Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:405/14.0BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:11/14/2024
Relator:LUÍS BORGES FREITAS
Descritores:PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
RATIFICAÇÃO-SANAÇÃO
RETROATIVIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO
Sumário:I - A ratificação-sanação é o ato através do qual é suprida a ilegalidade de um ato anteriormente praticado, ilegalidade essa relativa à respetiva competência, forma ou formalidades, tendo como fundamento o princípio do aproveitamento dos atos administrativos
II - O ato de ratificação-sanação substitui o ato primário na ordem jurídica.
III - Nos casos previstos no n.º 1 do artigo 128.º do CPA de 1991 – em que é a própria lei a atribuir eficácia retroativa ao respetivo ato administrativo - não cabe apurar, nomeadamente, se a mesma é favorável ou desfavorável para os interessados; a retroatividade impõe-se a qualquer uma das condições previstas no n.º 2 do referido artigo 128.º.
IV - De acordo com o disposto no artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, «[o] procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final».
V - Daqui decorre que o facto que impede a prescrição é a notificação da decisão final.
VI - Não obstante a eficácia retroativa da ratificação, ocorre a prescrição do procedimento disciplinar se a notificação do ato ratificante é realizada depois de se completarem os 18 meses a que se refere o artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
L… intentou, em 24.3.2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, ação administrativa especial contra o Ministério da Saúde e o CENTRO Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, visando a declaração de nulidade ou a anulação da deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.

Por sentença de 4.4.2017 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou procedente a ação e, em consequência, decidiu nos seguintes termos:

«1. reconhece a invalidade, por anulabilidade, da deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar, de 13.11.2012, com fundamento em violação do disposto no art 24º, nº 2 do CPA de 1991, na redação dada pelo DL nº 6/96, de 31.1, aplicável ao caso por força do art 2º, nº 7 do mesmo CPA;
2. reconhece a invalidade do despacho de 3.12.2013, de acordo com o art 133º, nº 2, al i) do CPA de 1991;
3. reconhece a caducidade do direito de aplicar a pena ao autor à data da deliberação de ratificação sanação, de 8.4.2014, nos termos do art 55º, nº 4, al c) e nº 6 do ED;
4. declara a prescrição do procedimento disciplinar à data da deliberação de ratificação sanação, de 8.4.2014, nos termos do art 6º, nº 6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9.9.
5. fica prejudicado o conhecimento de tudo o mais peticionado pelo autor».

