Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:830/07.2BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:DESPACHO SANEADOR
EXCEPÇÕES DILATÓRIAS
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
ILEGITIMIDADE ACTIVA SUPERVENIENTE
TRANSMISSÃO DE PRÉDIO
RESERVA DE USUFRUTO
DIREITOS DO USUFRUTUÁRIO
HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE
Sumário:I - No despacho saneador conhece-se das excepções dilatórias, e não dos pressupostos processuais, cuja falta constitui excepção dilatória, não servindo aquele para “constatar” a verificação dos pressupostos processuais, antes para apreciar da sua falta.
II - Referindo o despacho saneador que as partes são legítimas sem proceder a qualquer apreciação concreta da ilegitimidade, tal não equivale a uma “decisão de legitimidade das partes”, susceptível de fazer caso julgado.
III - Apesar de a ilegitimidade activa não ter sido suscitada antes do despacho saneador nem neste apreciada, tendo a sentença concluído pela ilegitimidade activa superveniente, assente numa alteração da propriedade do prédio em causa ocorrida na pendência da acção, não se mostra por isso violado o disposto no n.º 2 do artigo 88.º do CPTA.
IV - Tratando-se de acção de impugnação de acto, e assentando o autor a sua legitimidade na propriedade do prédio a que respeita o acto, a transmissão da sua propriedade, ainda que com reserva do usufruto, é susceptível de afectar o interesse do autor na anulação do acto e, portanto, contender com a sua legitimidade processual, na medida em que implique que, na sequência da transmissão, o usufrutuário deixe de ter poderes para proceder a alterações no prédio, como é o caso da construção de muros e vedações no mesmo.
V - Não tendo o recorrente alegado decorrer do título constitutivo do usufruto que lhe assiste, na qualidade de usufrutuário, o direito a fazer obras de alteração no prédio, e decorrendo do disposto no artigo 1446.º do Código Civil que o usufrutuário apenas tem poderes de uso, fruição e administração, não podemos concluir que o pode fazer.
VI - A construção de muros num prédio constitui alteração do prédio, e a alteração do prédio vai além do seu uso, da sua fruição ou da sua administração, contendendo com a estrutura e a substância do mesmo.
VII - A iniciativa oficiosa no suprimento de excepções dilatórias prevista no artigo 87.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPTA opera apenas na fase posterior aos articulados, e caso os mesmos evidenciem irregularidades a suprir, antes do despacho saneador.
VIII - Notificado para se pronunciar sobre o requerimento do réu a suscitar a ilegitimidade activa superveniente, não tendo o autor requerido a habilitação de adquirente, nos termos do artigo 356.º do CPC, não se impunha ao Tribunal que procedesse a qualquer convite do autor para a requerer.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO


J… intentou acção administrativa especial contra o Município da Batalha. Pede a anulação do despacho do Presidente da Câmara Municipal de indeferimento do licenciamento para a construção de um muro de vedação e colocação de um portão no prédio sito na Travessa …, n.º …, T…, Porto-de-Mós.
Pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria foi proferida sentença de absolvição do réu da instância “pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade superveniente do autor, com a consequente inutilidade superveniente da lide.”
O autor interpôs recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“1) O Autor e ora Recorrente, em 04-07-2007, interpôs contra o Réu, ação administrativa especial de anulação, do indeferimento do licenciamento para a construção de um muro de vedação e colocação de um portão, requerido pelo Autor ao Réu, nos termos acima reproduzidos;
2) Após variados atos processuais, contestação, requerimentos, despachos, designadamente do despacho saneador, em 04-05-2022 foi apresentado por parte do Réu, requerimento que intitulou de articulado superveniente, dizendo que por consulta da informação registal atualizada do prédio sobre o qual incidiu o despacho de indeferimento do pedido de licença de construção de um muro de vedação, por parte do Autor, verificou que o mesmo prédio é atualmente propriedade de J… e não de J…, invocando a ilegitimidade do Autor;
3) O Autor, notificado para se pronunciar, discordou, o que fez nos termos acima reproduzidos;
4) Porém, por sentença proferida em 16-09-2022, veio a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, tomar a seguinte DECISÃO: «…Absolve-se o réu da instância pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade superveniente do autor, com a consequente inutilidade superveniente da lide. Custas a cargo do autor. …»;
5) O Autor não está de acordo com a referida decisão;
6) Atenta a fase em que nos encontramos, e depois de todo o tempo decorrido, uma vez que a ação teve início em 04-07-2007, e tendo já inclusive havido despacho saneador e com perícia feita ao local, não se compreende a decisão agora tomada;
7) Conforme decorre da informação do registo predial, a aquisição do prédio por parte de J… a J…, tendo como causa uma doação, encontra-se registada já desde 24-04-2008;
8) Sendo o registo predial de acesso público o Réu há muito que podia e devia ter suscitado a questão agora colocada;
9) Acresce ainda que no despacho saneador, proferido em 31-03-2016, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo julgou as partes legítimas;
10) Tal despacho transitou em julgado, pelo que já não seria admissível julgar de forma diferente, conforme acontece com a sentença recorrida;
11) Nos termos do artigo 87, n.º 1, alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “Findos os articulados, o processo é concluso ao juiz ou relator, que profere despacho saneador quando deva conhecer obrigatoriamente, ouvido o autor no prazo de 10 dias, de todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo”;
12) E o n.º 2 do mesmo artigo, dispõe o seguinte: “As questões prévias referidas na alínea a) do número anterior que não tenham sido apreciadas no despacho saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo e as que sejam decididas no despacho saneador não podem vir a ser reapreciadas.”;
13) Assim, foi violado pelo Tribunal a quo o disposto nos referidos artigos, sendo por esse motivo nula a sentença. Nulidade, que ora se invoca com todos os efeitos legais;
14) Admitindo-se que a Meritíssima Juiz pudesse decidir de forma diferente contrariando decisão anterior sobre a mesma matéria – a legitimidade do Autor – ainda assim, o facto de o Autor já não ser proprietário do prédio, tal não constitui fundamento para ser declarado parte ilegítima;
15) Embora o Autor tenha doado o prédio a J…, reservou para si o usufruto.
