Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:313/21.8BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:01/12/2023
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:ART. 2.º, ALÍNEA A), PRIMEIRA PARTE, DO DECRETO-LEI N.º 555/99, DE 16.12 (RJUE); MÓDULOS PRÉ-FABRICADO DESTINADOS A UTILIZAÇÃO HUMANA; EDIFICAÇÃO.
Sumário:Para que os módulos pré-fabricados em causa nos autos possam ou devam ser considerados “edificações”, nos termos e para os afeitos previstos no RJUE, não é condição essencial que adotem as características de permanência normalmente associadas a uma construção em alvenaria, bastando que o seu uso seja a utilização humana, como será a habitação.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. O A., P. R. W., veio interpor recurso jurisdicional da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 02.02.2022, que julgou totalmente improcedente a ação administrativa por si intentada contra o Município de Faro, e na qual peticionava a anulação despacho de 07.04.2021, da Vereadora das Infraestruturas e Urbanismo, que ordenou a demolição de três módulos pré-fabricados que instalou em terreno de que é proprietário.

Em sede de alegações de recurso, concluiu como se seguecfr. fls. 229 e ss., do SITAF:

«(…)

1.ª) A questão essencial que se coloca é a de saber se os três módulos pré-fabricados cuja demolição foi ordenada pelo despacho impugnado são subsumíveis ao conceito de edificação previsto no art.° 2.°/a do RJUE, posto que não estão incorporados no solo, mas sim e apenas assentes sobre o terreno.

2.ª) O Mmo. Juiz a quo apesar de reconhecer que tais pré- fabricados não correspondem à definição clássica de coisa imóvel, conclui que os mesmos são subsumíveis ao conceito de edificação previsto no art.° 2.°/a do RJUE por não terem carácter temporário ou precário, mais acrescentando que a definição do art.° 11.° do RPDM de Faro ao definir obras de construção como a "execução de qualquer de obras novas, incluindo pré-fabricados e construções amovíveis", consubstanciaria a correcta interpretação da norma legal do RJUE.

3.ª) Com todo o devido respeito, o recorrente discorda em absoluto da interpretação e aplicação do conceito de edificação previsto no art.° 2.°/a do RJUE efectuada na douta sentença recorrida, maxime a de que o art.° 11.° do RPDM de Faro, que constitui mera norma regulamentar, possua idoneidade para fazer uma "interpretação autêntica" daquela norma legal.

4.ª) Na verdade, o conceito de edificação tem como elemento fundamental a incorporação no solo com carácter de permanência, cfr. art.° 2.°/a do RJUE, o que não é o caso, e nesta conformidade, a mera colocação de três módulos pré- fabricados no terreno pertencente ao recorrente não é susceptível de ser qualificada, seja a que título for, como obra de construção, de acordo com a definição constante na alínea b) do art.° 2.° do RJUE, pela singela razão de que nem sequer é subsumível ao conceito de edificação constante da alínea a) do mesmo dispositivo legal.

5.ª) E também não é subsumível ao conceito de operação urbanística previsto no art.° 2.°/j do RJUE pois não está em causa nenhuma utilização do solo, visto que não foi efectuada qualquer tipo de intervenção no terreno.

6.ª) Nesta sede, e em abono do antecedente raciocínio, não pode deixar de invocar-se aqui o art.° 9.° do Código Civil e as respectivas regras de interpretação da lei, maxime o seu n.° 1, à luz do qual se afigura evidente que o pensamento legislativo subjacente à definição constante da al. j) do art.° 2.° do RJUE - tendo particularmente em atenção que a alínea i) do n.° 2 do art.° 4. ° do mesmo diploma legal sujeita as operações urbanísticas não especificadamente reguladas no RJUE a licença administrativa - pressupõe sempre uma intervenção material nos solos, v.g. terraplanagem, aterros e escavações, o que não se verifica no caso vertente.