Inconformado, o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa interpôs recurso daquela decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1. Vem o presente recurso da douta sentença proferida nos autos em referência que julgou totalmente procedente a ação administrativa especial instaurada por L… contra o aqui Recorrente Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (doravante CHPL) nos exatos termos dela constantes, que aqui se dão por reproduzidos.
2. O recurso circunscreve-se à matéria de direito, e fundamenta-se em erro na interpretação do direito e na determinação do regime jurídico aplicável, determinante da reforma integral da decisão recorrida.
3. Previamente requer-se a correção de lapso manifesto verificado na decisão, concretamente, na parte em que refere que o Recorrente não apresentou alegações nos autos, o que, conforme demonstrado, não corresponde à realidade.
4. A douta sentença recorrida viola o regime legal da ratificação plasmado no CPA de 1991 (doravante CPA/91), concretamente, o disposto no art.° 137.°, n.° 4, e, aplicou indevidamente ao caso subjudice o disposto no art.° 128.°, n.° 2 al. a) do CPA/91.
5. Do referido regime legal, plasmado no art.° 137.° do CPA/91, decorre que a ratificação: só pode ter por objeto atos administrativos anuláveis; visa expurgar os vícios geradores de anulabilidade e deste modo transformar os atos inválidos em atos válidos; e determina apenas a modificação do ato sanado e não a respetiva destruição, alteração ou substituição, afloramento claro do princípio do aproveitamento dos atos administrativos.
6. Deste regime decorre ainda que são aplicáveis à ratificação as regras que regulam a competência para a revogação dos atos inválidos e a sua tempestividade (cfr. art.° 137.°, n.° 2 do CPA/91).
7. E no que toca aos efeitos da ratificação, decorre clara e expressamente do art.° 137.°, n.° 4 do CPA/91 que a ratificação produz efeitos ex tunc, retroagindo ao momento da prática do ato cuja invalidade visa sanar.
8. Neste exato sentido se pronunciam a doutrina administrativa e a jurisprudência dos tribunais superiores administrativos, conforme amplamente demonstrado nos fundamentos do presente recurso.
9. A deliberação do Conselho de Administração do Recorrente CHPL, de 08.04.2014, classifica-se como um ato de ratificação-sanação por força do qual foi sanado o vício de forma invocado pelo Recorrido na respetiva petição inicial, de preterição de votação por escrutínio secreto.
10. Nesta deliberação o Recorrente reparou a sua deliberação anterior, de 13.11.2012, repetindo, por escrutínio secreto, a votação ilegalmente feita por votação nominal, e confirmou a deliberação anterior, reiterando-a e reparando- a.
11. A decisão recorrida reconhece, de facto e de direito, tal deliberação com um ato administrativo de ratificação da mencionada deliberação anterior de 13.11.2012, reconhecendo ainda que foi praticada pelo órgão competente e que ocorreu dentro do prazo que o Recorrente dispunha para apresentar a sua contestação, não oferecendo, por conseguinte, qualquer controvérsia a questão da qualificação do ato enquanto ratificação-sanação, e bem assim, da competência e tempestividade do dito ato de ratificação-sanação.
12. Contudo, em ostensiva violação do citado n.° 4 do art.° 137.° do CPA/91, a decisão recorrida não reconheceu que essa ratificação-sanação retroagiu os seus efeitos à data da deliberação ratificada de 13.11.2012, fundamentando-se no facto de ser uma retroatividade desfavorável, nos termos do art.° 128.°, n.° 2 al. a) do CPA/91.
13. E, em consequência, decretou a prescrição do procedimento disciplinar instaurado ao Recorrido e ainda a caducidade do direito de aplicar a pena disciplinar ao Recorrido, factos que refere terem ocorrido nas datas de 12.07.2013 e 23.11.2012, respetivamente, ou seja, em data anterior à ratificação operada em 08.04.2014.
14. Tal interpretação ignora e viola o citado n.° 4 do art.° 137.° do CPA/91, que estabelece expressamente que, desde que não tenha existido alteração ao regime legal, como era o caso, a ratificação retroage os seus efeitos à data do ato ratificado, e faz errada aplicação do art.° 128.°, n.° 2 al. a) do CPA/91 ao caso subjudice.
15. No tocante aos efeitos, os atos de ratificação-sanação são análogos aos atos revogatórios inválidos (cfr. art.° 145.°, n.° 2 do CPA) pois a própria lei atribui-lhes (validamente) eficácia retroativa (cfr. art.° 137.°, n.° 4 do CPA/91), pelo que tais atos integram-se na previsão do art.° 128.n.° 1 al c) do CPA/91 ou, mesmo na previsão do art.° 145.°, n.° 2, por aplicação subsidiária do regime dos atos de revogação por invalidade aos atos de ratificação-sanificação, porque ambos visam eliminar uma ilegalidade.
16. Entendimento que vem amplamente sufragado pela doutrina e jurisprudência conforme demonstrado, supra, em sede dos fundamentos do presente recurso.
17. O disposto no art.° 128.°, n.° 2 al. a) do CPA/91, refere-se aos casos em que a lei não prevê o efeito retroativo, regulando, nessas condições, o circunstancialismo em que o autor do ato lhe pode atribuir eficácia retroativa, e vedando nesse âmbito a retroatividade desfavorável, pelo que esta norma foi indevidamente aplicada pela decisão recorrida ao caso dos autos.
18. Assim, contrariamente ao decidido, a deliberação de 08.04.2014 do Recorrente CHPL constitui um ato de ratificação-sanação que expurgou os vícios que afetavam a deliberação de 13.11.2012 (preterição de votação por escrutínio secreto) e retroagiu os seus efeitos ao momento constitutivo do ato primário, ou seja, a 13.11.2012.
19. Não poderia, pois, a douta sentença recorrida considerar que o vício de preterição de votação por escrutínio secreto só foi sanado em 08.04.2014, e daí retirar as consequências que retirou de que, nessa data, já havia decorrido o prazo prescricional do procedimento disciplinar e, bem assim, o prazo de caducidade do direito de aplicar a pena disciplinar ao autor, nos termos dos arts.º 6.°, n.° 6 e 54.°, n.° 4 do ED, respetivamente.
20. Ao fazê-lo violou o disposto no art.° 137.°, n.° 4 do CPA/91 e aplicou indevidamente o disposto no art.° 128.°, n.° 2 al. a) do CPA/91, motivo pelo qual deve ser integralmente reformada.


