Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 151/12.9BEFUN |
![]() | ![]() |
Secção: | CA |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Data do Acordão: | 06/23/2022 |
![]() | ![]() |
Relator: | FREDERICO MACEDO BRANCO |
![]() | ![]() |
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL ACIDENTE INUNDAÇÃO PRIVAÇÃO DE USO; |
![]() | ![]() |
Sumário: | I – A responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos impõe que estes sejam responsáveis quando for de concluir que os seus órgãos ou agentes praticaram, por ação ou omissão, atos ilícitos e culposos, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, e que daí resultou um dano para terceiro. II – Se é certo que não é expectável que qualquer município possa ter, em tempo real, conhecimento de todos os obstáculos que possam surgir nas vias sob a sua jurisdição, o que é facto é que, se um acidente pudesse ter sido evitado através da mera prévia intervenção preventiva de limpeza dos sumidouros de águas pluviais existentes na via, é notório que a responsabilidade do município não poderá ser afastada. III – O dever de conservação, limpeza e manutenção da via pública é um ato de gestão pública que compete, nos termos da lei, à entidade pública, nomeadamente quando ocorram circunstâncias suscetíveis de criar obstáculos ocasionais à circulação nas mesmas. É, no fundo, uma decorrência do dever de vigilância e fiscalização a cargo do Município relativamente às vias/estradas municipais. IV - A privação do uso de um veículo sinistrado constitui, de per se, um dano patrimonial indemnizável, por essa privação de uso consubstanciar uma ofensa ao direito de propriedade sobre o veículo e caber ao proprietário deste, no exercício do seu direito de propriedade, optar por usar ou não o veículo, pelo que esse direito indemnizatório apenas está dependente da alegação e prova do número de dias de privação do uso da viatura em consequência do acidente, não dependendo da alegação e prova de que dessa privação emergiram concretos e específicos prejuízos para o lesado. |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Aditamento: | ![]() |
1 | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I Relatório A I.... – S....., Lda., devidamente identificada nos autos, intentou ação administrativa Comum contra o Município do Funchal, e contra a Fidelidade M…. – C….., S.A, tendente à condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de €33.149,41 a título de danos patrimoniais, em decorrência de acidente ocorrido no dia 06/01/2010, pelas 8:16 horas, no túnel da cota 40 junto à Escola Francisco Franco, com o veículo de marca Mercedes, modelo CLS 500, matrícula 83-…., de sua propriedade. Tendo o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal proferido Sentença em 28 de fevereiro de 2021, através da qual decidiu julgar a Ação parcialmente procedente, condenando-se o réu Município no pagamento de uma indemnização no montante de €1.059,11, acrescida de juros de mora, e o Réu F… – C…, S.A. no pagamento da quantia de €9.532,06, acrescida de juros de mora, veio a Seguradora apresentar Recurso em 7 de abril de 2021, no qual concluiu: “1.Não pode a Recorrente concordar com a douta sentença condenatória. 2.Na contestação apresentada, a Demandada Seguradora invocou franquias que constam da apólice, designadamente a franquia por danos por água, e que não foram levadas, pelo menos não expressamente, aos factos provados. 3.Ainda que a Recorrente considere que nenhuma responsabilidade deveria ter sido assacada ao Município do Funchal, assim como à Seguradora, por força do evento em discussão nestes autos, considera a Recorrente que deverá ser incluído nos factos provados a franquia acordada por danos por água, inclusive porquanto no caso de se manter uma sentença condenatória, ficando provado que o veículo da Autora ficou com o motor danificado em consequência da entrada de água (cfr. facto provado nº4), a franquia a cargo do Município do Funchal deverá ser aquela prevista para os danos por água. 4.Pelo que, com base na apólice junta à contestação como Doc. 1.” (cfr. cláusula 5 das condições particulares da apólice junta como Doc. 1 à contestação, na qual se incluem a carta datada de 06 de Agosto de 2001, a carta de aceitação datada de 15 de Outubro de 2001, e a ata adicional de 22 de Outubro de 2001), deverá ser aditado aos factos assentes que: “Ficou estabelecido na apólice contratada que o Segurado Município do Funchal ficava responsável pelo pagamento de uma franquia, no valor correspondente a 10% dos prejuízos causados, em todo e qualquer sinistro ocorrido em virtude de danos causados por água, sendo o mínimo da franquia de 500.000$00, o equivalente a €2.493,99 (dois mil, quatrocentos e noventa e três euros e noventa e nove cêntimos), na moeda atual, por lesado”. 5.Consta do ponto 6, al. m) da condição particular da apólice que: “ “6. Exclusões Para além das exclusões constantes do Artº 4º das Condições Gerais de Responsabilidade Civil, esta cobertura não garante a responsabilidade: (…) m) Por danos que não resultem diretamente de lesões materiais ou corporais causadas ao terceiro lesado.” (cfr. apólice junta como Doc. 1 à contestação) 6.No que se refere às condições gerais do seguro contratado, juntas como Doc.1 à contestação da Demandada Seguradora, a página correspondente aos arts. 8º e 9º foi anexada antes de parte do art. 4º, art.s 5º e 6º, e parte do art 7º, quando deveria vir depois. 7.Existiu lapso na ordem pela qual as condições gerais da apólice foram remetidas pela Demandada e constam do processo, lapso revelado pelo próprio contexto, requerendo a Recorrente a sua retificação, admissível por interpretação extensiva do disposto no art. 249º do Código Civil. 8.Consta do artigo 4º, nº3 das condições gerais da apólice que: “Artigo 4º - Exclusões (…) 3.Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Especiais ou Particulares e sem prejuízo de outras exclusões nelas constantes, o presente contrato não garante também os danos: (…) e) Resultantes de lucros cessantes, paralisações e perdas indiretas de qualquer natureza.” (cfr. apólice junta como Doc. 1 à contestação da Demandada Seguradora) 9. Devendo aditar-se igualmente aos factos provados os seguintes factos importantes para a boa decisão da causa, designadamente para a questão da indemnização pela privação de uso da viatura, e que se encontram provados documentalmente pela apólice junta como Doc. 1 à contestação da Demandada Seguradora: - Ficou acordado no ponto 6 (exclusões), al. m) das condições particulares da apólice contratada que se encontram excluídos da cobertura da apólice os danos que não resultem diretamente de lesões materiais ou corporais causadas ao terceiro lesado. - Ficou igualmente acordado no art. 4º (exclusões), nº3, al. e) das condições gerais da apólice que o contrato de seguro não garante os danos resultantes de lucros cessantes, paralisações e perdas indiretas de qualquer natureza. 10.Sendo o aditamento ao elenco dos factos provados dos factos referidos nas conclusões 4 e 9 admissível nos termos do disposto no art. 607º, nº4 do C.P.C., aplicável ex vi do art. 663º, nº2 do C.P.C. 11.Caso assim não se entenda, a dita franquia, assim como as exclusões da cobertura de danos resultantes de lucros cessantes, paralisações e perdas indiretas de qualquer natureza, deverão ser atendidas na apreciação de direito, dado que constam da apólice dada por integralmente reproduzida no facto provado nº15 da sentença. 12. No que se refere à responsabilidade pelo acidente e danos, o Tribunal imputou-a exclusivamente ao Município do Funchal, em suma, devido à falta de sinalização de água na via pública devido às fortes chuvas e à falta de escoamento da mesma por quem tinha o dever de praticar os atos materiais correspondentes às devidas atividades e não as realizou, tendo ainda considerado que a situação é enquadrável numa situação de funcionamento anormal do serviço. 13. Tendo o Venerando Tribunal a quo considerado provados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, em relação ao Município do Funchal, tendo o condenado, assim como à Recorrente Seguradora, no pagamento de uma indemnização à Autora. 14. Não se encontra prevista a responsabilidade pelo risco ou objetiva dos entes públicos por acidentes ocorridos nas vias sob a sua jurisdição. 15. A eventual responsabilidade do Município do Funchal por danos sofridos pelos utentes em consequência de acidente ocorrido na via, traduz-se numa responsabilidade extracontratual, dependente da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual, ou seja, o ato ou omissão, a ilicitude, a culpa, o dano sofrido pelo lesado e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano. 16. Não é pelo facto de, a dado momento, existir um obstáculo na via ou ter ocorrido um acidente numa via sob a jurisdição de outrem que se possa concluir pela responsabilidade do ente público e inclusive pela existência de funcionamento anormal do serviço. 