16) Nos termos do disposto no artigo 1439º do Código Civil “Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância.”;
17) E nos termos do disposto no artigo 1446º do mesmo Código, “O usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como o faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico”;
18) No que respeita ao conteúdo do direito de propriedade, dispõe o artigo 1305º do Código Civil, o seguinte: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das condições por ela impostas.”;
19) Assim, o único poder que o usufrutuário não tem sobre a coisa e que está reservado ao proprietário é o poder de dela dispor;
20) Á exceção do poder de dispor da coisa, o usufrutuário tem um poder vasto sobre o bem podendo usar e administrar o mesmo, de boa-fé e da mesma forma como se o prédio fosse seu, tendo como único limite a obrigação de o conservar na sua forma, substância e destino económico (assumindo também as obrigações inerentes ao mesmo);
21) Assim, enquanto durar o usufruto, o proprietário encontra-se desprovido dos direitos de usar e administrar a coisa, cabendo tais direitos ao usufrutuário;
22) Parece-nos que face à pretensão do Autor, tal cabe nos poderes de que o usufrutuário dispõe em relação ao prédio, para de modo próprio e sem necessidade da intervenção do proprietário do mesmo, poder fazer valer a sua pretensão em Tribunal;
23) Este entendimento é reforçado pelo facto de o ato que se pretende anular ter sido proferido enquanto o Autor era proprietário do mesmo, tendo sido também o Autor a interpor a presente ação;
24) Pelo que deve entender-se que defender a posição e os direitos que estão em causa na presente ação se inclui nos atos de administração do usufrutuário;
25) Assim, ao decidir pela ilegitimidade do Autor e absolvendo o Réu da instância, violou a Meritíssima Juiz a quo, o disposto no artigo 1406º do Código Civil;
26) Pelo que a sentença recorrida é também nula por este motivo. Nulidade, que ora se invoca com todos os efeitos legais;
27) Mesmo que se considere o Autor parte ilegítima para sozinho, prosseguir a presente ação, então deveria a Meritíssima Juiz ter permitido ao Autor que suscitasse o incidente de intervenção do nu-proprietário do prédio na ação, para desse modo sanar a ilegitimidade do Autor;
28) A decisão recorrida constitui uma decisão surpresa para o Autor considerando que a informação que foi trazida agora ao processo pelo Réu já constava do registo predial desde 24-04-2008, quando foi apresentada a aquisição do prédio a registo, tendo sido na mesma data registada oficiosamente o usufruto do mesmo a favor do Autor;
29) Tendo tal questão sido suscitada por parte do Réu mediante a apresentação de articulado superveniente e já após ter sido proferido despacho saneador, nos termos do qual a questão da legitimidade das partes já havia sido decidida;
30) E tendo o Autor se manifestado contra o requerido pelo Réu em tal articulado superveniente, seria curial, justo e também por uma questão de aproveitamento de todos os atos processuais, que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo convidasse o Autor a suprir a exceção da ilegitimidade que só agora foi levantada pelo Réu (cerca de 12 anos após a data em que o poderia ter feito, bastando consultar o registo predial que é público);
31) Tal poder-dever encontra-se plasmado no artigo 88º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que tem como epígrafe “Suprimento de exceções dilatórias e aperfeiçoamento dos articulados”, o qual dispõe: “1 – Quando, no cumprimento do dever de suscitar e resolver todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objeto do processo verifique que as peças processuais enfermam de deficiências ou irregularidades de carácter formal, o juiz deve procurar corrigi-las oficiosamente. 2 – Quando a correção oficiosa não seja possível, o juiz profere despacho de aperfeiçoamento, destinado a providenciar o suprimento de exceções dilatórias e a convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado, fixando o prazo de 10 dias para o suprimento ou correção do vício, designadamente por faltarem requisitos legais ou não ter sido apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.”;
32) Ao julgar procedente a exceção da ilegitimidade, absolvendo em consequência o Réu da instância e pondo termo à causa por inutilidade superveniente da lide, violou a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo o disposto nos referidos artigos 87º e 88º do CPTA;
33) Pelo que a Sentença é nula. Nulidade que aqui se invoca, com todos os efeitos legais;
34) Devendo, assim, a sentença recorrida ser REVOGADA.
Termos em que se requer a V. Exas., a REVOGAÇÃO da Sentença recorrida, com todas as consequências daí resultantes, por tal ser de LEI, DIREITO e JUSTIÇA.”
O recorrido respondeu à alegação do recorrente, com as seguintes conclusões:
“I. Em 03/09/2007, J… (aqui Recorrente) intentou a presente ação administrativa especial contra o Município da Batalha, pretendendo obter, designadamente, a anulação do despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal da Batalha, por meio do qual indeferiu o pedido de licenciamento de obras de construção de diversos muros de vedação e de pilares para colocação de portão, a levar a efeito no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Batalha com o número 3... da freguesia de Reguengo do Fetal, formulado pelo ora Autor no âmbito do Processo de Obras Particulares n.º 115/2006.
