Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:761/09.1BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:05/16/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRS
ÓNUS DA PROVA
FUNDADA DÚVIDA
Sumário:I - Se a AT identifica discrepâncias suscetíveis de desencadear o procedimento previsto no art.º 89.º-A da LGT, deve ser no contexto desse específico procedimento (e não, a latere, noutro procedimento inspetivo) que as mesmas devem ser valoradas, designadamente para efeitos de afastamento da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes.
II - Alicerçando-se a AT numa série de pontos de partida ou errados ou irrelevantes, que não permitem sustentar os pressupostos de facto da correção efetuada, e tendo a mesma optado por uma atuação desacompanhada da realização de diligências instrutórias fundamentais para que tal sustentação se apresente sólida, não foram pela cumpridas pela administração as exigências decorrentes do art.º 74.º da LGT.
III - Face à prova produzida pelo Impugnante, está-se, no mínimo, perante uma situação de fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, que se resolve a favor do administrado, atento o disposto no art.º 100.º, n.º 1, do CPPT.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 26.05.2022, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por J… (doravante Recorrido ou Impugnante), que teve por objeto a liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e a do respetivos juros compensatórios, referentes ao ano de 2004.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

A) Vem o presente recurso dirigido contra a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgando procedente a impugnação judicial à margem identificada, determinou a anulação parcial da liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios, referente ao ano de 2004, que vinha impugnada.

B) A sentença recorrida, neste segmento decisório, enferma de erro de julgamento, por errónea interpretação e violação dos comandos normativos ínsitos nos art.ºs 74º e 75º da LGT.

C) As declarações apresentadas pelos contribuintes à Administração Tributária, gozam da presunção de veracidade, em conformidade com o estatuído no nº 1, do art.º 75º da LGT.

D) Contudo, nos termos do nº 2, do mesmo art.º 75º da LGT, aquela presunção de veracidade não se verifica quando:

“a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;

b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;

c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objetivos da atividade de base técnico-científica previstos na presente lei.

d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A.”

E) Nos termos do nº 1, do art.º 74º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos de direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

F) Compete, por isso, à Administração Tributária o ónus de prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua atuação, isto é, o ónus de provar que a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pelo contribuinte, externando os elementos que a levaram a concluir nesse sentido, incumbindo ao Tribunal analisar se ela enunciou factos objetivos e concretos, donde possa concluir-se pela existência dos pressupostos legais dos quais depende o apuramento do imposto, por correções técnicas ou por métodos indiciários.

G) Só depois de especificados e demonstrados tais pressupostos pela Administração Tributária, passa a competir ao contribuinte o ónus de prova da ilegitimidade do ato, seja por erro nos pressupostos para a avaliação por métodos indiciários, seja por erro na quantificação da respetiva matéria coletável.

H) In casu, a Administração Tributária procedeu à correção do rendimento declarado pelo Recorrido para o ano de 2004 e à correspondente liquidação adicional de IRS porque considerou, em síntese, que os dados dela resultantes, como sejam os relativos aos proveitos, (serviços prestados), aos custos, aos rendimentos pagos, às importâncias despendidas, fora do âmbito da atividade profissional (como sejam, importâncias despendias com seguros de acidentes pessoais / de vida, PPR), se apresentavam, de per si, indiciadores de anomalias subjacentes aos rendimentos declarados.

I) Por outras palavras, a análise conjugada dos vários elementos constantes da declaração de IRS entregue pelo sujeito passivo, revelou uma inerente capacidade financeira não compatível com o lucro declarado.

J) A leitura aturada da factualidade apurada em sede inspetiva, reproduzida no respetivo relatório final junto aos autos e supra transcrita, permite concluir, que ficou devidamente provada a existência de pressupostos fáctico-jurídicos que revelam, exprimem ou manifestam uma determinada capacidade contributiva do Recorrido.

K) E, a verdade é que, nem durante o procedimento inspetivo, nem durante a presente impugnação logrou o mesmo fazer a prova da compatibilidade da capacidade financeira com os rendimentos declarados.