O Recorrido apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

a) A deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, de 13 de Novembro de 2012, viola o artigo 24.°, n.° 2, do CPA, porquanto não foi tomada por escrutínio secreto;
b) Vício que, por se situar no âmbito dos requisitos de legitimação e, designadamente, por estar inserido no âmbito de procedimento sancionatório constitui causa de nulidade do acto em apreço - cf. artigo 133.° do CPA;
c) O que torna tal acto irratificável, nos termos do artigo 137.°, n.° 1, do CPA; Sem embargo do exposto,
d) A deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, de 8 de Abril de 2014, que pretendeu ratificar a anterior, é ilegal;
e) Porque não podia ratificar acto praticado quando já estava prescrito o direito de punir e, por conseguinte, em violação do artigo 6.°, n.° 6 do ETEFP;
f) Acresce que as deliberações acima indicadas violam o disposto no artigo 18.°, n.° 1, alínea a) do ETEFP, porquanto a aplicação da pena de demissão, pelo facto de cessar a relação jurídica de emprego não pode ocorrer pela mera subsunção dos factos a alguma das alíneas do n.° 1, do artigo 18.°, devendo demonstrar-se que os mesmos inviabilizam a manutenção da relação jurídica de emprego público, o que, no caso em apreço, não ocorreu;
g) Pelo que, ao julgar que o acto de "ratificação" não podia operar retractivamente por ofender o disposto no artigo 6.°, n.° 6, do EDTFP, fez a sentença recorrida correcta aplicação da lei;
Termos em que, deve confirmar-se a sentença recorrida.

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Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Ministério Público não emitiu parecer.
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Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.


II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste tribunal de apelação consistem em determinar se existe erro de julgamento relativamente:

a) À prescrição do procedimento disciplinar;
b) À caducidade do direito de aplicar a pena.


III
A matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte:

