Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P., devidamente identificado como requerido nos autos de outros processos cautelares, instaurados por G…, S.A., inconformado, veio interpor recurso jurisdicional do despacho de 23.2.2022 que decidiu antecipar a decisão a proferir na acção principal, e da sentença proferida em 1.7.2022 pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que, antecipando o juízo da causa da acção administrativa tramitada sob o nº 1811/21.9BELSB, julgou a presente acção procedente e, consequentemente, declarou nulo o despacho de 9.7.2021, emitido pelo Vogal do Conselho Directivo do IFAP.
Nas respectivas alegações, o Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:
«A. Vem o presente recurso jurisdicional interposto de despacho de 23/2/2022 e da sentença de 1/7/2022, através do qual pelo Tribunal a quo foi julgado a ação procedente e, consequentemente, declarado nulo o despacho de 9 de julho de 2021, emitido pelo Vogal do Conselho Diretivo do IFAP, I.P., no entendimento que que os fundamentos da decisão final (ofício refª 004837/2021 DAM-UAJE), constantes dos pontos 10, 17, 20 e 28, ofendem o caso julgado, mais concretamente a sentença proferida no âmbito do processo n.º 1007/19.0BELSB.
B. Através de despacho proferido em 23/2/2022 entendeu o Tribunal decidiu antecipar a decisão a proferir na ação principal, no entendimento que “… contrariamente ao alegado pelo IFAP, estão reunidos os pressupostos consagrados no artigo 121.º n.º 1 do CPTA quanto à possibilidade de antecipação do juízo sobre a causa principal por existir urgência na resolução definitiva do litígio, conforme acima explicitado.”
C. Como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido em 19/03/2015, no âmbito do Proc. 037/14, a antecipação da decisão da ação principal é um mecanismo uso excecional que só encontrará justificação em situações de urgência qualificada.
D. Salvo melhor opinião, na situação em apreço, não obstante existirem em jogo quantias avultadas, como salientado pelo Tribunal a quo, não há uma situação de urgência qualificada.
E. E não deveria ter sido determinada a decisão da causa principal no âmbito do presente processo cautelar, exatamente pelos argumentos invocados pelo Tribunal no despacho recorrido, pois: (1) caso fosse decretada a providência inexistiria qualquer tipo de situação de urgência qualificada, pois os efeitos do ato impugnado ficariam suspensos até decisão da ação principal, pelo que não se percebe qual a urgência na resolução definitiva do litígio; (2) a providência cautelar só pode ser decretada se se encontrarem preenchidos os requisitos previstos na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do Artº 120º do CPTA, nomeadamente o fumus boni iuris, o periculum in mora e a ponderação entre interesse privado e interesse público, razão pela qual, se estes requisitos cumulativos não se encontram preenchidos, também não se pode falar na existência de uma situação de urgência qualificada como entendido pelo Tribunal a quo.
F. Por sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar, antecipando a decisão da causa na ação principal, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, julgou a ação procedente e, consequentemente, declarou nulo o despacho de 9 de julho de 2021, emitido pelo Vogal do Conselho Diretivo do IFAP, I.P.
G. A este respeito, entende o IFAP, I.P. que, salvo melhor opinião, o facto de um beneficiário ser uma Organização de Produtores reconhecida (neste caso por sentença transitada em julgado), não é motivo suficiente para automaticamente lhe conferir o direito ao pagamento de uma ajuda.
H. Não pode o IFAP, I.P. pagar ajudas de forma diferente daquela que é permitida por lei, sob pena de violação do princípio da legalidade.
I. Ora, na situação em apreço, conforme resulta do teor da decisão final, pela Auditoria dos Serviços da Comissão Europeia (n.º FV/2018/007/PT) foi efetuada ao Estado Membro, ao abrigo do nº 1 do artigo 47º do Regulamento (UE) nº 1306/2013, de 17 de dezembro, na qual foram detetadas irregularidades (constam do relatório da DG AGRI), que vão para além do reconhecimento da ora recorrida enquanto Organização de Produtores.
J. Com efeito, não obstante a G… se encontrar reconhecida enquanto Organização de Produtores (como unicamente ficou determinado no âmbito do Proc. nº 1007/19.1BELSB), nos aspetos materiais para pagamento da ajuda, a ora recorrida não satisfazia objetivamente os requisitos para a concessão dessa mesma ajuda.
K. Ou seja, em análise nos presentes autos, está a questão se a ora recorrida, enquanto Organização de Produtores, cumpriu os critérios da concessão da ajuda - e a resposta terá sempre de ser negativa.
L. Relativamente às irregularidades detetadas, como também resulta do teor da decisão final, foi constatado pela Auditoria dos Serviços da Comissão Europeia que um dos membros da Organização de Produtores, a S… S.A., não cumpria o disposto na regulamentação em matéria de participação, uma vez que detinha 41,67% do capital/direitos de voto, contribuindo apenas com 37% do VPC total da Organização de Produtores (OP) em 2016.
M. Por outro lado, a Organização de Produtores é controlada por L… V…, através das diferentes filiais do grupo, pelo que não foi cumprido o disposto no artigo 31.º do Regulamento (UE) n.º 543/2011 e no artigo 17.º do Regulamento Delegado da Comissão (UE) 2017/891, sendo a sociedade L… V… S.A. quem controla a colocação dos produtos dos membros da Organização de Produtores no mercado, uma vez que é responsável por mais de 50% do volume de vendas
N. A ora recorrida poderia ter externalizando a sua atividade na sociedade L… V…, S.A., mas, em detrimento dessa possibilidade, optou por comercializar diretamente aquela entidade, dessa forma abdicando de qualquer controlo das vendas realizadas, incorrendo ainda no risco de transferir mais-valias da comercialização da respetiva produção para uma entidade externa.