L) Assim, não se pode deixar de concluir, que deixou de funcionar a favor do sujeito passivo a presunção de boa fé quanto às suas declarações, atentas todas as irregularidades detetadas pela Autoridade Tributária, como ficou referido em sede de Relatório Inspetivo.

M) Compete à Administração Fiscal aferir da credibilidade dos rendimentos declarados, nomeadamente ponderando os vários elementos ao seu dispor, sendo que, em termos fiscais o apuramento da verdade material dos factos tributários se sobrepõe às declarações formais dos contribuintes.

N) Assim, o confronto dos elementos supra indicados, constantes da declaração do sujeito passivo, revela, de per si, que o rendimento declarado se manifesta incompatível com os encargos assumidos.

O) Mostra-se, pois, legitimada a atuação da AT, de correção e liquidação adicional.

P) Como vimos, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque – n.º 1 do art.º 74.º da LGT.

Q) Cabia então ao sujeito passivo o ónus da prova dos factos constitutivos dos seus direitos, como refere o art.º 74.º da LGT e no seguimento dos mais elementares princípios da prova, o que, no caso dos autos, não fez.

R) Nesta conformidade, a sentença recorrida ao decidir em sentido contrário, determinando a anulação parcial da liquidação de IRS que vinha sindicada, e correspondentes juros compensatórios, incorreu em erro de julgamento por errónea interpretação e violação do quadro legal aplicável.

S) Razão pela qual deve ser revogada e substituída por Acórdão que, julgue totalmente improcedente a impugnação judicial e mantenha vigente no ordenamento jurídico-tributário, por legal, a liquidação de IRS do exercício de 2004 em crise nos autos.

T) Não merecendo, pois, provimento a impugnação judicial deduzida pelo Recorrido impor-se-á, também a reforma da sentença recorrida quanto às custas processuais.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., e em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, e substituída por Acórdão que determine a improcedência total da presente impugnação judicial.

Todavia,

Decidindo, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada Justiça!”.

O Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“1. A sentença recorrida julgou procedente a impugnação parcial deduzida pelo recorrido contra o acto de liquidação adicional de IRS, no montante de € 25 447,60, e respectivos juros compensatórios, do ano de 2004, no montante global de € 28 248,58, correspondente à correcção à matéria tributável de IRS, esta no montante fixado pela AT de € 76 482,02, efectuada na sequência de uma acção inspectiva levada a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária, fundamentada na omissão de proveitos em sede de IRS que determinaram a falta de liquidação de IVA.

2. Considerou a Administração Tributária que o recorrido omitira na declaração de IRS respeitante àquele ano rendimentos, sujeitos a tributação na categoria B, no montante de € 75 034,16, vindo, pelo acto impugnado a alterar o rendimento líquido desse ano para € 76 482,02, (os € 75 034,16 de rendimento líquido/proveitos omissos apurados pela AT, adicionado ao montante de € 1 447,86 declarado pelo Impugnante na declaração de IRS desse ano).

3. No essencial, em síntese, na impugnação deduzida o ora recorrido, reafirmando o que invocara em sede de audição prévia, sustentado em todos os elementos oportunamente fornecidos e postos à disposição da Administração Tributária, pediu a anulação daquele acto por considerar, além do mais e para o que ora releva, que do montante de € 75 034,16, e correspondente valor da liquidação adicional, apurado foram indevidamente considerados e incluídos valores, no montante de € 67 594,16 (€ 66 739,16, constantes da Nota de Despesas e Honorários enviada ao cliente J…, dos quais apenas qual apenas foi por si recebida a quantia de € 8 079,00, relativamente à qual foi por pago o correspondente IRS + € 855,00 também não recebidos, estes respeitantes à sua cliente M…), que não são proveitos omissos, não constituem rendimentos tributáveis, não configurando pura e simplesmente "rendimentos", na definição do artigo 39, n91, ai. b) do CIRS, por nunca terem sido por si auferidos e que a inclusão no seu rendimento de IRS de 2004 do referido montante de C 8 079,00, do qual foi pago o respectivo IRS, configuraria duplicação de colecta.