7.ª) De todo o modo, e mesmo que fosse admissível qualificar a colocação de três módulos pré-fabricados como operação urbanística sujeita a licença administrativa, a verdade é que não existe no PDM de Faro qualquer regulamentação que obste ao respectivo licenciamento, posto que o conceito de obras de construção constante do art.° 11.° do RPDM de Faro - na parte em que refere que as obras novas incluem pré-fabricados e construções amovíveis - não é susceptível de afastar os conceitos legais de obras de edificação e de obras de construção, previstos no art.° 2.°/a/b do RJUE

8.ª) E os três módulos pré-fabricados em causa, para além de não serem subsumíveis nem ao conceito de edificação, nem ao conceito de obra de obras de construção e, consequentemente, não estarem sujeitos ao regime de edificabilidade previsto no RPDM de Faro, também não constam do elenco das actividades interditas e condicionadas previstas no RPDM de Faro para a área onde se localizam os prédios do interessado.

9.ª) Devendo sublinhar-se que a colocação dos três módulos pré-fabricados no terreno não inutiliza os solos, nem lhes retira aptidão para agricultura, pois estão apenas assentes sobre o terreno e não incorporados no mesmo.

10.ª) Em suma, os três módulos pré-fabricados em causa são perfeitamente legais, pois não estão sujeitos a licença urbanística nos termos ao art.° 4.°/2/c do RJUE e mesmo que se entendesse que a respectiva colocação sobre o terreno consubstancia uma operação urbanística nos termos do art.° 2.°, alínea j) do RJUE, sujeita a licença administrativa, de acordo com o art.° 4.°/2/i do mesmo diploma legal, não existe qualquer obstáculo legal ou regulamentar à emissão dessa licença, circunstância que, de acordo com o disposto no art.° 106.°/2 do RJUE obsta ipso facto e de jure à respectiva demolição.

11.ª) De tudo resultando que a douta sentença em crise faz errada interpretação e aplicação do art.° 2.°/a/b/j, do art.° 4.°/1/i e do 106.°/1, todos do RJUE.

(…) deve revogar-se a douta sentença recorrida, proferindo-se em sua substituição decisão que anule o acto impugnado e condene o Município de Faro a reconhecer a legalidade da instalação e manutenção dos três módulos pré-fabricados em apreço na propriedade do recorrente, ou subsidiariamente, caso se entenda que os mesmos estão sujeitos a licença administrativa, deverá condenar-se o Município de Faro a dar início ao processo de licenciamento para regularização da situação, de acordo com o previsto no art.° 106.°/2 do RJUE. (…)»

O Recorrido Município contra-alegou, tendo aliconcluído nos seguintes termos – cfr. fls. 245e ss., do SITAF:

«(…)

1. Atendendo ao alegado pelo Recorrente nas suas alegações, facilmente se percebe que as mesmas estão votadas ao fracasso.

2. Com efeito, a douta Sentença mostra-se exemplarmente fundamentada e corretamente decidida, nomeadamente no sentido da improcedência dos vícios imputados pelo Recorrente ao ato administrativo impugnado.

3. Ademais, os argumentos jurídicos aduzidos pelo Recorrente no presente Recursos limitam-se a questionar a análise jurídica efetuada pela Sentença recorrida, mas sem qualquer razão. O Recorrente alega que “o Mm.º Juiz a quo, apesar de reconhecer que tais pré-fabricados não correspondem à definição clássica de coisa imóvel, conclui que os mesmos são subsumíveis ao conceito de edificação previsto no art.º 2.º/a do RJUE por não terem carácter temporário ou precário, mais acrescentando que a definição do art.º 11.º do RPDM de Faro, ao definir obras de construção como “a execução de qualquer de obras novas, incluindo pré-fabricados e construções amovíveis” consubstancia a correta interpretação da normal legal do RJUE.”,

4. Interpretação esta de que o Recorrente discorda por entender que “o conceito de edificação tem como elemento fundamental a incorporação no solo com carater de permanência”,

5. Mais alegando que a colocação dos três módulos pré-fabricados no terreno também não corresponde ao conceito de “obra de construção” previsto na al. b) do art.º 2.º do RJUE, e sequer ao conceito de “operação urbanística” previsto na al. j) do mesmo artigo.

