Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1591/13.1BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:11/06/2025
Relator:LUÍS BORGES FREITAS
Descritores:ATRIBUIÇÃO DO TÍTULO DE ESPECIALISTA
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL
DL 206/2009
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário:I - Na fixação do sentido da lei o intérprete não pode, imediatamente, procurar o sentido que julga mais adequado, ponderando se o mesmo é admitido pela letra da lei, na medida em que os vários sentidos que, em abstrato, poderão ser admitidos não partem em situação de igualdade. A primazia – inicial, bem entendido – tem de ser dada àquele que corresponde à letra da lei, sob pena de o intérprete correr o risco de sobrepor a sua própria solução – e ainda que esta tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal – à que foi efetivamente pretendida pelo legislador.
II - Qualquer interpretação restritiva - que, evidentemente, não se recusa de forma antecipada - leva sempre em si uma compressão da segurança dos destinatários da norma, como o caso concreto bem demonstra.
III - O artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 206/2009, de 31 de agosto, na sua versão inicial, exigia 10 anos de experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas as provas.
IV - Dali não resultava a impossibilidade de ser considerada a experiência no exercício de funções docentes e de consultadoria gastronómica.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Social
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou, em 20.11.2013, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, ação administrativa especial contra a ESCOLA SUPERIOR DE HOTELARIA E TURISMO DO ESTORIL, tendo como Contrainteressado G…, formulando os seguintes pedidos:

«a) A anulação do título de especialista conferida a G…;
b) Declarados nulos os actos subsequentes nomeadamente o contrato de trabalho em funções públicas e transição para a modalidade de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com período experimental de 5 anos, do Mestre G…, com a categoria de Professor Adjunto.
c) Salvaguardando-se os efeitos p. no art.83.° e 84.° da Lei n° 59/2008, de 11 de Setembro».
*

Por sentença de 15.3.2019 o tribunal a quo julgou a ação improcedente.
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Inconformado, o Autor interpôs recurso daquela decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1- O objeto do recurso é circunscrito à interpretação jurídica da condição prevista no art.7º al.a) segunda parte Dec-Lei nº 2006/2009, de 31.08, onde se exige a detenção no mínimo de 10 anos de experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas provas, condição esta de preenchimento obrigatório e necessário para se poder ser admitido às provasdo grau de especialista;
2- Da interpretação que vier a ser feita, terão que se retirar as necessárias ilações no que concerne a subsunção da matéria de facto à de direito;
3- O recorrente entende que a interpretação feita pelo tribunal a quo, no sentido de que a experiência profissional, inclui a experiência letiva e de consultadoria esporádica, não tem na letra da lei, qualquer apoio, bem como não pode resultar do seu elemento sistemático, nem teleológico.
4- O recorrente entende que a condição de dez anos de experiência profissional, prevista no art.7º al.a) do Dec-Lei nº 2006/2009, de 31.08 terá que ser uma experiência meramente prática e fora da atividade letiva e da atividade esporádica de consultadoria.
5- Para tal entendimento concorre a interpretação conjugada do art. 7º al.a) e disposto no nº3 do art. 9º, ambos do Dec-Lei nº 2006/09 de 31 de Agosto, bem como o disposto 49.º no seu n.º 2,RJIFS, onde se estatui: “A maioria dos docentes detentores do título de especialista deve desenvolver uma atividade profissional na área em que foi atribuído o título”, ou seja deve manter um contacto direto com o meio profissional da sua especialidade
6- Este mesmo entendimento é perfilhado pelo Conselho Nacional de Educação, no parecer por si elaborado com o nº 12/2018, Diário da República n.º 102/2018, Série II de 2018-05-28, o seguinte: “Por uma questão de credibilidade e clarificação do sistema de ensino superior, deve-se considerar uma revisão do conjunto desta legislação, em ordem a definir o que se entende por “experiência profissional”, designadamente no que se refere à sua ligação efetiva a uma atividade no ensino superior, para além da docência.”
7- A interpretação do citado dispositivo legal efetuada pelo tribunal “a quo”, é, em nossa opinião, incorreto e retira credibilidade às instituições de ensino superior, a tal ponto que de acordo com o citado parecer já há quem advogue a supressão de tal grau académico.
8- A interpretação dada ao citado preceito legal, não pode ser maximalista, sob pena de vir a permitir outros títulos obtidos de modo fraudulento, com o risco inerente no respetivo desempenho de funções de quem os obtém.
9- Tudo exposto, deverá a presente recurso ser julgado procedente, e substituída a decisão por outra onde se faça a correta interpretação da lei.
10- E consequentemente e face aos factos dados como provados, ser conhecida a restante matéria de facto e de direito, subsumindo-se corretamente os factos ao direito de acordo com o anteriormente exposto neste recurso sob a epigrafe da subsunção dos factos ao direito e que aqui se dá por reproduzida.
11- E, de onde resultará necessariamente: A impossibilidade de G…, ter sido admitido a prestar provas, declarando-se a anubilidade da declaração efetuada em 16.08.2012, e constante do ponto 8 da matéria de facto dada como provada, por vicio de violação de lei.
E, consequentemente, por padecerem igualmente de erro nos pressupostos de direito e de facto, e como tal padecerem de vicio de violação de lei, deverão ser julgados procedentes, os restantes pedidos da ação, a saber:
a) A anulação do título de especialista conferida a G…;
b) Declaração de nulidade dos atos subsequentes nomeadamente o contrato de trabalho em funções públicas e transição para a modalidade de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, com período experimental de 5 anos, do Mestre G…, com a categoria de Professor Adjunto.
c) Salvaguardando-se os efeitos p. no art.83.º e 84.º da Lei nº 59/2008, de 11 de setembro.
Tudo exposto, deverá ser o presente recurso julgado procedente, e revogada a sentença e substituída por outra, onde se interprete corretamente a disposição legal, e consequentemente julgue procedente por provada a presente ação administrativa.
Porem, V.Exs.ª farão a acostumada
Justiça!
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Os Recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