II. Nesta ação, o Autor: 1) alegou que requereu o licenciamento para a construção de um muro de vedação para a propriedade de que é proprietário sito na Travessa …, n.º …, no lugar da T…, Porto de Mós; 2) alegou que requereu ao réu que pretendia vedar a sua propriedade, bem como colocar um portão na entrada do seu prédio, esclarecendo ter expropriado uma parcela de terreno para permitir o acesso a esta sua propriedade, tendo junto comprovativo do acordo de expropriação; 3) alegou que esclareceu que não há qualquer colisão com caminho municipal, na medida em que o espaço que o autor pretende vedar é seu, tendo sido adquirido no âmbito do processo expropriativo particular; 4) por isso, invocou na presente ação o vício de abuso de poder; de falta de fundamentação; violação do princípio da igualdade; erro nos pressupostos de facto e irregularidade de notificação; 5) no âmbito do Processo de Obras Particulares n.º 115/2006, juntou certidão da Conservatória do Registo Predial da Batalha referente ao prédio aí descrito com o número 3… da freguesia de Reguengo do Fetal, ali figurando como proprietário do mesmo.
III. O Município Réu apresentou a respetiva Contestação.
IV. Atentas as posições vertidas pelas partes nos respetivos articulados e prefigurando-se a necessidade de dar cumprimento ao disposto no artigo 15.º, n.º 1, do CPTA, por Despacho de 25/09/2013 o Tribunal a quo ordenou a notificação das partes para virem aos Autos informar se havia qualquer processo instaurado nos tribunais da jurisdição comum, tendo o Autor (aqui Recorrente) vindo informar que inexistia qualquer processo naquela instância.
V. No conspecto acima aduzido, por Despacho de 07/03/2014, transitado em julgado, o Tribunal a quo decidiu que se suscitavam nos Autos questões atinentes à titularidade do prédio e, bem assim, à respetiva delimitação, definição e qualificação (essenciais para o sucesso ou insucesso da pretensão impugnatória deduzida pelo Autor na presente ação administrativa especial), para as quais o tribunal administrativo não tinha competência, até porque a prova existente não permitia uma decisão, decidindo, assim, sobrestar na decisão, com devolução das partes para a jurisdição competente, até que o tribunal competente se pronunciasse sobre as situações aludidas, sem prejuízo de, se verificado o condicionalismo previsto no n.º 2 do mesmo artigo 15.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ficar a suspensão ora ordenada sem efeito. Mais consignou que as partes deveriam informar o tribunal da instauração da competente ação judicial.
VI. E, sobrestada a decisão, não tendo o Autor intentado aquela ação, julgando verificada a previsão normativa do artigo 15.º, n.º 2, do CPTA, por Despacho de 03/03/2016 foi declarada cessada a suspensão da instância e ordenada a retoma da tramitação nos Autos para conhecer do pedido, incluindo aquelas questões prejudiciais (atinentes à titularidade do prédio e, bem assim, à respetiva delimitação, definição e qualificação, essenciais para o sucesso ou insucesso da pretensão impugnatória deduzida pelo Autor na presente ação administrativa especial).
VII. Por Despacho Saneador de 12/04/2016, face à causa de pedir e pedido do Autor e Contestação apresentada pelo Município, foram fixados os seguintes Temas da Prova: 1) O terreno que o autor pretende vedar é da sua propriedade? 2) A Rua … dista do terreno do autor 50 metros para Sul? 3) Entre o terreno do autor e a Rua … existe um caminho particular? 4) A edificação visada pelo autor consubstancia uma obstrução de caminho municipal?
VIII. No despacho acima identificado, o Tribunal a quo decidiu ainda, entre o demais, que as partes são legítimas.
IX. À data da prolação do referido Despacho Saneador (12/04/2016) não existia nos Autos qualquer elemento que contrariasse a legitimidade do Autor, pela simples razão que este não informou os Autos que no ano de 2008 (portanto, em data posterior à interposição da presente ação administrativa, que ocorreu em 2007) havia doado o prédio em apreço nos Autos, deixando, assim, de ser proprietário do mesmo.
X. Cumpridos os habituais trâmites processuais, por Despacho de 01/03/2022 veio a audiência de julgamento a ser agendada para o dia 06/05/2022.
XI. Em 04/05/2022, o Município Réu (ora Recorrido) apresentou Articulado Superveniente, onde alegou, designadamente, o seguinte: - em 04/05/2022, aquando da preparação da audiência de julgamento agendada para o referido dia 06/05/2022, constatou - mediante consulta da informação registal atualizada respeitante ao prédio acima identificado - que tal prédio é atualmente propriedade de J… (e não do Autor, J…); - facto que o Autor (aqui Recorrente) em momento algum comunicou aos presentes Autos; - perante a sobredita omissão do Autor (ora Recorrente), o Réu (ora Recorrido) só tomou conhecimento de tal facto no dia 04/05/2022, aquando da preparação do julgamento; - conforme resulta da informação registal respeitante ao prédio em apreço, supervenientemente à instauração da presente ação administrativa (03/09/2007) J… doou - com reserva de usufruto - o referido prédio a J…, cfr. Ap.´s de 2008/04/24; - na presente data, J…, na qualidade de usufrutuário, apenas detém poderes de uso, fruição e administração sobre o imóvel, sem que tal qualidade torne dispensável a intervenção do titular da nua propriedade (J…), o único que detém poderes de disposição sobre a coisa, num processo judicial no âmbito do qual, conforme consta do Despacho de 07/03/2014, se mostra necessário e exigível decidir questões prejudiciais atinentes à titularidade do prédio e, bem assim, à respetiva delimitação, definição e qualificação (essenciais para o sucesso ou insucesso da pretensão impugnatória deduzida pelo Autor na presente ação administrativa especial); - nestes termos, J… é parte ilegítima nos Autos, verificando-se supervenientemente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causada, dando lugar à absolvição da instância, segundo o disposto no n.º 2 e na alínea e), do n.º 4, do artigo 89.º do CPTA.
