabilidade disciplinar do Demandante;
7) As diligências probatórias incluíram, designadamente, a inquirição de diversas testemunhas, bem como de M........, apanha bolas da Vitória SAD (supostamente agredido pelo Demandante);
8) O Demandante não foi notificado da realização das referidas diligências instrutórias, não tendo sido convidado para nelas participar ou sobre elas se pronunciar;
9) Na sequência da proposta da Comissão de Instrutores, no dia 6 de Fevereiro de 2024 o Conselho de Disciplina da Demandada determinou a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar;
10) Por despacho datado de 9 de fevereiro de 2024, foi o arguido, ora Demandante, notificado da instauração do processo disciplinar, bem como para, querendo, se pronunciar sobre a factualidade sob investigação;
11) Após notificação, no dia 14 de fevereiro de 2024 o Demandante apresentou pronúncia nos termos do artigo 227.º do RDLPFP, declarando expressamente "...não prescindir do seu direito a estar presente ou representado e a intervir em todas as diligências instrutórias que não sejam de mera junção documental, designadamente no que diz respeito a todas e quaisquer diligências instrutórias eventualmente realizadas até] ao presente momento...";
12) No dia 15 de Fevereiro de 2024, foi deduzida acusação contra o Demandante;
13) No dia 23 de Fevereiro de 2024, o Demandante apresentou o seu memorial de defesa, no qual invocou, designadamente, o uso indevido do processo de inquérito com prejuízo para os arguidos, a invalidade das diligências instrutórias por violação dos direitos de defesa arguidos (artigo 230. ° n.º 3 do RDLPFP) e a falta de suporte probatório da acusação;
14) Após a realização da audiência disciplinar, no dia 19 de Março de 2024, o Conselho de Disciplina da Demandada proferiu o acórdão sob recurso, condenando o Demandante em sanção de suspensão de 30 dias e. acessoriamente, na sanção de multa de 25 UC;
15) As imagens televisivas do Jogo, bem como o sistema de videovigilância do Estádio D. Afonso Henriques, não demonstram uma agressão praticada pelo Demandante;
16) Tanto o relatório de policiamento desportivo, como o relatório do delegado da LPFP e o relatório da equipa de arbitragem são - os três - omissos quanto à existência de uma alegada agressão e dos contornos subjacentes do alegado incidente que envolveu o Demandante e o apanha-bolas M........;
17) Com exceção do depoimento do apanha-bolas M........ (alegadamente agredido), nenhuma das testemunhas ouvidas confirmaram a existência de uma alegada agressão praticada pelo Demandante;
18) 0 depoimento do apanha-bolas M........ (alegadamente agredido) foi inconsistente e incoerente.
FACTOS NÃO PROVADOS
1) O Demandante agrediu o apanha-bolas M........ no decorrer do jogo oficial n.º 203.01.111.0, disputado entre a Vitória SC, SAD e a Sporting CP, SAD, no dia 9 de Dezembro de 2023.
...”.

DE DIREITO
(ERRO NA FORMA DE PROCESSO E NULIDADE POR VIOLAÇÃO DO DIREITO DE DEFESA)
O Conselho de Disciplina da FPF decidiu aplicar uma sanção de suspensão a D........, por 30 dias e, acessoriamente, na sanção de multa de 25 UC, por alegada prática da infração disciplinar prevista no artigo 145. °, n.º 2 alínea b), do RDLPFP (agressões), em razão de uma alegada agressão a um apanha-bolas (M........).
Em síntese, o Recorrido foi condenado pelo Conselho de Disciplina da FPF pela prática da infração disciplinar prevista no artigo 145.° n.º 2 al. b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional ("RDLPFP") em sanção de suspensão de 30 dias e sanção de multa de 25 UC por supostamente ter agredido um apanha-bolas no decurso de um jogo.
D........ discorda da decisão do Conselho de Disciplina da Demandada, tendo apresentado um pedido de arbitragem necessária assente no fundamento de entender não terem sido assegurados os direitos de audiência e de defesa do Demandante, por um lado, e, por outro, por entender que a prova produzida é manifestamente insuficiente para sustentar a decisão da Demandada, não permitindo imputar ao Demandante a prática de uma infração disciplinar.