O. Assim, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, o que está em apreço nos presentes autos, não é o reconhecimento da recorrida enquanto Organização de Produtores (fixada por sentença transitada em julgado), mas sim os incumprimentos praticados pela G... , e que nos termos do Artº 63º do Regulamento nº 1306/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013 (e suas posteriores alterações) e do Artº 12º do Decreto-Lei nº 195/12, de 23 de agosto (e sua posterior retificação), fundamentam a decisão final impugnada nos presentes autos, que determinou a reposição da quantia de €415.047,82, tida por indevidamente recebida no âmbito da Ajuda aos Fundos Operacionais das Organizações de Produtores de Frutas e Produtos Hortícolas, PO 2015 e 2016.
P. Face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência, deverá ser revogado o despacho de 23/2/2022 por inexistência de fundamento e/ou ser revogada a sentença recorrida, sendo substituída por outra onde se considere que, pelos fundamentos em que se apoia, a decisão final é válida e eficaz.».
O Recorrido contra-alegou e requereu a ampliação subsidiária do recurso, à cautela, formulando as seguintes conclusões:
«I. Ao contrário do que invoca a Recorrente, o Tribunal a quo motivou com assertividade a urgência na resolução definitiva dos presentes autos, e fê-lo, aliás, dos vários ângulos possíveis, na medida em que bem explicou que, fosse num cenário de procedência, fosse num cenário de improcedência, a decisão urgente dos presentes autos se impunha para acautelar a posição de qualquer das partes da presente lide.
II. Pois e como com acerto refere o Tribunal a quo, a improcedência da providência cautelar poderia no limite conduzir à insolvência da aqui Recorrida e, por contraponto, a procedência da providência cautelar poderia fazer sobressair um risco de, caso a final viesse a improceder a ação principal, impossibilidade ou inviabilidade da recuperação das verbas por parte do IFAP. Em face desta dupla ponderação, bem andou o Tribunal a quo ao reconhecer a urgência por uma decisão de mérito que traduzisse a solução final da controvérsia, não assistindo por isso qualquer razão ao Recorrente quando assinala que não existia no caso vertente qualquer situação de urgência.
III. Termos em que, segundo se crê, deverá o recurso improceder na parte em que pretende impugnar o despacho que determinou a antecipação da decisão da causa principal.
IV. Também o mérito da decisão recorrida não merece nesta instância recursiva qualquer reparo.
V. Com efeito, elegem os presentes autos uma verdade insofismável: o Recorrente, tendo visto naufragar a sua posição na aludida ação administrativa, veio depois disso produzir o ato administrativo de reembolso das ajudas e que se escrutina agora nos presentes autos.
VI. Numa palavra, o IFAP apenas pretende reconhecer a Autora formalmente como organização de produtores, mas, materialmente, pretende denegar-lhe tal estatuto e tornar a questionar os requisitos legais relacionados com o reconhecimento para efeitos de efetivação prática do seu estatuto.
VII. Tudo, em prejuízo manifesto de uma decisão já transitada em julgado…
VIII. … e, bem assim, em manifesto atropelo das regras legais especificamente aplicáveis às organizações de produtores que claramente não consentem o procedimento e método empreendido pelo Recorrente.
IX. A tese do IFAP que culminou com o ato impugnado embate frontalmente com a lei pois confunde claramente os planos de dois atos ligados entre si numa relação de precedência, mas dissociados procedimentalmente; vale dizer: o ato de reconhecimento enquanto organização de produtores e os atos dos pagamentos a uma organização de produtores validamente reconhecida enquanto tal, que no fundo concretizam materialmente os benefícios decorrentes desse estatuto. Pretende o IFAP, na prática, fundir ambas as realidades quando as mesmas são estrutural e procedimentalmente distintas! Pretende do mesmo passo o IFAP tornar irrelevante o ato de reconhecimento, que, na sua perspetiva, pode constantemente precarizar-se por via dos atos de pagamento (ou atos em que os mesmos venham a ser controlados, como sucedeu in casu), o que constitui uma lógica indefensável e que torna quase imprestável o ato de reconhecimento.
X. O ato de reconhecimento é um ato habilitante e que investe a Recorrida numa qualidade ou estatuto, que lhe permite concorrer a todos os direitos e deveres legalmente previstos para tal estatuto. Para o ato de reconhecimento, releva efetivamente o cumprimento das condições de reconhecimento. Porém, uma vez estabilizado juridicamente o ato de reconhecimento desse estatuto e enquanto este assim se mantiver na ordem jurídica, os atos respeitantes aos pagamentos não podem ser denegados ao titular do estatuto (nem revogados!) por razões exclusivamente atinentes às condições de reconhecimento do estatuto. Dito de outro modo, a menos que o ato de reconhecimento seja colocado em causa – maxime, por via de um procedimento de sanções administrativas próprio e que, como se verá adiante, seguirá um procedimento de advertência, suspensão ou revogação nos termos da legislação especificamente aplicável – não pode exigir-se a restituição de pagamentos quando as condições de reconhecimento se encontram estabilizadas (e asseguradas) pelo ato que atribui tal estatuto.