XII. No respeito pelo princípio do contraditório, por Despacho de 04/05/2022 o Tribunal a quo notificou o Autor (ora Recorrente) para se pronunciar sobre o teor do Articulado Superveniente apresentado pelo Réu, advertindo-o que tal articulado poderia implicar uma alteração subjetiva da instância.
XIII. No uso do seu direito ao contraditório, o Autor limitou-se a referir que discorda da referida ilegitimidade e que achava estranho apenas agora ser suscitada e nesta fase processual, sendo certo que não requereu o incidente de habilitação do novo proprietário nos presentes Autos.
XIV. O Tribunal a quo proferiu Sentença em 16/09/2022, por meio da qual - com os termos e fundamentos aí constantes - decidiu absolver o Município Réu da instância pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade superveniente do Autor, com a consequente inutilidade superveniente da lide.
XV. É contra o douto aresto supra transcrito que o Recorrente se insurge, alegando, em síntese, que é nulo por ter violado o disposto nos artigos 87.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e 88.º do CPTA e no artigo 1406.º do Código Civil. XVI. Contudo, nenhuma razão assiste ao Recorrente, devendo a decisão posta em crise manter-se nos precisos termos em que foi emanada! Vejamos:
XVII. Alega o Autor (Recorrente) que o Tribunal a quo, tendo já julgado legítimas as partes no Despacho Saneador, não podia apreciar a invocada exceção de legitimidade nesta fase processual; que, nessa medida, o aresto em crise violou o disposto nos artigos 87.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e 88.º, ambos do CPTA (na redação aplicável aos Autos).
XVIII. Todavia, a norma do n.º 2 do artigo 87.º do CPTA, na redação aplicável nos presentes Autos (correspondente ao n.º 2 do artigo 88.º do NCPTA) não impede o conhecimento, em momento posterior ao saneador, de questões processuais que apenas se suscitem após essa fase processual, como será o caso de uma ilegitimidade superveniente. O citado dispositivo deve ser entendido como reportando-se a exceções dilatórias ou nulidades processuais que tenham sido arguidas pelas partes nos articulados ou se tornem patentes ao juiz por força dos termos em que a ação é proposta, no momento em que o processado lhe é concluso para proferir o despacho saneador. O n.º 2 terá, assim, de ser articulado com a alínea a) do n.º 1, referindo-se às “questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo” que sejam detetáveis no momento em que o juiz se prepare para exercer a competência prevista nesse preceito, com exclusão, portanto, de quaisquer novas questões que se levantem posteriormente (neste sentido, vide Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2017, 4.ª edição, Almedina, págs. 704 e 705; vide também Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 2.ª edição, Lisboa, 1997, págs. 356 e 357).
XIX. Ora, no caso concreto, conforme resulta provado dos elementos constantes dos Autos, à data da prolação do Despacho Saneador (12/04/2016) não existia nos Autos qualquer elemento que contrariasse alegitimidade do Autor, pela simples razão que este não informou os Autos que no ano de 2008 (portanto, em data posterior à interposição da presente ação administrativa, que ocorreu em 2007) havia doado o prédio em apreço nos Autos, deixando, assim, de ser proprietário do mesmo. Motivo pelo qual o Réu só em 04/05/2022, aquando da preparação da audiência de julgamento, tomou conhecimento - mediante consulta da informação registal atualizada respeitante ao prédio acima identificado - que tal prédio é atualmente propriedade de J… (e não do Autor, J…). Sendo certo que o Tribunal só veio a ter conhecimento deste facto na sequência do Articulado Superveniente apresentado pelo Réu em 04/05/2022.
XX. Está, pois, provado nos Autos (Factos Provados 1, 2 e 3, não impugnados pelo Recorrente) que em momento posterior à instauração da presente ação administrativa, o Autor (Recorrente) deixou de ser proprietário do prédio a que se reporta o ato administrativo em crise e nunca informou os Autos desta alteração à propriedade do imóvel objeto do presente litígio. Ónus que impendia sobre o mesmo, designadamente em face dos princípios da cooperação e da boa-fé processual, plasmados no artigo 8.º do CPTA e, bem assim, nos artigos 7.º e 8.º do CPC.
XXI. Razões pelas quais, à luz do disposto no artigo 87.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPTA (na redação aplicável nos Autos), não podia o Tribunal a quo, nem lhe era exigível, em face dos elementos constantes dos Autos, apreciar oficiosamente a referida exceção dilatória (de ilegitimidade) em anterior momento processual; de igual modo, não podia o Réu, nem lhe era exigível, em face dos elementos constantes dos Autos, ter suscitado a referida exceção dilatória (de ilegitimidade) em anterior momento processual.