Foi decidido pelo Conselho de Disciplina da FPF que, no que se refere ao processo especial de inquérito, o artigo 266.º (âmbito do processo de inquérito) prevê que sempre que existirem indícios da prática de uma infração disciplinar, mas não dos seus agentes, a Secção Disciplinar, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer interessado, instaurará o competente processo de inquérito, resultando, aqui, de modo claro, que o processo especial de inquérito será aplicado nas situações em que: (i) existam indícios da prática de uma infração disciplinar: e (ii) não existam indícios de quem são os agentes que praticaram a infração.
Foi explicitado pelo Tribunal Arbitral do Desporto que, aquando da deliberação de 14 de Dezembro de 2023, (nos termos da qual o Conselho de Disciplina da Demandada determinou a instauração do processo de inquérito), o Demandante já estava identificados, não subsistindo dúvidas a esse respeito, e que, por isso, os requisitos para a aplicação da forma de processo especial de inquérito não se encontravam preenchidos (artigo 266.° do RDLPFP). O procedimento disciplinar deveria ter sido tramitado apenas na forma de processo comum (artigo 213. °, n.º 2, do RDLPFP).
Termina defendendo que o erro na forma de processo verificado teve implicações práticas negativas para o Demandante, que ficou impedido de participar nas diligências instrutórias que a Comissão de Instrutores levou a cabo e que foram determinantes para deduzir acusação e instaurar procedimento disciplinar. Este entendimento resulta da interpretação feita pela Demandada, Federação, que defende que as garantias concedidas pelo artigo 230.°, n.º 3, do RDLPFP, apenas se aplicam na instrução levada a cabo no âmbito do processo disciplinar comum, não relevando no processo especial de inquérito, determinando este artigo que o arguido tem direito a estar presente ou representado e a intervir em todas as diligências instrutórias que não sejam de mera junção documental.
Explica o Acórdão do TAD que o Conselho de Disciplina que a Demandada, Federação, entende que o artigo 230.°, n.º 3, do RDLPFP não se aplica ao processo de inquérito, porque ainda nem sequer se apuraram os necessários indícios da existência de concreta infração disciplinar e da identidade dos seus agentes, sendo que, todavia, o Demandante estava identificado aquando da determinação da instauração do processo de inquérito.
Ainda conclui o Acórdão do TAD que a interpretação que a Demandada, Federação, faz dos artigos 266.° e 230.°, n.° 3, do RDLPFP leva-nos, ainda, à seguinte observação: se vingasse o entendimento da Demandada, isto significaria que a mesma podia instaurar processos de inquérito quando entendesse (independentemente d e o autor d a infração disciplinar estar ou não identificado), conduzindo as diligências instrutórias sem que o arguido tivesse o direito de estar presente/representado e de intervir nas diligências instrutórias.
Com estes fundamentos, o Acórdão do TAD decide que “... É certo que, após a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar, o Demandante foi notificado e pôde defender-se nessa altura. Tal não altera, porém, a invalidade das diligências instrutórias realizadas anteriormente e as implicações práticas negativas que as mesmas tiveram para o Demandante...”.
Outra das questões abordadas e suscitadas prende-se com saber se a prova produzida foi ou não suficiente para sustentar a decisão o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que imputou ao Demandante a prática da infração disciplinar prevista no artigo 145.°, n.º 2, alínea b), do RDLPFP (agressões), independentemente da violação dos direitos de audiência e defesa do Demandante.
Decidiu que, tudo ponderado, tirando o depoimento do apanha-bolas M........ (alegadamente agredido), nenhuma das testemunhas ouvidas confirmaram a existência de uma agressão praticada pelo Demandante sobre o ofendido, que, em todo o caso reputou de inconsistente, pelo que chegou à decisão de revogação do acórdão de 19 de março de 2024, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional.
O que alega a recorrente, FPF?
