Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1172/20.3BELSB |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 09/24/2020 |
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Relator: | DORA LUCAS NETO |
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Descritores: | FACTOS ESSENCIAIS; FACTOS INSTRUMENTAIS; DIREITO À PROVA; PROVIDÊNCIA CAUTELAR; (NÃO) REJEIÇÃO LIMINAR. |
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Sumário: | i) A possibilidade de rejeição liminar deve ser reduzida aos casos em que o requerente da providência, convidado a suprir algum dos aspetos elencados no n.º 3 do citado art. 114.º, ao abrigo da alínea a) do n.º 2, do art. 116.º, ambos do CPTA, não o faça e/ou seja manifesta a existência de fundamento para a rejeição liminar, nos termos das restantes alíneas do n.º 2 do mesmo art. 116.º. ii) O despacho de rejeição liminar não consubstancia per se, uma singela possibilidade de fazer extinguir ab initio o processo judicial, tanto mais que é proferido sem audição da parte. iii) E, tanto assim é, que nas situações previstas nas alíneas b) a d), do nº 2 do citado art. 116º do CPTA, o legislador concedeu a possibilidade de rejeição liminar apenas aos casos manifestos, ou seja, evidentes, e que não pudessem ser supridos por via do mecanismo da alínea a) do mesmo artigo. iv) As situações invocadas pela Requerente, ora Recorrente, como resultado e consequências diretas, na tese da mesma, da execução imediata da decisão de avançar com a construção/abertura do centro consumo assistido, traduzem-se em circunstâncias que são suscetíveis de ser objeto de prova – designadamente, o invocado alarme social – art. 11.º da requerimento inicial – de onde decorre as alegadas situações de insegurança – art. 12.º do requerimento inicial – e de calamidade social – art. 14.º do requerimento inicial -, ainda que estas careçam de concretização, pois os factos complementares ou instrumentais que resultarem da instrução da causa poderão preencher tais factos. |
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Votação: | UNANIMIDADE |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório Associação de Moradores do Bairro da C....., veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 09.07.2020, que rejeitou liminarmente, ao abrigo do art. 116°, n° 2, al. d), do CPTA, o requerimento cautelar por si interposto contra o MUNICÍPIO DE LISBOA, por manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pela Requerente, ora Recorrente.
As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões: «(…) 1. Tendo sido a Recorrente notificada da decisão do Tribunal a quo no passado dia 06 de Julho do corrente ano, relativamente ao Processo n.° 1172/20.3BELSB, Processo esse que correu os seus termos junto da Unidade Orgânica 3 do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, Mediante uma análise cuidada e ponderada da decisão do Tribunal a quo que diz respeito á rejeição da Providência Cautelar intentada pela ora Recorrente, 2. Diga - se em abono da verdade que a referida decisão gerou surpresa e estupefação, uma vez que aquele Tribunal invocou falta de fundamento e daí rejeitou a referida Providência Cautelar toda a fundamentação de facto e de direito foi alegada o que significa que o Tribunal não teve em conta a matéria de facto e muito menos a apreciou logo é de lamentar pura e simplesmente, 3. Ora vejamos a Recorrente aquando da apresentação da sua providência cautelar pedindo a suspensão da decisão do Municipio de Lisboa que visa a construção de uma sala de chuto em que não houve em momento algum discussão pública, não foi ouvida as população que moram nas zonas circundantes aonde aquela vai ser construída, como também fica a menos de 400 metros de estabelecimentos de ensino e de zonas residência, logo a referida construção é de todo ilegal terá que ser suspensa na integra, e vai implicar razões de insegurança nas zonas circundantes, 4. Uma vez que a instalação de uma sala de consumo assistido na Freguesia do Lumiar ou sala de chuto como se referiu, aonde a ora Recorrente tem a sua sede, não demonstra qualquer preocupação com os residentes da Alta de Lisboa, designadamente com os "novos residentes” que apostaram na aquisição recente de habitação nesta zona da cidade, expressando um voto de confiança no Plano de Urbanização Plano de Urbanização do Alto Lumiar (PUAL), que não previa a instalação de um equipamento/serviço desta natureza na zona, como também em relação aos moradores que habitam nessa zona como já se alegou, 5. Como também não é tida em consideração a ocorrência de eventuais fenómenos de desvalorização do imobiliário na Alta de Lisboa, na sequência da instalação de uma sala de consumo assistido, ignorando completamente os efeitos que tal poderá acarretar para o sucesso do PUAL e da estratégia de reconversão/ recomposição social deste território, que tantos anos se levou a conceber e a operacionalizar, estando ainda por concluir a implementação dos seguintes equipamentos sociais/ serviços (de acordo com a página da SGAL, principal promotora do projeto, à data de 3 de dezembro de 2018): • 1 Centro de Saúde; • 1 Centro de Cuidados Continuados; • 2 Piscinas Cobertas; • 1 Pavilhão Polidesportivo; • 3 Centros de Dia; • 5 Lares; • 3 Centros de Formação; • 1 Centro de Interpretação - PAAL; • 1 Parque Lúdico e Infantil; • 2 Centros Culturais; • 2 Ateliers de Arte; • Bombeiros Voluntários de Lisboa • 1 Centro Paroquial; • 2 Mercados Retalhistas; • 1 Edifício de Apoio ao Parque Oeste/ Vale Grande. 8. Assim sendo o Executivo do Município de Lisboa, parece considerar prioritária a resolução de um problema de uma minoria de indivíduos (menos de 270 consumidores de substâncias que, com elevada probabilidade, não serão todos residentes nesta zona da cidade) face à concretização de uma estratégia de longo prazo que visa servir uma população (residente) superior a 25.000 habitantes (26.172 habitantes, segundo a Ficha de Dados Estatísticos do PUAL, cuja fonte é a DGOTDU), 9. Diga - se em bom rigor que o documento que fundamenta a instalação da sala de consumo assistido no Lumiar, elaborado pelo Grupo de Trabalho das Dependências da Comissão Social da Freguesia do Lumiar, identifica o Bairro da C..... como um núcleo habitacional situado na proximidade de equipamentos escolares e sociais (escolas do 1.