4. Da matéria de facto provada que constitui a base necessária para a decisão de mérito concluiu a sentença recorrida, além do mais, que o Impugnante demonstrou, através de prova documental e testemunhal concludente:

- que, do montante de € 66.739,16, referente ao cliente J…, o Impugnante apenas recebeu € 8.079,00, apesar de ter sido acordada a redução daquele montante, o pagamento em prestações e o recebimento por conta do cliente, uma vez que este tinha dificuldades financeiras e não podia pagar;

- que, do montante de € 4.454,00, referente à cliente M…, o Impugnante apenas recebeu € 3.599,00, apesar de ter sido acordado o pagamento em prestações, uma vez que não foi paga a 59 e última prestação, no montante de € 855,00;

- que havia disponibilidade financeira para a compra da casa da Alameda porque tinha chegado ao fim um processo que o Impugnante tinha com outro colega, relacionado com vários trabalhadores da L… e essa importância serviria para dar de entrada para a casa, com intenção de eventualmente vender a deles e contrair empréstimo pra custear o restante (cf. Letras J a L do probatório).

E concluiu também que o Impugnante demonstrou, através de prova documental e testemunhal concludente

- que pagou a M… apenas um terço de € 13.155,13, uma vez que essa colaboradora trabalha para os três advogados do escritório e é paga por todos eles, em partes iguais;

- que, do mesmo modo, são pagas as despesas globais do escritório; só a renda é que é em moldes diversos, tendo em consideração o tamanho do gabinete de cada advogado;

- que todos os advogados do escritório incluem, como despesa, nas respectivas contabilidades, a parte que pagam das despesas globais do escritório (cf. letras G a I do probatório).

5. Vindo a sentença recorrida, sublinhando que não se está in casu no âmbito da avaliação indirecta da matéria colectável, a concluir que "os actos de liquidação de IRS e respectivos juros compensatórios impugnados padecem do invocado vício de violação de lei, por erro nos pressupostos fáctico-jurídicos, o que determina a sua anulação parcial", julgando procedente a impugnação.

6. Sem questionar a decisão de mérito da sentença recorrida, de aplicação do direito aos factos provados, sobre a qual o recurso não contém uma linha sequer, e a respectiva fundamentação sobre a qual a alegação nada diz, a Recorrente nas conclusões formuladas até à al. O), repetindo generalidades e reportando-se ao relatório de inspecção como se nada se tivesse passado depois, como se a liquidação adicional e as correcções efectuadas não tivessem sido impugnadas e sobre a pertinente factualidade produzida prova, como se as afirmações e factualidade invocada pela AT fossem verdades absolutas, inquestionáveis e incontraditáveis judicialmente, e gozassem de presunções inilidíveis - o que, evidentemente, não é o caso (cf. ac. STA, de 12.7.2000, Procº nº 022428, e ac. TC A Sul, de 14.7.2022, Procº 1010/08.5BESNT), e seria incompatível com ao princípio da tutela judicial efectiva consagrada no artigo 268, nº 4, da CRP, e o princípio da justiça e a garantia fundamental do acesso aos tribunais, constitucionalmente reconhecidos no artigo 20º da CRP - e como se a sentença recorrida não existisse, vem pugnar peia demonstração de que está(va) "legitimada a actuação da AT, de correcção e liquidação adicional".

7. Trata-se, contudo, de questão e matéria que nunca esteve em causa na impugnação, posto que não foi aí questionada a "legitimidade" da AT para proceder ao apuramento da matéria tributável, "de correcção e liquidação adicional", mas, o que é bem diferente, a legalidade da liquidação adicional e das correcções em que se alicerçou.