Alega que existe factualidade erradamente dada como não provada, bem como erros de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado, designadamente na aplicação dos artigos 230.º, n.º 3, 13.º, alínea f), 145.º, do RDLPFP e 119.º, alínea f) do CPP, bem como alega que o inquérito pode ter por objeto a suspeita da prática de um ilícito disciplinar, em que, inclusive, pode haver informação sobre quem são os eventuais agentes, mas a restante matéria de facto se apresenta pouco clara ou insuficientemente esclarecida.
Por tudo isso, defende que, no caso concreto, o processo de inquérito instaurado para averiguar da eventual existência de infrações disciplinar serviu para aferir da eventual relevância disciplinar do que os delegados da LPFP fizeram constar no respetivo Relatório, não como relato de factos percecionados diretamente pelos Delegados, mas de um reporte aos mesmos do delegado ao jogo da sociedade desportiva visitada - Vitória SC, SAD - F........, sobre um alegado empurrão de dois jogadores da sociedade desportiva visitante - Sporting CP, SAD a um apanha-bolas, fazendo-o cair - sem mais informações. Conclui que a alegada nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea f), do CPP, se aplica aos casos em que o recurso a processo especial de natureza criminal é indevido porquanto por essa via se nega ao arguido a aplicação da forma comum que é mais garantística, mas que, em sede disciplinar, a aplicação da forma especial de inquérito para apreciar da existência de indícios disciplinares constitui um plus de garantias atribuídas aos visados/Arguidos pois caso não houvesse indícios disciplinares nem haveria conversão em processo disciplinar, nem sequer a constituição dos visados como arguidos.
Concluiu ser legítimo e necessário o recurso ao processo de inquérito como única via possível de realizar uma primeira definição dos contornos fácticos-jurídicos - os indícios de concreta(s) infração(ões) disciplinar(es) - no caso vertente, o que veio a acontecer, como demonstra a conversão do processo de inquérito no presente processo disciplinar, não existindo nenhum erro na forma do processo e por isso inexistindo fundamentos quanto à nulidade sustentada pelo Tribunal a quo, explicitando que o artigo 230.º, n.º 3 do RDLPFP tem o seu âmbito de aplicação circunscrito à instrução preparatória (prévia à acusação) que é levada a cabo na constância de um processo disciplinar sob a forma comum, e não em sede de processo de inquérito. Defendeu que após a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar, o Demandante foi notificado e pôde defender-se nessa altura, pelo que, não se verificou qualquer violação dos direitos de defesa do Recorrido, cumprindo-se o disposto no artigo 237.º, n.º 5 do RDLPFP.
Já o recorrido defende, neste ponto, que a decisão do Conselho de Disciplina da FPF, além de ter ilicitamente aplicado uma forma especial de processo disciplinar, encerra uma inadmissível violação dos direitos de defesa do Recorrido.
Por outro lado, o recorrido ainda entende que a prova produzida nos autos não permite imputar ao Recorrido a prática da infração disciplinar pela qual foi primitivamente punido. Sustenta, ainda, que o Conselho de Disciplina da FPF decidiu instaurar o processo de inquérito com conhecimento pleno da identidade do Recorrido, bem sabendo que as diligências probatórias dai em diante produzidas teriam como objetivo apurar a factualidade que desde o primeiro momento lhe foi imputada.
Apreciando e decidindo.
Alega a recorrente que, contrariamente ao sufragado pelo Tribunal a quo, o inquérito pode ter por objeto a suspeita da prática de um ilícito disciplinar, em que, inclusive, pode haver informação sobre quem são os eventuais agentes, mas a restante matéria de facto se apresenta pouco clara ou insuficientemente esclarecida.
O recorrido, sobre o assunto, afirma que o processo especial de inquérito apenas poderá ser aplicado nos casos em que (i) existam indícios da prática de uma infração disciplinar e (i) não existam indícios de quem são os agentes que praticaram a infração. Mais defendeu que o erro na forma de processo teve implicações negativas para o Recorrido na medida em que ele se viu impedido de participar e intervir nas diligências instrutórias realizadas no âmbito de inquérito.
Nesta parte sem razão e vejamos porquê.
A audiência do arguido está claramente prevista e descrita como um princípio essencial e uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos artigos 236.º a 246.º do aludido Regulamento Disciplinar, subsistindo, até, diversos momentos em que o arguido, antes da emissão da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar de que é alvo, como resulta do disposto nos artigos 227.º, 230.º e 231.º do mesmo Regulamento.