XXII. Por outro lado, no Despacho Saneador de 12/04/2016 genericamente se deixou constante que as partes são legítimas. Tratou-se, pois, de uma mera afirmação tabelar e genérica por parte do Tribunal a quo, que apenas visou o cumprimento formal e não material de aspetos que devem constar obrigatoriamente de uma decisão judicial, sem que tivesse havido qualquer apreciação concreta da manifesta ilegitimidade ativa do Autor; sendo entendimento comum, válido também para o regime do processo administrativo, que todas as referências genéricas aos vários aspetos que integram, por ex.º, a competência absoluta não constituem decisões judiciais, mas simples afirmações desligadas da análise e problemas específicos que as partes tenham invocado ou que o tribunal haja entendido suscitar oficiosamente. Está-se diante de meras formulações de circunstâncias introduzidas no ritualismo processual para referir que o juiz atuou em obediência ao determinado na lei. Continuam, deste modo, a poder levantar-se mais tarde quaisquer questões teoricamente abrangidas pela redação abstrata de que o juiz se serviu com o objetivo de indicarque, na altura da elaboração do despacho saneador, nada lhe impunha a apreciação de exceções dilatórias ou de nulidades processuais, visto não terem sido alegadas nem existirem no processo elementos que determinassem o conhecimento oficioso daqueles vícios. A exclusão do caso julgado formal vale para todas as exceções dilatórias e a nulidades processuais (vide, neste sentido, Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, Lisboa, Ediforum, 2014, 2.ª edição, pág. 672).
XXIII. Entendimento este confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça em inúmeras ocasiões, como por exemplo no Acórdão do STJ de 22/02/2000, no Acórdão de 03/05/2000 e no Acórdão de 27/06/2000, todos cit. Abílio Neto, Ob. cit., pág. 673.
XXIV. Assim, à luz da mais avisada Doutrina e Jurisprudência (nomeadamente a acima referida), mostra-se consensual que a mera afirmação tabelar (afirmação genérica) de que as partes são legítimas, constante do Despacho Saneador de 12/04/2016, não constitui apreciação concreta de tal questão e sobre a mesma não se formou caso julgado formal. Razão pela qual nada obsta a que tal questão tenha sido suscitada pelo Município Réu por meio de Articulado Superveniente (em 04/05/2022) e tenha sido devidamente apreciada e decidida pelo douto Tribunal a quo por meio do aresto colocado em crise pelo Recorrente.
XXV. Destarte, dúvidas não subsistem que o aresto recorrido não violou o disposto nos artigos 87.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 88.º, ambos do CPTA, devendo manter-se nos precisos termos em que foi emanado.
XXVI. Acresce que, como se sabe, o direito de propriedade encontra-se previsto no artigo 1305.º do CC e atribui ao titular todos os poderes ou faculdades que à coisa se podem referir. Em geral: poder de uso; poder de fruição; poder de transformação, poder de reivindicação; poder de excluir terceiros não autorizados do gozo da coisa; poder de demarcação de coisas imóveis e a faculdade de disposição, incluindo o poder para alienar, o poder para onerar e o poder para renunciar.
XXVII.Ao contrário, o direito de usufruto encontra-se previsto no artigo 1439.º do CC e corresponde ao direito de gozar temporária e plenamente de uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância. O usufruto constitui, pois, um direito real de gozo menor que se limita a conferir ao usufrutuário essa possibilidade de gozar de uma coisa alheia desde que respeite a sua forma ou substância. Releva, assim, perceber que o usufruto está limitado, legalmente, pela proibição de alteração da forma ou substância da coisa. Acresce que, por força do disposto no artigo 1446.º do CC, os direitos ou poderes do usufrutuárioestão também limitados ao uso, fruição e administração da coisa como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico.
XXVIII. Donde, enquanto o proprietário, como titular de uma plena potestas in re propria, pode, em princípio, alterar livremente a forma e a substância da coisa, ao usufrutuário, como sujeito de um ius in re aliena, não é lícito fazê-lo sem consentimento do proprietário de raiz.
XXIX. Ora, no caso concreto, conforme resulta dos Autos e consta dos Factos Provados 1 e 2, na pendência da causa o Autor (Recorrente) doou - com reserva de usufruto - a terceiro o imóvel objeto da presente ação. Nessa medida, por força de tal transmissão, o Autor (Recorrente), na qualidade de usufrutuário, atualmente apenas detém poderes de uso, fruição e administração sobre o imóvel, sem que tal qualidade torne dispensável a intervenção do titular da nua propriedade (J…).
XXX.Com efeito, o atual titular da nua propriedade (J…) é o único que detém poderes de disposição sobre a coisa, ESPECIALMENTE no âmbito de um processo judicial como o presente, no seio do qual se suscitam questões atinentes à titularidade do prédio e, bem assim, à respetiva delimitação, definição e qualificação.
XXXI. Ou seja, não obstante estarmos perante uma ação impugnatória, a verdade é que, no caso concreto, existem questões prejudiciais (que se reportam, designadamente, à titularidade de uma parcela do prédio sub judice e, bem assim, à delimitação, definição e qualificação da mesma) cuja decisão se mostra essencial para o sucesso ou insucesso da pretensão impugnatória deduzida pelo Autor na presente ação administrativa especial e que, portanto, TORNAM EXIGÍVEL A INTERVENÇÃO DO TITULAR DA NUA PROPRIEDADE (J…), O ÚNICO QUE DETÉM PODERES DE DISPOSIÇÃO SOBRE A COISA.
XXXII.Que assim é, basta pensar, por exemplo, num cenário em que as partes pretendessem transigir nos presentes Autos, acordando, nomeadamente, no que concerne às aludidas questões prejudicais (conforme acima se disse, atinentes à titularidade de uma parcela do prédio sub judice e, bem assim, à delimitação, definição e qualificação da mesma). O cenário atrás hipotetizado permite concluir, sem margem paradúvidas, que se mostra exigível a intervenção do nu-proprietário, o único que detém poderes de disposição sobre a coisa.