° ao 3.° ciclo, Centro Social da Musgueira, equipamento infantil da SCML, Centro de Artes e Formação da Junta de Freguesia do Lumiar) e junto do qual se prevê a continuada expansão urbanística com construção de novos centros habitacionais, como já se frisou, 10. Questiona-se a localização escolhida para a instalação da sala de consumo assistido na Rua n.° 10 do PUAL, quando os números 2 e 3 do artigo 70 ° do Decreto-Lei n.° 183/2001, de 21 de Junho (Regime geral das políticas de prevenção e redução de riscos e minimização de danos), referem expressamente que os programas para consumo vigiado “são autorizados apenas para zonas de grande concentração de consumidores por via endovenosa, não podendo ser instalados em espaços ou centros residenciais consolidados” e que a “localização escolhida (...) deve, tanto quanto possível, evitar a exposição a não utentes”. 11. Ora, se existe a intenção de instalar este equipamento nas imediações do Bairro da C....., que o próprio documento reconhece como sendo próximo de vários equipamentos escolares e sociais (alguns dos quais localizados no interior do próprio bairro) e enquadrado num movimento de expansão urbanística, é evidente que a sala de consumo assistido também não poderá distar mais de 500 metros destes serviços e de núcleos habitacionais consolidados (e em franca expansão), em flagrante violação do disposto na Lei, 12. Importa sublinhar que se trata de uma sala de consumo assistido fixa e que, segundo a informação veiculada pelo Senhor Vereador da Câmara Municipal de Lisboa, de seu nome M……, no âmbito da discussão da Proposta n.° 774/2018, em reunião de Câmara de 28 de novembro, não será instalada em contentores, 13. Questiona-se a necessidade de prever na sala de consumo assistido um espaço para consumo fumado, quando o artigo 70 ° do Decreto-Lei n.° 183/2001, de 21 de Junho estabelece que os programas de consumo vigiado são autorizados apenas para zonas de grande concentração de consumidores por via endovenosa, sem qualquer alusão ao consumo fumado. No que concerne ao diagnóstico da situação, com base nos dados disponibilizados pela Associação Crescer, em 2017, foram acompanhados 262 utentes, dos quais apenas 33% consumiam substâncias por via injetada, 14. Significa que os potenciais utilizadores da sala de consumo assistido não ascendem sequer a 100 indivíduos, pelo que, se questiona se este número configura, efetivamente, uma grande concentração de consumidores por via endovenosa, tal como é exigido pela Lei, que justifique a instalação de uma sala de consumo assistido. 15. Importa ainda destacar que a Freguesia do Lumiar é apenas a quarta com maior número de potenciais utilizadores das salas de consumo assistido na cidade de Lisboa, atrás das Freguesias de Arroios, Beato e Campo de Ourique, de acordo com os dados do diagnóstico da situação, 16. Convém acrescentar que um relatório do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, alertava já em 2004 para alguns estudos que davam conta de que, apesar de terem sido criadas salas de consumo assistido, quase 40% dos entrevistados/inquiridos admitiam ter consumido droga em locais públicos nas 24 horas imediatamente anteriores, 17. Por conseguinte, as salas de consumo assistido não parecem ser uma solução tão eficaz como refere o documento do Grupo de Trabalho das Dependências da Comissão Social da Freguesia do Lumiar para retirar o consumo das ruas, nem para resolver os problemas de saúde pública decorrentes do abandono de seringas (eventualmente contaminadas) na via pública, 18. Mais se refira que este quadro de acréscimo significativo de risco de infeções e overdoses, decorrentes do consumo de substâncias a céu aberto (não assistido), parece ser totalmente incoerente com os resultados apresentados pelo Relatório Anual (2016) - A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, elaborado pelo SICAD, bem como pelo panorama traçado no European Drug Report 2018, publicado pelo European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, 19. Com efeito, segundo o primeiro relatório, "à data da recolha de informação, tinham sido notificados 1.030 casos de infeção por VIH diagnosticados em 2016, 3% dos quais em categorias de transmissão relacionadas com toxicodependência, e 261 casos de SIDA diagnosticados em 2016, 9% dos quais associados à toxicodependência’, ou seja, estamos perante cifras com carácter absolutamente residual, mas prossegue ainda o SICAD: "A análise da evolução das notificações em Portugal, ou seja, a distribuição dos casos notificados por ano de diagnóstico, evidencia uma tendência decrescente a partir de 2000 no número de casos diagnosticados com a infecção por VIH, ocorrendo a um ritmo mais acentuado nos relacionados com a toxicodependência por comparação com os restantes casos’, 20. E acrescenta o seguinte: "Esta tendência de decréscimo de novos diagnósticos de infecção por VIH associados à toxicodependência, (...), indiciam uma diminuição de “infecções recentes” no grupo de risco associado à toxicodependência, refletindo os resultados das políticas e estratégias implementadas na área das drogas, designadamente os programas de redução de riscos e minimização de danos (programas de substituição opiácea e programa de troca de seringas) com impacto na mudança de comportamentos no consumo de drogas, como é evidenciado pela diminuição do consumo injectado de drogas e da partilha de material deste tipo de consumo”, 21. Congratula-se ainda o SICAD por ter já sido ultrapassada a meta de diminuição de 3 pontos percentuais definida para o primeiro ciclo de acção dos indicadores do PNRCAD 2013-2020, na