Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:51/25.2BEFUN
Secção:CT
Data do Acordão:06/26/2025
Relator:ISABEL VAZ FERNANDES
Descritores:INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA.
Sumário:A falta de cumprimento do princípio do contraditório, no que se refere à pronúncia sobre matéria de excepção oficiosamente decidida pelo Tribunal a quo consubstancia nulidade processual.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul
I – RELATÓRIO

A M.... SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA, melhor identificada nos autos, veio recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, em 04 de março de 2025, que julgou verificada a excepção de litispendência e, em consequência, indeferiu liminarmente a reclamação por si apresentada referente a decisão de indeferimento da Senhora Diretora da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da RAM, proferida em 01 de outubro de 2024, reiterando os pedidos de dispensa de prestação de garantia previamente apresentados

A Recorrente, nas suas alegações de recurso, formulou as seguintes conclusões:
«A) A decisão recorrida configura uma decisão-surpresa, já que o Douto Tribunal a quo julgou verificada a exceção dilatória de litispendência, não invocada nos presentes autos, sem antes auscultar as partes e o Digno Magistrado do Ministério Público, verificando-se uma patente violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT;

B) Contrariamente ao que decidiu o Douto Tribunal a quo, não há identidade de pedido entre os presentes autos e o processo judicial n.º 374/24.8BEFUN, sendo diversos os atos administrativos que constituem o objeto imediato de cada uma destas ações e, bem assim, os requerimentos na sua génese;

C) Também não há identidade de causas de pedir porquanto são diversas as realidades de facto em que se alicerçam os pedidos apresentados em cada uma das duas ações judiciais: enquanto no processo judicial n.º 374/24.8BEFUN a Recorrente reclamou do indeferimento dos pedidos de dispensa de prestação de garantia, nos presentes autos a Recorrente reagiu de uma decisão que desatendeu em absoluto ao concreto conteúdo dos requerimentos apresentados a 12 de setembro de 2024, os quais visaram acautelar a hipótese de (i) a reclamação judicial n.º 374/24.8BEFUN ser indeferida e (ii) em momento subsequente, a Administração Tributária, aplicando jurisprudência (residual) nesse sentido, entender serem de indeferir os pedidos de dispensa de prestação de garantia originariamente apresentados com fundamento na sua pretensa extemporaneidade;

D) Assim, a factualidade subjacente a ambos os processos é totalmente distinta, sendo certo que a Recorrente pediu expressamente à Administração Tributária que se abstivesse de decidir o pedido subjacente aos presentes autos enquanto estivesse pendente a reclamação judicial n.º 374/24.8BEFUN;

E) A interpretação perfilhada pelo Douto Tribunal a quo, no sentido da inimpugnabilidade da decisão administrativa objeto dos presentes autos (proferida a 3 de outubro de 2024) é materialmente inconstitucional por preterição do princípio da tutela jurisdicional efetiva, plasmado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP;

F) Caso se entendesse existir uma relação de prejudicialidade entre os presentes autos e o processo judicial n.º 374/24.8BEFUN, o Douto Tribunal a quo deveria ter-se socorrido do mecanismo da suspensão da instância, previsto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, não podendo julgá-la extinta por não se verificarem os necessários pressupostos legais;

G) Atenta a manifesta desproporção entre a taxa de justiça potencialmente devida e a complexidade da presente causa (evidenciada desde logo pelo thema decidendum – verificação de exceção dilatória obstativa do conhecimento do mérito da causa – e pela extensão do presente articulado), devem as partes ser dispensadas do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, parte final, do RCP.

Nestes termos e nos demais de Direito que esse Douto Tribunal ad quem suprirá, requer-se que o presente recurso seja julgado totalmente procedente, revogando-se, por enfermar de erro de julgamento, a sentença recorrida nos termos e com os fundamentos supra expostos, tudo com as demais consequências legais.

Requer-se ainda a esse Douto Tribunal ad quem, na exata medida da procedência do presente recurso, que:

a) Condene a Fazenda Pública no pagamento das custas de parte, nos termos do artigo 26.º do RCP, tudo com as demais consequências legais; e

b) Dispense as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, parte final, do RCP, tudo com as demais consequências legais.»