A) O autor é enfermeiro, com vínculo de nomeação definitiva, tendo transitado, com a entrada em vigor do RCTFP, para o regime de contrato de trabalho em funções públicas, por tempo indeterminado.
B) Em 12.1.2012 o Conselho de Administração do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa deliberou instaurar procedimento disciplinar ao enfermeiro L…, aqui Autor, que correu termos sob o nº 2/SGRH/2012.
C) Em 24.5.2012 o Conselho de Administração do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa deliberou instaurar procedimento disciplinar ao enfermeiro L…, aqui Autor, que correu termos sob o nº 5/SGRH/2012.
D) Em 25.9.2012 foi o relatório final, referente aos dois processos disciplinares elaborado e recebido no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, de que se transcreve o seguinte:
Processo disciplinar nº 2/SGRH/2012
Infração I
Infração II
Conclusões
Em face do exposto e apreciado nos números antecedentes do presente relatório, enunciam-se as seguintes conclusões:
a) A pena de demissão proposta é aplicável ao arguido apesar deste possuir um vínculo de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o que decorre da aplicação do disposto no nº 1 do art 17º da Lei nº 59/2008, de 11.9, que determina que as disposições do RCTFP sobre a cessação do contrato não são aplicáveis aos trabalhadores que como o arguido se encontravam nomeados definitivamente e que nos termos do nº 4 do art 88º da Lei nº 12-A/2008, de 27.2, transitaram para a modalidade de contrato por tempo indeterminado. Assim a figura da demissão é e continua a ser a aplicável ao arguido.
b) Consideram-se provados os factos constantes dos arts da acusação deduzida ao arguido nas fls 229 a 234 dos presentes autos;
c) Infração I: designadamente que no dia 26.12.2011, pelas 15h, o arguido, numa reunião de passagem de turno declarou expressamente ao enfermeiro chefe C…, seu superior hierárquico e na presença de outros enfermeiros que se recusava a cumprir uma ordem de serviço por este instituída e transmitida na citada reunião; o arguido aceitou a existência dos pressupostos que constituem o dever de obediência que violou, a saber: a existência de uma ordem, dada por legítimo superior hierárquico, em objeto de serviço e na forma legal.
d) Esta ordem tinha por objetivo salvaguardar os bens dos doentes e delimitar a responsabilidade de eventuais situações de desaparecimento de bens em cada turno.
e) Todos os enfermeiros aceitaram e cumpriram a ordem à exceção do arguido.
f) O arguido disse: «que não ia acatar a ordem por razões éticas e clínicas e segundo o princípio ético da não maleficência tem o dever ético de não agravar o estado de saúde dos doentes ao distribuir tabaco». Apresentou como outro motivo para não acatar esta ordem «o facto de desaparecer constantemente o tabaco nos turnos da enfermeira C….
g) O arguido não transmitiu superiormente de forma comprovada as situações por ele descritas na análise anterior nem ao Conselho de Administração nem à Direção de Serviços de Enfermagem, nem adotou o procedimento descrito no art 5º do Estatuto Disciplinar, designadamente nos seus nº 1 e 2.
h) Neste contexto não consegue o arguido fazer vingar a tese de exclusão da responsabilidade disciplinar, arriscando-se mesmo a que seja legítimo colocar-se a seguinte questão: porque é que, perante factos tão graves como os que descreve no articulado da defesa só agora os vem denunciar? Como é que se conformou com as situações a que foi assistindo denunciando-as apenas ao enfermeiro C... que segundo ele nada fez?
i) No decurso da reunião referenciada na al c) antecedente o arguido, dirigindo-se ao enfermeiro chefe C…, chamou-lhe «autoritário, incompetente» e que exerce uma liderança «profundamente narcisista, profundamente incompetente» e que « a sua mulher era uma incompetente e que não sabia nada das coisas», que «tinha feito a especialidade com ele e que ela não tinha conseguido terminar todas as disciplinas e que se ele «era um merda, então ela também era porque ela ficou classificada em último lugar e esteve mesmo para chumbar».
j) O arguido não cumpre igualmente os procedimentos relativos ao controle biométrico, tendo inicialmente recusado fazê-lo perante o enfermeiro chefe C... a e presentemente procede a registos irregulares (após intervenção do enfermeiro diretor) que por isso são violadores das regras existentes e não permitem cumprir o objetivo legal imposto para controle da Assiduidade.
k) Infração II: No dia 26.12.2011, pelas 19h, o arguido quis expulsar V…, pai de um doente, que se encontrava no serviço «Residência Psiquiátrica III, pavilhão 30, a dar de jantar ao filho. O doente, P…, encontra-se internado no CHPL há cerca de 16 anos e o pai é o familiar, de doentes internados neste serviço, que com maior assiduidade se desloca à instituição para visitar o filho, fazendo-o cerca de três vezes por semana.
l) V… entrou no serviço já passava das 18h do dia 26.12.2011, tendo-lhe sido permitido o acesso às respetivas instalações pelos profissionais presentes nesse turno no serviço.
m) V… encontrava-se numa sala situada em frente da copa do serviço, juntamente com a mulher, U…, dando o jantar ao filho. A utilização das instalações foi «permitida» por profissionais do serviço, estando portanto os familiares do doente a agir em conformidade com essa autorização.
n) O arguido, sem ter dado qualquer explicação prévia e sem motivo justificativo válido, dirigindo-se ao pai do doente disse-lhe «o senhor ponha-se lá fora», ao que V… respondeu que só saía quando acabasse de dar o jantar ao filho porque tinha autorização do enfermeiro chefe para isso. O arguido insistiu de forma autoritária: «o sr ponha-se lá fora».
o) Vendo que o V… não mostrava intenção de sair, uma vez que voltava para junto do filho, o arguido agrediu-o, atirando-o ao chão, dando-lhe pontapés na barriga e deitando-lhe as mãos ao pescoço.