8. Registe-se a propósito que as correcções não resultaram da aplicação de métodos indirectos de avaliação da matéria colectável, de métodos presuntivos de determinação da matéria colectável, mas de correcções por aplicação de métodos directos de avaliação, apuradas "com base na análise dos documentos apresentados pelo sujeito passivo", conforme se refere e afirma no ponto 2.6. do Relatório final de Inspecção transcrito na alínea B) da matéria de facto provada, e que a proposta inicial de decisão em sede de procedimento inspectivo, de fixação de rendimento no valor de € 70.929,06, por aplicação da taxa de 20% sobre o valor de compra do imóvel que a AT teve por "manifestação de fortuna" na origem da acção inspectiva, não veio qua tale a ser acolhida no despacho final -referido na alínea C) da matéria de facto provada- que alterou o rendimento liquido para o montante de € 76.482.02, proferido ao abrigo do disposto no artigo 652 n° 4, do CIRS (2-4 - A Direcção-Geral dos Impostos procede à alteração dos elementos declarados sempre que, não havendo lugar à fixação a que se refere o n.6 2. devam ser efectuadas correcções decorrentes de erros evidenciados nas próprias declarações, de omissões nelas praticadas ou correcções decorrentes de divergência na qualificação dos actos, factos ou documentos com relevância para a liquidação do imposto.(Redacção dada pelo DL 198/2001, de 3 de Julho) no mesmo invocado, preceito esse aplicável apenas quando não há lugar à fixação a que se refere o seu nº 2, v.g. por recurso a métodos indirectos), nem foi objecto da sentença recorrida que sobre a matéria não se pronunciou, nem tinha que pronunciar.

9. Sendo certo que, para 0 que 0 presente recurso releva, a sentença recorrida, sem reparo por parte da Recorrente, enunciou a questão a decidir da seguinte forma:

"As questões a decidendas consistem em aferir se:

a) (...);

b) subsidiáriamente, se ocorre vício de violação de lei da liquidação de IRS impugnada, por erro nos pressupostos fáctico-jurídicos, por 0 impugnante não ter recebido, no exercício da sua actividade profissional, a importância que a Administração Tributária considera rendimento para efeitos da tributação em IRS relativamente ao ano de 2004; e não sendo esse 0 caso, se é inconstitucional, por violação do disposto na última parte do nº 3 do artigo 103º da CRP, 0 entendimento alegadamente extraído do nº 6 do artigo 3º do CIRS e do artigo 18º do CIRC; segundo o qual um profissional liberal, com contabilidade organizada, é obrigado a liquidar e pagar IRS antes de receber dos clientes o preço dos serviços prestados e apenas pela emissão das Motas de Despesas e Honorários.

Foi essa, e não outra, a questão apreciada e decidida na sentença recorrida.

10. A alegação da Recorrente, que delimita e constitui o objecto do recurso, de que "nem durante o procedimento inspectivo, nem durante a presente impugnação logrou o mesmo fazer prova da compatibilidade financeira com os rendimentos declarados" e que cabia ao Impugnante "o ónus da prova dos factos constitutivos dos seus direitos (...) o que no caso dos autos não fez", dai concluindo que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento por errónea interpretação e violação dos comandos normativos ínsitos nos artigos 74º e 75º da LGT, roçando a litigância de má fé, é completa e absolutamente infundada. Na verdade,

11. A matéria de facto provada (cf. pontos J. e K. do probatório), devidamente apreciada na fundamentação da sentença recorrida, demonstra exactamente o contrário, ou seja, como reconheceu a sentença recorrida, que o Impugnante demonstrou, através de prova documental e testemunhal concludente, que não recebeu as quantias questionadas na impugnação consideradas e incluídas pela AT na matéria tributável quantificada, ou seja, o erro e excesso na quantificação da matéria tributável cometido pela AT e a consequente ilegalidade, por violação de lei e erro nos pressupostos fáctico- jurídicos, da liquidação adicionai impugnada.

12. Tanto bastando para, pelo menos, concluir, como concluiu a sentença recorrida, que a construção lógica feita no Relatório final assenta em premissas de facto e de direito que não têm valor real ou material, não sendo possível afirmar com a certeza exigida pela determinação da matéria colectável (artº 103º, nº 3, da CRP), que as quantias aí referidas entraram efectivamente na esfera patrimonial do Impugnante no exercício em causa (o que se provou, aliás, foi o inverso, que as quantias referidas não entraram na esfera patrimonial do Impugnante), com a consequente anulação da liquidação adicional em conformidade com o disposto no artº 100º, nº 1, do CPPT.