XXXIII. Mais se diga que, estando em causa a impugnação do indeferimento do licenciamento de obras de construção de muros e de pilares para aposição de portão para vedação do acesso à propriedade, o mesmo não se traduz num ato de mera administração do prédio onerado pelo usufruto mas contende com a disposição da nua propriedade do mesmo.
XXXIV. Conforme supra se evidenciou, o usufrutuário não conta dentro do leque de poderes que detém sobre a coisa onerada com o seu direito de usar, fruir e administrar a mesma, de poderes de disposição da nua propriedade que incide sobre aquela, não podendo, por isso, atingir a sua substância, não detendo legitimidade para ser o destinatário de um pedido de anulação do ato de indeferimento QUE PODE DAR ORIGEM, NO LIMITE, A UMA ORDEM DE DEMOLIÇÃO se, entretanto, tiverem sido executadas as obras que se pretendem licenciar, quando é o nu proprietário o único que detém os poderes de transformação ou alteração da substância desse prédio.
XXXV.Com efeito, mostra-se consensual (até no seio da Jurisprudência) que O USUFRUTUÁRIO NÃO DETÉM LEGITIMIDADE, DESACOMPANHADO DO NU PROPRIETÁRIO, PARA SER O DESTINATÁRIO DE UMA ORDEM DE DEMOLIÇÃO, pois - como se referiu - é o nu proprietário o único que detém os poderes de transformação ou alteração da substância do prédio.
XXXVI. In casu, estando em causa a legalização de obras de construção de muros e de pilares para aposição de portão para vedação do acesso à propriedade (que atualmente não pertence ao Autor), pedido indeferido pelo Réu (aqui Recorrido), está-se perante um ato que atinge a substância do prédio, e por conseguinte, que fere o direito de nua propriedade, cujas consequências também se repercutem na sua esfera jurídica.
XXXVII. Tudo dito, resulta que A INTERVENÇÃO DO USUFRUTUÁRIO NÃO TORNA DISPENSÁVEL A INTERVENÇÃO DO TITULAR DA NUA PROPRIEDADE, O ÚNICO QUE DETÉM PODERES DE DISPOSIÇÃO SOBRE A COISA, NUM PROCESSO EM QUE UM DESFECHO POSSÍVEL SERÁ A PROLAÇÃO DE UMA ORDEM DE DEMOLIÇÃO.
XXXVIII. Mais se diga que, por força da transmissão do prédio a um terceiro, o Autor (Recorrente) deixou de ter interesse no pedido formulado, já que o pedido de anulação do indeferimento do licenciamento de obras de construção de muros e de pilares para aposição de portão para vedação da propriedade insere-se no âmbito dos poderes de quem detém a nua propriedade, já que em nada colide com a fruição, e uso simples do imóvel.
XXXIX. Assim, atentos os contornos do concreto dos Autos, as questões prejudiciais e os temas da prova supra plasmados e, bem assim, as caraterísticas e os poderes inerentes ao direito de usufruto enquanto direito real menor, dúvidas não subsistem que o Autor/Recorrente (J…) é parte ilegítima nos Autos.
XL. Reitera-se que se verificou, de forma superveniente, exceção dilatória de ilegitimidade ativa, cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causada e dá lugar à absolvição da instância (cfr. artigo 89.º-1-d) do CPTA).
XLI. Destarte, o douto aresto recorrido não violou o disposto no artigo 1406.º do CC, devendo manter-se nos precisos termos em que foi emanado.
XLII.Ademais, conforme provado nos Autos, e supra evidenciado, apesar de advertido por meio do Despacho de 04/05/2022 “que o articulado superveniente poderá implicar uma alteração subjetiva da instância”, o Autor não requereu o incidente de habilitação do novo proprietário nos presentes Autos, limitando-se, no uso do seu direito ao contraditório, a referir que discorda da referida ilegitimidade, achando estranho apenas agora ser suscitada e nesta fase processual!!!
XLIII. Duvidas não subsistem, pois, que O TRIBUNAL CONCEDEU AO AUTOR A POSSIBILIDADE DE SUPRIR A ILEGITIMIDADE SUPERVENIENTE; contudo, o Autor optou por discordar da ilegitimidade ao invés de diligenciar no sentido do suprimento da mesma.
XLIV. Donde, não podia o Tribunal a quo, no concreto dos Autos e em face dos elementos dele constantes, proferir despacho de aperfeiçoamento nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 2, do CPTA.
XLV.Resulta de tudo o que acima se alegou que bem andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, absolvendo o Réu (Recorrido) da instância pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade superveniente do Autor (Recorrente), com a consequente inutilidade superveniente da lide.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis,  com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs,   deve ser negado provimento ao Recurso, confirmando-se a decisão recorrida, com as legais consequências, mormente em matéria de custas.”
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se pela improcedência do recurso interposto pelo autor.
Com dispensa de vistos dos juízes-adjuntos (cfr. n.º 4 do artigo 657.º do CPC), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

Face às conclusões das alegações de recurso – que delimitam o respectivo objecto, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC -, a questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão recorrida fixou os seguintes factos, que considerou provados:
“1) A 03/09/2007 J… propôs a presente ação judicial (facto provado por documento, a fls 1 e ss dos autos – paginação eletrónica)
2) J… doou - com reserva de usufruto - o referido prédio a J…, (facto provado por documento, a fls 1436 e ss dos autos – pag. Eletrónica – Ap. de 2008/04/24)
3) O autor nunca informou os autos desta alteração à propriedade o imóvel objeto do presente litígio;
4) O autor nunca pediu o incidente de habilitação do novo proprietário nos presentes autos.”