área da morbilidade sobre as notificações de casos diagnosticados nos últimos 3 anos com VIH e SIDA, 22. Quanto às overdoses, ainda segundo o Relatório da autoria do SICAD, em 2016, dos 274 óbitos com resultados toxicológicos positivos para substâncias ilícitas, apenas 27 foram consideradas overdoses com base na causa de morte direta e etiologia médico-legal. Destas 27 mortes por overdose, apenas 1 se deveu exclusivamente à utilização de opiáceos (inclui heroína, morfina, codeína e tramadol), 4 envolveram a utilização de opiáceos associados com álcool e 7 associaram os opiáceos a outras substâncias, O que significa que estamos novamente em presença de registos absolutamente residuais, pouco consentâneos com o diagnóstico plasmado no documento que visa justificar a instalação de uma sala de consumo assistido no Lumiar, 23. O SICAD congratula-se igualmente com a superação das metas definidas para o primeiro ciclo de acção do PNRCAD 2013-2020, referente ao número de overdoses nos últimos 3 anos (-21%, quando a meta apontava para uma diminuição de 10%), 24.a Por seu turno, o European Drug Report 2018, publicado em junho deste ano pelo European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, inclui um capítulo especificamente dedicado a Portugal, que confirma o cenário descrito pelo Relatório Anual (2016) do SICAD, nomeadamente quanto aos seguintes indicadores: • Uma clara diminuição das mortes por overdose desde 2008, sendo o rácio nacional do número de mortes por overdose por milhão de habitante bastante inferior à média europeia. Com efeito, dos 30 países com informação disponível para este indicador, apenas a Roménia regista um número de casos por milhão de habitante inferior a Portugal; • Uma tendência decrescente dos diagnósticos de HIV atribuídos ao consumo de drogas por via injetável, desde 2006. O relatório refere que menos de 1 em cada 10 novos casos de infeção por HIV ou de SIDA estão associados ao consumo de drogas por injeção, 25. Assim sendo, considerando os resultados divulgados por ambos os relatórios, não se conclui que o consumo de drogas por via injetável e dos problemas que lhe estão associados (designadamente de overdoses e infeção por HIV) tenham sofrido um agravamento significativo, que justifique a criação de salas de consumo assistido, com caráter de (quase) urgência, tal como tem vindo a ser advogado pelo executivo municipal, 26. Note-se ainda que os “sucessos” alcançados pelas políticas públicas em matéria de droga e toxicodependência, no plano nacional, foram o resultado da implementação de um amplo conjunto de iniciativas e medidas, excluindo as salas de consumo assistido que, apesar de estarem previstas na Lei nunca foram efetivamente criadas, sem que tal obstasse à concretização das metas e objetivos delineados para o país. Pelo que, dificilmente se poderá concluir que a criação destas salas configura uma solução prioritária, urgente e inadiável para o problema da toxicodependência na cidade de Lisboa e, mais concretamente, na Freguesia do Lumiar, 27. Mais uma vez o Relatório Anual (2016) - A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, elaborado pelo SICAD, apresenta evidências de que o consumo de substâncias por via injetável está em franco retrocesso, colocando em causa a pertinência da criação de salas de consumo assistido na cidade de Lisboa, segundo o referido relatório, “em 2016/17, a heroína surgiu com prevalências de consumo residuais na população total e na de 15-34 anos.” Refere ainda o SICAD que “nos estudos dos últimos 20 anos, as prevalências de consumo de heroína nunca ultrapassaram os 4%, com tendência para a estabilidade e o decréscimo entre o início e o final da primeira década do milénio”, 28. Se da perspetiva dos diagnósticos e das evidências estatísticas mais recentemente publicadas, quer a nível nacional, quer no plano internacional, não parece justificar-se a criação de uma sala de consumo assistido na cidade de Lisboa, uma vez que não só se tem observado uma superação das metas definidas para os principais indicadores, como também a estratégia nacional tem sido amplamente elogiada pela comunidade internacional, a adoção deste tipo de solução parece não se encontrar devidamente fundamentada, 29. Acresce que esta proposta (política) de instalação de uma sala de consumo assistido na Freguesia do Lumiar não foi sufragada pelo eleitorado nas últimas eleições autárquicas, realizadas em 2017, como também, o Programa de Governo da cidade de Lisboa para o período 2017-2021 - Lisboa precisa de todos, publicado no site da Câmara Municipal de Lisboa, nada refere sobre salas de consumo assistido. 30. Como também o manifesto eleitoral da oposição mais concretamente do Bloco de Esquerda para a cidade de Lisboa (Lisboa, cidade partilhada) refere o seguinte sobre esta matéria: "Assegurar a existência de salas de consumo assistido, ou unidades móveis, em articulação com as associações que fazem trabalho nesta área, para apoio a pessoas que usam drogas e reduzir riscos e danos", assim, não consideramos que esta medida tenha sido sufragada pela maioria da população da cidade de Lisboa, 31. Esta medida só foi incluída no acordo celebrado, após o acto eleitoral, entre o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda, prevendo a abertura de apenas (uma) sala de consumo assistido, ora, o que está em causa são na realidade 3 salas e não apenas 1 sala, pelo que, se considera que o executivo municipal estão a desenhar uma solução que está “muito para além do acordo”, além de que não se vislumbra motivo para terem selecionado a Freguesia do Lumiar, que é apenas a 4.a em termos de maior número de consumidores na cidade de Lisboa, o documento que fundamenta a instalação de uma sala de consumo assistido no Lumiar anuncia ainda a intenção de “salvaguardar a comunidade que se encontra em maior proximidade das zonas de consumo, protegendo zonas residenciais, equipamentos escolares ou de uso social e zonas de estadia ou deslocação da população.” 