*

Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.


II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, a questão que se encontra submetida à apreciação deste tribunal de apelação consiste em determinar se a sentença recorrida errou ao considerar que relevava - para os efeitos da experiência profissional prevista no artigo 7.º/a) do Decreto-Lei n.º 206/2009, de 31 de agosto – o exercício de funções docentes e de consultadoria gastronómica.


III
Nos termos do artigo 663.º/6 do Código de Processo Civil, remete-se para a matéria de facto constante da sentença recorrida.


IV
1. O Decreto-Lei n.º 206/2009, de 31 de agosto, que aprovou o regime jurídico do título de especialista a que se refere o artigo 48.º da Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro (regime jurídico das instituições de ensino superior), estabelecia o seguinte no seu artigo 7.º:

«Pode requerer a realização das provas quem satisfaça, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Deter formação inicial superior e, no mínimo, 10 anos de experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas as provas;
b) Deter um currículo profissional de qualidade e relevância comprovadas para o exercício da profissão na área em causa».

2. Pediu-se ao tribunal a quo que determinasse se o Contrainteressado detinha os referidos 10 anos de experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas as provas. O que passava por responder à questão de saber se no cômputo desses anos relevava a experiência obtida no exercício de funções docentes e ou de consultadoria gastronómica.

3. A sentença recorrida respondeu afirmativamente. Do seu discurso fundamentador extrai-se, como especial interesse, o seguinte:

«Neste contexto, surge-nos o artigo 7º do DL 206/2009, de 31/08, sistematicamente inserido no CAPÍTULO III, denominado «admissão às provas», o qual, sob a epígrafe «condições de admissão às provas», determina que:
«Pode requerer a realização das provas quem satisfaça, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Deter formação inicial superior e, no mínimo, 10 anos de experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas as provas;
b) Deter um currículo profissional de qualidade e relevância comprovadas para o exercício da profissão na área em causa.».
Nos termos do artigo 9, do DL 206/2009, de 31/08: o requerimento deve ser instruído com a indicação da área de realização das provas e ser acompanhado de um exemplar dos seguintes elementos:
«a) Currículo, com indicação do percurso profissional, das obras e dos trabalhos efectuados e, quando seja o caso, das actividades científicas, tecnológicas e pedagógicas desenvolvidas;
b) Trabalho de natureza profissional a que se refere a alínea b) do artigo 5º;
c) Obras mencionadas no currículo que o candidato considere relevante apresentar.
A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Além disso, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados [artigo 9, do CC].
(…)
O segmento da norma do artigo 7º, do DL 206/2009, de 31/08, aqui em questão, fonte do dissídio, que é preciso interpretar é o da alínea a), parte II, quando exige deter, no mínimo, 10 anos de «experiência profissional» na área para que são requeridas as provas.
A área em causa no presente caso é a de «serviços» de cozinha / pastelaria, correspondente ao Código nº 811 da Classificação Nacional das áreas de Educação e Formação, previstas na Portaria nº 256/2005, de 16/03, do Ministério das Actividades Económicas e do Trabalho, como resulta do probatório.
O Autor defende que por «experiência profissional» apenas se deve entender o efetivo exercício da profissão na respetiva área, ou seja, a efetiva prestação de «serviços» de cozinha e pastelaria.
Por outra parte a Ré e o CI entendem que essa interpretação é restritiva e que é de excluir tanto mais que as atividades de ensino são de natureza prática, sendo difícil distinguir a diferença relevante entre, no fundo, a confeção e demais serviços inerentes de cozinha e de pastelaria “dentro do ensino”, –na expressão do A-, e «fora do ensino», em ambiente de uma empresa e estabelecimento que realiza serviços de cozinha e de pastelaria.
Ora, o legislador pretendeu que fosse estabelecido um corpo docente nas instituições de ensino politécnico com notória vocação de ensino prático, mas, através do aproveitamento dos conhecimentos práticos e teóricos dos candidatos ao grau/ título de especialista na área da cozinha e da pastelaria. O título é obtido mediante provas públicas as quais também abarcam essas duas vertentes, e até outras, como se pode ver dos citados preceitos legais.
Em harmonia com tal desiderato, o legislador mandou instruir o requerimento [artigo 9, do DL 206/2009, de 31/08]: não apenas com o «a) Currículo, com indicação do percurso profissional», mas também com as «obras» e os «trabalhos efectuados» e, as «actividades científicas», «tecnológicas» e «pedagógicas» desenvolvidas»; «b) Trabalho de natureza profissional»; e «c) Obras mencionadas no currículo» que o candidato considere» relevante.
Assim, embora o legislador tenha querido gizar um corpo docente do ensino politécnico com vocação prática, o mesmo considerou como «experiência profissional» também o exercício de actividades científicas, tecnológicas e «pedagógicas» na área da cozinha/ pastelaria.
Cabe depois ao júri, nos termos do artigo 7º, al b), do DL 206/2009, de 31/08, ajuizar, se o currículo profissional do candidato tem ou não «qualidade e relevância» para o exercício da profissão na área em causa. No entanto, não parece que o legislador tenha querido afastar, de forma absoluta, bem pelo contrário, da «experiência profissional» do candidato, a atividade deste na prestação de serviços da área de cozinha e pastelaria no quadro do ensino da prática da cozinha e da pastelaria, ou seja “dentro do ensino”.
O que vem de ser dito harmoniza-se com a circunstância de, pela própria natureza das coisas, o “ensino” das atividades da área de cozinha e pastelaria ser também ele um exercício prático, podendo não ser fácil distinguir a prática de cozinha e pastelaria [da área, entenda-se; dizemos assim para simplificar e facilitar discursos] num quadro de “ensino”, --“dentro do ensino”--, da prática de cozinha e pastelaria num quadro exterior ao ensino, por exemplo, num ambiente de um restaurante ou de uma pastelaria.
(…)
Deve notar-se que, o legislador quando emprega a expressão «experiência profissional» se reporta à área, no caso, da cozinha e pastelaria. Mas não distingue, podendo-o ter feito, o que seja essa “experiência” e o que seja “profissional”, apontando apenas para se trate do exercício da “profissão” na área na qual o candidato pretende obter o título de especialista.
2.2.Ora definido que fica que a expressão «experiência profissional» usada pelo legislador no artigo 7º, al a), do DL 206/2009, de 31/08, não exclui toda e qualquer actividade na área a que respeita o título pretendido, seja dentro seja fora do ensino, temos de concluir que, para efeitos da contagem dos 10 anos, ali referidos, podia ter-se em conta também a «experiência profissional» no âmbito do ensino, concluímos que o contra-interessado não devia ser excluído, como não foi, com esse fundamento.
Por outro lado, como referem a Ré e o CI, mesmo que se levasse em conta a interpretação propugnada pelo A, o CI possuía 10 anos de «experiência profissional» ‘fora do ensino’.
O vasto currículo do CI dá-nos nota, como deu ao júri, --não obstante a citada declaração de voto--, que foi chefe de cozinha/pastelaria no período de maio de 1998 a fevereiro de 2002 e Consultor Gastronómico na área de cozinha/pasteleira, no período de março de 2002 a outubro de 2006, na empresa Quinta …, o que perfaz 8 anos e 5 meses.
E que exerceu as funções de ajudante de cozinha, no período de 02 de janeiro de 1993 a 30 de junho de 1995, e pasteleiro, no período de 01 de julho de 1995 a 01 de julho de 1999, no instituto de Formação Turística / Centro Escolar Turístico Hoteleiro do Estoril, o que perfaz 6 anos e 6 meses. E exerceu as funções Chefe de cozinha, no período de 01 de junho a 31 de agosto de 1994, o que perfaz 3 meses. Só por aqui, mesmo sem considerar outros elementos se pode verificar que o CI excedeu em muito os 10 anos «experiência profissional» exigidos».