p) A mãe do doente que a tudo assistia gritava: «acudam-me que ele mata o meu marido». O doente, também presente mas alheado do que se passava continuava a comer.
q) Alertados pelos gritos, os profissionais que estavam no serviço (nesse turno encontravam-se três profissionais), as assistentes operacionais F… e Â…, acorreram à sala para ver o que se passava e tentaram separar o arguido do pai do doente chamando em simultâneo o enfermeiro M… para vir em seu auxílio.
r) Conseguiram separá-los, tendo o arguido sido imobilizado pelos outros três profissionais referidos na al anterior, possibilitando assim que V… se levantasse.
s) O arguido logrou soltar-se e ato contínuo empurrou V… que caiu desamparado para cima de um sofá azul, apertando-o no pescoço,
t) V… em gesto de defesa lançou as mãos à cara do arguido atingindo-o com os dedos nos olhos.
u) Os três profissionais presentes conseguiram separá-los de novo e levaram V…, que sangrava pelo nariz, para fora da sala, para o corredor, o arguido ficou na sala, tendo um dos profissionais presentes fechado a respetiva porta.
v) V… tira uma navalha do bolso e exibe-a ao arguido que entretanto tinha aberto a porta e aí se encontrava empunhando uma cadeira e dirigindo-se para o corredor gritou para uma das assistentes operacionais: «B… sai da frente que ele tem uma faca».
w) Os outros profissionais presentes conseguiram levar V… para a rua e o arguido que se manteve destro das instalações chamou a polícia.
x) Em consequência dos factos descritos V… foi assistido no serviço de urgência do CHLC, no dia 27.12.2011, às 10h59m, com causa admissão de agressão.
y) V… tem cerca de 70 anos de idade, enquanto o arguido tem apenas 53.
z) O arguido no dia 27.12.2011 declarou, na presença do enfermeiro chefe C… e do enfermeiro E…, «se as auxiliares não me segurassem tinha acabado ali com o homem».
Em face de todo o exposto conclui-se que a conduta do arguido constitui uma violação dos deveres de prossecução do interesse público, de zelo, de obediência, de lealdade e de correção previstos no art 3º, nº 3, 7, 8, 9, 10 do ED ... já que os factos de que ora é acusado e considerando as infrações cometidas o fizeram do modo descrito.
Militam contra o arguido as circunstâncias agravantes especiais das als f= e g) do nº 1 do art 24º do ED, dado que ao arguido foi aplicada pena em virtude de infração anterior e pela acumulação das infrações constantes do presente processo. O arguido não beneficia de qualquer circunstância atenuante.
Proposta
Em face do exposto, apreciado e concluído nos pontos antecedentes do presente relatório, apresentam-se as seguintes propostas:
1. que, em virtude da prova produzida nestes autos, face á atuação profissional adotada em concreto e no estrito cumprimento das normas legais que presidem a esta matéria, seja aplicada ao arguido, enfermeiro L…, em regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, no CHPL, a pena de demissão, nos termos da al a) do nº 1 do art 18º do ED, enquadrando-se a mesma na previsão do n~º 3 do art 9º do ED.
2. Na determinação da medida da pena tiveram-se em atenção os critérios constantes do art 20º do ED, considerando a especial qualidade do CHPL, instituição da qual se espera o melhor tratamento para os seus doentes e para os utentes em geral nos quais se incluem os respetivos familiares a quem assiste o direito de visitar os primeiros, sendo como tal inadmissível que estando sob a sua responsabilidade possam ser tratados com desrespeito e impensável que corram risco de ser agredidos, para mais por profissionais com o grau de diferenciação do arguido. Arguido que se encontra integrado há mais de 30 anos numa carreira com regime especial pelo grau de diferenciação das funções que lhe são próprias, sendo por isso particularmente exigível a responsabilidade dos profissionais que a integram, revelando todo o seu comportamento um grau de culpa que torna esse comportamento particularmente censurável.
Acresce o facto de se verificar no presente procedimento a acumulação de infrações e a reincidência por aplicação de pena disciplinar decorrente de infração anterior por deliberação do CA do CHPL de 21.4.2011, de que decorre militarem contra o arguido as circunstâncias agravantes especiais constantes das als f) e g) do nº 1 do art 24º do ED.
Processo Disciplinar nº 5/SGRH/2012
(...) não estamos perante infrações disciplinares por falta de um ou mais elementos constitutivos das mesmas, a saber: comportamento, culposo, ilícito, nos termos do nº 1 do art 3º do ED.
Em face do que a minha proposta é de arquivamento dos presentes autos nos termos do nº 1 do art 48º do ED.
E) Por ofício de 2.10.2012, recebido a 3.10.2012, foi solicitado ao Sindicato dos Enfermeiros para emitir parecer nos termos do art 54º, nº 4 do ED.
F) Ato impugnado: Por deliberação do Conselho de Administração do CHPL, proferida, por unanimidade, em 13.11.2012, foi o Autor punido com pena disciplinar de demissão.
G) A decisão punitiva foi-lhe notificada, por protocolo, em 19.11.2012.
H) A 10.12.2012 o Autor interpôs recurso tutelar, com efeito suspensivo, da decisão.
I) Ato impugnado: Por despacho de 3.12.2013, a Secretária Geral do Ministério da Saúde, com delegação de competências, ao abrigo do despacho nº 7561/2012, de 23.5, publicado no DR, 2ª série, nº 106, de 31.5.2012, indeferiu o recurso.
J) A 11.12.2013 o autor foi notificado da decisão.
K) A 24.3.2014 foi instaurada a presente ação administrativa especial.
L) As entidades demandadas foram citadas a 2.4.2014.
M) Ato impugnado: Em 8.4.2014 o Conselho de Administração do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, por unanimidade, deliberou repetir a votação da deliberação de 13.11.2012, efetuando agora a mesma por escrutínio secreto, ratificando-a.
N) Por ofício de 24.4.2014 foi levado ao conhecimento do autor a deliberação que antecede.


