Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1011/23.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/09/2024
Relator:LINA COSTA
Descritores:CAUTELAR
REJEIÇÃO LIMINAR
Sumário:I - São dois os fundamentos da rejeição liminar do requerimento inicial apresentado pelo agora Recorrente: o principal, que se prende com a falta de instrumentalidade e provisoriedade das providências requeridas, e o aduzido à cautela, caso assim não se entenda, de não verificação dos pressupostos de que depende a sua não concessão;
II - O Recorrente apenas ataca o segundo fundamento;
III - Ao contrário do que defende, nem no requerimento nem no recurso o Recorrente alegou ou fez prova de que se encontram preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para o decretamento das providências requeridas.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em sessão da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

P…, devidamente identificado como requerente nos autos de outros processos cautelares instaurados contra o Instituto de Mobilidade e dos Transporte, IP, inconformado veio interpor recurso jurisdicional da sentença, proferida em 3.4.2023, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que rejeitou regularmente o requerimento inicial.
Nas respectivas alegações, o Recorrente formula as conclusões que seguidamente se reproduzem ipsis verbis:
«A) O tribunal a quo rejeitou liminarmente a providência cautelar interposta pelo Apelante, porquanto considerou não verificados os requisitos obrigatórios para decretamento da providência: periculum in mora e fumus boni iuris.
B) O Apelante não concorda com a posição do tribunal a quo.
C) A actividade desempenhada Apelada é da competência exclusiva da Administração Pública e o serviço de atendimento ao público é desastroso.
D) As dificuldade no acesso a este serviço são de tal monta que há cidadãos a formar filas pelas 05:00H da manhã para assegurar a obtenção de uma senha para atendimento.
E) Alternativamente, dispõe apenas de marcação por meios electrónicos, situação que se afigura manifestamente discriminatória para uma considerável franja da população.
F) O Apelante considera demonstrado o fumus boni iuris na medida em que há probabilidade séria de violação do direito invocado na medida em que a aplicação do preceito restringe severamente o exercício pleno do direito de acesso dos cidadãos ao atendimento em serviços da Administração Pública e a conduta da Apelada é discriminatória e violadora do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º, n.º 2 do C.R.P..
G) Há uma clara violação dos deveres que impendem sobre os serviços da Administração Pública.
H) Por força da inércia da Apelada, o título que habilita o Apelante a conduzir está caducado e este não logrou obter agendamento para renovação do título.
I) A ausência do título implica que o Apelante não pode conduzir veículos, actividade que exercia diariamente e que é essencial para a sua vida profissional e de lazer, o que traduz num prejuízo pecuniário diário.
J) A compensação pelo prejuízo pecuniário seria peticionada posteriormente em sede de acção de responsabilidade extracontratual do Estado.».
Requerendo:
«Consequentemente, o Apelante considera que foi feita prova do periculum in mora e do requisito cumulativo de fumus boni iuris e substituída a decisão do tribunal a quo por uma decisão de recebimento do requerimento e decretamento das providência requeridas.».

Notificado nos termos do recurso e da causa, o Recorrido não contra-alegou.

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. o nº 2 do artigo 36º do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, vem o mesmo à sessão para julgamento.

A questão suscitada pelo Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consiste, no essencial, em saber se a sentença recorrida incorreu em erros de julgamento ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial, considerando que não se verificam os requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris.

A sentença recorrida não fixou factos indiciariamente provados.