17. É sabido que de acordo com os conhecimentos científicos e tecnológicos atualmente existentes é impossível que alguém, Município ou outro, tome conhecimento, a cada instante, do estado das vias rodoviárias a seu cargo, em toda a sua extensão, a ponto de sinalizar prontamente qualquer problema que surja na via, para após removê-lo, sendo que, maioria de razão, essa falta de conhecimentos científicos e tecnologia inexistia à data do evento (janeiro de 2010) 18. Os acidentes têm natureza dinâmica e, com frequência, os obstáculos surgem na via de um momento para o outro, sendo que os acidentes podem ocorrer logo a seguir ou pouco tempo após a queda ou aparecer um obstáculo na via. 19. Sendo que para se poder concluir pelo funcionamento anormal do serviço era necessário provar que o dito obstáculo estava há suficiente tempo no local para justificar uma intervenção dos serviços camarários, e estes nada fizeram. 20. Resulta dos factos provados nºs 13 e 14 que, no dia em questão, no Funchal, verificou-se uma intensa pluviosidade, sendo que entre as 7:40 e as 8:40, do dia 06/01/2010, foi registada a precipitação de 14.9mm na estação/observatório do Funchal, sendo que às 8:10 horas, do dia 06/01/2010, foi registada, a precipitação máxima em 10 minutos de 11.3mm, na estação/observatório do Funchal. 21. Pelo que, o valor da quantidade de precipitação máxima registada em 10 minutos foi 11.3mm, às 8h10mn do dia 06 de janeiro de 2010, o que significa dizer que a precipitação máxima verificada ocorreu 6 minutos antes do incidente em discussão nestes autos. 22. Ainda que não tivesse ficado provado que antes da ocorrência do sinistro o Município do Funchal procedeu à fiscalização e limpeza do pavimento, das adufas, sarjetas e respetivas canalizações, no túnel da cota 40 (cfr. al. a) dos factos não provados), também não ficou provado o contrário, ou seja, que antes da ocorrência do sinistro o Município do Funchal não procedeu à fiscalização e limpeza do pavimento, das adufas, sarjetas e respetivas canalizações, no túnel da cota 40. 23. Não tendo ficado provado que os resíduos que se encontravam acumulados nas adufas já lá se encontrassem há algum tempo, inclusive antes das chuvas intensas que se verificaram, podendo ter sido trazidos e arrastados pelas mesmas, causando o entupimento das adufas, nem a que horas se formou ou começou a formar a inundação. 24. Ora, para que os serviços camarários pudessem sinalizar ou remover um obstáculo na via pública é necessário que aqueles soubessem ou devessem conhecer da existência do mesmo. 25. Para se poder concluir pelo funcionamento anormal do serviço era necessário provar que o dito obstáculo estava há suficiente tempo no local para justificar uma intervenção dos serviços camarários, devendo constar dos factos provados factos demonstrativos do funcionamento anormal do serviço. sendo que, a existência de um obstáculo na via, ou mesmo a existência de um acidente na via, não é só por si prova de funcionamento anormal do serviço. 26. Porém, não consta dos factos provados que o Município do Funchal tivesse tido conhecimento da existência da inundação dentro do túnel e que pudesse em tempo útil fazer chegar um piquete ao local, por forma a sinalizar e/ou remover a água. 27. Considera a Recorrente que da decisão de facto não é possível imputar ao Réu Município do Funchal qualquer responsabilidade na ocorrência do sinistro, não sendo exigível ao Município do Funchal sinalizar um perigo que não era pelo mesmo conhecido, nem consta dos factos provados que dele tivesse tido conhecimento, faltando um dos requisitos da responsabilidade civil, - a ilicitude - cujo ónus da prova cabia à Autora. (cfr. art. 342º, nº1 do Código Civil) 28. Resulta das regras da experiência comum que não é todo e qualquer obstáculo ou objeto na via que é suscetível de ser causa adequada de acidentes, muito menos em faixas de boa visibilidade. 29. A falta de sinalização de algo da via nem sempre é causal do acidente. 30. Não sendo causal do acidente quando o utente/condutor da viatura visualizou atempadamente um problema na via, apesar da falta de sinalização. 31. Ainda que dentro do túnel existisse uma inundação, esta não surgiu para o condutor do veículo da Autora e seu legal representante, como uma surpresa, dado que se apercebeu da mesma a uma distância de cerca de 40 metros (cfr. 51 facto provado nº5), tendo tido espaço e tempo suficiente para alterar os seus intentos de marcha iniciais em face à situação da via no momento, designadamente cessar a marcha. 32. Apesar de ter visto a inundação com uma antecedência de 40 metros, o condutor do veículo da Autora não imobilizou este veículo, não sinalizou as luzes de perigo, nem alertou os Serviços Camarários, nem os Bombeiros para a existência da inundação, nem aguardou pelas suas intervenções, antes de prosseguir a marcha, quando estivessem condições favoráveis. 33. Não obstante se ter apercebido da existência da aludida inundação, sendo a mesma avistável a cerca de 40 metros de distância, o condutor do veículo Mercedes continuou a sua marcha, atravessando a zona inundada, ficou parcialmente submerso, deixou de funcionar e ficou imobilizado, sendo que a água existente dentro do túnel atingia a altura do capot do veículo da Autora. (cfr. factos provados nºs 1 a 6) 34. In casu, em face designadamente dos factos provados nºs 5 e 6, o acidente e danos na viatura não se deveram, em concreto, à alegada omissão do Município do Funchal, mas sim ao condutor do veículo da Autora, que visualizou a cerca de 40 metros de distância a inundação e, mesmo assim, seguiu em direção à mesma, entrou na água e continuou em frente, não obstante a acumulação de água, a qual atingia uma altura elevada, ao nível do capot. 35. Ainda que em teoria se pudesse eventualmente falar em presunção de culpa, em relação aos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, não existe nenhuma presunção da existência de facto ilícito, do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano, vigorando quanto a estes as regras do ónus da prova previstas no art. 342º, nº1 do Código Civil, cabendo à Autora a prova destes pressupostos da responsabilidade extracontratual, ou seja, do facto (ou omissão) ilícito, do dano e do nexo de causalidade entre o facto (ou omissão) e o dano. 36. Mesmo que se considerasse verificada a prática de ilícito pelo Município do Funchal, o que só se concede como mera hipótese de raciocínio, considera a Recorrente que, em face aos factos provados, não é possível estabelecer o nexo de causalidade adequada entre o alegado ilícito imputado Município do Funchal e o acidente e os danos. 37. Não estando preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, deverá a ação ser julgada improcedente. 38. É sabido que as Câmaras Municipais, não sendo o Município do Funchal exceção, têm vários quilómetros de vias rodoviárias sob a sua jurisdição, sendo técnica e humanamente impossível vigiar permanentemente cada centímetro e/ou troço de estrada, sendo técnica e humanamente impossível tomar conhecimento do estado das vias rodoviárias em toda a sua extensão por forma a detetar um obstáculo na via, no momento em que surja, quanto mais sinalizá-lo antes de proceder à sua remoção. 39. Uma das formas importantes para deteção de um problema na via é a denúncia, por parte de um dos utentes da via. 40. Ao contrário dos serviços camarários, e de outros organismos, designadamente a Proteção Civil e Bombeiros, que desconheciam da existência da inundação no Túnel, antes do acidente, nem constando dos factos provados que tivessem tido conhecimento da inundação, o condutor do veículo da Autora sabia da sua existência, dado que circulava no dito troço, e conseguiu visualizar a inundação, cerca de 40 metros de antecedência, podendo parar a viatura, e inclusive dar o alerta, designadamente aos serviços camarários ou aos bombeiros, por forma a poderem se deslocar ao local e drenarem a água, e não o fez. 41. No âmbito da condução, os condutores estão adstritos a várias regras, designadamente as previstas nos art.s 11º, nº2 e 24º, nº1 do Código da Estrada, para além do dever geral de prudência, não devendo comportar-se como se a via tivesse características diferentes daquelas que se lhe apresentam pela frente, sendo certo que o condutor do veículo da Autora visualizou, a cerca de 40 metros de distância, acumulação de água dentro do túnel. (cfr. facto provado nº5) 42. Nem a falta de sinalização da inundação, nem a falta de escoamento da água foram a causa concreta do acidente, dado que o condutor do veículo da Autora visualizou a cerca de 40 metros de distância a inundação, pelo que, não obstante a mesma não se encontrar sinalizada, a sua existência e localização foi vista atempadamente pelo condutor do veículo da Autora, que detinha a direção da viatura, podendo diminuir a velocidade da viatura, assim como parar. 