XI. É por isso claro que o IFAP labora num equívoco ao confundir os planos e pretende, a pretexto da restituição de pagamentos, proceder na verdade a uma verdadeira revogação do ato de atribuição do título atribuído à Recorrida. Tal conclusão alcança-se pelo fundamento confessadamente brandido pelo IFAP e que sem qualquer pejo assume que, afinal de contas, na génese da determinação de reembolso das ajudas pagas está um fundamento intrínseca e exclusivamente ligado às condições do ato de reconhecimento do estatuto.
XII. Como pertinentemente assevera a sentença recorrida, repousam os fundamentos brandidos pelo IFAP única e exclusivamente no pretenso incumprimento de regras relativas ao reconhecimento do estatuto legal de organização de produtores. Ora, se se mantém inteiramente válido na ordem jurídica o ato pelo qual foi atribuído o reconhecimento de organização de produtores da Recorrida, não pode agora o IFAP querer questionar tal ato de reconhecimento, completamente à margem das regras próprias e especificamente previstas para a revogação de tal tipo de atos.
XIII. Primeiro, porque existem regras especificas para conduzir um procedimento de revogação do título de organização de produtores e que no caso não se mostram cumpridas, assim se avistando logo uma total ausência de procedimento, rectius, uma preterição do procedimento legalmente exigido e que consubstancia uma nulidade de harmonia com o disposto no artigo 161.º/2, alínea l) do CPA. Na certeza porém, que, como mais adiante se desenvolverá, as regras procedimentais especificamente aplicáveis não ditam fatalmente um desfecho e a reposição perante toda e qualquer situação de incumprimento, antes se impondo sempre uma ponderação que o IFAP, aliás, nem faz.
XIV. Segundo, porque o efeito jurídico brotante do caso julgado da sentença prolatada no Processo n.º 1007/19.0BELSB proferida pelo TAC de Lisboa vinculou diretamente o IFAP e impede esta entidade administrativa – parte nesse processo – de poder praticar quaisquer atos que limitem ou afrontem o efeito do caso julgado. Ora, um desses efeitos foi precisamente o de firmar uma certeza quanto ao estatuto de organização de produtores e à validade jurídica do ato administrativo que reconheceu à Recorrida esse estatuto. Deste modo, se o IFAP vem, depois de transitada em julgado a aludida sentença, praticar um ato administrativo pelo qual pretende materialmente colocar em causa o estatuto de organização de produtores que a sentença reconheceu à aqui Recorrida – desta feita pela determinação de um reembolso de ajudas pagas à Recorrida no pressuposto de um não preenchimento dos requisitos alusivos a esse estatuto – não há como negar que com este (novo) ato administrativo a Recorrente estará a neutralizar os efeitos da sentença, obstando a que, com plenitude, se produzam os seus efeitos. E isto porque, insista-se, o que o IFAP faz com tal ato subsequente à sentença é replicar, com efeitos para o passado e operados numa lógica retroativa mas dissonante do efeito do caso julgado, uma realidade que apenas poderia emergir de uma ausência de tal estatuto de organização de produtores na esfera da Recorrida.
XV. Em suma e para concluir sobre o bem fundado da decisão recorrida se dirá o seguinte: se o efeito jurídico elementar resultante da sentença foi o de reconhecer à Recorrida um estatuto de organização de produtores, tal situação jurídica consolidou-se na ordem jurídica e cristalizou-se na esfera da Recorrente, com duas importantes conclusões: (i) o efeito do caso julgado torna nulo qualquer ato administrativo que viole os limites e fundamentos da decisão judicial vinculativa para o IFAP nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea i) do CPA; (ii) uma decisão administrativa como a praticada pelo IFAP, que parte do pressuposto que a Recorrida não reúne as condições legais para ser reconhecida como organização de produtores, incorre em manifesto erro sobre os pressupostos de facto e de direito, com a violação de lei e consequente anulabilidade que tal vício implica e pressupõe.
Sem conceder, sempre se dirá o seguinte:
XVI. Nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 636.º/1 do CPC, caso venha a proceder o recurso interposto pelo Recorrente – no que não se concede –, a Recorrida, desde já, a título subsidiário, nos termos do disposto no artigo 636.º/1 do CPC, vem requerer a ampliação do âmbito do recurso, solicitando a apreciação dos fundamentos da ação em que a Recorrente decaiu.
XVII. Notando a tal respeito que não se concorda com a conclusão que o Tribunal a quo fez sobre o (in)cumprimento do princípio da participação pois, em suma e em síntese, uma liminar análise aos documentos que suportam o procedimento administrativo que instruiu o ato impugnado é mais do que suficiente para se perceber que o IFAP nenhuma instrução fez no mesmo, que não fosse, unicamente, assumir como verdade insofismável as conclusões vertidas no Relatório da Comissão.
XVIII. Ora, não pode admitir-se como cumprido o princípio da participação quando existe um flagrante juízo pré-determinado e no qual a interessada manifestamente não participou, apenas sendo “chamada” ao procedimento para cumprir um “proforma”.
XIX. Por assim ser, a Recorrida mantém a sua convicção que foi violado o seu direito de participação procedimental, bem como o seu direito de defesa, porque não lhe foi concedido um direito que o CPA exige e impõe, para garantia de qualquer visado em procedimentos administrativos e que, em procedimentos desta natureza, assume uma redobrada tutela constitucional.