32. Não se vislumbra como é que este objetivo vai ser alcançado, quando a localização selecionada para a instalação da sala de consumo assistido no Lumiar (Rua n.° ….. do PUAL) fica nas imediações de vários equipamentos escolares e sociais, de superfícies comerciais recentemente instaladas na Freguesia (cujo investimento terá rondado os 14 milhões de euros) e, ainda de núcleos residenciais consolidados, em flagrante violação do disposto na Lei, por último, elenca-se como objetivo “enquadrar o equipamento e a resposta social no dispositivo legal em vigor para as estruturas de redução de danos (constante do Decreto-Lei n.° 183/2001), 33. Também neste quadro não se vislumbra de que forma é que a sala de consumo poderá ser enquadrado nos normativos vigentes, considerando que não será instalado numa zona de grande concentração de consumidores por via endovenosa (menos de 90 consumidores não correspondem manifestamente a uma grande concentração de consumidores), mas sim numa área residencial consolidada, com uma enorme exposição a não utentes, designadamente a crianças e jovens que frequentam os equipamentos escolares e sociais da Freguesia do Lumiar, incumprindo, assim, todos os requisitos legais exigidos aos programas de consumo vigiado, 34. Portugal, e por conseguinte, a cidade de Lisboa, e em particular a Freguesia do Lumiar, não têm um problema de elevado número de mortes por sobredosagem, resultantes do consumo de substâncias por via endovenosa, como demonstram à saciedade o Relatório Anual (2016), do SICAD, e o European Drug Report 2018, publicado pelo European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, 35. A sala de consumo assistido contribuirá para o aumento da exposição dos residentes (incluindo de crianças e jovens frequentadores dos equipamentos escolares e sociais da Freguesia) aos consumidores de substâncias que aqui virão em busca das condições ideais para perpetuarem as suas adições, 36. Quanto às recomendações sobre a localização (sem logotipos identificativos, em espaços discretos que preservem a privacidade e dignidade dos utentes) são totalmente escamoteados os critérios previstos na Lei para a implementação de programas de consumo vigiado, que tornariam seguramente inadmissível a instalação da sala de consumo assistido na Rua n.° …. do PUAL, do ponto de vista jurídico-legal, 37. O Grupo de Trabalho das Dependências da Comissão Social da Freguesia do Lumiar alude, finalmente, ao facto de os programas de consumo vigiado estarem legislados desde 2001, não tendo sido implementados até à presente data devido à falta de unanimidade na comunidade.a esta falta de unanimidade na comunidade nacional haveria que somar a falta de consenso no plano internacional, uma vez que apenas uma minoria de países optou pela implementação deste tipo de resposta para a população toxicodependente, 38. Além disso, seria igualmente importante que fosse salientado o facto de a ONU, através do International Narcotics Control Board, ter expressado reservas sobre a criação das salas de consumo assistido, recomendando aos Governos que estas devem ter como finalidade última reduzir as consequências adversas do abuso de substâncias, através de tratamento, reabilitação e reintegração de utilizadores, sem desculpar ou incrementar o consumo ou encorajar o tráfico de droga, não devendo substituir programas de combate, prevenção e tratamento do abuso de substâncias. 39. Refere ainda o Grupo de Trabalho das Dependências da Comissão Social da Freguesia do Lumiar que existe um número significativo de consumidores que frequentam diariamente os vários bairros da Cidade de Lisboa e, nomeadamente o Bairro da C....., 40. Questiona-se se será possível considerar que cerca de 33% de 262 utentes corresponde a um número significativo de consumidores, a tal ponto que justifique a opção pela instalação de uma sala na Freguesia do Lumiar? 41. Questiona-se ainda se o programa de consumo vigiado que o Município de Lisboa pretende implementar não virá criar outra incoerência ainda mais flagrante entre a política de descriminalização (já legislada) e uma opção de liberalização absoluta do consumo de substâncias, que não se encontra prevista no ordenamento jurídico nacional, 42. Com efeito, o que se pretende fazer é abrir um espaço de consumo de substâncias, quando a Lei portuguesa não permite a sua venda de forma lícita e aberta no "mercado”. Se não é permitida a sua venda de uma forma livre, então porque é permitido o seu consumo, quando na verdade este, apesar de ter sido descriminalizado, é ainda motivo para a aplicação de contra - ordenações por parte das entidades competentes? 43. Quanto à sugestão de localização (Rua 10 do PUAL), "de forma a contemplar a proximidade ao fenómeno de consumo e acautelar a distância para núcleos urbanos consolidados e face a equipamentos de públicos sensíveis’’, importa referir que a menos de 500 metros de distância estão localizados vários equipamentos escolares e sociais da Freguesia, 44. Logo, considera-se que não só não está salvaguarda a distância de núcleos urbanos consolidados nem de equipamentos com públicos sensíveis, 45. Acresce por último que esta localização viola claramente o disposto nos números 2 e 3 do artigo 70.° do Decreto-Lei n.° 183/2001, de 21 de Junho (Regime geral das políticas de prevenção e redução de riscos e minimização de danos), 46. Perante essa rejeição do Tribunal a quo, presume - se e bem que aquele Tribunal ao rejeitar não reconhece as Providências Cautelares, uma vez que não houve conhecimento por parte daquele Tribunal do mérito ou seja não houve caso julgado material mas sim formal, logo aquele recusou - se apreciar o mérito e apenas rejeitou com base em questões formais sem o mínimo fundamento, assim sendo, logo e em face do que se foi expondo ao longo do presente Recurso entende - se por sinal que há todas as condições para que a decisão do Tribunal a quo seja anulada na integra (…)» (sublinhados nossos).