43. Tendo sido a atuação do condutor do veículo da Autora que, ao entrar com o carro na zona de inundação e continuar ao ponto deste ficar parcialmente submerso, que causou os danos na viatura. 44. Para além de inexistir ilicitude, assim como inexistir nexo de causalidade adequada entre a omissão imputada ao Réu Município e o acidente e danos, estes se deveram à imprudência, à temeridade do condutor do veículo da Autora, que estava “in loco”, e poderia ter atuado de diferente forma, designadamente imobilizado a viatura antes de chegar ao ponto da via onde se encontrava a inundação e chamado os serviços camarários ou bombeiros por forma a removerem a água, por forma a conseguir continuar a sua marcha em segurança. 45. A ocorrência do acidente e danos será da exclusiva responsabilidade do condutor do veículo da Autora, por circular em violação do disposto nos art.s 11º, nº2, e 24º, nº1 do Código da Estrada, assim como violado o dever geral de prudência, devendo as Demandadas serem absolvidas do pedido. 46. Caso assim não se entenda, deverá considerar-se que com a sua conduta, o condutor do veículo da Autora e seu legal representante contribuiu para a ocorrência do sinistro, para a produção e extensão dos danos, existindo culpa do lesado, nos termos do disposto no art. 4º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, assim como no art. 570º, nºs 1 e 2 do Código Civil, devendo a indemnização ser excluída, nos termos do nº2 desta disposição legal, sendo as Demandadas absolvidas do pedido. 47. Caso assim ainda não se entenda, deverá a indemnização ser substancialmente reduzida, fixando-se a responsabilidade pela ocorrência do sinistro e danos em 80% para o condutor do veículo da Autora e 20% para o Município do Funchal, sendo a indemnização reduzida em conformidade. 48. A douta sentença fixou em 2000,00€ (dois mil euros) o valor dos danos devidos a título de privação de uso da viatura. 49. Em relação ao sinistro sub judicie, apenas se provou que no dia em questão, o legal representante da Autora conduzia a dita viatura, não tendo sido considerado provado qualquer dano específico, designadamente que a Autora teve de alugar outro veículo. (cfr. factos provados). 50. Não deveria ser arbitrada qualquer indemnização pela privação do uso da viatura, dada a ausência de prova de um dano específico para a Autora, tendo sido violado o disposto nos art.s 562º, 563º, 566º, nºs 2 e 3 do Cód. Civil. 51. No contrato de seguro, as responsabilidades da Seguradora (garantias, riscos cobertos e riscos excluídos), são as que resultam da lei e da apólice, pelo que, caso as partes contraentes excluam da cobertura da apólice certos danos, e essa estipulação não seja proibida pela lei, o ressarcimento dos mesmos não pode ser exigido à Seguradora. (cfr. art.s 1º, 32º, nºs 1 e 2, 37º, nºs1 e 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado pelo D.L. nº72/2008, de 16 de abril, art.s 397º, 398º, nº1, 405º, nº1 do Código Civil) 52. Para que a seguradora seja obrigada a reparar um dano, não basta a mera verificação de danos, sendo igualmente necessário que estes estejam contratualmente previstos, o que significa dizer que a seguradora apenas será responsável pelo ressarcimento dos danos cobertos pela garantia do seguro, e nos termos constantes da apólice. (cfr. art.s 1º, 32º, nºs 1 e 2, 37º, nºs1 e 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado pelo D.L. nº72/2008, de 16 de abril, art.s 397º, 398º, nº1, 405º, nº1 do Código Civil) 53. Entre os Réus foi celebrado o contrato de seguro junto à contestação da Demandada Seguradora como Doc.1, o qual para além de ter sido dado por integralmente reproduzido no art. 1º da contestação da Demandada Seguradora, foi igualmente dado por reproduzido no ponto 15 dos factos provados na sentença. 54. Do aludido contrato de seguro resulta que se encontram excluídos da cobertura do seguro a responsabilidade por danos que não resultem diretamente de lesões materiais ou corporais causados ao terceiro lesado. (cfr. ponto 6 (Exclusões), al. m) das condições particulares do seguro contratado junto como Doc. 1 à contestação da Demandada Seguradora, dado por integralmente reproduzido no ponto 15 dos factos provados). 55. Por outro lado, resulta do art. 4º nº3, al. e) das condições gerais da apólice que: “Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Especiais ou Particulares e sem prejuízo de outras exclusões nelas constantes, o presente contrato não garante também os danos: (…) e) Resultantes de lucros cessantes, paralisações e perdas indiretas de qualquer natureza.” (cfr. Doc. 1 à contestação da Demandada Seguradora, dado por integralmente reproduzido no ponto 15 dos factos provados). 56. Pelo que a se considerar devida uma indemnização a título de privação de uso da viatura, não poderá a Demandada Seguradora ser condenada no seu pagamento, dado que os mesmos não se encontram cobertos pelo seguro contratado. (cfr. ponto 6 (Exclusões), al. m) das condições particulares do seguro contratado, art. 4º nº3, al. e) das condições gerais da apólice) 57. Na apólice nº87/ 41732, ficou consignado que o Município do Funchal ficava responsável pelo pagamento de uma franquia, no valor correspondente a 10% dos prejuízos causados em todo e qualquer sinistro ocorrido em virtude de danos causados por água, sendo o mínimo de franquia de 500.000$00. (cfr. apólice junta como Doc. 1 à contestação da Demandada Seguradora), o correspondente a 2493,99€, na moeda atual. 58. Atendendo a que, de acordo com os factos provados, os estragos no veículo da Autora resultaram da entrada de água, ou seja, a Autora terá sofrido danos por água, em caso de manutenção de sentença condenatória, sempre deveria a franquia a cargo da Segurada ser fixada em 2493,99€, por força da apólice contratada. 59. Em caso de manutenção de sentença condenatória, a Recorrente apenas seria responsável pelo ressarcimento dos prejuízos cobertos pela apólice, na proporção da responsabilidade do seu Segurado Município do Funchal, não entrando na indemnização a seu cargo verba a título de privação de uso da viatura, devendo ainda ser deduzida a franquia a cargo do Réu Município do Funchal, no valor de 10% dos prejuízos causados cobertos pela apólice, sendo o mínimo de franquia de 500.000$00, o equivalente a €2493,99. 60. Caso se considere existir alguma responsabilidade do Município do Funchal na ocorrência do sinistro e danos, mas o valor dos danos cobertos pela apólice seja inferior à franquia a cargo da Segurada, a Recorrente deverá ser absolvida do pagamento de qualquer quantia. 61. Decidindo como decidiu, a douta sentença recorrida violou o disposto nos arts. 4º, 7º, nºs 1, 3 e 4, 9º, nºs 1 e 2, 10º, nºs 1, 2 e 3 da Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, art.s 342º, nº1, 397º, 398º, nº1, 405º, nº1, 483º, nºs 1 e 2, 493º, nº1, 562º, 563º, 566º, nºs 2 e 3, 570º, nºs 1 e 2 do Código Civil, arts. 11º, nº2 e 24º, nº1 do Código da Estrada, art.s 1º, 32º, nºs 1 e 2, 37º, nºs 1 e 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado pelo D.L. nº72/2008, de 16 de abril. Termos em que, deverá julgar-se procedente o presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, e absolvendo-se a Demandada Seguradora do montante em que foi condenada, porquanto só assim será feita, JUSTIÇA!” A Autora, aqui Recorrida, I…. Lda. veio apresentar as suas Contra-alegações de Recurso em 25 de maio de 2021, aí tendo concluído: “1. A Recorrente entende que devem ser julgados como provados três novos factos relativos ao contrato de seguro celebrado entre o Município do Funchal e a seguradora, que elenca nos pontos 1 a 10 das suas conclusões. 2. A Recorrente não cumpriu com o ónus de impugnação da matéria de facto já que não indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, limitando-se antes a afirmar que, por um lado deverá ser dado como provado que a franquia a que está obrigado o Município do Funchal é diferente da que o Tribunal a quo entendeu ser aplicável, e que por outro lado deverá ser dado como provado que a existência de duas exclusões constantes das condições gerais e particulares do contrato de seguro exclui a responsabilidade da Seguradora. 3. A Recorrente limitou-se a consignar uma versão nova de todos os factos que considera que devem ser dados como provados, sem mencionar, como consequência, quais os factos que entende dever ser julgados como não provados, pelo que deve o recurso ser liminarmente rejeitado nesta parte. 4. Do ponto 15 do elenco de factos provados constante da sentença proferida consta como provado o contrato de seguro, cujo teor foi dado por reproduzido, sendo por isso inútil e desnecessária a ampliação da matéria de facto julgada provada requerida pela Recorrente, o que também por este motivo deve ser indeferido. 5. A pretendida exclusão da responsabilidade da Recorrente, pelos danos de privação do uso do automóvel com base na cláusula 6.