6. Acontece que tais argumentos jurídicos não merecem acolhimento, impondo-se que seja declarada a sua improcedência.

7. De facto, conforme exemplarmente desenvolvido na sentença recorrida, e que de forma sintética ora se invoca, “A circunstância de a norma do artigo 2.º, alínea a) do RJUE mencionar uma hipótese não implica que do silêncio da proposição normativa se deduza a exclusão de todas as outras hipóteses. Caso contrário, inexistiriam lacunas e jamais seria admitida a analogia ou a interpretação extensiva, teleológica ou sistemática”,

8. Além de que, conforme também bem se recordou na sentença recorrida, “Na esteira do referido no Acórdão do TCA Sul, de 01.03.2003, proc. n.º 07535/02, a propósito do pagamento da contribuição autárquica, “uma “caravana tipo residencial”, instalada sempre no mesmo alvéolo do mesmo parque de campismo, desde o mês de Janeiro do ano de 1984 até ao final do ano de 1998, está realmente assente no solo, com carácter de permanência…”. Mutatis mutandis, aplica-se idêntico raciocínio ao pré-fabricado em apreço nos autos. Veja-se igualmente os Acórdãos citados pela Entidade Demandada, na contestação e no fundamento da decisão de demolição, designadamente os do STA de 27.09.2011, proc. n.º 47658, e de 14.02.2006, proc. n.º 0600/05; e o Acórdão do TCA Norte, de 14.02.2020, proc. n.º 00439/18.5BEAVR.”.

9. De resto, a sentença proferida pelo Mm.º Tribuna a quo foi de tal forma exaustiva na sua análise que, mesmo o argumento invocado pelo Recorrente relativamente aos veículos automóveis estacionados foi apreciado e doutamente respondido:

“Não colhe o argumento ad absurdum invocado pelo Autor, de que então um automóvel ou uma bicicleta, quando estacionados, também teriam de ser qualificados como uma edificação. Essa comparação recorre a realidades, ou se se quiser, a tipos, incomensuráveis com o objecto a comparar.

Os módulos préfabricados em exame não têm rodas, pneus, guiador, ou seja, não estão estruturalmente preparados para a locomoção; do mesmo modo, não têm “pernas” como as cadeiras e as mesas, sendo que estes equipamentos não estão aptos a dar abrigo e são facilmente removíveis ou deslocáveis espacialmente, consubstanciando o que tipicamente de designam por bens móveis.

10. Ao invés, se fosse como alega o Autor, ou seja, se os módulos pré-fabricados não fossem edificações, e por isso excluídos da obrigação de licenciamento, então estar-se-ia a permitir entrar pela janela aquilo que a lei quis fechar a porta: a classificação dos solos; as condicionantes ou servidões públicas (e.g. RAN e REN); os planos territoriais, enfim, todos os instrumentos de gestão e ordenamento do território ficariam despojados de sentido.

11. Por outro lado, mesmo quanto ao artigo 11.º do RPDM de Faro, a Sentença recorrida igualmente irrepreensível, defendendo-se que “ o artigo 11.º do RPDM de Faro define como «Obras de construção» a “execução de qualquer projecto de obras novas, incluindo préfabricados e construções amovíveis”. A norma regulamentar está de acordo com a correcta interpretação da norma legal do RJEU, no sentido de que as construções pré-fabricadas são, para todos os efeitos, obras de construção e como tal, edificações. Em suma, os três módulos pré-fabricados do Autor são edificações sujeitas a licenciamento.”

12. Efetivamente, o anteriormente exposto demonstra bem a falência de todo o alegado pelo Recorrente no seu Recurso de Apelação.

13. Porém, cabe ainda responder ao argumento do Recorrente de que, mesmo que se entendesse que os módulos pré-fabricados estavam sujeitos a licença administrativa, verifica-se que “não existia qualquer obstáculo legal ou regulamentar à emissão dessa licença”.

14. Ora, é verdade que, nos termos conjugados dos artigos 102.º e 106.º do RJUE, resulta que, conforme a douta sentença recorrida:

“(i) a Entidade Demandada tem o dever vinculado, e não uma faculdade ou opção discricionária, de repor a legalidade urbanística sob pena de responsabilidade civil dos titulares dos órgãos (artigos 70.º e 102.º, n.º 1 do RJUE);

(ii) a demolição será sempre uma medida de ultima ratio, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e proibição do excesso, conforme amplamente reconhecido pela jurisprudência (cf. inter alia, Acórdãos STA, de 14.12.2005, proc. n.º 0959/05; de 16.01.2008 proc. n.º 0962/07; TCA Norte, de 14.06.2013, proc. n.º 02260/04.9BEPRT-A; de 18.12.2015, proc. n.º 00675/04.1BECBR-B; de 13.12.2019, proc. n.º 00678/95-E);

(iii) a legalização da obra ilegal é uma medida de tutela de legalidade sob a reserva de ser “…possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares em vigor”.