Notificado para o efeito, veio o Recorrido apresentar contra-alegações, tendo concluído, por sua vez, como se segue: «(…) I. (…) o Recorrido acompanha integralmente o entendimento vertido na douta decisão recorrida. II. O decretamento da providência requerida importa o preenchimento, além do mais, do requisito do "periculum in mora", o qual se traduz no "fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação" para os interesses que as requerentes, aqui recorrentes, visam assegurar, ou pretende ver reconhecidos, no processo principal (cfr. artigo 120°, n.° 1, do CPTA). III. A prova do "fundado receio" deverá ser feita pelo requerente, o qual terá que invocar e provar factos concretos que levem o tribunal a concluir que será provável a constituição de uma situação de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação, justificando-se, por isso, a concessão da providência solicitada. IV. A situação de risco tem de ser efectiva, e não hipotética ou de verificação eventual. V. A Recorrente em todo o seu petitório apenas faz juízos e valores sem lograr demonstrar ou provar quaisquer dos factos por si alegados. VI. Dúvidas não subsistem ao Recorrido que bem andou a Mma Juiz ao concluir que é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pela Requerente, pela total ausência do requisito do periculum in mora, sendo certo que impende sobre o requerente da providência o ónus de alegação e demonstração do fundado receio de ocorrência de uma das circunstâncias descritas na 1- parte do n.°1 do artigo 120° do CPTA. VII. E, consequentemente, bem andou a Mma Juiz ao rejeitar liminarmente a providência cautelar, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 116°, n.°2, alínea d) do CPTA. VIII. Pelo que a decisão proferida pelo tribunal a quo não merece qualquer censura. (…)». (sublinhados nossos).
Neste tribunal, o DMMP, não se pronunciou.
Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.
I. 1. Questões a apreciar e decidir A única questão que aqui se coloca é a de saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento quando rejeitou o requerimento inicial, por manifesta falta de fundamento da pretensão formulada, ao abrigo da alínea d), do n.º 2, do art. 116º do CPTA. II. Fundamentação II.1. De facto e de Direito É do seguinte teor a decisão recorrida, na parte que releva no âmbito do presente recurso: «(…) Verificando-se a existência de fundamento de rejeição liminar do requerimento inicial, cumpre proferir o despacho a que alude o art. 116°, n° 2, do CPTA. (…) da conjugação do preceituado nos arts. 116° n° 1, al. d) e 120°, n° 1, do CPTA resulta que o requerimento inicial deve ser rejeitado quando se mostre manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada, o que sucede, designadamente, nos casos em que, perante a causa de pedir configurada, se conclua pela manifesta ausência do requisito do periculum in mora, sendo certo que impende sobre o requerente da providência o ónus de alegação e demonstração do fundado receio de ocorrência de uma das circunstâncias descritas na 1a parte do n° 1 do art. 120° do CPTA. (…) Regressando ao caso dos autos, e compulsado o requerimento inicial, verifica-se que a Requerente configurou o presente processo cautelar como sendo respeitante a uma providência de suspensão de eficácia de acto, consubstanciado, segundo a sua alegação, na decisão da Entidade Requerida de proceder à construção do Serviço de Apoio Integrado do Lumiar, que se trata, de acordo com a Requerente, de uma “sala de chuto”, pretendendo aquela, com o recurso à presente tutela cautelar, a suspensão imediata dessa decisão, suspendendo-se a construção daquele Serviço (…). Sustentou a Requerente a providência requerida, no essencial, e no que releva para a apreciação do periculum in mora, na circunstância de a referida construção, a ter lugar, vir criar na população representada pela mesma “danos gravíssimos a todos os níveis”. Mais tendo alegado que o Serviço de Apoio Integrado do Lumiar irá ser frequentado por utentes que são consumidores de estupefacientes, o que tornará a zona envolvente numa zona de perigo iminente de insegurança, com a prática de crimes por parte dos referidos utentes, tais como, furtos, roubos, ameaças, ofensas à integridade física e tráfico de estupefacientes. Concluiu a Requerente afirmando que a implementação do mencionado Serviço vai implicar uma situação de calamidade, sem que haja forças de segurança capazes de a combater. Ora, analisada a alegação produzida pela Requerente, é possível, desde já, constatar que é manifesta a falta de fundamento da pretensão cautelar formulada, considerando que não vêm alegados quaisquer factos concretos que permitam antever uma situação de risco real e efectivo, verificando-se a invocação, por parte da Requerente, de situações de verificação puramente eventual e que configuram um risco potencial ou conjectural, alicerçado em juízos meramente subjectivos. Com efeito, a Requerente invoca, de modo vago e conclusivo, que a construção e implementação, pela ER, daquilo a que se refere como sendo uma sala de