ª, al. m) das condições particulares da apólice nunca foi invocada nem alegada pela mesma na sua contestação, nem em qualquer fase do processo que correu os seus termos no Tribunal de primeira instância, consubstanciando uma questão nova. 6. O Tribunal de recurso está impedido de conhecer questões novas, pois como é consabido o nosso sistema de recursos em Portugal visa o reexame de questões já anteriormente levadas ao conhecimento do Tribunal recorrido e por ele decididas, o que não é o caso da questão relativa à exclusão da responsabilidade da Recorrida com base na cláusula 6.ª, al. m), que nunca foi colocada em sede de primeira instância e que, por conseguinte, não foi objeto de contraditório por parte da ora Recorrida nem, consequentemente, de decisão judicial. 7. Deve assim, ser desde logo rejeitada a parte do recurso constante das conclusões 51.º a 56 da alegação de recurso da Recorrente, por consubstanciarem questões novas. 8. Encontram-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente: i) o facto – sob a forma de omissão; ii) o ilícito e a culpa – a violação do dever de diligência e cuidado – falta de sinalização e do dever de manutenção e escoamento das vias municipais; iii) o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. 9. O Município do Funchal não procedeu à manutenção e conservação das adufas do túnel sito na Cota 40, em frente à Escola Francisco Franco, o que fez com que se fossem acumulando resíduos nas sarjetas e adufas daquela estrada, pelo que, praticou um facto ilícito. 10. Os danos causados à Recorrida tiveram origem numa omissão ilícita praticada pelo Município do Funchal, pelo que se encontra preenchido o requisito do nexo de causalidade. 11. O Município atuou com culpa, pois bem sabia que era sua obrigação agir com diligência e cuidado e manter o escoamento das vias rodoviárias, conforme resulta do disposto no art. 2.º da Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961, pelo que, se encontra preenchido o requisito da culpa. 12. Ficou provado que quando os bombeiros procederam à limpeza dos resíduos que se encontravam acumulados a água que também estava acumulada no túnel começou a escoar, o que é suficiente para provar que a inundação ocorreu porque as adufas e sarjetas estavam entupidas - do ponto 7 do elenco de factos provados. (cfr. página 7 da sentença agora em crise). 13. O cumprimento pelo Município do Funchal de proceder à manutenção e à limpeza das adufas e sarjetas das estradas que integram o domínio público municipal como estava obrigada teria impedido a inundação do túnel situado na cota 40 e em consequência teria impedido a avaria do automóvel que é propriedade da Recorrida. 14. O acidente em causa ocorreu devido à falta de sinalização e à falta de limpeza das sarjetas que servem para escoar as águas das estradas que teria sido evitado caso o Município do Funchal procedesse à limpeza das sarjetas e adufas com a regularidade que é exigida, dever esse que se intensifica na altura do inverno! 15. Cabe única e exclusivamente ao Município do Funchal, através da Câmara Municipal do Funchal proceder à limpeza, manutenção e conservação das estradas que integram o domínio público municipal com regularidade, sendo que como já referimos, resultou provado que a água só se acumulou no túnel porque as adufas e sarjetas estavam entupidas com resíduos que não foram retirados pelo Município do Funchal. 16. Não merece qualquer reparo a sentença proferida pelo Tribunal a quo quando refere que competia-lhe [ao município], “nomeadamente, assegurar o escoamento de água, mediante a limpeza das adufas ou sarjetas existentes na rede viária municipal, v.g. no túnel da cota 40, de forma a que, mesmo em caso de intensa pluviosidade, fosse evitada a acumulação de água, ou mesmo, se necessário, interditar a sua utilização.” 17. Estamos perante uma situação em que o Município do Funchal omitiu um comportamento a que estava obrigado, e com essa conduta causou danos à ora Recorrida. Esta violação é, sem dúvida alguma, culposa já que podia e devia ter sido evitada se o Município do Funchal procedesse à manutenção e limpeza das vias que integram o domínio público municipal. 18. O Município do Funchal está obrigado a sinalizar as situações de perigo que sucedem quando há uma grande intensidade de chuva, sendo que não se pode entender que os municípios não são obrigados a “saber” em tempo real quais são os danos e acidentes que ocorrem sob pena de esvaziar a responsabilidade dos municípios ao ponto de se fazer tábua rasa das competências e atribuições. 19. Ao se registar níveis de pluviosidade elevados é obrigação do Município do Funchal estar atento a todas e quaisquer potenciais situações de inundações e outros acidentes que ocorram em virtude de chuvas intensas e outros fenómenos meteorológicos adversos, e é obrigação do Município proceder à identificação rápida dos acidentes e situações anormais, sinalizando-as e adotando todos os mecanismos e atos materiais necessários à sua regularização. 20. O condutor do veículo automóvel não pode ser responsabilizado por não informar o município que o túnel estava inundado sob pena de transferirmos para os particulares uma atividade que pertence ao domínio público e que, diga-se, não é transferível para os particulares. 21. O condutor do automóvel não agiu com culpa já que era impossível que o condutor a uma distância de 40 metros se apercebesse que a inundação seria de tal forma que o nível da água atingisse o capot do carro. A perceção da profundidade da inundação tornava-se ainda “mais impossível” tendo em conta o reflexo que a água origina. 22. A conduta do condutor do automóvel não merece qualquer censura, uma vez que não lhe podia ser exigido que imobilizasse o veículo, porquanto não era possível saber que a inundação iria atingir o capot. O condutor do automóvel agiu, colocado na posição de homem média, com a diligência e prudência que lhe eram exigíveis dadas as circunstâncias de facto existentes. 23. Ficou cabalmente provado que o Município do Funchal não procedeu à manutenção e conservação das estradas que integram o domínio público municipal, pelo que violou o dever de cuidado, vigilância, manutenção e diligência a que estava obrigado por lei e não procedeu, como estava obrigado, à sinalização da inundação em causa por forma a impedir a circulação no túnel em causa, sendo que por causa e devido a esta omissão causou danos à Recorrida. 24. Foi devido à omissão do Município do Funchal que o veículo automóvel se avariou, pelo que estão preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Município do Funchal. 25. A Câmara Municipal do Funchal está organizada por serviços, sendo um desses serviços responsáveis pela manutenção e conservação das estradas que integram o domínio público municipal, pelo que sendo impossível delimitar quem foi o agente que violou tais deveres, é o Município do Funchal responsável pelos danos causados pelo anormal funcionamento do serviço, pelo que andou bem o Tribunal a quo quando entendeu que “estamos, assim, perante uma situação de funcionamento anormal do serviço, nos termos e para os efeitos do art. 9.º, n.º 2, e art. 7.º, n.º 4, ambos do RRCEEP, o que conduz à verificação da ilicitude e à presunção de existência de culpa leve quanto ao comportamento omissivo ilícito, cfr. art. 10.º, n.º 2, do RRCEEP.” 26. No que diz respeito à obrigação de indemnizar pela privação de uso do automóvel, esta surge com fundamento apenas na privação do automóvel em si, não sendo necessário que a Recorrida alugasse um carro para que a Recorrente e o Município do Funchal fossem condenados a indemnizar pelo dano de privação. 27. Para que nasça a obrigação de indemnizar pelo dano de privação, basta a prova de a Recorrida ficou privada da utilização do veículo automóvel em consequência da omissão ilícita do Município do Funchal, o que logrou fazer conforme resulta da sentença impugnada, pelo que é este município e a Seguradora responsável pelo pagamento de uma indemnização pelo dano de privação que causou com a sua omissão. 28. O contrato de seguro celebrado entre a Seguradora F…. e o Município do Funchal não exclui a responsabilidade desta última quanto ao pagamento da indemnização pelos danos causados. 29. A destruição do motor do automóvel da Recorrida é causa direta da omissão do dever de proceder à manutenção das sarjetas e adufas das estradas que integram o domínio público municipal por forma a impedir inundações, especialmente no inverno, e ainda de sinalizar as situações especialmente perigosas é uma lesão material pelo que o dano em causa não está excluído do contrato de seguro celebrado entre a Recorrente F…. e o Município do Funchal por força do ponto 6, alínea m) das condições particulares daquele contrato. 