IV
Da prescrição do procedimento disciplinar

1. De acordo com o disposto no artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, «[o] procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final».

2. No caso dos autos o ato punitivo foi praticado antes de decorrido tal prazo. Sucede que foi praticado em violação do disposto no artigo 24.º/2 do Código do Procedimento Administrativo de 1991, pelo que veio a ser objeto de ratificação, a qual ocorreu já depois de completados os 18 meses a que se refere o acima transcrito artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas. Portanto, se atendermos à data do primeiro ato o recurso procederá, se relevarmos, para o efeito, a data do segundo o recurso terá de decair.

3. Importa, então, e antes de mais, ter presente os contornos da figura a que recorreu o segundo ato.

4. O Código do Procedimento Administrativo de 1991 (o aplicável ao caso dos autos), tal como sucede no atual, não nos fornece qualquer noção de ratificação, o que se compreende à luz do princípio de que o legislador não se deve imiscuir no campo da dogmática. Portanto, o código pressuporá a fórmula ratificação «no sentido específico que, pela mão de Marcello Caetano (...) parece ter-se vulgarizado na doutrina portuguesa» (Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 441). No mesmo sentido se pronuncia André Proença, in Comentários ao Código do Procedimento Administrativo, vol. II, 5.ª edição, p. 662, para quem «parece seguro intuir que, efetivamente, a falta de definição do que seja a ratificação, a reforma e a conversão, para efeitos do CPA, se deve, não a uma qualquer “distração” do legislador, mas sim à circunstância de esses conceitos se encontrarem enraizados na nossa doutrina e jurisprudência e se ter entendido, então, que não careceriam de definições legais adicionais».

5. Na falta dessa definição legal tem-se como correto o entendimento de que a ratificação é o ato através do qual é suprida a ilegalidade de um ato anteriormente praticado, ilegalidade essa relativa à respetiva competência, forma ou formalidades (neste sentido, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, Almedina, p. 664).

6. Trata-se, mais precisamente, da ratificação-sanação (assim designada para a distinguir da ratificação-confirmação, ato este integrativo). Assume a natureza de ato secundário, tem como finalidade, como se disse, eliminar uma ilegalidade com a natureza referida e tem como fundamento o princípio do aproveitamento dos atos administrativos (vd. André Proença, loc. cit., e José Tavares e Manuel Barros, Ratificação, Reforma e Conversão do Ato Administrativo: Uma Faculdade ou um Dever da Administração Pública?, in Estudos de Homenagem a Mário Esteves de Oliveira, tomo I, 2018, reimpressão, p. 162).