Ora, é facto que o processo de inquérito está destinado a aferir se existem indícios da prática de uma infração disciplinar, sem qualquer ligação aos seus potenciais agentes. Aliás, caso os seus agentes sejam já conhecidos, o processo de inquérito não é o meio processual adequado, mas sim o disciplinar, em sentido estrito. Recorda-se que o processo de inquérito visa essencialmente apurar factos e apenas depois de os apurar se pode converter em processo disciplinar, nos termos previstos pelos artigos 266.º e 268.º do Regulamento de Disciplina da Lida da FPF. Aliás, determina o artigo 268.º, n.º 1, do RDLFPF que, se no decurso do inquérito se apurarem indícios da existência de infração disciplinar e da identidade do seu agente, a Secção Disciplinar determina que o processo de inquérito fica a constituir a fase instrutória do processo disciplinar que mandar instaurar.
Está provado que por deliberação de 14 de dezembro de 2023, o Conselho de Disciplina da FPF instaurou procedimento de inquérito (facto provado 4.), sabendo que o delegado da LPFP menciona que lhe havia sido reportado por um agente desportivo da Vitória SAD que foi informado pelo diretor de campo dessa sociedade desportiva que, ao minuto 45+2 da 2a parte, dois jogadores da sociedade desportiva visitante - Sporting CP, SAD - que se encontravam a aquecer na zona lateral do banco suplementar - D........ [Demandante] e N... - empurraram um apanha-bolas, M........, fazendo-o cair (facto provado 3.).
Ou seja, efetivamente, os factos conhecidos e relatados indicam dois agentes concretos como sendo os autores materiais do eventual ilícito disciplinar, pelo que o processo de inquérito não era o adequado, já que os factos narrados (verdadeiros ou não) eram claros quanto aos agentes e quanto aos ilícitos.
É facto que, no âmbito da instrução do processo de inquérito, como não visa os agentes dos ilícitos, mas os factos que permitem chegar a essa identificação e permitem contextualizar as putativas infrações, não há necessidade de assegurar o direito de audição aos potenciais visados. Na verdade, dispõe o artigo 267.º, n.º 3, do Regulamento de Disciplina da liga da FPF que, terminado o inquérito, o inquiridor elabora relatório final, propondo o arquivamento ou a instauração de processo disciplinar.
O que releva é que, independentemente da instauração do processo de inquérito, ele acabou por ser inútil quanto aos seus propósitos, já que deveria ter sido de imediato instaurado o respetivo processo disciplinar, todavia, o facto é que ao ter tido lugar previamente o inquérito, isso não obstou a que o arguido visado tivesse, em sede disciplinar, tido a oportunidade de se defender.
Efetivamente, foram realizadas diversas diligências probatórias pela Comissão de Instrutores, em sede de inquérito, que o visaram e incidiram sobre a matéria de facto que lhe é imputada, designadamente o incidente supostamente ocorrido entre ele e o apanha-bolas do Vitória SAD, M........, (facto provado 6), mas isso apenas serviu para converter esse processo de inquérito em processo disciplinar contra o, aqui, recorrido (facto provado 9.).
Nesta sede disciplinar o arguido tem todos os direitos fundamentais de defesa assegurados, tendo sido notificado a 9 de fevereiro de 2024 para se pronunciar sobre a factualidade em investigação (facto provado 10.), nos termos do artigo 227.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina da Liga da FPF. Nesta fase, o arguido tinha o direito de prestar declarações sobre os factos em investigação e requerer diligências instrutórias, nos termos do artigo 231.º do RDLFPF, podendo requerer as diligências instrutórias que se lhe afigurasse serem necessárias ou convenientes à descoberta da verdade e à sua defesa. Fê-lo? Não.
Pois bem, a 14 de fevereiro de 2024, o arguido apresentou pronúncia relativamente aos factos imputados e a 15 de fevereiro de 2024 foi deduzida acusação (factos provados 11. e 12.). A 23 de fevereiro o arguido defendeu-se, nos termos do artigo 230.º, n.º 3, do RDLFPF (facto provado 13.). Nesta defesa, pediu que se produzisse prova? Impugnou a prova apresentada contra si?