XX. Por outro lado, também a sentença merece censura na apreciação feita à violação do dever de fundamentação.
XXI. Sobre tal aspeto, o que se avista no projeto de decisão é um apelo a constantes juízos conclusivos, desprovidos de qualquer circunstanciação mínima e de atividade instrutória que suporte as acusações e juízo pré-determinado no procedimento…
XXII. Por fim, urge sublinhar a violação do princípio da proteção da confiança e da boa fé, pois existem múltiplas evidencias documentai[sic] de que as pretensas ilegalidades foram conhecidas e até validadas pela DRAP e pelo IFAP.
XXIII. Agiu a Recorrida sempre convicta da legalidade dos seus comportamentos, com uma chancela e concordância destas autoridades, pelo que não podem estas vir agora em manifesto abuso de direito, brandir uma ilegalidade que antes confirmaram como sendo um comportamento lícito!».
Notificado da ampliação do objecto do recurso, o Recorrente respondeu, formulando as seguintes conclusões:
«A. Invoca a sociedade G... , no seu requerimento para ampliação do objeto do processo que houve violação do princípio da participação, violação do dever de fundamentação, falta de norma habilitante, do procedimento legalmente aplicável e do decurso dos prazos para o exercício do poder sancionatório e há violação do princípio da boa fé e da proteção da confiança.
B. Ao contrário do entendimento da sociedade G... , não há violação do princípio da participação por falta de participação no procedimento prévio e que exclusivamente fundamentou/instruiu o ato impugnado — o Procedimento de Inquérito n° FV/20 1 8/007/PT, uma vez que a Auditoria dos Serviços da Comissão Europeia (n.º FV/2018/007/PT) foi efetuada ao Estado Membro, ao abrigo do nº 1 do artigo 47º do Regulamento (UE) n.º 1306/2013, de 17 de dezembro, não estando previsto o contraditório aos beneficiários diretos das ajudas para os quais foram detetados incumprimentos.
C. Em face das conclusões apuradas no referido inquérito, o Estado Membro atuou em conformidade, nomeadamente, deu conhecimento à OP visada das irregularidades detetadas, bem como a notificou da intenção de vir a determinar a reposição das verbas em causa, conforme ofício de Audiência Prévia elaborado nos termos dos Artºs 121º e 122º do CPA.
D. Ou seja, foi concedida à sociedade G... , a oportunidade para se pronunciar no âmbito do procedimento administrativo, ficando desta forma, plenamente assegurados todos os meios de defesa legalmente previstos ao efeito, improcedendo, assim, as alegações de que houve, no âmbito do procedimento administrativo, violação do princípio da participação.
E. Inexiste violação do dever de fundamentação, porquanto, na situação em apreço, a decisão impugnada nos autos, foi tomada no termo de um procedimento instaurado contra a sociedade G... , que foi tendo conhecimento do processo, tendo-lhe sido facultado o direito de audiência prévia, com colocação de todo o processo à sua disposição para consulta.
F. Por outro lado, constam no aludido ofício de Audiência Previa, ao qual a sociedade G... apresentou resposta, de forma clara e objetiva, todos os elementos de facto e de direito subjacentes à abertura do presente processo administrativo e à intenção então anunciada por este Instituto, no sentido de vir a determinar a reposição dos apoios tidos por indevidamente recebidos pela sociedade G... e inerentes juros regulamentares, e que lhe permitiram exercer, de forma plena, o seu direito de audiência prévia.
G. Nomeadamente, no ofício de audiência prévia, são claramente identificados:
- A ajuda em causa;
- Os anos dos programas Operacionais (2015 e 2016)
- O enquadramento de que resultou a abertura do processo, com referência à missão de Auditoria da Comissão Europeia, data da realização da mesma, incidência temporal e n.º do inerente Inquérito;
- Os fundamentos e factos envolvidos, com recurso a toda a base legal comunitária e nacional subjacente;
- A demonstração do cálculo dos valores a repor, tidos como indevidamente recebidos, e dos inerentes juros;
- O local e horário para disponibilização e consulta do processo;
- O prazo para, querendo, se pronunciar sobre a intenção de decisão anunciada;
- Bem como os meios possíveis para, querendo, proceder desde logo à liquidação do montante apurado.
H. Em todo o caso, dir-se-á ainda que, uma coisa é não se concordar com o teor da decisão final, outra é alegar que esta se encontra insuficientemente fundamentada, pois, resulta claro da análise do alegado pela requerente, quer no requerimento inicial quer na resposta ao ofício de audiência prévia, que esta compreendeu perfeitamente o fundamento da decisão final.
I. Inexiste também o vício invocado pela sociedade G... , de que o IFAP, I.P. não dispõe de norma que o habilite a ser competente para revogar materialmente o estatuto de organização de produtores.
J. A este respeito, importa primeiramente referir que a publicação da Portaria n.º 169/2015, de 4 de junho, determina que as OP com título atribuído anterior a esta Portaria deveriam submeter um pedido de reconhecimento ao abrigo da mesma, motivo pelo qual, em caso de incumprimento com os normativos aplicáveis a esse diploma legal, poderiam manter o reconhecimento se enquadráveis com o normativo transitório, previsto no artigo 25.º da citada Portaria, desde que cumprissem com as normas em vigor aplicáveis na regulamentação revogada.
