Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2739/23.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:MARCELO MENDONÇA
Descritores:INADMISSIBILIDADE DE DOCUMENTO JUNTO ÀS ALEGAÇÕES DE RECURSO
ARTIGOS 425.º E 651.º, N.º 1, DO CPC
INTEMPESTIVIDADE DE IMPUGNAÇÃO URGENTE
DECURSO DO PRAZO PREVISTO NO N.º 4 DO ARTIGO 37.º DA LEI DE ASILO OU PROTECÇÃO SUBSIDIÁRIA
Sumário:I - A junção de documentos às alegações de recurso é uma possibilidade de cariz excepcional, que depende da verificação das condições prescritas pelos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
II - Não se verificando tais requisitos legais, o documento não está em condições de ser admitido pelo tribunal de recurso, que deve ordenar o seu desentranhamento dos autos e a consequente devolução ao seu apresentante.
III - O incumprimento do prazo preconizado no n.º 4 do artigo 37.º da Lei de Asilo ou Protecção Subsidiária, implica a intempestividade da prática do acto processual de instauração da impugnação jurisdicional contra a decisão administrativa que considerou inadmissível um pedido de protecção internacional e determinou a transferência de um cidadão estrangeiro para outro Estado-Membro responsável pela análise do referido pedido de protecção internacional.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - Relatório.

L…, cidadão da Gâmbia, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa intentou acção urgente contra o então designado Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, ao qual sucedeu a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (cf. artigo 1.º do DL n.º 41/2023, de 02/06), com vista a impugnar a decisão de 04/04/2023 do Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional apresentado pelo ora Recorrente e determinou a sua transferência para Itália, por ser este o Estado-Membro responsável pela análise do referido pedido de protecção internacional, inconformado que se mostra com a decisão de 20/10/2023 do Tribunal a quo, que decidiu rejeitar liminarmente a petição inicial por decurso do prazo legal previsto para a instauração do competente meio processual, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula a seguinte conclusão (a única que expendeu):

«O pedido de proteção jurídica foi apresentado em tempo, bem como a ação, tendo em consideração a prova que se junta. Como a jurisprudência que considera em síntese o prazo de 5 dias para um estrangeiro, que pode não falar a nossa língua e se encontra muitas vezes numa situação de intenso stress, manifestamente insuficiente para elaborar uma defesa condigna.»

O Recorrido não contra-alegou.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.

***
II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que é a única conclusão de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir no caso vertente, resumidamente, as seguintes questões:
i) Da questão prévia sobre a admissibilidade do documento que o Recorrente somente junta em sede de alegações de recurso, matéria que não pode deixar de ser decidida à luz do disposto nos artigos 425.º e 651.º do CPC, “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA;
ii) E se a sentença recorrida, ao rejeitar liminarmente a petição inicial por decurso do prazo legal para a instauração da acção, fez uma correcta aplicação do prazo estipulado no n.º 4 do artigo 37.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06 (doravante, Lei do Asilo e Protecção Subsidiária).
***
III - Fundamentação de facto.
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
«1) Em 16.01.2023, o Requerente apresentou pedido de proteção internacional às autoridades portuguesas, no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, sito em Lisboa [cfr. documento n.º 2 junto com requerimento inicial];
2) Em 04.04.2023, foi proferida decisão pelo Diretor Nacional do SEF, com o seguinte teor:
(IMAGEM, ORIGINAL NOS AUTOS)

[cfr. documento n.º 1 junto com requerimento inicial];

3) Em 14.04.2023, o Requerente foi notificado do teor da decisão referida na alínea anterior, bem como de que, da decisão notificada cabia, querendo, recurso para os Tribunais Administrativos, a interpor no prazo de 5 dias, com efeito suspensivo, nos termos do artigo 37º n.º 4 da Lei n.º 27/08, de 30/06, na redação dada pela Lei n.º 26/14, de 05/05, com o seguinte teor:


(IMAGEM, ORIGINAL NOS AUTOS)


[cfr. documento n.º 3 junto com requerimento inicial];

4) Em 26.06.2023, o Requerente solicitou o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos e nomeação e pagamento da compensação de patrono [cfr. requerimento junto a fls 32 dos autos no SITAF];

5) Em 30.06.2023, o pedido mencionado no ponto anterior foi deferido [cfr. Requerimento junto a fls 32 dos autos no SITAF];

6) A presente ação foi apresentada em 16.08.2023 [cfr. fls. 1-3 dos autos no SITAF].»