A 19 de março de 2024 o Conselho de Disciplina proferiu Acórdão condenatório.
Em suma, quanto ao argumento de que foi instaurado processo de inquérito, quando não seria necessário porquanto o visado/agente estava identificado desde sempre, apesar de ser verdadeiro, não tem a virtualidade de colidir com a validade da decisão sancionatória, porquanto, após o processo de inquérito ter sido instruído, o processo disciplinar permitia ao visado lançar mão de vários meios para poder ser ouvido e produzir prova em sentido contrário à existente nos autos disciplinares. Fê-lo?
Mesmo em sede de processo disciplinar comum, o instrutor pode convocar o arguido para prestar declarações sempre que o entender conveniente ou necessário para o esclarecimento dos factos, nos termos do citado artigo 230.º do RDLFPF, o que significa que se trata não de uma imposição, mas de uma faculdade do instrutor. Na verdade, as diligências de defesa a exercer pelo arguido estão previstas no artigo 231.º do mesmo Regulamento, pelo que resta saber se o recorrido exerceu estes direitos que estão na sua livre disposição?
Para o Tribunal ad quem mostra-se não violado o direito fundamental de defesa do arguido, não tendo esse direito fundamental sido violado pelo facto de ter sido instaurado previamente um processo de inquérito, porventura erradamente, e de nele o recorrido não ter tido participação, já que o processo onde os direitos de defesa se devem assegurar de modo absoluto é o disciplinar.
Assim, apesar do erro na instauração desnecessária de processo de inquérito, precedentemente ao processo disciplinar, não ocorreu nulidade alguma relacionada à violação dos direitos fundamentais de defesa do arguido.
Por estes fundamentos, concede-se razão à recorrente, neste ponto.

(IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO)

Alega a recorrente que o Tribunal a quo, erradamente, decidiu que não resultou provada a seguinte factualidade: "... 1) O Demandante agrediu o apanha-bolas M........ no decorrer do jogo oficial n.º 203.01.111.0, disputado entre a Vitória SC, SAD e a Sporting CP, SAD, no dia 9 de Dezembro de 2023...”, fundamentando a decisão nos documentos juntos aos autos (relatórios oficiais de jogo, esclarecimentos prestados pela equipa de arbitragem), nos depoimentos das testemunhas, nas imagens de jogo e CCTV, no registo áudio e vídeo do sistema de gravação VAR e nos esclarecimentos prestados por VAR e AVAR.
Explicita a tal propósito que toda a factualidade encontra suporte probatório nas imagens televisivas do jogo (fls. 19, em particular de 02:07:02 a 02:07:49), nas imagens CCTV (fls. 40, em particular de 1:58 a 2:32), nos esclarecimentos escritos e depoimentos prestados nos autos por A........, M........, E........ e R........ de fls. 75, 153-154, 161 e 162, 168 a 169.
Esclareceu, também, que o visionamento das imagens televisivas juntas aos autos, permitem percecionar que M........ - apanha-bolas - se encontra no chão, apontando para o Recorrido que se dirige de novo na sua direção - fls. 19, em particular de 02:07:02 a02:07:49), nas imagens CTV (fls. 40, em particular de 1:58 a 2:32) e que a testemunha R........, Diretor de Segurança da Vitória SC SAD, afirma que quando acorreu ao local dos factos, M........ - apanha-bolas - lhe transmitiu que havia sido agredido pelo Recorrido - depoimento a fls. 168 e ss, sendo que a inquirição do próprio M........ foi no sentido de identificar o recorrido como o autor material da infração, explicando que por volta do minuto 90, foi assinalado um canto a favor do SCP. Nesse momento, o apanha-bolas, M........, tinha uma bola nas mãos, e que o jogador D........ lhe tentou tirar, sendo que D........ puxou a bola com força, até que atingiu o depoente na boca, com o cotovelo – depoimento a fls. 161 e ss.
Vejamos.