K. Sucede porém, que os incumprimentos apurados para a sociedade G... não eram enquadráveis com os limites previstos na legislação que antecedeu a entrada em vigor da Portaria nº 169/2015, mantendo, por isso, o respetivo reconhecimento apenas até 31/12/2015, data a partir da qual deixaria de ser válido o respetivo reconhecimento, não sendo aplicável nestas situações o regime sancionatório previsto no articulado citado nas suas alegações.
L. Importa por outro lado salientar, que o IFAP, I.P., é o organismo pagador, acreditado pela U.E., dos apoios a disponibilizar, entre outros, pelo FEAGA, tendo por atribuições, nomeadamente e nos termos do Decreto-Lei nº 195/12, de 23 de agosto (e sua posterior retificação), garantir o funcionamento dos inerentes sistemas de apoio e a correta aplicação, a nível nacional, das regras comuns no âmbito da Política Agrícola Comum.
M. No que aos apoios em análise diz respeito, o facto do IFAP, I.P. ser o organismo competente pelo pagamento de ajudas (Decreto-Lei nº 195/12, de 23 de agosto) decorre expressamente do disposto no nº 3 do Artº 17º da Portaria nº 1325/2008, de 18 de novembro (e suas posteriores alterações).
N. Ora, na sua qualidade de organismo pagador e de quem procede à disponibilização dos apoios aos seus beneficiários, são competências do IFAP, I.P., nos termos conferidos, nomeadamente, pelo Artº 12º do citado Decreto-Lei:
- Decidir o reembolso e a aplicação de sanções resultantes do recebimento indevido de fundos nacionais ou comunitários dos quais seja a entidade pagadora, mesmo que estejam em causa apoios concedidos no âmbito de programas já encerrados ou em fase de encerramento;
- Promover os atos de natureza administrativa e judicial, necessários à cobrança dos valores indevidamente recebidos e à aplicação de sanções decorrentes das decisões tomadas e referidas no ponto anterior.
O. Improcedem, assim, as alegações da sociedade G... de que o IFAP, I.P. não dispõe de norma que o habilite a ser competente para revogar materialmente o estatuto de organização de produtores.
P. Entende a sociedade G... , que há muito que são confessadamente conhecidos pelo IFAP, I.P. e pela DRAP os pretensos incumprimentos em que se estriba o projeto de decisão e que “… a decisão do IFAP viola o caso julgado e a sua vinculação obrigatória para esta entidade visto que, pelo Processo n.° 1007/19.0BELSB, o Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa apreciou o ato praticado pela DRAP pelo qual se pretendeu revogar o titulo de organização de produtores atribuído a G... , tendo a referida sentença transitado em julgado”.
Q. Não lhe assiste razão, pois, resulta expressamente do teor da sentença judicial proferida no âmbito do Proc. nº 1007/19.1BELSB (Doc. nº 4 junto pela requerente - pág.s 44, 45 e 46 da sentença):
“(…) o despacho da Diretora Regional de 30 de março de 2016 – assim como o título de reconhecimento da Autora enquanto organização de produtores – não configura um ato constitutivo de direitos de conteúdo pecuniário.
Com efeito, mediante a emanação do despacho (…) e do reconhecimento atribuído à Autora, esta não fica investida em qualquer direito de conteúdo pecuniário.
Mesmo diante de tal ato, a Autora sempre carecia de uma decisão posterior, proferida pelo próprio IFAP, que lhe viesse a atribuir, reunidos todos os pressupostos, e para um certo período de tempo, o direito a perceber uma determinada quantia. (…)”.
R. Não pode assim a sociedade G... , invocar que a anunciada intenção de vir a ser determinada a reposição das quantias indevidamente recebidas nos Programas Operacionais (PO) em apreço, se trata de uma questão apenas relacionada com o reconhecimento enquanto OP.
S. A sociedade G... encontra-se efetivamente reconhecida enquanto OP, mas (apenas) por via da revogação do ato administrativo relativo à anulação do reconhecimento atribuído em 2016 (embora, nos seus aspetos materiais, a G... não satisfazia objetivamente os requisitos para a concessão de um período transitório ao abrigo da Portaria n.º 169/2015, ou seja, não cumpriam o disposto na Portaria n.º 1266/2008 de 18 de Novembro).
T. Não obstante, atentas as irregularidades detetadas e melhor descritas nos Artºs 6 a 12 da oposição apresentada pelo IFAP, I.P., verifica-se que o ato de reconhecimento como OP está, no caso, dissociado do ato de atribuição e pagamento dos apoios em questão, este sim de cariz pecuniário, estando este último condicionado à verificação futura das condições de elegibilidade das inerentes despesas.
U. Aliás, tal dissociação resulta inclusivamente da própria posição da sociedade G... no aludido processo judicial, expressamente referida na respetiva Sentença (Doc. nº 4 junto pela sociedade G... - pág. 42 da sentença):
V. Resulta claro, pois, que o reconhecimento da OP não será, per si, condição suficiente para determinar o acesso automático a este apoio, mormente quando fica evidenciado e provado que não foram cumpridos critérios materialmente relevantes para o reconhecimento ao abrigo da legislação vigente, pelo que, compete assim ao IFAP, I.P., enquanto organismo pagador acreditado pela U.E., pugnar pela correta atribuição dos apoios subsidiados e decidir, caso se conclua pelo recebimento indevido dos mesmos, a sua recuperação.
W. Atentas as irregularidades praticadas pela sociedade G... improcedem desta forma as alegações de que foram ultrapassados os prazos legais para o exercício do poder sancionatório e que existiu uma violação do caso julgado.