30. O contrato de seguro celebrado entre a Seguradora F…. e o Município do Funchal não exclui a obrigação de indemnizar a Recorrida pelos danos de privação causados em virtude da omissão dos deveres de manutenção e conservação das vias municipais e ainda de vigilância e diligência na sinalização dos acidentes e obstáculos existentes naquelas mesmas vias, porquanto consubstancia decorrência logica e natural da lesão material e consubstanciar em si mesma, uma lesão material. 31. É irrelevante para a Recorrida se o Município assume o pagamento mínimo de € 2.493,99 já que são ambos responsáveis pelo pagamento dos danos causados à Recorrida, sendo certo que os danos foram causados pela atuação do Município do Funchal e não apenas pela água pelo que é a Seguradora responsável pelo pagamento do montante de € 9.532,06. 32. Deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente Fidelidade, mantendo-se assim a decisão proferida pelo Tribunal a quo, confirmando-se assim a condenação da F.... e do Município do Funchal no pagamento da indemnização pelos danos causados à Recorrida no montante total de € 10.591,17. Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento desse venerando Tribunal Central Administrativo Sul, devem: I) Ser rejeitadas liminarmente, por incumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, as conclusões 1 a 10 do recurso interposto; Ii) Ser rejeitadas liminarmente as conclusões 51 a 56 das alegações de recurso e, em todo o caso, Iii) Deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente, por improcedente in totum, mantendo-se a douta decisão recorrida, assim se fazendo a acostumada Justiça.” Em 12 de junho de 2021 foi proferido Despacho de Admissão do Recurso. O Ministério Público junto deste Tribunal, tendo sido notificado em 9 de julho de 2021, nada veio dizer, requerer ou Promover. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento. II - Questões a apreciar As principais questões a apreciar resultam da necessidade de verificar se se verificarão os enunciados erros de facto e de direito, mormente no que concerne à necessidade de verificação da aplicabilidade das invocadas franquias do seguro, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA. III – Fundamentação de Facto O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade, como provada e não provada, a qual aqui se reproduz: “Factos Provados Com interesse para a decisão da causa dão-se como provados os seguintes factos: 1. A 06/01/2010, pelas 8:16 horas, A.... circulava no túnel da cota 40, no sentido este-oeste, junto à Escola Francisco Franco, no Funchal, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de marca Mercedes, com a matrícula 83…., propriedade da Autora. 2. A via pública referida em 1. supra encontrava-se com acumulação de água dentro do túnel. 3. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1. supra o veículo ao passar pelo referido túnel e ao manter contacto com a água acumulada na via, ficou parcialmente submerso, deixou de funcionar e ficou imobilizado. 4. O veículo da Autora ficou com o motor danificado em consequência da entrada de água. 5. O condutor do veículo quando circulava dentro do túnel visualizou a água existente dentro do mesmo a uma distância de cerca de 40 metros e prosseguiu a sua marcha atravessando a zona inundada da via até ficar imobilizado. 6. A água existente dentro do túnel atingia a altura do capot do veículo da Autora. 7. Os Bombeiros Voluntários Madeirenses foram chamados ao local e procederam à limpeza das adufas no túnel da cota 40, retirando resíduos que se encontravam acumulados, começando a água a escoar. 8. O veículo referido em 1. supra foi removido do local através de um reboque. 9. Em consequência dos factos referidos em 3. supra a Autora ficou privada do uso do veículo até 31/08/2010. 10. A oficina da Mercedes orçou a reparação do veículo no montante de €31.062,91. 11. Em agosto de 2010 a Autora reparou os danos sofridos no motor do veículo tendo suportado o respetivo custo no montante de €8.106,10. 12. A Autora pagou o serviço de reboque e de transporte do veículo para a oficina no montante de €485,07. 13. Entre as 7:40 e as 8:40, do dia 06/01/2010, foi registada a precipitação de 14.9mm na estação/observatório do Funchal. 14. Às 8:10 horas, do dia 06/01/2010, foi registada, a precipitação máxima em 10 minutos de 11.3mm, na estação/observatório do Funchal. 15. O Município do Funchal celebrou com a F.... – C….., S.A. um contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual, doravante apólice, com o n.º 87/41732, que aqui se dá por integralmente reproduzida, cuja cobertura abrange os danos causados pela falta de manutenção e/ou reparação de vias rodoviárias camarárias. 16. Nos termos da cláusula 5.4 das condições particulares da apólice referida em 15. supra fica a cargo do segurado Município do Funchal a franquia relativa a “Danos causados pela falta de manutenção e/ou reparação de vias rodoviárias camarárias, 10% no mínimo de 100.000$00 por sinistro.” 17. A Autora participou o sinistro aos Réus, tendo ambos declinado a responsabilidade pelo mesmo. FACTOS NÃO PROVADOS a) Não ficou provado que antes da ocorrência do sinistro o Município do Funchal procedeu à fiscalização e limpeza do pavimento, das adufas, sarjetas e respetivas canalizações, no túnel da cota 40.” IV – Do Direito No que aqui releva, discorreu-se no discurso fundamentador da Sentença Recorrida: “Importa averiguar, em face das circunstâncias concretas, se se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos por lei, e que têm natureza cumulativa, para que se verifique a obrigação de indemnizar. O Facto - No caso dos autos, o facto danoso vem imputado ao Réu Município do Funchal sob a forma de uma omissão, ou seja, a falta de limpeza e manutenção das adufas existentes no túnel da cota 40, no Funchal. A Ilicitude e a Culpa - No que se refere à ilicitude e à culpa, a análise destes dois pressupostos tem de se fazer em conjunto dado que a fronteira entre ambos é muito ténue, tendo em atenção que não raras vezes sucede que a culpa se dilui na ilicitude assumindo-se como seu elemento subjetivo, traduzido na censurabilidade do facto ao agente por ter violado regras jurídicas ou de prudência que tinha a obrigação de conhecer (vide, neste sentido, o Acórdão do STA, Proc. n.º 0969, de 27-02-2007, disponível em www.dgsi.pt ) Assim, de acordo com o art. 9.º, n.º 1, do RRCEEP, “Consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.”, e n.º 2 “Também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º.” E, ainda, de acordo com o disposto no art. 10.º, n.º 1, do RRCEEP, “A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.”, n.º 2 “Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos.” e n.º 3 “Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.” Ora, sucede que é da competência da Câmara Municipal, nos termos do art. 64.º, n.º 2, alínea f), da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, [em vigor à data dos factos],“Criar, construir e gerir instalações, equipamentos, serviços, redes de circulação, de transportes, de energia, de distribuição de bens e recursos físicos integrados no património municipal ou colocados, por lei, sob a administração municipal;” Releva ainda, para este efeito, o disposto no art. 2.º da Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961: “É das atribuições das câmaras municipais a construção, conservação, reparação, polícia, cadastro e arborização das estradas e caminhos municipais.” O Município tem um dever de vigilância sobre as vias municipais, decorrente das suas atribuições de conservação, reparação e manutenção, cfr. art. 10.º, n.º 3, do RRCEEP e art. 493.º, n.º 1 do Código Civil (CC). O dever de conservação, limpeza e manutenção da via pública é um ato de gestão pública que compete, nos termos da lei, à entidade pública, nomeadamente quando ocorram circunstâncias suscetíveis de criar obstáculos ocasionais à circulação nas mesmas, como foi o caso dos autos. É, no fundo, uma decorrência do dever de vigilância e fiscalização a cargo do Município relativamente às vias/estradas municipais. E resulta efetivamente provado que na via pública municipal onde circulava o veículo da Autora existia um obstáculo - uma acumulação de água - sem qualquer sinalização, o que consubstancia uma deficiente segurança, conservação, manutenção e sinalização da via municipal. Detendo legalmente competência para agir nesse âmbito, e tendo ainda em conta a prossecução das atribuições inerentes à pessoa coletiva a que pertence, é esperado que a Câmara Municipal do Funchal atue em conformidade e que pratique os atos de conservação e manutenção necessários para assegurar a utilização em condições de segurança da via municipal em especial quando na mesma existam, ainda que temporariamente, obstáculos. Cabia à autarquia através da sua câmara municipal zelar pela manutenção e conservação da via pública e tomar todas as medidas necessárias e adequadas para que a mesma não constituísse um local de perigo real para os munícipes e, em geral, para