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A sentença recorrida absolveu o réu da instância por ter considerado procedente a excepção dilatória da ilegitimidade superveniente do autor, considerando que, tendo sido impugnado o indeferimento do licenciamento da construção de muros e de um portão que veda o acesso à propriedade (visando a sua legalização), e não se traduzindo esta actividade em actos de mera administração do prédio onerado pelo usufruto - antes contendendo com a disposição da propriedade de raiz, porque implicando alteração ou transformação da substância do prédio -, o autor, anterior proprietário do prédio em causa, e agora usufrutuário do mesmo, deixou de ter legitimidade para ser o destinatário daquele acto de indeferimento, que até pode dar origem a uma ordem de demolição se, entretanto, tiverem sido executadas as obras que se pretendem licenciar.
Insurge-se o recorrente contra o assim decidido.

Começa por alegar que a sentença recorrida contraria o despacho saneador proferido em 31.03.2006, que considerou as partes legítimas, tendo o mesmo transitado em julgado, não podendo posteriormente o Tribunal concluir pela ilegitimidade das partes.
Vejamos.
Nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CPTA, “O despacho saneador destina-se a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, em face dos elementos constantes dos autos, o juiz deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer total ou parcialmente do mérito da causa, sempre que a questão seja apenas de direito ou quando, sendo também de facto, o estado do processo permita, sem necessidade de mais indagações, a apreciação dos pedidos ou de algum dos pedidos deduzidos, ou de alguma exceção perentória.” Assim, no despacho saneador conhece-se das excepções dilatórias (como, por exemplo, a ilegitimidade das partes), e não dos pressupostos processuais (como é o caso da legitimidade das partes), cuja falta constitui excepção dilatória. Ou seja, o despacho saneador não serve para “constatar” a verificação dos pressupostos processuais; antes deve apenas ser proferido para apreciação da sua falta.
O despacho saneador foi proferido nos presentes autos em 12.04.2016 (e não em 31.03.2006, como refere o recorrente) e não apreciou a ilegitimidade das partes, mas apenas a incompetência do Tribunal, que julgou improcedente. Referindo o despacho saneador que as partes são legítimas sem proceder a qualquer apreciação concreta da ilegitimidade, tal não equivale a uma “decisão de legitimidade das partes”, susceptível de fazer caso julgado.
Por conseguinte, a sentença recorrida, ao concluir pela ilegitimidade activa, não contraria o “decidido” no despacho saneador.
É certo, por outro lado, que, nos termos do n.º 2 do artigo 88.º do CPTA, “As questões prévias referidas na alínea a) do número anterior que não tenham sido apreciadas no despacho saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo e as que sejam decididas no despacho saneador não podem vir a ser reapreciadas.” Esta norma “pretende concentrar na fase do despacho saneador a apreciação de quaisquer questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo.”, solução que assenta “no princípio de promoção do acesso à justiça, visando evitar que o tribunal relegue para final a apreciação das questões prévias para só então pôr termo ao processo com uma decisão de mera forma e, por outro lado, que o processado seja utilizado a todo o tempo para suscitar questões formais, com consequências negativas no plano da economia e celeridade processual.” – cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, pp. 702-705.
Todavia, é admissível “o conhecimento, em momento posterior ao saneador, de questões processuais que apenas se suscitem após essa fase processual, como será o caso de uma ilegitimidade superveniente ou da superveniente incapacitação da parte ou do mandatário judicial”, pelo que o n.º 2 do artigo 88.º “deve, pois, ser entendido como reportando-se a questões prévias, ou seja, a exceções dilatórias ou nulidades processuais que tenham sido arguidas pelas partes nos articulados ou se tornem patentes ao juiz por força dos termos em que a ação é proposta, no momento em que o processo lhe é concluso para proferir o despacho saneador”, devendo “ser articulado com a alínea a) do n.º 1, referindo-se às "questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo" que sejam detectáveis no momento em que o juiz se prepare para exercer a competência prevista nesse preceito, com exclusão, portanto, de quaisquer novas questões que se levantem posteriormente.”idem, ibidem.
Nestes termos, apesar de a ilegitimidade activa não ter sido suscitada antes do despacho saneador nem neste apreciada, tendo a sentença concluído pela ilegitimidade activa superveniente, assente numa alteração da propriedade do prédio em causa ocorrida na pendência da acção, não se mostra por isso violado o disposto no n.º 2 do artigo 88.º do CPTA.

Alega ainda o recorrente que, embora não sendo já proprietário do prédio, sendo agora usufrutuário, mantém a sua legitimidade, não só porque detém os direitos de usar e administrar a coisa, nos quais cabe a pretensão que pretende fazer valer através do presente processo, mas também porque, à data da prática do acto impugnado, era proprietário do prédio, tendo sido nessa qualidade que impugnou o acto.
Os presentes autos têm por objecto o acto de indeferimento do licenciamento para a construção de um muro de vedação e colocação de um portão no prédio que, à data da instauração da acção, era propriedade do autor, e do qual o mesmo passou a ser, entretanto, mero usufrutuário, pelo que a legitimidade do autor se afere pelo seu interesse directo e pessoal na anulação do acto (artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CPTA). Assentando tal legitimidade, nos termos da p.i., na propriedade do prédio, a transmissão desta, ainda que com reserva do usufruto, é susceptível de determinar a afectação daquele interesse e, portanto, contender com a legitimidade processual do autor, na medida em que implique que, na sequência da transmissão, o usufrutuário deixe de ter poderes para proceder a alterações no prédio, como é o caso da construção de muros e vedações no mesmo.