13. A sentença recorrida não incorreu, pois, no erro de julgamento, por errónea interpretação e violação dos comandos normativos ínsitos nos artigos 74º e 75º da LGT, que lhe vem imputado pela Recorrente, devendo, em consequência, o recurso ser julgado manifestamente improcedente e confirmada a sentença recorrida.

14. Embora irrelevante para o presente recurso atento o seu objecto tal como delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, não deixará de se dizer, em breve nota, sobre as "manifestações de fortuna" alegadamente incompatíveis com os rendimentos declarados peio Impugnante no exercício em causa, particularmente a aquisição de um imóvel que tanto impressionou a AT, os seguros subscritos e as despesas de escritório, v.g,, com a empregada do mesmo, que estiveram na origem do procedimento inspectivo, em que a Recorrente, vá-se lá saber porquê, insiste e repisa, como se fosse essa a questão e não a da ilegalidade das correcções efectuadas pela AT e da liquidação adicional considerando e incluindo na matéria tributável quantias que não entraram na esfera patrimonial do Impugnante, o que, como se viu, ficou demonstrado, provado e mais do que provado, o que quanto às ditas "manifestações de fortuna" cabalmente se provou foi, em síntese, das despesas gerais do escritório, vencimento da empregada incluído, o Impugnante apenas suportava 1/3, sendo no restante as despesas suportadas, em parte iguais, com excepção da renda calculada em função do tamanho do gabinete de cada advogado, pelos demais advogados do escritório, e que havia disponibilidade financeira para a compra da casa porque tinha chegado ao fim um processo que o Impugnante tinha com outro colega, relacionado com vários trabalhadores da L… e essa importância serviria para dar de entrada para a casa, com a intenção de eventualmente vender a deles e contrair empréstimo para custear o restante (cf. depoimentos das testemunhas inquiridas, sobretudo a última, que é companheira do Impugnante há mais de 37 anos) (ponto L) da matéria de facto provada), evidenciando que os "indícios" em que se baseou a AT não permitem a conclusão da omissão de proveitos, e muito menos e concretamente dos supostos "rendimentos" que ilegal e indevidamente foram considerados na quantificação da matéria tributável e na liquidação adicional impugnada, já que o contrário, que as quantias consideradas invocadas na impugnação não entraram na esfera patrimonial do Impugnante e bem assim a fonte das ditas manifestações de fortuna, ficou cabalmente demonstrado e provado.

Em resumo e conclusão, a sentença recorrida não incorreu no erro de julgamento, por errónea interpretação e violação dos comandos normativos ínsitos nos artºs 74º e 75º da LGT, que lhe vem imputado pela Recorrente, devendo, consequentemente, o recurso ser julgado manifestamente improcedente,

Como é de Justiça!”

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de ter deixado de funcionar a favor do sujeito passivo a presunção de veracidade das respetivas declarações, cabendo a este a demonstração dos factos constitutivos dos seus direitos, o que não sucedeu?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A. O Impugnante, no ano de 2004, encontrava-se colectado para o exercício da actividade de advogado e enquadrado em sede de IRS no regime da contabilidade organizada por opção (acordo das partes);

B. Por Ordem de Serviço n.º OI 200606433, foi realizada uma acção inspectiva ao Impugnante, com vista à fiscalização da sua situação tributária no âmbito do IRS, com incidência no ano de 2004, podendo, entre o mais, ler-se no Relatório final respectivo, elaborado em 19 de Novembro de 2008 (cf. doc. 4, junto com a p. i. a fls. 24 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido):


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C. Sobre o Relatório final referido na letra anterior, foram proferidos despacho e parecer concordantes, com o seguinte teor essencial (Idem):



D. Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos anexos ao Relatório final referido na letra B supra, com o seguinte índice (cf. fls. 46 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido):