todos os utilizadores da mesma. Competia-lhe, nomeadamente, assegurar o escoamento de água, mediante a limpeza das adufas ou sarjetas existentes na rede viária municipal, v.g. no túnel da cota 40, de forma a que, mesmo em caso de intensa pluviosidade, fosse evitada a acumulação de água, ou mesmo, se necessário, interditar a sua utilização. A existência de água na via pública com altura suficiente para cobrir o capot de um automóvel com as características do veículo da Autora, constitui um obstáculo que potencia o risco próprio de utilização dessa mesma via, ademais quando a acumulação de água ocorre dentro de um túnel. Por outro lado, é legítimo que o munícipe ou outro cidadão utilizador da via confie no correto desempenho das funções conservatórias e fiscalizadoras do Município, de modo a poder utilizá-la com a convicção de que o faz em segurança e sem pôr em risco bens jurídicos como a vida, a integridade física ou o património. O comportamento omissivo do Município, ao não praticar os atos inerentes às suas atribuições, através das competências legalmente atribuídas para o efeito aos seus órgãos (Câmara Municipal) viola a posição jurídico-substantiva do particular. Existe efetivamente um desvalor da conduta omissiva, que se traduz na violação de um interesse legalmente protegido do particular. O interesse do particular resulta da proteção jurídica indireta ou reflexa das normas que impõem à autarquia a prossecução do dever de conservação, vigilância e manutenção da via. As referidas normas tutelam interesses públicos, cuja realização leva à satisfação reflexa do interesse individual. Nos termos supra expostos, estão verificados os requisitos de que depende a verificação da ilicitude. Da factualidade provada não é possível provar ou identificar a autoria pessoal da omissão de manutenção, limpeza e desobstrução da via ou mesmo da interdição de circulação na mesma. Por outro lado, a Câmara Municipal é um órgão colegial do Município e, no entendimento deste Tribunal, a omissão resulta de falhas imputáveis aos serviços da autarquia, em especial aos serviços do órgão Câmara Municipal, globalmente considerados. A omissão ilícita e danosa dilui-se no funcionamento dos serviços considerados no seu conjunto. Estamos, assim, perante uma situação de funcionamento anormal do serviço, nos termos e para os efeitos do art. 9.º, n.º 2, e art. 7.º, n.º 4, ambos do RRCEEP, o que conduz à verificação da ilicitude e à presunção de existência de culpa leve quanto ao comportamento omissivo ilícito, cfr. art. 10.º, n.º 2, do RRCEEP. Acresce que, considerando as circunstâncias próprias ocorridas, seria razoável exigir ao serviço uma atuação suscetível de evitar o dano produzido, cfr. art. 7.º, n.º 4 do RRCEEP. Com efeito, perante a reconhecida perigosidade para a circulação automóvel de uma quantidade de água na via incompatível com essa mesma utilização, seria claramente exigível à Câmara Municipal que procedesse à devida sinalização, ou interditasse ou zelasse pelas condições de segurança da mesma, de forma a inexistirem quaisquer tipos de obstáculos no meio da via aptos a causar acidentes. Constitui jurisprudência consolidada a existência de uma presunção de culpa relativamente a diversas situações em que existisse um encargo de vigilância por parte de entidades públicas, reportando-se a danos causados pela existência de obstáculos na via pública, deficiente conservação das vias, queda de árvores, ruína de edifício ou rutura de condutas, vide os acórdãos do STA de 10 de Maio de 2006 (Processo n.º121/06); de 4 de Abril de 2006 (Processo n.º 1116/05); de 9 de Março de 2006 (Processo n.º 837/03). Uma última referência quanto à culpa para precisar que não resultam dos autos factos que permitam fundamentar a mesma a título de dolo ou culpa grave, cfr. art. 8.º do RRCEEP, nem, por outro lado, ficaram provados factos que permitam ilidir a presunção de culpa leve na prática da omissão ilícita. Desta forma, consideram-se demonstradas a ilicitude e a culpa do Réu Município do Funchal. Os Danos - Resultaram provados os seguintes danos: A Autora suportou o custo da reparação do motor do veículo no montante de €8.106,10, cfr. 11. dos factos provados. A Autora pagou o serviço de reboque e de transporte do veículo para a oficina no montante de €485,07, cfr. 12. dos factos provados. Quanto à privação do uso do veículo adiro à fundamentação e decisão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2019, no processo n.º 3088/19.7YRLSB-2, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve: “Sumário: I) A privação do uso de um bem é suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa. II) A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação. III) A privação do uso de um veículo automóvel, desde que resulte provado que era efetivamente utilizado, constitui só por si, um dano patrimonial indemnizável, devendo recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º, nº 3 do C.Civil para fixar o valor da respetiva indemnização IV) O dano ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a atividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afeto e o mesmo não se anula pela utilização de um outro veículo, o qual apenas proporciona a utilidade inerente à deslocação que, nele, é correspondentemente efetuada. V) Se é certo que tal utilização não erradica o dano consistente na impossibilidade de utilização do veículo sinistrado, ainda assim, tal utilização deverá ser atendida na fixação do quantum indemnizatório, chegando-se à conclusão que tal montante será inferior face aos casos em que o sinistrado não tenha outro veículo com o qual possa suprir a utilidade decorrente da realização de viagens. VI) À míngua de outros elementos, com recurso à equidade, afigura-se ser razoável atribuir ao autor o quantitativo de € 9,00 (nove euros) diário, desde a data do acidente, devendo a ré assumir a responsabilidade por esse dano que o autor sofreu, de privação do uso do veículo sinistrado, não integralmente compensado pela utilização de um outro veículo.” Considerando que o veículo da Autora foi reparado e colocado à disposição da Autora em 31/08/2010, conforme fatura emitida pela H…., Lda., o período considerado para a indemnização pelo dano de privação de uso vai desde 06/01/2010 até 31/08/2010. Na falta de elementos concretos que permitam fixar o dano patrimonial indemnizável, fixo, com recurso à equidade, em €10,00 diários, o dano a reparar pelos Réus, no período supra referido. Atendendo a que o montante global do dano de privação de uso ultrapassa os €2.000 pedidos pela Autora, cfr. art. 12.º da petição inicial, considero o mesmo reduzido a esse montante. O Nexo de Causalidade - Refere o art. 563.º do Código Civil que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.” Na formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Ennecerus-Lehman), a condição deixará de ser causa do dano sempre que seja de todo indiferente para a sua produção e o dano só se tenha tornado condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias. Ainda segundo a mesma formulação subsiste o nexo de causalidade adequada quando o facto ilícito não produz ele mesmo o dano, mas é causa adequada de outro facto posterior que o produz, se este tiver sido especialmente favorecido pelo primeiro ou for um seu efeito provável, segundo o curso normal dos acontecimentos. Apesar de estarmos perante uma conduta omissiva, como afirma o Professor Antunes Varela “A omissão como pura atitude negativa não pode gerar física ou materialmente o dano, mas entende-se que a omissão é causa de dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um ato que, seguramente ou muito possivelmente, teria impedido a consumação desse dano.” Cfr. Das Obrigações em Geral, 6.ª Edição, Volume I, fls, 497. Vide ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27/02/2007, Processo n.º 969/06, disponível em www.dgsi.pt. Concorreu para a produção dos danos a falta de sinalização da água existente na via em consequência das fortes chuvas e a falta de escoamento da mesma, por quem tinha o dever de praticar os atos materiais correspondentes às devidas atividades e não as realizou – o Município - causando a diminuição das condições de segurança e tornando a mesma mais vulnerável à ocorrência de acidentes. O sinistro ocorrido cuja dinâmica revela a imobilização e avaria do veículo em consequência da existência de água no túnel da cota 40, deve considerar-se como efeito adequado da falta de sinalização e de criação de condições de segurança da via. No plano naturalístico a existência de água na via pública com altura suficiente para cobrir o capot de um automóvel de passageiros, tal como o da Autora, e a falta da sua sinalização foram condição real de dano e no plano normativo essa situação pode considerar-se em abstrato, de acordo com as regras da lógica e os conhecimentos da experiência comum, apta a desencadear a imobilização de um veículo com a danificação do mesmo, portanto, apresenta-se com aptidão para se configurar como causa adequada à produção do acidente e à dimensão do dano, vide o Acórdão do TCA Sul de 29/01/2015, processo n.