7. Temos, por outro lado, e como evidenciou o acórdão de 23.1.2007 do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 01128/05, na linha da jurisprudência já então existente, que «o acto ratificativo, como acto secundário que é, faz desaparecer da ordem jurídica o acto ratificado visto não poderem coexistir dois actos com o mesmo conteúdo». Deste modo, «[o] acto de ratificação-sanação substitui o acto primário na ordem jurídica» (acórdão de 15.4.1998 do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 039804). Isso mesmo se disse na sentença recorrida, na qual se pode ler o seguinte: «(…) a deliberação de ratificação-sanação, de 8.4.2014, substituiu a deliberação sanada, de 13.11.2012, na ordem jurídica e determinou a perda do objeto à data da instauração desta ação, o qual deixou de ser a deliberação de 13.11.2012 e passou a ser, a pedido do autor, a deliberação de 8.4.2014 (cfr Ac do TCA Norte, de 6.3.2015, processo nº 3085/09)».

8. Essa substituição é explicada por Pedro Machete (A ratificação-sanação: sanação apenas ou também substituição do acto ratificado?, Cadernos de Justiça Administrativa n.º 85, p. 46) nos seguintes termos: « (…) a substituição do acto ratificado pela ratificação é evidente nos casos em que o vício de que o primeiro padece é a incompetência relativa: a decisão do órgão competente substitui necessariamente a do órgão incompetente. Mas a situação não é diferente nos demais casos em que a ratificação é admissível: o acto primário viciado na sua forma é substituído por um outro de conteúdo idêntico e com a forma legal; ou a decisão não fundamentada é substituída por outra que contenha a fundamentação omitida. Na verdade, a eficácia da ratificação, enquanto acto secundário, é essencialmente apropriativa: trata-se de um acto que absorve e confirma o conteúdo de um acto anterior anulável, substituindo-o sem incorrer nas suas ilegalidades orgânico-formais. A situação volta a ser regulada num sentido idêntico ao da regulação objecto de um primeiro acto».

9. Vistos os traços essenciais da ratificação, é tempo de assinalar que o Código do Procedimento Administrativo de 1991 contém um artigo no âmbito do qual são regulados alguns aspetos da ratificação. Trata-se do artigo 137.º, o qual tem o seguinte teor:

«Artigo 137.º
Ratificação, reforma e conversão
1 —Não são susceptíveis de ratificação, reforma e conversão os actos nulos ou inexistentes.
2 —São aplicáveis à ratificação, reforma e conversão dos actos administrativos anuláveis as normas que regulam a competência para a revogação dos actos inválidos e a sua tempestividade.
3 —Em caso de incompetência, o poder de ratificar o acto cabe ao órgão competente para a sua prática.
4 —Desde que não tenha havido alteração ao regime legal, a ratificação, reforma e conversão retroagem os seus efeitos à data dos actos a que respeitam».


10. Da norma transcrita releva, no caso, e em especial, o disposto no seu n.º 4, nos termos do qual a ratificação retroage os seus efeitos à data do ato a que respeite (sabendo-se que não houve alteração ao regime legal). É por isso que o Recorrente entende não se verificar a prescrição do procedimento disciplinar, na medida em que o primeiro ato – o ilegal – foi praticado antes da data em que se verificaria a prescrição.

11. Vejamos o que nos diz o regime disciplinar. Mais precisamente, o então vigente, e aplicável, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, cujo artigo 6.º/6 estabelecia o seguinte:


«6 - O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final».


12. Como referido na sentença recorrida, esse prazo de 18 meses completou-se em 12.7.2013. A decisão final ilegal foi tomada em 13.11.2012 (e notificada em 19.11.2012) e a deliberação que a ratificou foi tomada em 8.4.2014. Será que o facto de esta deliberação retroagir os seus efeitos a 13.11.2012 impede a verificação da prescrição? Julga-se que não, tal como decidido pelo tribunal a quo, ainda que não na mesma linha de fundamentação.