Do respectivo teor extrai-se que o Requerente solicitou as seguintes providências:
«(a) condenação da entidade requerida a proceder ao agendamento do seu atendimento para tratar da revalidação da sua carta de condução;
(b) condenação da entidade requerida a alterar o sistema de atribuição de senhas, a título definitivo e para todos os cidadãos, assegurando um sistema contínuo, que se mantenha em dias consecutivos, de forma a impedir a recusa de atribuição de senha no atendimento ao público.»,
para o que alegou, em síntese, que:
«(…), (i) nos dias 27, 28 e 31 de Outubro de 2022, deslocou-se ao posto de atendimento da entidade requerido sito na loja de cidadão do Saldanha, e não foi atendido por indisponibilidade de senhas; (ii) a limitação do número de senhas diárias restringe o acesso dos cidadãos às estruturas essenciais da administração e a marcação de atendimento através de aplicação móvel ou plataforma limita o referido acesso àqueles que não possuem aplicações móveis ou acesso à internet e por outro lado obriga à disponibilização dos seus dados de contato; (iii) desde 30/04/2021, i.e. desde que cessou o estado de emergência, inexiste base legal para a exigência de agendamento do atendimento presencial; (iv) a conduta da entidade requerida restringe severamente o exercício pleno do direito de acesso dos cidadãos ao atendimento dos serviços da administração pública e a é discriminatória e violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP; (vi) a sua carta de condução caducou em 31/10/2022, pelo que está inibido de conduzir, o que fazia diariamente, sendo essencial para a sua profissional e de lazer, provocando despesas acrescidas com deslocações.»
A decisão de rejeição liminar assenta na fundamentação de direito que se passa a reproduzir:
«O requerimento inicial deverá ser rejeitado, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, alínea d), e e), do CPTA, pelas razões que se passam a indicar.
1. Uma das características da tutela cautelar é a sua provisoriedade e instrumentalidade.
Como ensinam Mário Esteves de Oliveira e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2010, página 814, «…O principal traço característico da tutela cautelar reside na sua instrumentalidade: ela existe em função dos processos principais, em ordem a assegurar a utilidade das sentenças a proferir nesses processos…», o que significa que através do processo cautelar o requerente não pode obter aquilo que só o processo principal lhe pode dar.
No caso em concreto, caso as providências requeridas fossem concedidas nenhuma utilidade restaria para a sentença principal, isto é, a sentença que concedesse as providências requeridas não asseguraria a utilidade da sentença do processo principal [que, aliás, o autor nem identifica], mas substituíra a própria sentença principal.
O que ficou fito é o bastante para fundamentar a rejeição liminar do requerimento inicial carência de instrumentalidade e provisoriedade das providências requeridas.
2. Mesmo que assim não se entenda, o requerimento inicial deverá ser rejeitado por não se verificarem os pressupostos de que depende a sua concessão.
De acordo com o artigo 120.º do CPTA os critérios de que depende a concessão das providências requeridas são os seguintes:
(a) fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal [periculum in mora – cf. artigo 120.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPTA];
(b) ser provável que a pretensão formulada, ou a formular, no processo principal seja julgada procedente [fumus boni iuris – cf. artigo 120.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPTA] e
(c) os danos que resultariam da concessão das providências não serem superiores aos danos que resultariam da sua recusa [ponderação de interesses – cf. artigo 120.º, n.º 2, do CPTA].
Estes pressupostos são cumulativos pelo que não se verificando um deles a pretensão cautelar será julgada improcedente.
Ora, cabe ao requerente o ónus de alegar os factos essenciais integradores de cada um dos pressupostos, especificamente do periculum in mora.
O requerente não cumpre este ónus, na medida em que, desde logo, só alega factos pertinentes ao periculum in mora para a 1.ª providência requerida (aquela que peticiona a título de vantagem direta e imediata para si), carecendo o requerimento inicial de quaisquer factos relativos ao periculum in mora da 2.ª providência requerida.
Por outro lado, os factos que alega em relação à primeira providência requerida são insuficientes, mesmo que se viessem a provar, para concluir que a não concessão da providência gerará uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil reparação.
No máximo os factos alegados permitem concluir pela produção de danos patrimoniais suscetíveis de reparação integral em sede de ação indemnizatória.
A não verificação dos requisitos de admissão do requerimento inicial previstos no artigo 116.º, n.º 2, alínea d), e e), do CPTA, não estão abrangidos pelo dever de aperfeiçoamento previsto no artigo 114.º, n.º 5, do CPTA.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 012/22.3BELSB, de 10/11/2022, explica o seguinte:
«…como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, que o suprimento da irregularidade, ou a correção do vício ou da falha do requerimento cautelar «pode, inclusivamente, dizer respeito à formulação do pedido ou à alegação dos factos que servem de causa de pedir», mas, como reconhecem os mesmos autores, comentando o Acórdão do TCA de 19 de janeiro de 2012, proferido no Processo n.º 8318/11, da conjugação da alínea g) do número 3 e do número 5 do artigo 114.º do CPTA não se retira que «seja admissível o convite ao aperfeiçoamento para suprir uma causa de pedir inexistente ou para alterar ou ampliar a causa de pedir invocada, designadamente quando falte no requerimento a indicação dos factos respeitantes ao periculm in mora» - cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., 2021, pp. 985-987.
Os referidos autores estabelecem uma relação entre o regime estabelecido no artigo 114.º e o estabelecido no artigo 87.º do CPTA, relativo ao despacho pré-saneador, que faz, de forma mais clara, a distinção entre as irregularidades, que correspondem à «falta de requisitos legais da petição inicial ou da contestação, ou à falta de um documento que devia ser junto», e as deficiências, que correspondem a «insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada» - cf. ob. cit., pp 701-702.
Assim, e para os autores citados, é necessário «distinguir entre o convite às partes para corrigir o articulado irregular, isto é, o articulado que não obedece aos requisitos formais, como são os previstos nas alíneas a) a f) e h) e i) do n.º 3 do presente artigo 114.º, que deve entender-se como um poder vinculado, e o convite para corrigir um articulado deficiente, isto é, o articulado que contém imprecisões ou insuficiências na exposição ou na concretização da matéria de facto que constitui a causa de pedir, a que se refere a alínea g) do mesmo n.º 3, que corresponde a um poder não vinculado ou a uma mera faculdade» - cfr. ob. cit., p. 987.
12. Do exposto resulta evidente que o TAF de Lisboa não estava obrigado a convidar o Requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, com fundamento na insuficiente concretização da matéria de facto alegada para preencher os requisitos de que depende a concessão da tutela cautelar requerida, não constituindo, por isso, a omissão daquele convite uma nulidade processual passível de invalidar a decisão final da causa.
Aliás, e conforme este Supremo Tribunal Administrativo tem afirmado reiteradamente, impende sobre o Requerente «o ónus geral de alegação da matéria de facto integradora dos requisitos legais de que depende a concessão da providência requerida, nomeadamente, o relativo ao periculum in mora, cabe ao requerente [cfr. arts. 342.º do CC, 114.º, n.º 3, al. g), 118.º e 120.º do CPTA, 365.º, n.º 1, do CPC/2013], bem como o ónus do oferecimento de prova sumária de tais requisitos», não cabendo, pois, ao Tribunal, o dever de promover o suprimento da sua falta - cfr. Acórdão de 17 de dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 0620/18.7BEBJA.
O facto de a lei conferir ao juiz a faculdade de convidar o requerente a corrigir eventuais insuficiências na concretização da matéria de facto alegada, se entender que essa correção é útil à decisão da causa, não significa que o juiz se deva substituir à parte no cumprimento dos seus ónus processuais, tanto mais que um eventual convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial apenas serviria para a aclaração da causa de pedir concretamente invocada, e não para a sua alteração ou ampliação….».».