15. Em face do exposto, o Recorrido comunicou ao Recorrente que não era possível a legalização, por se tratar de uma edificação em solo rural, proibida pelo RPDM, verificando-se que o Recorrente não invocou ou alegou factos ou argumentos em sentido contrário, alcandorando-se, tão só, na inaplicabilidade dos conceitos de edificação e operação urbanística (ponto E dos factos provados).

16. Por esse motivo, nada mais era exigível ao Recorrido, não padecendo de qualquer vício o comportamento adotado por este e o teor do ato administrativo praticado nessa sequência.

17. Nesta conformidade, considera-se suficientemente demonstrado que o Recurso do Recorrente não é composto por qualquer argumento jurídico atendível, motivo pelo qual tal Recurso deverá ser julgado totalmente improcedente por V.Exas, decidindo-se pela integral manutenção da Sentença recorrida e, consequentemente, pela manutenção da improcedência dos vícios invalidades do ato administrativo que foram alegados pelo Recorrente nos presentes autos. (…).»

O DMMP junto deste tribunal, não emitiu parecer.

Colhidos os vistos legais, vem o processo à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar e decidir se o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter considerado que os três módulos pré-fabricados, cuja demolição foi ordenada pelo despacho impugnado, são subsumíveis no conceito de edificação previsto no art. 2.°, alínea a), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12 (RJUE), posto que, alega, não estão incorporados no solo, mas sim e apenas assentes sobre o terreno – cfr. 1.ª conclusão de recurso – razão pela qual, entende, não estão sujeitos a licença urbanística nos termos ao art. 4.°, n.º 2, alínea c), do RJUE – 10.ª conclusão, primeira parte – e, mesmo que assim fosse, mas sem conceder, que não existe qualquer obstáculo legal ou regulamentar à sua legalização, circunstância que, de acordo com o disposto no art. 106.°, n.º 2, do RJUE, obsta ipso facto e de jure à respetiva demolição – idem 8.ª a 10.ª conclusão de recurso, parte final.

II. Fundamentação

II.1. De Facto

A matéria de facto constante da sentença recorrida é aqui transcrita - cfr. fls. 190 e ss., do SITAF – aditando-se nesta sede, apenas, o texto de parte da informação da Divisão de Gestão Urbanística referida na alínea F) da matéria de facto, mas não transcrita na decisão recorrida, pois que a mesma se revela com interesse para a decisão a proferir:

«(…)

A. O Autor é proprietário dos seguintes prédios rústicos, descritos na Conservatória do Registo Predial de Faro (doc. 2, 3, 4 e 5, juntos com a p.i e resposta à contestação, a fls. 25, 28, 31 e 186 dos autos no SITAF):

(…)

Original nos autos

(…)

Original nos autos

(…)

Original nos autos

(…)

Original nos autos

B. Nos prédios acima descritos, o Autor instalou três módulos pré-fabricados, abaixo reproduzidos (confissão artigo 3.º da p.i.; doc. 10, 11 e 12 junto com a p.i. a fls. 42, 44 e 46 dos autos no SITAF):

C. Em 18 de Setembro de 2019, o Serviço de Fiscalização da Entidade Demandada exarou o documento «Auto de Notícia/Participação», abaixo parcialmente reproduzido (doc. 13 junto com a p.i. a fls. 48 dos autos no SITAF).

Original nos autos

D. Em 29 de Julho de 2020, o Autor recebeu o documento «Notificação de Projecto de Decisão», no qual a Entidade Demandada comunicou a “…intenção de ser ordenada a demolição da obra levada a efeito no prédio…”, indicando a inexistência de actos administrativos de controlo prévio e com a transcrição de informação emitida em 15.07.2020, e que se dá por integralmente reproduzida (fls. 13 do PA, a fls. 109 dos autos no SITAF).

E. Em 24 de Agosto de 2020, o Autor pronunciou-se sobre o projecto de decisão atrás referido, com o teor abaixo reproduzido parcialmente (fls. 18 a 24 do PA, a fls. 109 do SITAF).