X. Inexiste por fim violação do princípio da boa-fé e do princípio da proteção da confiança, como entendido pela sociedade G... , porquanto, o ato de pagamento de um apoio está condicionado à verificação futura das condições de elegibilidade das inerentes despesas.
Y. Na situação em apreço, os factos elencados não permitem, de todo, demonstrar que a OP se encontrava regular para receber os apoios, nem justificar porque os mesmos se devem considerar elegíveis.
Z. Face ao exposto, verifica-se que ao contrário do invocado, a decisão de anular o ato administrativo inicialmente impugnado não é ilegal, pelo que deverá ser negado provimento aos pedidos de ampliação do objeto do presente recurso formulados pela sociedade G... .».
O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.
Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. artigo 36º, nº 1, alínea f) e nº 2 do CPTA), o processo vem à Conferência para julgamento.
As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consistem, no essencial, em saber se (i) o despacho de 9.7.2021 deve ser revogado por ter efectuado uma errada interpretação dos pressupostos exigidos no artigo 121º do CPTA, e se (ii) a sentença recorrida enferma de erros de julgamento que determinaram a procedência da acção.
A proceder o recurso interposto da sentença, importará ainda aferir se o tribunal recorrido errou ao julgar que o acto impugnado não padece dos vícios de violação do princípio da participação, violação do dever de fundamentação, de falta de norma habilitante, do procedimento legalmente aplicável e do decurso dos prazos para o exercício do poder sancionatório, e da violação do princípio da boa fé e da protecção da confiança.
(i) Da antecipação da decisão da causa principal
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Da decisão de antecipação da causa principal:
Nos termos consagrados pelo disposto no artigo 121.º n.º 1 do CPTA, quando, nos casos em que o processo principal já tenha sido intentado, se verificar que foram trazidos ao processo cautelar todos os elementos necessários para o efeito e a simplicidade do caso ou a urgência na sua resolução definitiva o justifique, o tribunal pode, ouvidas as partes pelo prazo de 10 dias, antecipar o juízo sobre a causa principal, proferindo decisão que constituirá a decisão final desse processo.
Conforme já se referiu anteriormente no processo (cfr. despacho de 10-01-2022), o artigo 121.º n.º 1 do CPTA foi alterado pela revisão ao CPTA de 2015, permitindo, hoje, uma maior flexibilização dos casos de decisão de antecipação da causa principal – cfr., neste sentido, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra: Almedina, 2017, 4.ª Ed., p. 990. No caso dos autos, verifica-se que:
i. O processo principal já foi intentado, correspondendo à ação administrativa que corre termos neste Tribunal sob o processo n.º 1811/21.9BELSB;
ii. Para conhecimento do mérito da ação principal (cujos fundamentos são em tudo semelhantes àqueles alegados para demonstrar o fumus boni iuris na presente ação cautelar), e como adiante melhor se explicitará, não existe a necessidade de produção de prova adicional;
iii. Além disso, face à previsível delonga na prolação da sentença no processo principal e aos avultados montantes em jogo em virtude da pretensão de reembolso dos montantes das ajudas recebidas pela Autora para execução dos Programas Operacionais de 2015 e 2016, consubstanciada pelo ato impugnado, existe inegável urgência e interesse na resolução definitiva do litígio: sendo a providência cautelar decretada, e suspendendo-se os efeitos do ato em crise, a Autora não procederá ao reembolso das quantias reclamadas pelo IFAP e, a final, caso a ação principal seja julgada improcedente, estas poderão demonstrar-se de (mais) difícil ou até impossível devolução; inversamente, sendo a providência cautelar julgada improcedente, e mantendo-se os efeitos do ato, a Autora ficará, desde já, vinculada à devolução dessas quantias, podendo, naturalmente, tais circunstâncias acarretar, para si, diversas consequências nefastas – no limite, como alega em sede de periculum in mora, a sua insolvência;
iv. Notificadas para se pronunciarem:
a. A Autora declarou concordar com a intenção de antecipação do juízo sobre a causa principal; e,
b. O IFAP manifestou a sua oposição relativamente a tal questão, argumentando que os pressupostos do artigo 121.º n.º 1 do CPTA devem interpretar-se de forma exigente, bem como por parecer haver uma contradição entre as circunstâncias de ser previsível a delonga na prolação da sentença no processo principal e de não haver necessidade de produção de prova adicional para conhecimento do mérito da ação principal.
No entanto, contrariamente ao alegado pelo IFAP, estão reunidos os pressupostos consagrados no artigo 121.º n.º 1 do CPTA quanto à possibilidade de antecipação do juízo sobre a causa principal por existir urgência na resolução definitiva do litígio, conforme acima explicitado.
Para além disso, não se vislumbra a contradição apontada pelo IFAP, uma vez que a previsível delonga na prolação da sentença no processo principal deriva da circunstância de esta se tratar de uma ação administrativa, de natureza não urgente, e que o signatário é titular, à presente data, de um total de 179 ações no estado de ativo ou reaberto para nova decisão intentadas em data anterior à referida ação.