No âmbito do direito disciplinar desportivo, atenta natureza sancionatória do processo e o disposto no artigo 16.º, n.º 1 do RD LPFP que, sob a epígrafe Direito subsidiário, dispõe que na “... determinação da responsabilidade disciplinar é subsidiariamente aplicável o disposto no Código Penal e, na tramitação do respetivo procedimento, as regras constantes do Código de Procedimento Administrativo e, subsequentemente, do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações...”, rege o princípio da livre apreciação de prova, que deverá ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz, salvo quando a lei dispuser diferentemente – cfr. artigo 127.º do CPP.
Esta apreciação, assim, surge legalmente condicionada, ex vi artigo 16.º, n.º 2, do mesmo RD, pelos relatórios oficiais e declarações complementares das equipas de arbitragem e dos delegados da LPFP, ao estabelecer-se, na alínea f) do artigo 13.º do RD LPFP que rege, sob a epígrafe Princípios fundamentais do procedimento disciplinar, que os factos presenciados pelas equipas de arbitragem e pelos delegados da FPF no exercício de funções, constantes das declarações e relatórios de jogo, gozam de uma presunção de veracidade, ilidível, pois que pode ser fundadamente posta em causa - cfr. alínea f) in fine, do citado artigo 13.º.
A tal propósito, recorda-se que a jurisprudência dos tribunais superiores, como sucede no Acórdão do STA, in processo n.º 043/19.0BCLSB, de 05.11.2020, e no qual se sumariou que “... A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e dos relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Federação Portuguesa de Futebol que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo artigo 206.º, n.º 1, do RD/FPF-2016 (norma idêntica à do artigo 13.º, alínea f), do RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, pelo que não infringe os comandos constitucionais insertos nos artigos 2º., 20.º, nº. 4 e 32.º, nºs 2 e 10 da CRP, e os princípios da presunção de inocência - in dubio pro reo...”.
Nos termos do disposto no artigo 145.°, n.° 1, alínea b) (Agressões) determina que “... 1. São punidas nos termos das alíneas seguintes as agressões praticadas pelos jogadores contra os membros dos órgãos da estrutura desportiva, elementos da equipa de arbitragem, observadores, delegados da Liga Portugal, dirigentes ou delegados ao jogo de outros clubes, agentes de segurança pública, e treinadores...”.
O acórdão recorrido entendeu, no fundo, que, de acordo com a prova produzida nos autos, designadamente, a prova testemunhal e a ausência de imagens precisas sobre a agressão em causa, que a presunção de veracidade do relatório delegados da LPFP teria sido ilidida, razão pela qual entendeu ser de aplicar o princípio in dubio por reu e revogar a decisão sancionatória, absolvendo o recorrido.
Todavia, dada a presunção de veracidade prevista no artigo 13.º, alínea f) do RD LPFP21, não é a mera circunstância de poderem existir relatos diversos em relação ao sucedido – empurrão ao apanha-bolas - que pode conduzir, forçosamente, à ocorrência de dúvida relevante sobre a referida atuação agressiva perpetrada pelo arguido, ora recorrido.
Contudo, no caso dos autos, o que consta do relatório do delegado da LPFPF é que “... lhe havia sido reportado por um agente desportivo da Vitória SAD que "foi este informado pelo diretor de campo dessa sociedade desportiva que, ao minuto 45+2 da 2a parte, dois jogadores da sociedade desportiva visitante - Sporting CP, SAD - que se encontravam a aquecer na zona lateral do banco suplementar - D........ [recorrido] e N... - empurraram um apanha-bolas...” (facto provado 3). Portanto, o que foi descrito não foi algo que tenha sido percecionado pelo delegado da Liga, mas trata-se, antes, de uma descrição de um facto que lhe foi narrado por terceiros, no caso, parte interessada, porque diretor do Vitória SAD. Na realidade, trata-se de depoimento indireto!
Tal significa que à luz da presunção estabelecida pelo artigo 13.º, alínea f) do RDLPFPF, ela não pode funcionar, já que os factos não foram presenciados pelo delegado da Liga, mas por um diretor do Vitória SAD.