4. Julga-se que o assim decidido se deve manter.
No entanto, e para boa compreensão do recurso, importa efetuar a seguinte síntese:

a) A sentença recorrida decide com dois fundamentos:

i) É válida, para o efeito, a experiência obtida em contexto de docência;
ii) Mesmo que assim não se entendesse, o Contrainteressado detém os 10 anos de experiência profissional legalmente exigidos.

b) O Recorrente/Ministério Público opõe-se com dois fundamentos:

i) Não é válida, para o efeito, a experiência obtida em contexto de docência;
ii) O Contrainteressado não detém, em nenhum caso, os 10 anos de experiência profissional legalmente exigidos, na medida em que também não pode relevar o exercício de funções de consultadoria.

5. Vejamos, então, a questão relativa à docência. Relembre-se que o artigo 9.º do Código Civil, sob a epígrafe Interpretação da lei, estabelece o seguinte (segue-se, nesta parte, o discurso constante do acórdão, do ora relator, exarado no processo n.º 2214/13.4BELSB):

«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

6. Da disposição legal transcrita – que, como se sabe, consagra princípios desenvolvidos pela doutrina ao longo dos tempos – resulta que o texto da lei é, por um lado, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe ainda, como refere Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993, p. 182), «uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei». Ou seja, assume-se como ponto de partida e como limite de interpretação. No entanto, e sem prejuízo desse limite, o referido artigo 9.º é claro ao determinar que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo», devendo o intérprete socorrer-se, para tal, dos elementos sistemático, histórico e teleológico.

7. Ora, na fixação do sentido da lei o intérprete não pode, desde logo, procurar o sentido que julga – ele próprio - mais adequado, ponderando se o mesmo é admitido pela letra da lei. Não pode porque os vários sentidos que, em abstrato, poderão ser admitidos não partem em situação de igualdade. A primazia – inicial, bem entendido – tem de ser dada àquele que corresponde à letra da lei, sob pena de o intérprete correr o risco de sobrepor a sua própria solução – e ainda que esta tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal – à que foi efetivamente pretendida pelo legislador. O que significa, então, que o intérprete tem, desde logo, de aferir se os elementos racionais de interpretação admitem o sentido que resulta da literalidade da lei. Porque se o admitirem o respeito pelo pensamento legislativo dificilmente permitirá a opção por outras vias, ainda que as mesmas tenham na lei um mínimo de correspondência verbal. É o que resulta da conjugação dos três números que compõem o artigo 9.º do Código Civil, e que traduz igualmente uma exigência de segurança jurídica para os destinatários das normas.

8. Assim sendo, há que indagar se existe substrato racional para a solução que, na sua literalidade, não exclui a experiência profissional obtida em contexto de docência. E julga-se que há, como explicou a sentença recorrida, nos termos acima transcritos.

9. Portanto, não há que sobrepor-lhe a explicação, ainda que igualmente racional, de uma solução que corresponde, afinal, a uma interpretação restritiva dessa norma. Porque é disso que se trata, já que, onde o legislador estabeleceu que releva a experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas as provas, o Recorrente/Ministério Público pretende que se leia experiência profissional no âmbito da área para que são requeridas as provas, exceto a obtida em contexto de docência. E qualquer interpretação restritiva - que, evidentemente, não se recusa de forma antecipada - leva sempre em si uma compressão da segurança dos destinatários da norma, como o caso concreto bem demonstra.

10. Relembre-se, aliás, «a circunstância de, pela própria natureza das coisas, o “ensino” das atividades da área de cozinha e pastelaria ser também ele um exercício prático, podendo não ser fácil distinguir a prática de cozinha e pastelaria [da área, entenda-se; dizemos assim para simplificar e facilitar discursos] num quadro de “ensino”, --“dentro do ensino”--, da prática de cozinha e pastelaria num quadro exterior ao ensino, por exemplo, num ambiente de um restaurante ou de uma pastelaria». Disse-o a sentença recorrida, e julga-se que bem.