- Por interessar à decisão do presente recurso jurisdicional, aditamos, ainda, a seguinte factualidade:

7) Em 16/08/2023, foi proferido nos autos o seguinte despacho:

Considerando que, através da presente ação, o requerente pretende impugnar a decisão do Diretor Nacional do SEF, datada de 04.04.2023, que ao abrigo do disposto no artigo 19.º-A, n.º 1, alínea a) e do n.º 2 do artigo 37.º da Lei n.º 27/08, de 30/06, (“Lei do Asilo”) considerou inadmissível o pedido de proteção internacional por si apresentado, determina-se, antes de mais:

- Por forma a aferir da tempestividade da presente ação, atento o disposto no artigo 37.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2008, de 30/06, notifique o requerente para, no prazo de 5 (cinco) dias juntar aos autos o documento comprovativo da data em que foi notificado da decisão ora impugnada, bem como o comprovativo da data em que requereu o benefício de apoio judiciário, uma vez que tais documentos não constam dos autos.” - (cf. página 27 da numeração dada pelo SITAF);

8) O ora Recorrente respondeu ao despacho supra, por requerimento de 18/08/2023, com o seguinte teor (por excerto): “…notificado para apresentar documentos em falta no processo. Vem suprir tal fato.

(…)

Por lapso, do qual se apresenta a V. Exa., desculpa, não se juntou com a PI, o ofício de nomeação de patrono, bem como a carta a deferir o pedido de proteção jurídica concedido ao requerente e aqui Autor o Senhor L….” – (cf. página 31 da numeração dada pelo SITAF);

9) Com o requerimento acima referido, o ora Recorrente juntou cópia, em formato/suporte fotográfico, do ofício do Instituto de Segurança Social, I.P., destinado a “L…”, do qual se extrai o seguinte teor: “Na sequência do requerimento de proteção jurídica formulado por V.ª Ex.ª em 26-06-2023…informa-se que o seu pedido foi DEFERIDO por decisão proferida em 30-06-2023 (…)” – (cf. página 32 da numeração dada pelo SITAF);

10) Com as alegações de recurso, o ora Recorrente juntou, em anexo, o seguinte documento (por excerto):

Pedido de Apoio Judiciário | LAMIN CAMARA
2 messages
___________________________________________________________________________________________________________________

A…<a…@cpr.pt> 18 April 2023 at 11:02
To: "A…" <A…@seg-social.pt>
Cc: Inês Carreirinho <i…@cpr.pt>, C…<c…@cpr.pt>, F…
<f…@cpr.pt>, M…<m…@cpr.pt>, T…<t…@cpr.pt>, M…
<m…@cpr.pt>

Cara Dra. A…,

Conforme indicação, e na impossibilidade de proceder ao envio por fax do pedido de apoio judiciário relativo ao requerente de protecção internacional L…(processo SEF-GAR 1…| …), e atento o facto de o prazo em causa ser muito curto, vimos por este meio remeter o referido pedido e solicitar a sua ajuda para a resolução da presente situação.

Agradecemos desde já a atenção dispensada e mantemo-nos, naturalmente, à sua disposição para qualquer esclarecimento tido por conveniente.

Cordialmente,
A…

A…

Departamento Jurídico
Conselho Português para os Refugiados (CPR)
(Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas)
Quinta do Pombeiro, Casa Senhorial Norte
Azinhaga do Pombeiro, s/n
1900-793 LISBOA – PORTUGAL (…)” - (cf. página 78 da numeração dada pelo SITAF).