*
A Recorrida, Fazenda Pública, apresentou contra-alegações nos seguintes termos:
«De tudo o quanto ficou exposto, terão de improceder na sua totalidade as conclusões da Recorrente, devendo, antes, tirar-se as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida a 04/03/2025, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (TAFF), que julgou verificada a exceção dilatória de litispendência e, em consequência, indeferiu liminarmente a reclamação, por considerar que “a presente acção configura uma repetição da acção que corre termos neste Tribunal sob o n.º 374/24.8BEFUN, pelo que se encontra verificada a excepção de litispendência.”
B. A Reclamante/Recorrente interpôs recurso da decisão do Tribunal a quo, alegando erro de julgamento ao decidir pela verificação da exceção dilatória e violação do princípio do contraditório.
C. A FP foi notificada da presente reclamação e do recurso, tendo apresentado a sua resposta a 13/05/2025, na qual se defendeu por exceção (litispendência) e por impugnação, pugnando pela legalidade do ato reclamado, por estar em consonância com o Direito da União Europeia, a que Portugal se encontra vinculado por força do primado, devendo a recuperação dos auxílios de estado ser imediata e efetiva, o que impede qualquer diferimento ou suspensão.
D. A sentença recorrida não merece qualquer reparo e deverá ser negado o provimento ao recurso
E. Segundo o artigo 3.º, n.º 3 do CPC “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”
F. Ou seja, quando a audiência das partes se revele inútil e somente protelatória do processo, colocando em causa os princípios da economia e celeridade processual, da autorresponsabilidade das partes, pode o Tribunal não convidar as partes para discutir a questão
G. In casu, é a própria Reclamante/Recorrente, que refere, na sua PI, “reiterando os pedidos de dispensa da prestação de garantia previamente apresentados”
H. E que, “apresentou a reclamação judicial da decisão de indeferimento dos pedidos de dispensa de prestação de garantia, a qual corre atualmente termos junto desse Douto Tribunal sob o n.º 374/24.8BEFUN (…)”
I. Em claro conhecimento de que os pedidos apresentados foram no âmbito dos mesmos PEFs, com a mesma fundamentação, com o mesmo pedido…
J. Tendo a Recorrente, tido oportunidade para demonstrar que assim não o era, ao longo da sua PI, o que não logrou fazer
K. Assim, sem qualquer dúvida, o TAFF considerou ser uma repetição da ação n.º 374/24.8BEFUN, encontrando-se verificada a exceção de litispendência que configura uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 577.º, alínea i) e 578.º do CPC, que obsta ao conhecimento de mérito e dá lugar à absolvição da instância, cfr. o artigo 576.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea e) do CPC
L. Sendo manifestamente desnecessário o cumprimento do princípio do contraditório.
M. Quanto à alegada verificação da exceção dilatória de litispendência, o artigo 580.º, n.º 1 do CPC, pressupõe a repetição de uma causa e visa evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (n.º 2)
N. Só há lugar à repetição da causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (tríplice verificação cumulativa dos requisitos enunciados no artigo 581.º do CPC)
O. No caso concreto, a identidade das partes/sujeitos é a mesma que no processo de reclamação do órgão de execução fiscal n.º 374/24.8BEFUN, que corre termos no TAFF
P. O pedido pretendido pelo autor, corresponde, ao efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação deduzida em juízo
Q. Ou seja, em ambas as reclamações é peticionada a anulação da decisão da Administração Tributária que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia nos mesmos processos de execução fiscal.
R. Tanto numa ação, como noutra, os fundamentos são os idênticos e a pretensão a mesma: suspensão dos PEFs
S. Verificada a idoneidade das partes, do pedido e da causa de pedir, só podemos concluir que, o objeto da presente reclamação coincide com o objeto do processo n.º 374/24.8BEFUN, sendo uma mera repetição, pelo que, se encontra verificada a exceção de litispendência
T. Deve ser dispensada a Fazenda Pública do pagamento do remanescente da Taxa de Justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do RCP

Termos em que deve ser negado o provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida que julgou verificada a exceção de litispendência e indeferiu liminarmente a reclamação e que dispense as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do RCP.»
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O DMMP junto deste Tribunal Central Administrativo, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Com dispensa dos vistos, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

- De Direito

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Ora, lidas as conclusões das alegações de recurso, resulta que está em causa saber se o Tribunal a quo errou no seu julgamento ao indeferir liminarmente a petição.

Invoca, por um lado a Recorrente a violação do princípio do contraditório, já que não foi ouvida antes da decisão e, por outro lado, entende que a decisão recorrida sofre de erro de julgamento uma vez que não se encontram reunidos os pressupostos da litispendência.

Vejamos.

Da violação do princípio do contraditório

A decisão recorrida julgou verificada a excepção dilatória de litispendência, de conhecimento oficioso e, nessa medida, indeferiu liminarmente a reclamação apresentada pela ora Recorrente contra o acto de indeferimento praticado pela Directora da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da RAM.

Invoca a Recorrente que a decisão recorrida configura uma decisão-surpresa, já que o Douto Tribunal a quo julgou verificada a excepção dilatória de litispendência, não invocada nos presentes autos, sem antes auscultar as partes e o Digno Magistrado do Ministério Público, verificando-se uma patente violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Compulsados os actos verificamos que, efectivamente, a decisão recorrida foi proferida sem que à Recorrente fosse dada oportunidade para se pronunciar relativamente à matéria de excepção que esteve na origem do indeferimento liminar.

A preterição do princípio do contraditório, a verificar-se, configura uma nulidade processual secundária a qual importa a anulação de todo o processado, onde se inclui a decisão recorrida.

Vejamos, então.

O nº3 do artigo 3.º do CPC, consagra um dos princípios basilares do direito processual, a saber, o princípio do contraditório.

Dispõe a referida norma que “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Tem em vista esta norma evitar a ocorrência de decisões surpresa, com as quais as partes não podiam, legitimamente, contar, ainda que perante questões de conhecimento oficioso.

Assim, entendendo o Tribunal a quo que se verificava a excepção de litispendência, de conhecimento oficioso, deveria ter permitido que fosse dada oportunidade à Recorrente para sobre ela se pronunciar, dando cumprimento ao princípio do contraditório.

Assim, a situação dos autos configura a omissão de um ato que a lei prescreve, sendo, nos termos do nº1 do artigo 195.º do CPC uma nulidade processual secundária, a qual, atento o disposto no artigo 196.º do mesmo código, tem de ser arguida, como o foi.

Pelo que, tem razão a Recorrente, o que implica a anulação de todos os termos processuais ulteriores ao acto processual omitido, onde se inclui a decisão recorrida, ficando prejudicado o conhecimento do demais invocado, devendo os autos baixar ao Tribunal a quo para aí prosseguirem termos, suprindo-se a apontada irregularidade.


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III- Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em:


i) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, julgando verificada a nulidade processual secundária invocada,


ii) anular todo o processado ulterior à decisão recorrida, inclusive, ordenando a baixa dos autos à primeira instância para prosseguimento dos mesmos expurgados da nulidade apreciada;

Sem custas.

Registe e Notifique.

Lisboa, 26 de Junho de 2025

(Isabel Vaz Fernandes)

(Lurdes Toscano)

(Luísa Soares)