(…)

(…)

F. Por ofício exarado em 08 de Abril de 2021, referência n.º 2882, a Entidade Demandada dirigiu ao autor uma comunicação com anexos, que se dão aqui por integralmente reproduzidos, nos quais foram incluídos a transcrição do despacho de 07.04.2021, que procedeu à notificação da ordem de demolição, e a informação abaixo reproduzida (doc. 1 junto com a p.i. a fls. 14 dos autos no SITAF):

(…)

Original nos autos

(…)

[

]

Original nos autos

Original nos autos

Original nos autos

G. Em 14 de Abril de 2021, o Autor recebeu o ofício atrás referido (fls. 45 do PA a fls. 109 dos autos no SITAF).

*

Não há factos a dar como não provados com interesse para a presente decisão.

*

A matéria de facto dada como provada nos presentes autos foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida, tendo por base a análise dos documentos juntos aos articulados, dos que constam do processo administrativo apenso aos autos, e do confessado ou admitido por acordo pelas partes. (…)».


II.2. De Direito
Do erro de julgamento em que incorreu a sentença recorrida ao ter considerado que os três módulos pré-fabricados, cuja demolição foi ordenada pelo despacho impugnado, são subsumíveis ao conceito de edificação previsto no art. 2.°, alínea a) do RJUE, posto que não estão incorporados no solo, mas sim e apenas assentes sobre o terreno – cfr. 1.ª conclusão de recurso.
Vejamos,
Do art. 2.º do RJUE, sob a epígrafe «Definições», na sua alínea a), cuja aplicação aos três módulos pré-fabricados – cfr. fotos constantes da alínea B) da matéria de facto supra - vem questionada nos presentes autos e recurso, consta que «edificação» é «a atividade ou resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com caráter de permanência». (negritos e sublinhados nossos).
De onde decorre que esta norma se divide em duas previsões distintas, que concorrem para a mesma estatuição, qual seja a qualificação como edificação.
Temos, assim, ao abrigo desta alínea a) do art. 2.º do RJUE, que uma «atividade ou resultado de construção (…) de um imóvel destinado à utilização humana» - será uma edificação, para os efeitos previstos no RJUE – cfr. alínea a), primeira parte -, «bem como de qualquer outra construção eu se incorpore no solo com caracter de permanência», mesmo que não se destine a utilização humana – cfr. alínea a), in fine.
Assim, e retomando o caso em apreço, para que os módulos pré-fabricados em causa nos autos – cfr. fotos constantes da alínea B) da matéria de facto – possam, devam, ser considerados “edificações” não é condição essencial que adote as características de permanência normalmente associadas a uma construção em alvenaria, bastando que o seu uso seja a utilização humana, a habitação ou outros usos humanos.
Sobre esta questão, Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves e Dulce Lopes(1) aduzem cristalinamente que «(…) 20. (…) Um dos requisitos legais que mais tem potenciado esta situação prende-se com a exigência, para que se esteja perante uma obra de edificação, de que a mesma seja um imóvel destinado a utilização humana ou trate de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência. Ora, novas formas de "edificação" como os pré-fabricados, as estufas (sobretudo quando inseridas em grandes empreendimentos agrícolas), e, mesmo, os contentores (seja para fins de armazenagem, seja para habitação, sobretudo de trabalhadores rurais), têm vindo a proliferar muitas das vezes a reboque do entendimento que a instalação de tais atividades não carecem de qualquer controlo municipal, o que as torna de mais fácil instalação e de mais difícil deteção sobretudo pelas entidades da Administração central (lembre-se que muitas destas utilizações se inserem em áreas com condicionantes, o que agrava ainda mais os impactos urbanísticos e ambientais delas decorrentes). Vide, a este propósito, Fernanda Paula OLIVEIRA, Dulce LOPES, "Estufas Agrícolas em Solo Urbano: Solução Contraditória ou Adequada?", in Questões Atuais de Direito Local, n.°10, maio/junho 2016, p. 125 a 136. (…)
E não se diga que não podemos ler o carácter de inamovibilidade (aliado ao de permanência) de forma diferenciada da noção civilística de imóvel.(2)