consumo assistido, irá provocar, na zona residencial cujos interesses procura defender, uma situação de calamidade, motivada, no seu entendimento, pela insegurança gerada pela prática de crimes pelos futuros utentes da mencionada sala, consumidores de estupefacientes. Sucede que, compulsado o requerimento inicial, nada de concreto vem alegado que permita ao Tribunal concluir que, pelo simples facto de ser instalado um serviço de apoio aos consumidores de substâncias psicoactivas num determinado local, a zona envolvente se tornará mais insegura, de igual modo não se podendo concluir, com o exigível grau de séria probabilidade, que os utentes das futuras instalações em causa nos autos irão cometer os crimes alegados no requerimento inicial, fundando-se o perigo invocado pela Requerente, a este respeito, em receios meramente subjectivos. De facto, os danos que justificam o juízo de verosimilhança do periculum in mora devem ser perspectivados segundo um critério de probabilidade, apoiado, designadamente, nas regras da experiência comum. Porém, no caso em apreço, a alegação da Requerente evidencia meras conjecturas, tal como a prática de crimes por parte dos utilizadores do Serviço de Apoio em construção pela ER, vindo a acção cautelar sustentada na mera possibilidade da ocorrência dos danos invocados, ao nível da segurança no Bairro da C....., o que se afigura manifestamente insuficiente para decretar a providência requerida. Por outro lado, a Requerente refere, de forma conclusiva, que a instalação da sala em questão irá criar alarme social e uma situação de calamidade, no entanto, sem alegar e, consequentemente, demonstrar factos que permitissem sequer reconhecer um nexo de causalidade entre a execução do acto aqui suspendendo e a situação geradora, no entendimento da Requerente, do periculum in mora, já que de acordo com a alegação da Requerente a situação de insegurança e de perigo para a população emerge da circunstância de a zona geográfica em questão poder vir a ser frequentada por consumidores de estupefacientes, afigurando-se, no entanto, que a adopção da providência requerida não é, por si só, idónea a obstar ao consumo desse tipo de substâncias nas zonas adjacentes ao bairro representado pela Requerente. De resto, e conforme resulta do disposto no DL n° 183/2001, de 21 de Junho (que tem como objectivo a criação de programas e de estruturas sócio-sanitárias destinadas à sensibilização e ao encaminhamento para tratamento de toxicodependentes bem como à prevenção e redução de atitudes ou comportamentos de risco acrescido e minimização de danos individuais e sociais provocados pela toxicodependências), “os programas para consumo vigiado têm como objectivos o incremento da assepsia no consumo intravenoso e consequente diminuição de riscos inerentes a esta forma de consumo, bem como a promoção da proximidade com os consumidores, de acordo com o respectivo contexto sócio-cultural, com vista à sensibilização e encaminhamento para tratamento, através da criação de locais de consumo” e, nessa medida, “os programas são autorizados apenas para zonas de grande concentração de consumidores por via endovenosa, não podendo ser instalados em espaços ou centros residenciais consolidados” (itálicos nossos) - cfr. arts. 65° e 70°, n° 2, do citado DL. Nesta conformidade, considerando que a instalação de um centro de consumo vigiado, num determinado local, pressupõe a prévia existência, nessa zona, de uma grande concentração de consumidores, visando não só a protecção da saúde individual do consumidor como também a saúde pública, não alegou a Requerente factos que permitam reconhecer um nexo de causa e efeito entre a execução do acto suspendendo e a situação geradora da invocada calamidade. Por outro lado, vem o periculum in mora, como já ficou dito, alicerçado em danos que se situam num plano conjectural e hipotético, que não permitem vislumbrar um cenário de risco efectivo, real e actual, não tendo sido alegados factos concretos que permitissem concluir que os prejuízos invocados estão na iminência de ocorrer por força da decisão da ER aqui posta em causa ou se vão sequer ter lugar e qual a respectiva dimensão, sendo o cenário descrito pela Requerente revestido de grande incerteza, desconhecendo-se, no momento actual, as repercussões que a instalação e utilização, pelos consumidores, do espaço em questão nos autos, irão ter na população representada pela Requerente. Assim, o ónus de alegação e de prova que impende sobre a Requerente, à luz das regras gerais [cfr. arts. 342°, n° 1, do CC e 114°, n° 3, g), do CPTA], exigia a alegação de um prejuízo qualificado e efectivo, derivado do não decretamento da providência requerida, o que não se verificou no caso vertente, não tendo a Requerente, em suma, alegado factos concretizadores do periculum in mora. Face ao que, se conclui que é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pela Requerente, sendo, consequentemente, de rejeitar liminarmente o requerimento cautelar, nos termos do disposto no art. 116°, n° 2, al. d), do CPTA.(…)». (sublinhados nossos).