Da conjugação do disposto nos artigos 1445.º e 1446.º do Código Civil decorre que os direitos do usufrutuário são regulados pelo título constitutivo do usufruto e, na falta ou insuficiência deste, o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico.
Não tendo o recorrente alegado decorrer do título constitutivo do usufruto que lhe assiste, na qualidade de usufrutuário, o direito a fazer obras de alteração no prédio, e atento o disposto no artigo 1446.º do Código Civil, não podemos concluir que o pode fazer. Efectivamente, a construção de muros num prédio constitui alteração do prédio, e a alteração do prédio vai além do seu uso, da sua fruição ou da sua administração, contendendo com a estrutura e a substância do mesmo. Não estando demonstrado que o autor, enquanto usufrutuário, detém poderes para alterar a sua estrutura, através de construção de muro, tais poderes cabem ao proprietário que adquiriu o prédio, e não ao autor.
Ainda que o autor fosse proprietário do prédio à data da instauração da presente acção de impugnação do indeferimento do licenciamento de construção de um muro no mesmo, deixou de o ser na pendência da acção, e, apesar de ter transmitido o prédio com reserva de usufruto, este direito não inclui o poder de construir muros no prédio, nos termos referidos. Não podendo, assim, o autor construir o muro no prédio, a procedência da presente acção não lhe traz qualquer vantagem ou benefício e, por conseguinte, deixou o autor de ter um interesse directo e pessoal na anulação do acto.

Mais alega o recorrente que, ao decidir pela ilegitimidade superveniente do autor sem dar ao mesmo a possibilidade de requerer a intervenção processual do proprietário do prédio, com vista a sanar a ilegitimidade activa, a sentença violou as normas do artigo 87.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPTA.
Resulta de tais normas que, findos os articulados, o juiz, sendo caso disso, profere despacho pré-saneador destinado, designadamente, a providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, fixando prazo para o suprimento das mesmas. Porém, esta iniciativa oficiosa no suprimento de excepções dilatórias opera apenas na fase posterior aos articulados, e caso os mesmos evidenciem irregularidades a suprir, antes do despacho saneador. Não é o caso dos presentes autos, que se encontravam já numa fase avançada do processo, posterior à prolação do despacho saneador, razão pela qual tais normas não têm aplicação à situação em apreço.
De todo o modo, no caso, uma vez transmitido o direito de propriedade sobre o prédio a que respeita o acto impugnado, poderia haver lugar à habilitação do adquirente do prédio para com ele seguir a causa, nos termos previstos no artigo 356.º do CPC, a qual poderia ser promovida, não só pelo transmitente (autor), mas também pelo adquirente (actual proprietário) ou mesmo pela parte contrária (o réu Município), pelo que se coloca a questão de saber se houve essa oportunidade.
Atentando no processado, o que sucedeu foi que, tendo o réu apresentado requerimento a suscitar a ilegitimidade superveniente do autor em virtude de o mesmo ter transmitido o prédio a terceiro (em 04.05.2022), na mesma data foi proferido despacho a determinar a notificação do autor para se pronunciar sobre a questão suscitada, bem como a desmarcação da audiência final “considerando que o articulado superveniente poderá implicar uma alteração subjetiva da instância, sobretudo porque o Município, Réu, constatou que tal prédio é atualmente propriedade de J… (e não de J…), pois J… doou - com reserva de usufruto - o referido prédio a J….”, e o autor pronunciou-se (por requerimento de 17.05.2022) pugnando pelo indeferimento do requerido por ser extemporânea a invocação de tal questão, sem requerer a habilitação do adquirente.
Não tendo requerido a habilitação de adquirente quando o poderia ter feito – uma vez notificado para se pronunciar sobre o requerimento do réu a suscitar a ilegitimidade activa superveniente -, não se impunha ao Tribunal que procedesse a qualquer convite para requerer a habilitação de adquirente, requerimento este que é, para o autor, um ónus.

Finalmente, alega o recorrente que a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa considerando que a transmissão do prédio por parte do mesmo a terceiro se encontra inscrita no registo predial desde 24.04.2008, sendo da mesma data o registo do usufruto a favor do autor, e sendo o registo predial de acesso público.
Contudo, sendo certo que a transmissão do prédio por parte do mesmo a terceiro se encontra inscrita no registo predial desde 24.04.2008, sendo da mesma data o registo do usufruto a favor do autor, e sendo o registo predial de acesso público, tal nada tem a ver com a surpresa da decisão recorrida, a qual foi proferida por causa da questão suscitada pelo réu no seu requerimento de 04.05.2022, não sem antes ter o autor tido a oportunidade para se pronunciar sobre a mesma. Com efeito, resulta claramente do despacho datado de 04.05.2022 a possibilidade de o desfecho da acção ser no sentido da procedência da ilegitimidade do autor, e este pronunciou-se sobre a questão da sua ilegitimidade superveniente, por requerimento de 17.05.2022, pugnando apenas pela extemporaneidade da sua invocação, e sem requerer o que quer que fosse.
Atento o exposto, mostra-se cumprido o princípio do contraditório quanto à questão que veio a determinar o desfecho da acção (a ilegitimidade superveniente do autor), não constituindo a sentença recorrida qualquer decisão surpresa.
Termos em que improcede o recurso.
*
Vencido, é o recorrido responsável pelo pagamento das custas, nos termos dos artigos 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 15 de Julho de 2025

Joana Costa e Nora (Relatora)
Alda Nunes
Marta Cavaleira