E. Das correcções efectuadas, resultou a liquidação de IRS n.º 20085004704238, emitida em 6 de Dezembro de 2008, referente ao ano de 2004, no valor de € 25.080,50 e respectiva liquidação de juros compensatórios, no montante total de € 28.248,58 (cf. docs. 1 a 3, juntos com a p. i. a fls. 20 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e prints informáticos a fls. 558 e segs. do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

F. A p. i. da presente impugnação judicial deu entrada em juízo em 20 de Abril de 2009 (cf. carimbo aposto a fl. 2, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

G. O Impugnante pagou a M… apenas um terço de € 13.155,13, uma vez que esta colaboradora trabalha para os três advogados do escritório e é paga por todos eles, em partes iguais (cf. depoimentos das testemunhas inquiridas, sobretudo da primeira e da segunda, que são, respectivamente, colega de escritório e secretária de todos os advogados do escritório);

H. Do mesmo modo, são pagas as restantes despesas globais do escritório; só a renda é que é em moldes diversos, tendo em consideração o tamanho do gabinete de cada advogado (Idem);

I. Todos os advogados do escritório incluem, como despesa, nas respectivas contabilidades, a parte que pagam das despesas globais do escritório (Idem e documentos contabilísticos a fls. 250 e segs. Do anexo 10 ao Relatório final referidos nas letras B e D supra, a fls. 273 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

J. Do montante de € 66.739,16, referente ao cliente J…, o Impugnante apenas recebeu € 8.079,00, apesar de ter sido acordada a redução daquele montante, o pagamento em prestações e o recebimento por conta do cliente, uma vez que este tinha dificuldades financeiras e não podia pagar (cf. depoimentos das testemunhas inquiridas, sobretudo da segunda, que é secretária de todos os advogados do escritório e recibos n.ºs AGG 335692, AGG 335694, AIJ 330403 e AIR 949802, referidos no anexo 2 ao Relatório final referidos nas letras B e D supra, a fls. 51 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

K. Do montante de € 4.454,00, referente à cliente M…, o Impugnante apenas recebeu € 3.599,00, apesar de ter sido acordado o pagamento em prestações, uma vez que não foi paga a 5.ª e última prestação, no montante de € 855,00 (cf. depoimentos das testemunhas inquiridas, sobretudo da segunda, que é secretária de todos os advogados do escritório, quatro cheques a fls. 204 e segs. E carta a fl. 209 do anexo 6 ao Relatório final referidos nas letras B e D supra, a fls. 227 e segs. e 232, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

L. Havia disponibilidade financeira para a compra da casa porque tinha chegado ao fim um processo que o Impugnante tinha com outro colega, relacionado com vários trabalhadores da L… e essa importância serviria para dar de entrada para a casa, com a intenção de eventualmente vender a deles e contrair empréstimo para custear o restante (cf. depoimentos das testemunhas inquiridas, sobretudo da última, que é companheira do Impugnante há mais de 37 anos)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Nada mais resultou provado, com interesse para a decisão a proferir”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Assenta a convicção do tribunal no exame dos documentos constantes dos autos e do PAT apenso, atenta a fé que merecem e o facto de não terem sido impugnados, na posição processual assumida pelas partes nos articulados e bem assim, nos depoimentos das testemunhas inquiridas, que foram prestados com isenção, credibilidade, coerência com a prova documental e revelando conhecimento directo dos factos, tal como referido em cada letra do probatório.

Em relação ao montante de € 8.079,00, foi assertiva a referência ao mesmo, embora por aproximação, por parte da segunda testemunha inquirida e o mesmo corresponde ao valor dos recibos n.ºs AGG 335692, AGG 335694, AIJ 330403 e AIR 949802 (cf. letra J do probatório).

Em relação ao montante de € 3.599,00, foi decisiva a referência em cada um dos quatro cheques ao montante de € 855,00 e na carta a que se encontra por pagar à 5.ª e última prestação (cf. letra K do probatório)”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, em virtude de ter deixado de funcionar a favor do sujeito passivo a presunção de veracidade das respetivas declarações, cabendo a este a demonstração dos factos constitutivos dos seus direitos, o que não sucedeu.