Como resulta claro do texto acabado de reproduzir, são dois os fundamentos da rejeição liminar do requerimento inicial apresentado pelo agora Recorrente: o principal, que se prende com a falta de instrumentalidade e provisoriedade das providências requeridas, e o aduzido à cautela, caso assim não se entenda, de não verificação dos pressupostos de que depende a sua não concessão.
Ora, como decorre das conclusões formuladas, o Recorrente apenas ataca este segundo fundamento, motivo pelo qual, independentemente da apreciação/decisão que venha a resultar da sua análise, não poderá este Tribunal determinar a alteração da decisão proferida dado que a questão da falta de instrumentalidade e de provisoriedade não é de conhecimento oficioso e, não tendo sido objecto de recurso, consolidou-se na ordem jurídica.
Quanto às alegações e conclusões do Recorrente de que se encontram verificados os pressupostos do decretamento da providência, somos de concluir que não podem proceder por serem de mera discordância com o decidido na sentença recorrida, limitadas à repetição do que consta do requerimento inicial, considerado e bem, insuficiente pelo juiz a quo, e à indicação da acção principal a instaurar (em falta naquele).
Com efeito, o Recorrente reitera a violação de princípios que regem a actuação da Administração Pública, mormente no contacto e atendimento do público, interessado nos serviços que prestam, como o da igualdade, e refere, de forma genérica, que a caducidade da sua carta de condução que se mantém por não ter logrado obter agendamento para a renovar, o impede de conduzir, como fazia diariamente, o que se traduz num prejuízo pecuniário diário, sem concretizar ou densificar os factos em que suporta essa alegação, para que o tribunal possa efectuar um juízo de que há forte receio de constituição de uma situação de facto consumado ou de produção de prejuízos de difícil reparação [o que normalmente não sucede quando o prejuízo é apenas pecuniário e pode ser reparado, mediante indemnização, na acção principal].
Donde, ao contrário do que defende, nem no requerimento nem no recurso o Recorrente alegou ou fez prova de que se encontram preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para o decretamento das providências requeridas.
Em face do que o presente recurso não pode proceder.

Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Registe e notifique.

Lisboa, 9 de Maio de 2024.


(Lina Costa – relatora)

(Marcelo Mendonça)

(Marta Cavaleira)