Isto porque cada ramo da ordem jurídica tem a sua intencionalidade própria, devendo os respetivos conceitos ser lidos em consonância com ela (é o caso/por exemplo, da noção do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis que presume o caráter de permanência de edifícios e construções que, ainda que móveis, estejam assentes no mesmo local por período superior a um ano - artigo 2.°, n.° 3). E é por isso mesmo que a alínea a) do artigo 2.° do RJUE acrescenta à noção de imóvel a de “outra construção que se incorpore no solo com caráter de permanência”, precisamente para indiciar que ambas não se confundem, não se tendo de exigir uma ligação tal que converta uma construção móvel numa construção absolutamente marcada pela fixidez.
Não resistimos aqui a citar o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de fevereiro de 2006, proferido no processo 0600/05, que, ainda que ao abrigo de legislação anterior, acolhe esta que é a melhor interpretação do requisito de permanência: Nos termos do art. 1° do DL n° 445/91 estão sujeitas a licenciamento, em geral, as obras de construção civil, aí se compreendendo instalações para pintura e comercialização de automóveis levadas a efeito em madeira, chapa, alvenaria e metal, bastando que exista uma ligação mais ou menos permanente ao solo e sem ser preciso que haja fundações (…)». (negritos e sublinhados nossos).
Neste sentido v. também recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14.01.2022, proferido no P. 00701/19.0BEPNF, e no qual se sumariou o seguinte:
«(…)
I — Destinando-se um pré-fabricado existente num prédio a utilização humana, designadamente a estabelecimento de restauração e bebidas, o mesmo consubstancia uma operação urbanística, pela utilização do solo para fins não exclusivamente agrícolas, pecuários florestais, mineiros ou de abastecimento público de água — na relevância do disposto no artigo 2º, alíneas a), b) e j), do RJUE.
II — O carácter amovível do pré-fabricado não descaracteriza a relevância da sua finalidade, a utilização humana, concretamente como estabelecimento de bebidas ou restauração e bebidas, ocorrendo, independentemente da execução ou não execução de fundações, rasas ou enterradas no solo, a sua ligação a infraestruturas com carácter de permanência que a utilização a que se destina implica ou pressupõe, na salvaguarda de interesses públicos e privados, quer de abastecimento de água, equipamentos de saneamento, rede de electricidade, de gás, telecomunicações, entre o mais. (…)» (sublinhados nossos), constando da respetiva fundamentação, além do mais, o seguinte, com particular interesse para a situação sub judice:
«(…)
Tanto a jurisprudência como a doutrina têm carreado o entendimento de que a noção de operações urbanísticas que nos é dada pelo RJUE, em especial o conceito de obras de edificação, não cobre todo o tipo possível de actuações sobre o território (…) No presente caso, estamos perante uma utilização do solo, com afetação a um determinado fim e a uma determinada utilização humana (estabelecimento de restauração e bebidas), mediante instalação ou, o mesmo é dizer, implantação de um pré-fabricado, com carácter de permanência e ligação estável ao solo, mais não houvera — não determinado nos autos quanto a incorporação no solo mediante fundações e, em qualquer caso, independentemente da execução de fundações incorporadas no solo —, pela infraestruturação necessária à sua finalidade e destinada utilização, que inclui, para além dos acessos, ligação a infraestruturas com carácter de permanência, v.g., de abastecimento de água, equipamentos de saneamento, rede de electricidade, de gás, etc.
Em face do fim a que se destina, determinado para utilização humana como estabelecimento de restauração e bebidas, o referido pré-fabricado, ainda que de amovibilidade seja susceptível, instala-se indubitável e necessariamente no solo de forma estável(…).» (sublinhados nossos).

Com inteira adesão à doutrina que dimana do aresto supra citado e transcrito e, bem assim, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo citado pela doutrina identificada supra, e retomando o caso em apreço, dúvidas não há que os três módulos pré-fabricados que o A., ora Recorrente, colocou em terrenos de que é proprietário – cfr. alíneas B) e C) da matéria de facto supra - são edificações nos termos do RJUE e que, como tal, se encontram sujeitas a licenciamento, ao abrigo dos art.s 2.º, alínea a) e 4.º, n.º 2, alínea c), ambos do RJUE.
Alega ainda o Recorrente que no caso em apreço, não se verifica qualquer impossibilidade de legalização da obra, e que o tribunal a quo errou ao não ter condenado o Recorrido a prosseguir com o procedimento nesse sentido – cfr. 10.ª conclusão de recurso, parte final -, mas aqui, também, sem razão. Vejamos porquê.
No RPDM de Faro(3)nos seus artigos 11.º e 22.º-C, estabelece-se o seguinte:


Artigo 11.º
Definições
Para efeitos do Regulamento, são adotadas as seguintes definições:
(…)
Obras de Construção — Execução de qualquer projeto de obras novas, incluindo pré -fabricados e construções amovíveis;
(…)
CAPÍTULO III
Edificação em solo rural
Artigo 22.º -C
Proibição de edificação dispersa
1 — É proibida a edificação em solo rural.
2 — Excetua -se do disposto no número anterior as edificações isoladas, os estabelecimentos hoteleiros isolados, as edificações de apoio, as obras de conservação, recuperação, alteração e ampliação de construções existentes, nos termos dos artigos seguintes.
Por seu turno, o art. 102.º. nº 3 e 4 do RJUE, sob a epígrafe «Reposição da legalidade urbanística», rege o seguinte:
«1 - Os órgãos administrativos competentes estão obrigados a adoptar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística quando sejam realizadas operações urbanísticas:
a) Sem os necessários actos administrativos de controlo prévio;
b) Em desconformidade com os respectivos actos administrativos de controlo prévio;
c) Ao abrigo de acto administrativo de controlo prévio revogado ou declarado nulo;
d) Em desconformidade com as condições da comunicação prévia;
e) Em desconformidade com as normas legais ou regulamentares aplicáveis.
2 - As medidas a que se refere o número anterior podem consistir:
a) No embargo de obras ou de trabalhos de remodelação de terrenos;
b) Na suspensão administrativa da eficácia de acto de controlo prévio;
c) Na determinação da realização de trabalhos de correcção ou alteração, sempre que possível;
d) Na legalização das operações urbanísticas;
e) Na determinação da demolição total ou parcial de obras;
f) Na reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos;
g) Na determinação da cessação da utilização de edifícios ou suas fracções autónomas.
3 - Independentemente das situações previstas no n.º 1, a câmara municipal pode:
a) Determinar a execução de obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança ou salubridade ou à melhoria do arranjo estético;
b) Determinar a demolição, total ou parcial, das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo.»

Por seu turno, o art. 102.º-A, n.º 1, também do RJUE, estabelece que «quando se verifique a realização de operações urbanísticas ilegais nos termos do n.º 1 do artigo anterior, se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares em vigor, a câmara municipal notifica os interessados para a legalização das operações urbanísticas, fixando um prazo para o efeito
E, por fim, dispõe também o art. 106.º do RJUE, sob a epígrafe «Demolição da obra e reposição do terreno», o seguinte:
«1 - O presidente da câmara municipal pode igualmente, quando for caso disso, ordenar a demolição total ou parcial da obra ou a reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes da data de início das obras ou trabalhos, fixando um prazo para o efeito.
2 - A demolição pode ser evitada se a obra for susceptível de ser licenciada ou objecto de comunicação prévia ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correcção ou de alteração.
3 - A ordem de demolição ou de reposição a que se refere o nº 1 é antecedida de audição do interessado, que dispõe de 15 dias a contar da data da sua notificação para se pronunciar sobre o conteúdo da mesma.
4 - Decorrido o prazo referido no nº 1 sem que a ordem de demolição da obra ou de reposição do terreno se mostre cumprida, o presidente da câmara municipal determina a demolição da obra ou a reposição do terreno por conta do infractor.»
Atento este regime, compulsados os autos e a matéria de facto provada, verifica-se que o Recorrido informou o A., ora Recorrente, da impossibilidade de legalização das construções em causa, em virtude de estas estarem localizadas em Reserva Agrícola Nacional (REN), e em zona de muito alta perigosidade de incêndios, de acordo com a carta do Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios de Faro (PMDFCI) – cfr. alínea F) da matéria de facto supra -, sujeito ao disposto no n.º 2 do art. 16.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28.06,(4)
com as alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 14/2019 de 21.01(5) ao dispor que «[f]ora das áreas edificadas consolidadas, não é permitida a construção de novos edifícios nas áreas classificadas na cartografia de perigosidade de incêndio rural definida no PMDFCI como de alta e muito alta perigosidade, sem prejuízo do disposto no número seguinte