Apreciando.

Nos termos do art.º 75.º da Lei Geral Tributária (LGT), na redação à data:

“1 - Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.

2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;

b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;

c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objetivos da atividade de base técnico-científica previstos na presente lei.

d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A”.

Por seu turno, a regra geral em termos de distribuição do ónus da prova consta do art.º 74.º, n.º 1, do mesmo diploma, segundo o qual:

“O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

In casu, atentando no relatório de inspeção tributária (RIT), verifica-se que a administração tributária (AT) extraiu as seguintes conclusões:

a) Começa a AT por referir, a título de antecedentes, que o ora Recorrido adquiriu um imóvel pelo valor de 354.645,30 Eur, tendo declarado um rendimento global de 1.447,47 Eur.;

b) Menciona-se que, notificado para o efeito (ainda que não se esclareça em que procedimento em concreto), o ora Recorrido exerceu o seu direito de audição, invocando, designadamente, o recurso a crédito, o que terá estado na origem de despacho visando a consulta, recolha e cruzamento de elementos da atividade profissional de advogado;

c) Nessa sequência, a AT, elencando elementos das declarações de rendimentos apresentadas entre 2003 e 2006, que refletiam a opção pela contabilidade organizada, sublinha ainda a existência de “importâncias despendidas (…) reveladoras de inerente capacidade financeira, não compatível com o lucro declarado”, concretamente seguro de acidentes pessoais / de vida e plano poupança reforma;

d) A AT indicou, ainda, que eram feitos pagamentos da categoria A, que, em 2004, foram no valor de 13.155,13 Eur.;

e) Concluiu no sentido de haver elementos indiciadores de anomalias subjacentes aos rendimentos declarados;

f) Foi feito confronto entre os recibos modelo 6, as notas de despesas e de honorários enviadas aos clientes e os recebimentos, concluindo a AT, designadamente, que havia verbas, quanto a despesas, não objeto de contabilização e que não geravam emissão de recibos;

g) Foram pedidos extratos de 2 contas bancárias, tendo o ora Recorrido explicitado que uma delas respeitava as despesas comuns do escritório, da titularidade do Recorrido e dos demais advogados que exerciam funções no mesmo espaço, e que a outra era conjunta do Recorrido e da sua companheira, entendendo que o acesso a tais dados pela AT deveria ser feito depois de procedimento legal de derrogação do sigilo bancário, e que entregara todos os elementos bancários pertinentes;

h) A AT sublinhou a obrigatoriedade decorrente do disposto no art.º 63.º-C da LGT;

i) A administração terminou, elencando, com base nos anexos 4 e 7, os proveitos considerados omitidos em 2004.

Considerando esta base fundamentadora, desde já é de sublinhar o seguinte:

i. A menção às discrepâncias existentes, que poderiam sustentar o desencadear do procedimento previsto no art.º 89.º-A da LGT, não podem ser objeto de valoração. Com efeito, para as mesmas, o legislador consagrou um procedimento próprio, previsto na mencionada disposição legal, visando a fixação da matéria tributável e dispondo de regras próprias, quer em termos de reação graciosa, quer de reação contenciosa. Se a AT o desencadeou ou não, tal não resulta evidenciado no RIT, mas não se pode valorar uma situação de alegada discrepância no procedimento em causa nos presentes autos, dado que não é o meio próprio para o efeito e, por esse motivo, nem havia como o Recorrido contra o mesmo se insurgir;

ii. A AT desconsiderou o facto de as despesas comuns do escritório, onde se incluem os pagamentos à funcionária, serem partilhadas entre os três advogados que ali trabalham, como resultou provado e não foi impugnado (cfr. factos G., H. e I.);

iii. A AT não teve em conta que o art.º 63.º-C da LGT foi aditado pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro, não estando, pois, em vigor no ano de 2004;