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III.I - Motivação da matéria de facto supra aditada.
A nossa convicção quanto aos factos aditados (7 a 10 supra) assenta na prova documental indicada em cada um desses pontos, consultável no SITAF, tendo em conta o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo CPC, e dos artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA.
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IV - Fundamentação de Direito.
I. Em primeiro lugar, sindiquemos, pois, a questão prévia da junção pelo ora Recorrente do documento aludido no ponto 10.º do probatório, de acordo com as normas que disciplinam a admissibilidade de documentos juntamente com as alegações de recurso.
O artigo 425.º do CPC prescreve que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 651.º do CPC estipula que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Os comandos legais acabados de citar evidenciam que a junção de documentos com as alegações de recurso é uma possibilidade que se abre às partes de um modo excepcional e muito limitado, porque sujeita a condições restritivas.
Tal pendor restritivo prende-se, essencialmente, com a premissa de que “a apelação não visa o reexame, sem limites, da causa julgada em primeira instância, mas tão-somente “a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento” (TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos cit., p. 395)”, conforme anotação ao artigo 651.º do CPC, de José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, “in” “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, pág. 141.
Sobre a matéria em apreciação, convocamos o acórdão do STJ, de 30/04/2019, proferido no processo sob o n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, “in” www.dgsi.pt, que sumariou o seguinte:
I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.
II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.
III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.
IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.
No caso concreto, no que toca à superveniência exigida especificamente pelo artigo 425.º do CPC, na sua vertente objectiva, não se verifica tal critério, porquanto, o documento junto pelo ora Recorrente foi produzido em 18/04/2023 (cf. data inclusa no email levado ao ponto 10.º do probatório), ou seja, muito antes da data da decisão recorrida (20/10/2023).
No que concerne à superveniência subjectiva, que tem a ver com o conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior, o Recorrente, de modo factualmente concreto, nada explica nesse sentido, isto é, nada adianta sobre o que efectivamente poderia justificar esse atraso no conhecimento ou no acesso ao documento.
E, ainda que o Recorrente o tivesse feito, secunda-se aqui o entendimento derramado no supra citado acórdão, de que Quanto ao argumento da falta de acesso anterior ao documento, tal como sucede quanto ao desconhecimento anterior, não é qualquer situação deste tipo que surte o efeito previsto na norma do artigo 425.º do CPC.
Conforme adverte Rui Pinto, “[n]o tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1.º instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar – a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento [9].
O desconhecimento ou a falta de acesso anterior ao documento deve, em suma, assentar em razões atendíveis, não podendo ser imputável à falta de diligência dos sujeitos, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.
Ora bem, “in casu”, inexistindo qualquer razão atendível para a junção tardia do documento em causa, entendemos mesmo que só ao Recorrente é imputável a falta de diligência quanto à não apresentação em fase processual mais precoce do email atrás mencionado.
Nesta particular temática, a falta de cuidado que se endossa ao Recorrente advém, sobretudo, do facto do Tribunal a quo ter proferido o despacho-convite de 16/08/2023 (cf. ponto 7.º do probatório), no qual suscitou a questão da possível intempestividade da acção e permitiu que o ora Recorrente pudesse não só esclarecer o que bem entendesse sobre tal excepção, como foi o mesmo, ainda, convidado para apresentar o “comprovativo da data em que requereu o benefício de apoio judiciário”.
O Recorrente, nessa ocasião, respondeu ao predito despacho-convite com um requerimento autónomo, ao qual juntou os documentos que bem entendeu, inclusive, o documento que, segundo o seu entendimento, constituía a notificação do acto de deferimento do apoio judiciário, proferido pelos serviços do Instituto de Segurança Social, I.P., do qual se extraía claramente que o requerimento de protecção jurídica datava de 26/06/2023 (cf. pontos 8.º e 9.º do probatório).
Por conseguinte, no seguimento do referido despacho-convite do Tribunal a quo, o Recorrente deveria ter empreendido uma actuação mais zelosa e proactiva na busca dos documentos que poderiam, de modo cabal e realmente esclarecedor, contrariar a excepção de intempestividade que havia sido suscitada pela 1.ª instância.
Não o tendo feito no momento processual adequado por falta de diligência que só a si diz respeito, não podemos agora admitir a apresentação de tal documento, sob pena de se abrir de “par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes”, conforme o aludido no acórdão atrás identificado.
Analisemos agora o critério da necessidade do documento em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância, inscrito na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 651.º do CPC.