º 07715/11, disponível em www.dgsi.pt. Assim, intercede o necessário nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o dano. Fixação da Indemnização - Nestes termos, são indemnizáveis, a título de danos patrimoniais, os danos sofridos pela Autora no montante de €10.591,17. Tem, assim, a Autora direito a um quantum indemnizatório de €10.591,17. O Município do Funchal celebrou com a F.... – C….., S.A. um contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual [apólice n.º 8……], cuja cobertura abrange os danos causados pela atuação ou omissão na falta de manutenção, reparação e/ou conservação de vias rodoviárias camarárias, sem prejuízo das exclusões expressamente previstas nas condições gerais e particulares. Pelo que a Ré F.... – C…, S.A. responde pelos danos sofridos pela Autora, com os limites da franquia prevista na condição particular da supra referida apólice que se transcreve: “5.4. Danos causados pela falta de manutenção e/ou reparação de vias rodoviárias camarárias, 10% no mínimo de 100.000$00 por sinistro.” Em conformidade com o exposto cabe ao Réu Município do Funchal suportar o pagamento da franquia no montante de €1.059,11 e compete à Ré F.... – C…., S.A. o pagamento de €9.532,06. A este valor acrescem juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de citação de cada um dos Réus até integral e efetivo pagamento – cfr. art. 559.º, n.º 1 do Código Civil e Portaria 291/2003, de 8 de abril.” Do ponto de vista normativo é na presente Ação aplicável predominantemente a Lei nº 67/20007, de 31 de dezembro, no que concerne à Responsabilidade Civil. Peticionou a Autora a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de €33.149,41 a título de danos patrimoniais, em decorrência de acidente ocorrido no dia 06/01/2010, pelas 8:16 horas, no túnel da cota 40 junto à Escola Francisco Franco, com o veículo de marca Mercedes, modelo CLS 500, matrícula 83-…., de sua propriedade. Como decorre da generalidade da Jurisprudência e Doutrina Administrativa, a responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos impõe que estes sejam responsáveis quando for de concluir que os seus órgãos ou agentes praticaram, por ação ou omissão, atos ilícitos e culposos, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, e que daí resultou um dano para terceiro. Nos termos descritos no Acórdão do STA nº 0903/03 de 03-07-2003, refira-se que "para que ocorra a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos ilícitos e culposos dos seus órgãos ou agentes, no exercício das suas funções e por causa delas, é necessária a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano" Acórdão STA de 9.5.02 no recurso 48077. A ação improcederá se um destes requisitos se não verificar”. O Tribunal de 1ª instância deu por verificados todos os referidos pressupostos, o que aqui se ratifica. Importa agora analisar e decidir o suscitado em concreto. Refira-se desde logo que o objeto do recurso é delimitado e definido pelas conclusões extraídas da motivação, por banda do recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias não anteriormente consideradas e decididas, salvo tratando-se de matérias de conhecimento oficioso. Vejamos: Da Alteração da matéria de facto A Recorrente propõe a alteração da matéria de facto, com a adição de novos factos. Como se sumariou, entre outros, no Acórdão do TCAS nº 3373/07.0BELSB, de 05.05.2022, “I – Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida. A alteração da matéria de facto por instância superior, sempre deverá ser considerada uma intervenção excecional. II - À instância recursiva apenas caberá sindicar e modificar o decidido quanto à factualidade dada como provada e não provada, caso verifique a ocorrência de erro de apreciação, suscetível de determinar a viciação da decisão final, mormente enquanto erro de julgamento, patente, ostensivo palmar ou manifesto. Em qualquer caso, para que não possam subsistir quaisquer dúvidas, vejamos o suscitado. Efetivamente, entende a Recorrente que deveriam ser aditados os seguintes factos provados ao elenco de factos provados constantes da sentença ora recorrida: “- Ficou acordado no ponto 6 (exclusões), al. m) das condições particulares da apólice contratada que se encontram excluídos da cobertura da apólice os danos que não resultem diretamente de lesões materiais ou corporais causadas ao terceiro lesado. - Ficou igualmente acordado no art. 4º (exclusões), nº3, al. e) das condições gerais da apólice que o contrato de seguro não garante os danos resultantes de lucros cessantes, paralisações e perdas indiretas de qualquer natureza.” Suscita a Recorrente que o documento 1, que juntou à contestação, não estará completo porquanto terá existido um lapso na ordem pela qual as condições gerais da apólice foram remetidas pela Demandada e que por essa razão deve aditar-se aos factos provados que se reputam por relevantes para a decisão da boa causa, “designadamente para a questão da indemnização pela privação do uso de viatura (…).” Com base nesse facto, veio a Recorrente requerer a alteração da matéria de facto julgada provada, no sentido desta incluir os factos constantes da 9.ª conclusão da sua alegação de recurso. Em bom rigor estamos perante uma impugnação da matéria dada como provada, sem que a Recorrente tenha invocado essa circunstância ou logrado demonstrar a sua relevância para a decisão final, mostrando-se incumprido, nomeadamente, o ónus de impugnação da matéria de facto. É, pois, incontornável que refere o artigo 640.º, n.º 1 do CPC que o Recorrente deve especificar, obrigatoriamente: a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Na realidade, dos pontos 1 a 10 das conclusões formuladas pela Recorrente é manifesto que não foi cumprido o referido ónus de impugnação da matéria de facto, pois que se limita a suscitar questões conexas com a franquia do seguro a que o Município estará contratualmente vinculado, divergente daquele que foi entendido como adequado pelo tribunal, mais entendendo dever ser dado como provada a existência de duas exclusões constantes das condições gerais e particulares do contrato de seguro. Em qualquer caso, consta do ponto 15.º da matéria de facto provada, o teor do contrato de seguro em face do que mostraria redundante e inútil a inclusão de qualquer outro facto referenciando o contrato de seguro. Em face de tudo quanto precedentemente se discorreu, não se reconhece a utilidade ou virtualidade das sugeridas alterações à matéria de facto. Sé certo que a Seguradora invoca ainda que o tribunal a quo omitiu factos que seriam relevantes para a decisão da causa, o que é facto é que a matéria fixada reproduz a situação real ocorrida, mormente a circunstância do veiculo ter ficado inoperacional, em virtude da entrada de água – vg. Facto 6 – resultante da entrada de água em consequência da insuficiente conservação da controvertida via. Assim, sem necessidade de acrescida argumentação, entende-se que a decisão de condenar a Seguradora e o Município, em €9.532,06 e €1.059,11, respetivamente, não denota qualquer vício suscetível de determinar a sua invalidade, uma vez que de acordo com a cláusula 5.4 das condições particulares da apólice n.º 87/41732, o Município do Funchal é responsável pela franquia relativa a “danos causados pela falta de manutenção e/ou reparação de vias rodoviárias camarárias, 10% no mínimo de 100.000$00 por sinistro” (498,78€). Do objeto do recurso Pugna a Recorrente pela revogação da Sentença proferida a 28.02.2021 que condenou o Município do Funchal e a Seguradora F.... no pagamento das quantias discriminadas. Como já se aludiu, entendeu o tribunal a quo que mostravam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, o que se ratificou já, pois que se o Município do Funchal, tivesse agido com a necessária diligência teria obstado à efetivação dos prejuízos verificados e reclamados. Como se afirmou em 1ª Instância, “concorreu para a produção dos danos a falta de sinalização da água existente na via em consequência das fortes chuvas e a falta de escoamento da mesma, por quem tinha o dever de praticar os atos materiais correspondentes às devidas atividades e não as realizou – o Município - causando a diminuição das condições de segurança e tornando a mesma mais vulnerável à ocorrência de acidentes.” Da responsabilidade civil extracontratual do Município do Funchal e da F.... – C…. S.A. Como resulta, desde logo, do artigo 11.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro: “1 - O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização. 