Por outro lado, a alegação de recurso para contraditar a convicção do Tribunal a quo – TAD – quedaram-se por afirmar que:
a) o visionamento das imagens televisivas juntas aos autos, permitem percecionar que M........ - apanha-bolas - se encontra no chão, apontando para o Recorrido que se dirige de novo na sua direção - fls. 19, em particular de 02:07:02 a 02:07:49 das imagens CTV (fls. 40, em particular de 1:58 a 2:32) e que
b) a testemunha R........, Diretor de Segurança da Vitória SC SAD, afirma que quando acorreu ao local dos factos, M........, apanha-bolas, lhe transmitiu que havia sido agredido pelo recorrido.
Ou seja, a recorrente, nas suas conclusões de recurso, não alega ser visível a suposta agressão nas imagens CTV, apenas consegue alegar que o apanha-bolas está a apontar para o recorrido, estando longe tal facto de ter a capacidade de provar a existência de uma agressão e de identificar o seu agente.
Depois a testemunha que indica a existência da alegada agressão é Diretor da Vitória SAD, não explicitando minimamente a recorrente a razão pela qual esta testemunha, juntamente com o depoimento do agredido, o apanha-bolas, são suficientes, considerando que pertencem ao Vitória SAD, parte interessada na punição do jogador da equipa contrária, para condenar o recorrido e porque motivo as testemunhas que afirmam nada terem visto e o depoimento do arguido visado acabam por ser desvalorizadas.
Ora, a prova em procedimento disciplinar não pode resultar de meras presunções, sendo que inexistem nos autos provas irrefutáveis que permitam concluir pela prática das infrações disciplinares imputadas ao jogador individualmente punido, no local do incidente.
Na verdade, apreciando os fundamentos do recurso sobre a matéria de facto, sobretudo as razões que motivam a recorrida a defender que deveria ter sido decidido pelo Tribunal a quo coisa diferente, verificamos que eles se centram no facto de:
a) existência de imagens televisivas do jogo - imagens CCTV - que permitem percecionar que M........ - apanha-bolas - se encontra no chão, apontando para o recorrido que se dirige de novo na sua direção;
b) nos esclarecimentos escritos e depoimentos prestados nos autos por A........, M........, E........ e R........ [Diretor de Segurança da Vitória SC SAD];
c) R... afirma que quando acorreu ao local dos factos, M........ , o apanha-bolas, lhe transmitiu que havia sido agredido pelo recorrido;
d) E........ afirmou que quando se virou para o apanha-bolas o mesmo já se encontrava no chão, mas que este apontou para o recorrido enquanto falava com o Diretor de Segurança da Vitória SC, SAD;
e) M........, o apanha-bolas, apontou a autoria da “agressão” para o recorrido.
Reitera-se, estes são os meios de prova que a recorrente invocou para fundamentar a sua alegação de que, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, deveria ter sido provada a agressão do recorrido ao apanha-bolas. Sendo que se recorda, o próprio apanha-bolas descreve a alegada agressão nos seguintes termos: “... ao minuto 90, foi assinalado um canto a favor do SCP. Nesse momento, o depoente tinha uma bola nas mãos, que o jogador D........ lhe tentou tirar. O depoente resistiu, agarrando a bola, uma vez que estava uma outra bola em campo, pelo que, de acordo com as normas aplicáveis, não poderia devolver ao campo a bala que segurava. Porque o depoente resistiu, D........ puxou a bola com cada vez mais força, até que atingiu o depoente na boca...”.
Ora, tais meios de prova não são suficientes para inverter o julgamento feito pelo Tribunal a quo. A apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por via de conjeturas ou presunções.
Perante uma manifesta insuficiência de prova, tem o Tribunal ad quem a obrigação de dar por verificada uma situação de “non liquet”, o que sempre imporá a aplicação do principio do “in dubio pro reo”.

*
Não pode, por isso proceder o recurso.
***

IV – DISPOSITIVO

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social da Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar conceder provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos e em manter a sentença recorrida, com a fundamentação antecedente.
Custas a cargo do recorrido.
Registe e Notifique.

Lisboa, dia 3 de outubro de 2024
O Coletivo,

(Eliana Pinto - Relatora)

(Frederico Branco – 1.º Adjunto)

(Rui Pereira – 2.ª Adjunta)