Perante o que, as edificações que o A., ora Recorrente, instalou em terrenos rurais de sua propriedade, não poderão manter-se, pois que a edificação dispersa é proibida pelo RPDM de Faro - cfr. alíneas A, C, D e F da matéria de facto supra.
Acresce que o A., aqui Recorrente, não contrapôs, nem no procedimento e nem nos autos, quaisquer factos ou argumentos que pudessem pôr em causa, quer a localização dos módulos pré-fabricados ou sequer a proibição que resulta das disposições conjugadas dos art.s 11 .º e 22.º-C do RPDM de Faro e demais legislação invocada no ato impugnado, invocada no ato impugnado – cfr. alínea F) da matéria de facto supra -, para além do que já havia aduzido quanto à (ir)relevância urbanística da sua atuação – colocação de três módulos pré-fabricados, para uso habitacional, em solo rural -, designadamente, e genericamente, que «os três módulos pré-fabricados em causa, para além de não serem subsumíveis nem ao conceito de edificação, nem ao conceito de obra de obras de construção e, consequentemente, não estarem sujeitos ao regime de edificabilidade previsto no RPDM de Faro, também não constam do elenco das actividades interditas e condicionadas previstas no RPDM de Faro para a área onde se localizam os prédios do interessado.» e que, sublinha, «(…) a colocação dos três módulos pré-fabricados no terreno não inutiliza os solos, nem lhes retira aptidão para agricultura, pois estão apenas assentes sobre o terreno e não incorporados no mesmo.» assim concluindo que, e em suma, «(…) os três módulos pré-fabricados em causa são perfeitamente legais, pois não estão sujeitos a licença urbanística nos termos ao art.° 4.°/2/c do RJUE e mesmo que se entendesse que a respectiva colocação sobre o terreno consubstancia uma operação urbanística nos termos do art.° 2.°, alínea j) do RJUE, sujeita a licença administrativa, de acordo com o art.° 4.°/2/i do mesmo diploma legal, não existe qualquer obstáculo legal ou regulamentar à emissão dessa licença, circunstância que, de acordo com o disposto no art.° 106.°/2 do RJUE obsta ipso facto e de jure à respectiva demolição»- cfr. alegações de recurso n.º 8 a 10.
Porém, regendo, como vimos, o disposto nos art.s 11.º e 22.º-C, ambos do RPDM de Faro, e não tendo o Recorrente invocado nenhuma das circunstâncias previstas, designadamente, nos art.s 22.º-D, 22.º-E, 22.º-F do mesmo Regulamento, imperioso se trona decidir pela improcedência in totum do presente recurso jurisdicional.

III. Decisão

Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e em manter a decisão recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 12.01.2023

Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira







1) in Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado, 2016, 4ª edição, Almedina, pgs. 100 e 101.
2) Mas mesmo o STJ já se pronunciou que as casas pré-fabricadas, enquanto «conjunto de módulos que, uma vez montados e ajustados, formarão a estrutura base de um edifício, que deve ser fixado ao solo, forrado e coberto e concluído com instalação eléctrica, de água e de saneamento», assumem a natureza do imóvel, ex vi nºs 3 e 1 a) do art. 204.º do Código Civil – cfr., a título de exemplo, ac. de 23.01.2007, P. 06A4486, disponível em www.dgsi.pt
3) Ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 174/95, de 19/12, com as alterações introduzidas pela Declaração n.º 203/98, de 8 de junho, Resolução do Conselho de Ministros n.º 64 -A/2001 de 31 de maio, Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2005, de 28 de fevereiro, Resolução do Conselho de Ministros n.º 34/2005 de 17 de agosto, pelo Aviso n.º17503/2008 de 6 de junho, Aviso n.º 29943/2008 de 18 de dezembro e Aviso n.º 22216/2011 de 10 de novembro, e disponível aqui: https://www.cm-faro.pt/pt/menu/319/regulamentos-municipais.aspx#planos-municipais-de-ordenamento-do-territorio
4) Que estabelece as medidas e ações a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios
5) Diploma que clarifica os condicionalismos à edificação e adapta as normas relativas a queimadas e queimas de sobrantes, no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, procedendo à sétima alteração ao Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 15/2009, de 14 de janeiro, 17/2009, de 14 de janeiro, 114/2011, de 30 de novembro, 83/2014, de 23 de maio, e 10/2018, de 14 de fevereiro, e pela Lei n.º 76/2017, de 17 de agosto.