iv. A AT não utilizou o procedimento de derrogação do sigilo bancário, para as contas que entendia relevantes para a sua análise e que não eram da titularidade exclusiva do ora Recorrido;

v. Em sede de exercício do direito de audição, o ora Recorrido aceitou as correções no valor de 7.440,00 Eur., contestando o demais (ou seja, a correção relativa a J… e a parte da correção relativa a M…), não tendo sido aceites os seus argumentos pela AT;

vi. Confrontando os elementos de suporte que sustentaram a posição da AT, ao elencar os valores a corrigir, constata-se que:

a. No anexo 3 ao RIT, no tocante à correção atinente a J…, foi remetida uma nota de honorários, em 2004, relativa a ação de execução específica de contrato-promessa, instaurada em 1994;

b. Dessa nota de honorários, consta um elenco de todos os serviços prestados e despesas suportadas desde 1992 até 2003, definindo-se, a final, o total dos honorários por todos os serviços prestados de 66.739,16 Eur.;

c. No anexo 6 do RIT, na parte atinente a M…, consta, por outro lado, uma nota de honorários datada de 29.01.2004, igualmente contendo um elenco de todos os serviços prestados e despesas suportadas ao longo de cinco anos, desde 1999 até janeiro de 2004, com um valor total de honorários, “por todos os serviços prestados”, de 4.454,00 Eur.

Ora, como se pode concluir do exposto, a AT partiu de uma série de pressupostos ou errados, no tocante à descrição geral das despesas e encargos do Recorrido, ou não passíveis de serem chamados à colação neste procedimento, no tocante à discrepância entre os valores declarados como rendimento e o valor de imóvel adquirido (pressupostos pertinentes, sim, no procedimento a que respeita o art.º 89.º-A da LGT). Ademais, teve, como elemento de suporte para as correções postas em causa, notas de honorários que não permitem, com qualquer segurança, determinar qual o valor que pode ser imputado a 2004. Veja-se que, no caso de J…, tal nota não faz sequer qualquer referência a serviços prestados em 2004 e que, no caso de M…, os abrangidos terão ocorrido entre 1999 e 2004.

Ora, é certo que, para os sujeitos passivos enquadrados na categoria B de IRS no regime de contabilidade organizada, há que ter em conta o princípio da especialização dos exercícios (cfr. o art.º 18.º do CIRC ex vi n.º 6 do art.º 3.º do CIRS), o que implica que o rendimento possa ficar sujeito a imposto, mesmo antes de ser recebido ou posto à disposição.

Não sendo, in casu, as notas de honorários elementos suficientemente conclusivos a este respeito, não permitindo, com a segurança exigível, aferir a que exercício correspondem os serviços prestados [relembre-se que, no caso de J…, a nota de honorários respeita a anos até 2003 e que, no caso de M…, grande parte da correção foi aceite pelo Recorrido (3.599,oo Eur.) e que os serviços prestados abarcaram também os anos de 1999 a 2003], verifica-se que, também nesta parte, a AT partiu de uma série de pressupostos errados em relação à situação global do Recorrido.

Adicionalmente, a AT não lançou mão dos expedientes ao seu alcance, designadamente em termos de derrogação do sigilo bancário, para poder sustentar a sua posição, não tendo, sequer, tido o cuidado de contactar com os clientes ali identificados.

Em suma, conclui-se que a administração não cumpriu com as exigências que resultam do art.º 74.º, n.º 1, da LGT, não tendo, pois, afastado cabalmente a presunção de veracidade das declarações do contribuinte, que resulta do n.º 1 do art.º 75.º do mesmo diploma legal.

Concordamos, ademais, com a conclusão extraída pelo Tribunal a quo, ainda que com fundamentação ligeiramente distinta, no sentido de que estamos, no mínimo, face à prova produzida, perante uma situação de fundada dúvida da ocorrência do facto tributário, que reverte contra a AT, atento o disposto no art.º 100.º, n.º 1, do CPPT, porquanto era a ela que cabia o ónus da prova do afirmado.

Assim sendo, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 16 de maio de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Margarida Reis)

(Teresa Costa Alemão)