Em face do exposto, ao abrigo do preceituado no artigo 121.º n.º 1 do CPTA, decide-se antecipar o juízo sobre a causa principal, proferindo-se decisão que (também) constituirá a decisão final no processo n.º 1811/21.9BELSB – sendo que, tal como referido pelo Ac. do TCA Sul, de 2603-2009, proferido no processo n.º 02088/06, disponível em www.dgsi.pt, «1. Da convolação do processo cautelar em processo principal com antecipação da decisão de mérito do litígio, ao abrigo do artº 121º CPTA, emergem duas consequências:
(i) o processo permanece sob o regime da tramitação urgente, em consonância com a situação substantiva de urgência expressa no nº 1 do cit. artº 121º CPTA; (ii) o objecto da causa principal que se impõe conhecer é aquele que decorre do primitivo articulado inicial cautelar que, por convolação do meio adjectivo, assume a natureza de petição inicial do meio de tutela final urgente.»
Notifique.».
Defende o Recorrente que a antecipação da decisão da causa principal é um mecanismo excepcional que só se justifica em situações de urgência qualificada, o que não se verifica no litígio dos presentes autos, porquanto apesar de estarem em jogo quantias elevadas, com o decretamento da providência, os efeitos do acto seriam suspensos até à decisão da acção principal, e se esta fosse indeferida seria por não estarem preenchidos os requisitos enunciados no artigo 120º do CPTA, pelo que, em qualquer dos casos, não se poderia falar numa situação de urgência qualificada, suportando o seu entendimento no decidido pelo STA no acórdão de 19.3.2015, proferido no processo nº 037/14.
Do sumário deste acórdão extrai-se a propósito, o seguinte:
«I - O operar aplicação do mecanismo previsto no art. 121.º do CPTA está sujeito à verificação de dois requisitos fundamentais: «primo», um requisito que manda atender à natureza das questões colocadas e à gravidade dos interesses envolvidos de modo a poder-se concluir que a situação não se compadece com a adoção de uma simples providência cautelar e que antes exige ou reclama uma “manifesta urgência na resolução definitiva do caso”; «secundo», um requisito que impõe que após contraditório, com a audição das partes e posições pelas mesmas manifestadas, o tribunal se sinta em condições de decidir a questão de fundo por dispor de “todos os elementos necessários para o efeito”.
II - Tal juízo impõe uma interpretação e aplicação rigorosa, exigindo-se um especial cuidado e prudência no lançar mão do mecanismo previsto no referido normativo, dado se tratar de meio de uso excecional que só encontrará justificação em situações de urgência qualificada.
Está em causa o disposto no nº 1 do artigo 121º na sua redacção inicial “[q]uando a manifesta urgência na resolução definitiva do caso, atendendo à natureza das questões e à gravidade dos interesses envolvidos, permita concluir que a situação não se compadece com a adopção de uma simples providência cautelar e tenham sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito, o tribunal pode, ouvidas as partes pelo prazo de 10 dias, antecipar o juízo sobre a causa principal.”
A versão do mesmo artigo, dada pelo Decreto-Lei nº 241-G/2015, de 2 de Outubro – “1 -Quando, existindo processo principal já intentado, se verifique que foram trazidos ao processo cautelar todos os elementos necessários para o efeito e a simplicidade do caso ou a urgência na sua resolução definitiva o justifique, o tribunal pode, ouvidas as partes pelo prazo de 10 dias, antecipar o juízo sobre a causa principal, proferindo decisão que constituirá a decisão final desse processo.” -, acrescenta àquela a exigência de a acção principal já ter sido instaurada, altera a perspectiva em que o caso em apreciação deve ser atendido, substituindo a respectiva “gravidade” pela sua “simplicidade”, mas mantêm ainda que em alternativa a esta [simplicidade], que a antecipação seja justificada pela urgência da sua resolução definitiva.
Donde, permitindo o mecanismo previsto na actual redacção do artigo 121º a antecipação da decisão da causa principal por razões de agilização processual quando, instaurada a acção principal, o processo cautelar contenha todos os elementos necessários para o efeito e o caso a decidir seja simples, se não for esta a situação em apreciação, o juiz só pode decidir da antecipação se a urgência na resolução definitiva do caso o justificar.
Sobre esta exigência, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, Almedina, 2017, 4.ª Ed., p. 990 e 991, o seguinte:
«No que diz respeito à referência que no preceito é feita à urgência na resolução definitiva do caso, a necessidade da antecipação do juízo sobre o mérito da causa há-de resultar, em muitos casos, da circunstância de, no caso concreto, não se preencherem os requisitos de que, nos termos do artigo 120.º, depende a concessão da tutela cautelar, sendo, a nosso ver, de entender que existe uma situação que não se compadece com a adoção de uma simples providência cautelar quando, embora se preencham os requisitos do n.º 1 do artigo 120.º, a ponderação dos interesses envolvidos conduza, à luz do n.º 2 do mesmo artigo, à conclusão de que a tutela cautelar deve ser recusada porque a adoção de uma providência cautelar teria custos desproporcionados.
Ora, se, em situações deste tipo, forem graves os interesses envolvidos - por não haver outro caminho do que provocar custos desproporcionados com a adoção da providência ou causar graves danos ao requerente com a recusa da mesma -, faz sentido que, se isso for possível, se procure evitar a produção de quaisquer danos através da antecipação da decisão do processo principal.».
No mesmo sentido já decidiu este Tribunal no acórdão de 15.12.2022, proc. 1355/21.9BELSB, consultável in www.dgsi.pt, de cujo sumário se extrai:
«V. Ao invés, se se convencer da complexidade da questão de fundo, para poder avançar com este mecanismo de antecipação, será necessário que se verifique o segundo requisito substantivo, que faz apelo a uma particular urgência na resolução definitiva do caso.