13. Disse-se o seguinte na sentença recorrida:


«(…) em 8.4.2014, quando foi sanado o vício de preterição da votação por escrutínio secreto da pena disciplinar a aplicar ao autor, já tinha, de facto, corrido o prazo prescricional do art 6º, nº 6 do ED. Sem que venham invocados e estejam provados factos consubstanciadores de causa de suspensão do prazo prescricional.

Pois, pese embora tenha sido fixada eficácia retroativa ao ato, nos termos do art 137º, nº 4 do CPA, à data do ato ratificado (de 13.11.2012), só a partir de 8.4.2014 a deliberação que aplicou a demissão ao autor passou a estar conforme com o disposto no art 24º, nº 2 do CPA, sendo a retroatividade fixada desfavorável nesta parte (cfr art 128º, nº 2, al a) e 137º, nº 4 do CPA).

Pelo que, sem dúvida, a 8.4.2014, o procedimento disciplinar instaurado ao autor, nos termos do art 6º, nº 6 do ED, encontrava-se prescrito».


14. Julga-se que este não poderá ser o caminho. Desde logo, e como assinalou o Recorrente, porque não é convocável o regime do n.º 2 do artigo 128.º do Código do Procedimento Administrativo. É o seguinte o texto deste artigo:


«1 —Têm eficácia retroactiva os actos administrativos:

a) Que se limitem a interpretar actos anteriores;
b) Que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos, salvo tratando-se de actos renováveis;
c) A que a lei atribua efeito retroactivo.

2 —Fora dos casos abrangidos pelo número anterior, o autor do acto administrativo só pode atribuir-lhe eficácia retroactiva:

a) Quando a retroactividade seja favorável para os interessados e não lese direitos ou interesses legalmente protegidos de terceiros, desde que à data a que se pretende fazer remontar a eficácia do acto já existissem os pressupostos justificativos da retroactividade;
b) Quando estejam em causa decisões revogatórias de actos administrativos tomadas por órgãos ou agentes que os praticaram, na sequência de reclamação ou recurso hierárquico;
c) Quando a lei o permitir.»


15. Da norma transcrita resulta, sem dúvida, que o legislador – no n.º 2 -está a regular o regime da retroatividade conferida por iniciativa do autor do ato. Não a retroatividade que resulta de determinação legal, tratada no n.º 1. Aliás, essa evidente separação – retroatividade conferida pela lei versus retroatividade conferida pelo autor do ato - torna errado o uso, no n.º 2, da locução prepositiva fora dos casos abrangidos pelo número anterior.

16. De qualquer modo, o que importa sublinhar é o seguinte: quando é a própria lei a atribuir eficácia retroativa ao respetivo ato administrativo não cabe apurar, nomeadamente, se a mesma é favorável ou desfavorável para os interessados. A retroatividade impõe-se a qualquer uma das condições previstas no n.º 2 do referido artigo 128.º. Portanto, importa concluir que a deliberação de 8.4.2014 retroagiu os seus efeitos à data da deliberação ratificada, ou seja, a de 13.11.2012, por força do regime constante do artigo 137.º/4 do Código do Procedimento Administrativo de 1991.

17. Não obstante, considera-se que esse facto não impediu a prescrição do procedimento disciplinar.

18. Como anteriormente se viu, o artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas estabelece que «[o] procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final».

19. Assim sendo, teremos de ter presente que o facto que impede a prescrição é a notificação da decisão final. Ora, a decisão final passou a ser, unicamente, a deliberação de 8.4.2014, que substituiu no ordenamento jurídico a deliberação ratificada (cf. §§ 7 e 8 do presente acórdão). E a notificação desta – efetuada através de ofício de 24.4.2014, depois de se completarem os 18 meses a que se refere o artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas - não retroage os seus efeitos à notificação da deliberação ilegal e ratificada.

20. Assim sendo, tem-se por verificada a prescrição do procedimento disciplinar, ficando prejudicado o conhecimento da questão relativa à caducidade do direito de aplicar a pena. De resto, prescrito o procedimento disciplinar, tão pouco se constitui o direito de aplicar a pena.


V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida, com a fundamentação precedente.

Custas pelo Recorrente (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil).


Lisboa, 14 de novembro de 2024.

Luís Borges Freitas – relator
Maria Julieta França – 1.ª adjunta
Frederico de Frias Macedo Branco – 2.º adjunto