Os processualistas atrás citados propugnam, em anotação ao artigo 651.º do CPC, que “A apresentação de documentos na fase de recurso pode tornar-se necessária em virtude da decisão proferida na 1.ª instância, nomeadamente se esta se basear em factos de que o tribunal conheça oficiosamente, nos termos do art. 5-2 (não, evidentemente, em factos que hajam sido sujeitos a prova: ABRANTES GERALDES, Recursos cit., p. 286), em meio probatório produzido ao abrigo do princípio do inquisitório (art. 411), ou em solução jurídica com que razoavelmente as partes não contavam, com violação do art. 3-3 e assim se constituindo uma decisão-surpresa (…)” – (cf. a obra citada, pág. 141).
Pois bem, retornando ao caso em apreço, e tendo presente o disposto nas mencionadas normas legais e as anotações acima transcritas, nenhuma das situações supra elencadas se verifica, porquanto, a decisão recorrida não laborou em torno de factos instrumentais, concretizadores, complementares ou notórios, na acepção do artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) a c), do CPC, assim como não versa sobre meio de prova ou sobre solução jurídica que não tivesse sido, previamente, dada a conhecer ao ora Recorrente.
Aliás, como atrás já plasmámos, enfatiza-se que ao Recorrente foi dada a oportunidade pelo Tribunal a quo para se pronunciar sobre a excepção de intempestividade de apresentação do meio processual em juízo e para apresentar a prova documental que a tal excepção ainda poderia obstar, conforme resulta do despacho-convite de 16/08/2023;
Como se vê, ante a chance que foi dada pelo Tribunal a quo, à qual o ora Recorrente até respondeu e, inclusive, juntou a prova documental que bem entendeu, tem-se por razoável que o mesmo tinha que contar com a possibilidade de ser feito um julgamento positivo quanto à verificação da suscitada excepção de intempestividade da prática do acto processual, não constituindo a decisão recorrida, portanto, uma surpresa, nem uma violação ao artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Em abono da nossa posição é de chamar à colação o entendimento de António Santos Abrantes Geraldes, “in” “Recursos em Processo Civil”, Edição de Março de 2022, Almedina, pág. 286, que, em anotação ao artigo 651.º do CPC, entende o seguinte: “Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.” (destaques nossos).
Deste modo, tendo presente as condições de admissibilidade estipuladas nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, que não se mostram preenchidas no caso em apreço, o documento junto pelo Recorrente com as alegações de recurso (cf. ponto 10.º do probatório), que nem sequer constitui, de per si, o requerimento-tipo do Instituto de Segurança Social, I.P. com vista à concessão de apoio judiciário, não pode ser admitido nesta fase processual.
Em consequência, na parte decisória desta decisão, determinaremos o desentranhamento do documento e a sua devolução oportuna ao apresentante.
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II. É tempo de apreciar o cerne da decisão recorrida.
O n.º 4 do artigo 37.º da Lei do Asilo e Protecção Subsidiária, na versão aplicável no momento da prolação do acto administrativo dirigido ao ora Recorrente (04/04/2023), preceituava o seguinte: “A decisão proferida pelo diretor nacional do SEF é suscetível de impugnação jurisdicional perante os tribunais administrativos no prazo de cinco dias, com efeito suspensivo” (destaque nosso).
Sobre a concreta questão que nos importa perscrutar, a sentença recorrida enveredou pela seguinte fundamentação:
Compulsada a factualidade provada, verifica-se que o Requerente foi notificado da decisão do Diretor Nacional do SEF ora impugnada no dia 14 de abril de 2023 [cfr. ponto 3) da matéria de facto provada].
Mais se constata que o Requerente solicitou proteção jurídica, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento da compensação de patrono, em 26 de junho de 2023 [cfr. ponto 4) da matéria de facto provada].
Como é sabido, em virtude da revisão operada ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) em 2015, os prazos de impugnação de atos administrativos contam-se nos termos do disposto no artigo 279.º do Código Civil (cfr. artigo 58.º n.º 2 do CPTA).
Deste modo, os prazos de impugnação são prazos contínuos e de caducidade – e, com relevo para o caso em apreço, há que ter em conta que, por aplicação do disposto no artigo 279.º al. b) do Código Civil (“CC”), [n]a contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr.
Pelo que, tendo o Requerente sido notificado em 14 de abril de 2023, começando o prazo (de 5 dias) a correr no dia 15 de abril de 2023 (por aplicação do disposto no artigo 279.º al. b) do CC), o prazo para propositura da presente ação findava em 19 de abril de 2023.
De acordo com o disposto no artigo 33.º n.º 4 da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, que regula o regime de acesso ao direito e aos tribunais, caso seja pedido apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, deve a ação ser considerada instaurada “na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono”.
Ora, à data em que o Requerente solicitou apoio judiciário, já havia sido ultrapassado o prazo para a propositura da ação – veja-se o ponto 4) da matéria de facto provada, do qual resulta que o pedido foi efetuado, no dia 26 de junho de 2023.
Em suma, portanto, à data da formulação do pedido de proteção jurídica já havia decorrido o prazo previsto no artigo 37.º n.º 4 da Lei do Asilo para a propositura da presente ação.