11. É claro que não se afasta o acerto da solução correspondente à interpretação efetuada pelo Recorrente/Ministério Público. Hoje, e por via da alteração introduzida pelo artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 27/2021, de 16 de abril, o artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º 206/2009, de 31 de agosto, já estabelece que «[p]ara efeitos da avaliação da experiência profissional, referida no número anterior, apenas é considerada a experiência profissional obtida após a conclusão do grau académico e em contextos distintos da docência no ensino superior». No entanto, trata-se de solução inovadora, que não se extrai da redação inicial.

12. De resto, e ao contrário do que pressupõe o Recorrente/Ministério Público, julga-se ser totalmente imprestável a convocação do parecer n.º 12/2018 do Conselho Nacional de Educação, na medida em que o mesmo não nos fornece qualquer subsídio interpretativo relativamente à norma em causa. Aliás, a fornecer até seria de sentido contrário ao pretendido pelo Recorrente/Ministério Público, na medida em que o mesmo parece partir da constatação da solução dada pela sentença recorrida, apontando para a necessidade de «uma revisão do conjunto desta legislação, em ordem a definir o que se entende por "experiência profissional", designadamente no que se refere à sua ligação efetiva a uma atividade no ensino superior, para além da docência».

13. De qualquer modo, e como já anteriormente se referiu, a sentença recorrida considerou que, mesmo que não se relevasse o exercício de funções docentes, o Contrainteressado detinha os 10 anos de experiência profissional legalmente exigidos. Isto porque não excluiu o exercício das funções de consultadoria gastronómica.

14. Nesta questão não é fácil compreender o entendimento do Recorrente/Ministério Público. Por um lado, alega que deve ser excluída a «atividade esporádica de consultadoria». O que pressuporia o relevo da atividade regular de consultadoria. Mas logo invoca que não pode ser considerada a atividade de «mera consultadoria», ideia que, aliás, repete. Não por acaso, de resto, que o Recorrido/Contrainteressado tenha feito notar que «o que é facto é que o Ministério Público, não diz uma palavra que seja para (tentar) fundamentar essa sua "teoria" de que a "mera" (?) atividade de consultadoria não conte como experiência profissional, limitando-se a concluir, sem mais, que tal período "(...) não corresponde ao desempenho de funções técnicas e de responsabilidade exercidas de forma continuada, de onde resulte uma experiência no âmbito de saber fazer." - o que, por si só, nada nos diz».

15. Independentemente de ficar por esclarecer qual é, efetivamente, a interpretação do Recorrente/Ministério Público, vale, quanto às funções de consultor gastronómico, o essencial do que já anteriormente foi explanado para as funções docentes, com a particularidade de, quanto àquelas, não terem sido afetadas pela alteração introduzida pelo artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 27/2021, de 16 de abril. Vale, ainda, o facto de nada se saber quanto ao concreto conteúdo de tais funções. Ou seja, sabendo-se que as mesmas poderão abranger, em abstrato, a própria criação e atualização de menus, em contacto direto com a cozinha, em momento algum os autos mostram que, em concreto, nada disso sucedeu.

16. Aliás, não deixa de impressionar a eliminação pretendida pelo Recorrente/Ministério Público quanto às funções de consultadoria gastronómica. Na verdade, tais funções, na interpretação pretendida, são um nada. É-lhes negada natureza prática. Natureza teórica seguramente que também não terão. Então que natureza lhes é conferida, e por via da qual não devem relevar como experiência profissional na área em que a consultadoria é exercida?

17. Quanto ao modo alegadamente «esporádic[o]» como tais funções teriam sido exercidas pelo Recorrido/Contrainteressado, a matéria de facto não nos fornece qualquer elemento que possa conduzir à adjetivação efetuada pelo Recorrente/Ministério Público.

V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente/Ministério Público (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil), nos limites previstos no artigo 4.º/7 do Regulamento das Custas Processuais, tendo em conta que beneficia da isenção conferida pelo n.º 1/a) do mesmo artigo (vd. ainda o disposto no artigo 26.º/6).

Lisboa, 6 de novembro de 2025.

Luís Borges Freitas (relator)
Ilda Côco
Teresa Caiado