Vejamos. O tribunal a quo rejeitou a presente providência ao abrigo do n.º 2 alínea d) do art. 116.º do CPTA, com fundamento na manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pela Requerente, ora Recorrente, em virtude de esta não ter alegado factos concretizadores do periculum in mora.
O art. 114º, nº 3, do CPTA, dispõe que o requerente de uma providência cautelar deve, no requerimento inicial: a) Indicar o tribunal a que o requerimento é dirigido; b) Indicar o seu nome e residência ou sede; c) Identificar a entidade demandada; d) Identificar os contra-interessados a quem a adopção da providência cautelar possa directamente prejudicar; h) Quando for o caso, fazer prova do ato ou norma cuja suspensão pretende e da sua notificação ou publicação; Por seu turno, o nº 4 do mesmo art. 114º do CPTA que “na falta da indicação de qualquer dos elementos enunciados no número anterior, o interessado é notificado para suprir a falta no prazo de cinco dias”. Na sequência do que, o art. 116, n.º 1, do CPTA, sob a epígrafe “Despacho liminar”, dispõe que “sobre o requerimento do interessado recai despacho de admissão ou de rejeição”, e o n.º 2 elenca taxativamente, nas suas várias alíneas, os fundamentos de rejeição do requerimento cautelar, a saber: a) A falta de qualquer dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 114º que não seja suprida na sequência de notificação para o efeito; b) A manifesta ilegitimidade do requerente; e) A manifesta desnecessidade de tutela cautelar; f) A manifesta ausência dos pressupostos processuais da ação principal (…).» A possibilidade de rejeição liminar deve, pois, ser reduzida aos casos em que o requerente da providência, convidado a suprir algum dos aspetos elencados no n.º 3 do citado art. 114.º, ao abrigo da alínea a) do n.º 2, do art. 116.º, supra, não o faça e/ou seja manifesta a existência de fundamento para a rejeição liminar, nos termos das restantes alíneas do n.º 2 do mesmo art. 116.º. O despacho de rejeição liminar não consubstancia per se, uma singela possibilidade de fazer extinguir ab initio o processo judicial, tanto mais que é proferido sem audição da parte. E, tanto assim é, que nas situações previstas nas alíneas b) a d), do nº 2 do citado e supra transcrito art. 116º do CPTA, o legislador concedeu a possibilidade de rejeição liminar apenas aos casos manifestos, ou seja, evidentes, e que não pudessem ser supridos por via do mecanismo da alínea a) do mesmo artigo. Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, o despacho liminar só deve ser de indeferimento quando o tribunal considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada ou que existem exceções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impedem a emissão de uma pronúncia de mérito sobre a pretensão do requerente ou se verifique uma total ausência do pedido ou da causa de pedir em termos de o requerimento não poder ser objeto de convite ao aperfeiçoamento (cfr. notas ao artigo 114,º), sendo que, os mesmos autores, avançam também que falta de fundamento da pretensão (alínea d)) prende-se com a aplicação dos critérios de que depende a adoção das providências cautelares e há de fundar-se num juízo negativo sobre o preenchimento de algum dos pressupostos de que depende a aplicação desses critérios: por via de regra, de acordo com o regime comum dos n. ºs 1 e 2 do artigo 120.º: o periculum in mora, o fumus boni iuris e a ponderação de danos (…).(1) Assim, imperioso se torna sublinhar que o despacho liminar só deve ser de indeferimento quando o requerente, notificado para o efeito, nos termos da alínea a) do n.º 2 do citado art. 116.º, não tenha suprido os aspetos que o tribunal tenha notificado para suprir, ou quando o tribunal a quo considere que evidente ou manifesto que a pretensão formulada é infundada ou que existem excepções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impedem a emissão de uma pronúncia de mérito sobre a pretensão do requerente(2). De realçar que em sede de despacho liminar o legislador introduziu um critério de evidência, um carácter manifesto, para sustentar o indeferimento liminar do requerimento cautelar. Como se refere no acórdão do STA de 25.08.2010, P. 637/10, «Evidente» é o que se capta e constata «de visu», sem a mediação necessária de um discurso argumentativo cuja disposição metódica permitirá o conhecimento, «in fine», do que se desconhecia «in initio». Porque as evidências não se demonstram, nunca é evidente a ilegalidade do acto fundada em vícios cuja apreciação implique demonstrações, ou seja, raciocínios complexos através dos quais se transite de um inicial estado de dúvida para a certeza de que o vício afinal existe”. A rejeição liminar é, assim, uma possibilidade a que o tribunal apenas deve lançar mão em casos muito particulares, pois a regra será a do prosseguimento dos autos, com a apresentação da defesa pela parte contrária e o julgamento da pretensão requerida, mediante decisão de procedência ou improcedência da pretensão. Neste sentido, atente-se ainda na doutrina que dimana do acórdão deste tribunal, de 08.02.2007, P.2006/06, de onde resulta cristalinamente que «(…) obedecem a pressupostos adjectivos distintos o despacho de rejeição liminar por inconcludência do pedido dada a manifesta antevisão da inviabilidade da pretensão cautelar, previsto no artº 116º nº 2 d) CPTA, e o despacho de recusa de decretação da providência requerida sem necessidade de produção de prova, fundado na manifesta improcedência do pedido formulado ou a formular na acção principal, previsto no CPTA por conjugação do disposto nos artºs. 119º nº 1 e 120º nº 1 a), a contrario. Em sede de improcedência, tanto o juízo de inconcludência liminar como de recusa de decretação por manifesta inviabilidade do pedido na acção principal não significam que o juízo a priori cautelar dê lugar ao juízo de mérito em sede de antecipação da resolução de improcedência definitiva do caso, ex vi artº 121º CPTA, a contrario, até porque a intervenção jurisdicional de “improcedência inadiável” não tem o menor sentido, nem jurídico nem ontológico. Pede-se urgência ao Tribunal para ganhar a causa, não para a perder, donde, na “(..) equação rapidez/segurança (..) a progressiva valoração da celeridade processual não deve subalternizar a necessária maturação e a qualidade da decisão de mérito, pois, caso isso aconteça, tal situação corresponde a um desvio da função jurisdicional (…)».