2 - Quando um facto culposo de terceiro tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos, o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do direito de regresso.” Em concreto, não está em causa a responsabilidade objetiva do município, mas antes a responsabilidade por facto ilícito praticado com culpa leve em virtude de um funcionamento anormal de serviço. Não tendo sido apurado qual foi o órgão que terá violado, por ação ou omissão, os deveres de vigilância a que estava obrigado, tal circunstância não desresponsabiliza o Município, e correspondentemente a sua Seguradora em decorrência do contrato de seguro celebrado, em função da matéria de facto dada como provada e supra transcrita, sendo que o Tribunal a quo deu como não provado “que antes da ocorrência do sinistro o Município do Funchal procedeu à fiscalização e limpeza do pavimento, das adufas, sarjetas e respetivas canalizações, no túnel da cota 40.” Aliás, é esclarecedor que quando os bombeiros procederam à limpeza dos resíduos que se encontravam acumulados nas adufas da estrada municipal, a água que estava acumulada no túnel começou a escoar, o que significa que uma prévia mera limpeza da via, teria evitado a inundação e o acidente. Se é certo que não é expectável que qualquer município possa ter, em tempo real, conhecimento de todos os obstáculos que possam surgir nas vias sob a sua jurisdição, o que é facto é que o controvertido acidente poderia certamente ter sido evitado se os sumidouros de águas pluviais existentes na via se mostrassem limpos e desentupidos, obrigação que cabe, no caso, ao Município. Como sublinhou o tribunal a quo, “Releva ainda, para este efeito, o disposto no art. 2.º da Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961: “É das atribuições das câmaras municipais a construção, conservação, reparação, polícia, cadastro e arborização das estradas e caminhos municipais.” Mais se afirmou apropriadamente na Sentença Recorrida que “o dever de conservação, limpeza e manutenção da via pública é um ato de gestão pública que compete, nos termos da lei, à entidade pública, nomeadamente quando ocorram circunstâncias suscetíveis de criar obstáculos ocasionais à circulação nas mesmas, como foi o caso dos autos. É, no fundo, uma decorrência do dever de vigilância e fiscalização a cargo do Município relativamente às vias/estradas municipais.” Incontornavelmente, ficou provado na Ação que a água só se acumulou no túnel onde o veículo veio a ficar imobilizado, uma vez que as adufas e sarjetas estavam entupidas com resíduos que não foram retirados, responsabilidade que cabia ao Município. Como mais uma vez se afirmou em 1ª Instância, “competia-lhe, nomeadamente, assegurar o escoamento de água, mediante a limpeza das adufas ou sarjetas existentes na rede viária municipal, v.g. no túnel da cota 40, de forma a que, mesmo em caso de intensa pluviosidade, fosse evitada a acumulação de água, ou mesmo, se necessário, interditar a sua utilização.” Como afirmado por Mário Aroso de Almeida, in Comentário ao Regime da Responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa 2013, página 249, “mesmo quando os danos não tenham resultado de um comportamento concreto de determinada pessoa, ou, em todo o caso, não seja possível comprovar a autoridade pessoal de uma ação ou omissão efetivamente ocorrida, existe responsabilidade da entidade pública desde que a produção dos danos possa ser imputada a um funcionamento anormal do serviço – ou seja, desde que, atendendo às circunstâncias e por referência a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço a adoção de uma conduta suscetível de não ter causado ou ter evitado os danos produzidos.” Se é certo, como invoca a Recorrente, que o Município não tem capacidade de sinalização imediata de todos os obstáculos que surgem nas vias, o que é facto é que, ainda assim, mesmo admitindo que assim seja, tal não invalida que aquele seja, por omissão, responsável pelos entupimentos que geraram a inundação. Por outro lado, entende a Recorrente que o Recorrida não logrou provar que alugou outro veículo. Este aspeto irreleva pois que tem vindo a ser entendido pacificamente pela mais recente jurisprudência que a privação do uso de um bem é suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa. Como se sumariou, nomeadamente no Acórdão do TCAN nº 02062/15.7BEPNF, de 19-02-2021, “A privação do uso de um veículo sinistrado constitui, de per se, um dano patrimonial indemnizável, por essa privação de uso consubstanciar uma ofensa ao direito de propriedade sobre o veículo e caber ao proprietário deste, no exercício do seu direito de propriedade, optar por usar ou não o veículo, pelo que esse direito indemnizatório apenas está dependente da alegação e prova do número de dias de privação do uso da viatura em consequência do acidente, não dependendo da alegação e prova de que dessa privação emergiram concretos e específicos prejuízos para o lesado. “O simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano” (cfr. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. I, 4ª ed., Almedina, pág. 317. No mesmo sentido Abrantes Geraldes, “Temas de Responsabilidade Civil – Indemnização do Dano da Privação do Uso”, 2ª ed., Almedina), “o proprietário privado por um terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa e ao lesar, assim, o direito de propriedade sobre a coisa, retirando-lhe a livre disponibilidade sobre a mesma. Conforme se pondera em aresto do STJ. de 09/03/2010, “quando a privação do uso recaia sobre um automóvel, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá um facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se ao lesante uma indemnização a esse título, que corresponderá, regra geral, ao custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, mesmo que o lesado não tenha recorrido ao aluguer de um veículo de substituição, uma vez que bem pode acontecer que não tenha disponibilidades económicas para isso, sem que tal signifique que não sofreu danos ou prejuízos pela privação do seu veículo. Não necessita, por isso, de provar direta e concretamente prejuízos efetivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, etc.) com o custo correspondente. Tudo isso estará abrangido pela privação do uso do veículo a ressarcir nos termos referidos ou, em última análise, se necessário, segundo critérios de equidade, sem prejuízo de se poder, evidentemente, alegar e provar outros danos emergentes ou lucros cessantes” (Neste sentido Acs. STJ. de 28/09/2011, Proc. 2511/07.8TACSC.L2.S2; 06/05/2008, Proc. 08A1279; RL. de 21/05/2009, Proc. 1252/08.3TBFUN.L1; 20/12/2017, Proc. 1817/16.0T8LSB.L1-2). Assim, para que a Recorrente e o Município do Funchal sejam condenados a indemnizar a Recorrida pelo dano privação, não é necessário que esta última tenha alugado um outro automóvel, não merecendo, igualmente no aspeto vindo de analisar, censura a decisão recorrida. Da exclusão da responsabilidade da seguradora A Recorrente entende que foi celebrado um contrato de seguro que exclui a responsabilidade pelos danos que não resultem diretamente de lesões materiais ou corporais causados ao terceiro lesado. Sublinha-se que, em bom rigor, nunca a referida questão foi suscitada em 1ª Instância, onde apenas foram colocadas questões conexas com a franquia do seguro, em face do que se trata de uma questão nova, a qual, como tal, não pode ser tratada recursivamente. Como se sumariou no Acórdão do TCAN nº 00674/08.4BEBRG, de 10.09.2021, “A decisão proferida em 1ª instância não pode ser revista em recurso jurisdicional com fundamento em questão nova. Os recursos jurisdicionais destinam-se a rever as decisões proferidas pelo tribunal recorrido, não a decidir questões novas. Com efeito, os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Assim, não pode em sede de recurso conhecer-se de questão nova, que não tenha sido objeto da sentença pois os recursos jurisdicionais destinam-se a reapreciar as decisões proferidas pelos tribunais inferiores e não a decidir questões novas, não colocadas a esses tribunais, ficando, assim, vedado ao Tribunal de recurso conhecer de questões que podiam e deviam ter sido suscitadas antes e o não foram.” Em qualquer caso, para que não possam subsistir quaisquer dúvidas, sempre se dirá que as lesões materiais terão de ser entendidas como todas aquelas que compreendem a destruição ou deterioração de bens materiais, em face do que os danos verificados no motor do automóvel, enquanto causa direta da atuação omissiva do Município, não deixam de constituir um dano, insuscetível de ser excluído da responsabilidade da Seguradora, atento o contrato de seguro em vigor. Mesmo o dano de privação do uso não deixa de ter resultado da referida lesão material consubstanciada na avaria do motor. Assim, não merece também neste aspeto, censura a decisão objeto de recurso. * * * Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao Recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida.Custas pela Recorrente Lisboa, 23 de junho de 2022 Frederico de Frias Macedo Branco Alda Nunes Lina Costa |