Verifica-se, assim, que foi ultrapassado o prazo legal para instauração da ação, pelo que não pode a mesma ser admitida (a contrario do nº 1 do artigo 110º do CPTA ex vi artigo 37º, nº 5, da Lei nº 27/2008, de 30 de junho).
Ora bem, desde já adiantamos que a decisão do Tribunal a quo é para manter, por se enquadrar na melhor interpretação que se projecta para as normas legais em evidência.
Decorre do ponto 3.º do probatório fixado pela decisão de 1.ª instância que o ora Recorrente foi notificado em 14/04/2023 do despacho que considerou inadmissível o seu pedido de protecção internacional e determinou a sua transferência para Itália (facto não impugnado em sede da conclusão - única - de recurso).
Dimana dos pontos 4.º e 9.º do probatório supra que o requerimento do ora Recorrente, com vista ao benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos e nomeação e pagamento da compensação de patrono, deve ter-se por apresentado em 26/06/2023.
A relevância do requerimento de apoio judiciário e da data em que foi conhecidamente apresentado nos serviços de segurança social prende-se com o disposto no n.º 4 do artigo 33.º da Lei n.º 34/2004, de 29/07 (Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais), que estipula o seguinte: A acção considera-se proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono” (destaque nosso).
Pois bem, face à prova documental carreada para os autos até à prolação da decisão recorrida, incluindo a que foi apresentada na sequência do despacho-convite de 16/06/2023 pelo próprio Recorrente, e aplicando o estatuído no comando legal acabado de citar ao caso vertente, impõe-se concluir, tal como fez correctamente a decisão do Tribunal a quo, que a acção deve ter-se por proposta somente em 26/06/2023, por corresponder à data conhecida da apresentação do requerimento de apoio judiciário com pedido de nomeação de patrono.
Portanto, o prazo de 5 (cinco) dias para a competente impugnação jurisdicional do despacho notificado ao ora Recorrente em 14/04/2023, preconizado no n.º 4 do artigo 37.º da Lei do Asilo ou Protecção Subsidiária, há muito que se encontrava esgotado na data de 26/06/2023, prazo esse que havia findado em 19/04/2023, de acordo com a contagem acertadamente feita pela 1.ª instância e que a conclusão de recurso não colocou em crise.
Isto significa, também, que em confronto com a única prova documental conhecida nos autos até à prolação da decisão recorrida, incluindo aquela que o próprio Recorrente havia levado ao conhecimento do Tribunal a quo na sequência do despacho-convite, outra conclusão não se poderia ter chegado que não a da intempestividade da acção, tal como justamente entendeu a decisão recorrida.
Por fim, o Recorrente aduz ainda na conclusão de recurso que o prazo de cinco dias para a instauração da impugnação jurisdicional, cujo interessado “pode não falar a nossa língua e se encontra muitas vezes numa situação de intenso stress”, tem sido considerado “manifestamente insuficiente para elaborar uma defesa condigna”.
Acontece que os argumentos esgrimidos pelo Recorrente não passam, por um lado, de simples conjecturas, e, por outro lado, de meras alegações vagas e imprecisas, porquanto, no concreto, não acoplou qualquer factualidade devidamente densificada a partir da qual possamos inferir que, no preciso momento da notificação, não tivesse compreendido o sentido da decisão comunicada ou que o estado psíquico concretamente experienciado fosse de tal modo impeditivo das suas capacidades interpretativas ou de cognoscibilidade da realidade dos factos.
Na falta de tal concretização, a conclusão inclusa no recurso não tem aptidão suficiente para afastar o prazo legal de impugnação jurisdicional, nem se vê que, no caso concreto, tal prazo constitua uma irrazoável ou desmedida compressão da tutela jurisdicional efectiva do Recorrente e de acesso do Direito.
Assim sendo, cabe negar provimento ao presente recurso jurisdicional, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
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Sem custas, atenta a gratuitidade do processo, nos termos do artigo 84.º da Lei de Asilo ou Protecção Subsidiária.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - A junção de documentos às alegações de recurso é uma possibilidade de cariz excepcional, que depende da verificação das condições prescritas pelos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
II - Não se verificando tais requisitos legais, o documento não está em condições de ser admitido pelo tribunal de recurso, que deve ordenar o seu desentranhamento dos autos e a consequente devolução ao seu apresentante.
III - O incumprimento do prazo preconizado no n.º 4 do artigo 37.º da Lei de Asilo ou Protecção Subsidiária, implica a intempestividade da prática do acto processual de instauração da impugnação jurisdicional contra a decisão administrativa que considerou inadmissível um pedido de protecção internacional e determinou a transferência de um cidadão estrangeiro para outro Estado-Membro responsável pela análise do referido pedido de protecção internacional.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, no seguinte:
a) Em não admitir o documento junto pelo Recorrente somente na fase de recurso, determinando o seu desentranhamento dos autos e, após o trânsito, a devolução oportuna ao apresentante;
b) E em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Sem custas, por ser gratuito o processo.
Registe e notifique.
Lisboa, 19 de Março de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Carlos Araújo – (1.º Adjunto)
Joana Nora – (2.ª Adjunta)