VI. Esta particular urgência, que não é uma qualquer urgência, resulta do elemento literal deste n.º 1 do art. 121.º, do CPTA, ao referir-se a uma «urgência na sua resolução definitiva» que «o justifique».
VII. Ou seja, não basta o interesse em agir cautelarmente, que motiva seja intentado e admitido o requerimento inicial para decretamento de uma providência cautelar, ao abrigo do art. 112.º do CPTA, e que se evidencia na necessidade de recorrer a juízo ao abrigo de um processo cautelar, e nem se basta com a verificação do periculum in mora previsto no art. 120.º do CPTA, enquanto requisito necessário ao decretamento da providência cautelar requerida.
VIII. A urgência na resolução definitiva da causa prevista no art. 121.º do CPTA, exige que se esteja perante uma situação que a possa justificar.
IX. Esta urgência é, nestes termos, qualificada, porque mais exigente, pois ultrapassa o parâmetro de urgência do processo cautelar, no seio do qual este mecanismo será acionado.
X. A necessidade de uma decisão de mérito urgente que possa justificar o recurso ao mecanismo previsto no art. 121.º do CPTA, resultará de um juízo de insuficiência da tutela cautelar, por esta se revelar intrinsecamente desadequada à composição, ainda que provisória, do litígio, pois que a resolução deste, sendo urgente, acresce não se poder alcançar por outra via que não seja através de uma decisão de mérito.
XI. É esta urgência de uma decisão de mérito, e afastada que esteja a aplicação da intimação prevista no art. 109.º do CPTA, que pode justificar a antecipação do juízo da causa principal ao abrigo do art. 121.º do CPTA.».
Voltando ao caso em apreciação, o juiz a quo, considerando verificados os requisitos processuais – a acção principal foi intentada e o processo cautelar contém os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa principal, por não existir necessidade de produção de prova adicional [testemunhal e declarações de parte, requeridas] –, no plano substantivo, suportou a decisão de antecipar o juízo da causa principal não na simplicidade do caso - o que se compreende atendendo às várias ilegalidades que a Requerente/recorrida imputou ao acto suspendendo e ao correspondente procedimento administrativo, para dar por verificado o requisito do fumus boni iuris e que, tal como resulta da fundamentação do despacho recorrido, são em tudo semelhantes aos alegados na acção principal -, mas sim na existência de inegável urgência e interesse na resolução definitiva do litígio.
O Recorrente apenas imputa erro de julgamento a este segmento do despacho recorrido, por entender que não se verifica a exigida urgência qualificada em decidir o caso em termos definitivos.
E assiste-lhe razão, porquanto o juiz a quo na argumentação expendida não logrou demonstrar que se encontra justificada a antecipação da decisão da causa principal.
Com efeito, a indicada previsível delonga na prolação da sentença no processo principal não releva para o efeito pretendido pois nela radica a necessidade da própria tutela cautelar. A saber, o decretamento da providência requerida - de suspensão de eficácia do acto administrativo do Recorrente que determinou a reposição voluntária pela Recorrida das Ajudas que recebeu indevidamente para execução dos Programas Operacionais das Organizações de Produtores de Frutas e Produtos Hortícolas, de 2015 e 2016, no montante de €463 434,99, incluindo juros no valor de €48 387,17 -, visa precisamente assegurar a utilidade da decisão de procedência a proferir na acção impugnatória, instaurada e tramitada no tribunal recorrido sob o nº 1811/21.9BELSB [v. o nº 1 do artigo 112º do CPTA].
Quanto aos avultados montantes em jogo só poderiam ser relevantes para efeitos de aplicação do disposto no artigo 121º se, verificados os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, a providência requerida não fosse decretada por os danos que resultariam da sua concessão se mostrarem superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa e, ainda assim, a gravidade dos prejuízos decorrentes da não suspensão do acto, susceptível de, como vem alegado pela Recorrida, com forte probabilidade determinar a respectiva insolvência antes de ser proferida sentença na acção principal, pudesse justificar a sua antecipação no processo cautelar.
Do despacho recorrido não resulta qualquer análise ou juízo de prognose nesse sentido, limitando-se a conjecturar possíveis vantagens para as partes na antecipação da causa principal.
Mais, se a providência fosse julgada improcedente por não preenchimento do requisito do periculum in mora, significaria que a Recorrida não teria logrado provar que a reposição dos avultados montantes em jogo poderiam causar a sua insolvência e, consequentemente, inexistiria fundamento para a afirmada inegável urgência na resolução definitiva do litígio.
Face ao exposto, enfermando do erro do julgamento que o Recorrente lhe imputa, o despacho recorrido não pode manter-se na ordem jurídica, devendo ser revogado.
O que prejudica a apreciação do recurso da sentença que, na sequência da revogação do despacho revogado, ficará sem efeito, bem como da ampliação do objecto do recurso aos vícios julgados improcedentes naquela, requerida a título subsidiário.
Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes da Secção Administrativa Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso do despacho que decidiu antecipar o juízo da acção principal, ficando sem efeito o processado posterior, mormente a sentença que decidiu definitivamente o litígio, e, em consequência, ordenar a baixa dos autos ao TAC de Lisboa para que o processo cautelar prossiga os seus termos, se a tal nada mais obstar.
Custas pela Recorrida.
Registe e Notifique.
Lisboa, 9 de Novembro de 2023.
(Lina Costa – relatora)
(Catarina Vasconcelos)
(Ricardo Ferreira Leite) |