Retomando o caso em apreço. A Requerente da providência, ora Recorrente, solicitou ao tribunal a quo, em suma, «(…) a suspensão provisória do procedimento imposto pela Requerida em decorrência dos vícios ali presentes quanto à ausência de publicidade dos seus actos com prejuízos substanciais ao exercício do contraditório e da ampla-defesa (…), tendo invocado argumentos quanto ao fumus – art.s 2.º a 10.º e 16.º do requerimento inicial – e quanto ao periculum in mora – art.s 11.º a 15.º do requerimento inicial – mais tendo requerido o depoimento de parte do representante legal da Requerente, tendo também arrolado testemunhas. A decisão recorrida considerou por sua vez, e em suma, que o periculum in mora (…) alicerçado em danos que se situam num plano conjectural e hipotético, que não permitem vislumbrar um cenário de risco efectivo, real e actual, não tendo sido alegados factos concretos que permitissem concluir que os prejuízos invocados estão na iminência de ocorrer por força da decisão da ER aqui posta em causa ou se vão sequer ter lugar e qual a respectiva dimensão, sendo o cenário descrito pela Requerente revestido de grande incerteza, desconhecendo-se, no momento actual, as repercussões que a instalação e utilização, pelos consumidores, do espaço em questão nos autos, irão ter na população representada pela Requerente e, com estes fundamentos, indeferiu liminarmente o requerimento inicial da providência cautelar em apreço, por manifesta improcedência da pretensão formulada, ao abrigo do art. 116.º, n.º2, al. d), do CPTA. Porém, as situações que foram invocadas pela Requerente, ora Recorrente, como resultado e consequências diretas, na tese da Requerente, da execução imediata da decisão de avançar com a construção/abertura do centro em causa, traduzem-se em circunstâncias que são suscetíveis de ser objeto de prova – designadamente, o invocado alarme social – art. 11.º da requerimento inicial – de onde decorre as alegadas situações de insegurança – art. 12.º do requerimento inicial – e de calamidade social – art. 14.º do requerimento inicial -, ainda que estas careçam de concretização, pois os factos complementares ou instrumentais que resultarem da instrução da causa poderão preencher tais factos. Neste pressuposto, no âmbito do seu dever de gestão processual, o tribunal a quo poderia, por um lado, face ao disposto na alínea a) do n.º 2 do arti. 116.º, por via do n.º 3 do art. 114.º, ambos do CPTA, ter feito um convite ao aperfeiçoamento - cfr. art. 7.º-A do CPTA – dado que segundo a decisão recorrida, o que falta é a concretização/substanciação dos factos invocados pela Requerente, ora Recorrente e não uma absoluta falta de alegação de elementos que incorporem o periculum in mora. Por outro, tendo sido arrolada prova testemunhal e requerido o depoimento de parte, pela Requerente, ora Recorrente, o tribunal a quo, fazendo uso do disposto no art. 5.º do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA, aquele, sob a epígrafe, Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, determina que «1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.» e que «2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar. (…)» - poderia ter admitido o requerimento inicial e, conhecer da causa tendo em conta os factos instrumentais ou complementares que da instrução da mesma resultassem provados, dado que a decisão recorrida também expressa que desconhece, no momento actual, as repercussões que a instalação e utilização, pelos consumidores, do espaço em questão nos autos, irão ter na população representada pela Requerente, desconhecimento que pode ser colmatado com o exercício do direito à prova por parte do Requerente, ora Recorrente. Termos em que, e sem necessidade de mais amplas considerações, se considera que a manifesta improcedência da pretensão formulada, enquanto justificação para o indeferimento liminar do requerimento inicial da providência cautelar em apreço, não se verifica, e que a decisão recorrida padece de erro por deficiente fundamentação de facto e de direito. Isto, sem prejuízo de a providência cautelar em apreço poder vir a considerar-se infundada(3), do que decorrerão diversos efeitos, designadamente, e caso se confirme a insuficiência ou inconsistência da alegação da Requerente, ora Recorrente, o indeferimento da mesma, mas sem violação, designadamente, do contraditório e do direito à prova(4).
III. Decisão Nestes termos e face a todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em: a) Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida; e b) Determinar a baixa dos autos, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que admita o requerimento inicial, seguindo-se os demais termos até final, se a tal nada mais obstar.
Custas pelo Recorrido. Lisboa, 24.09.2020. Dora Lucas Neto
A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente Acórdão os senhores magistrados integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Pedro Nuno Figueiredo e Celestina Castanheira (esta, em substituição).
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(1). in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4ª edição, 2017, pgs. 949 a 950. |