Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:51/24.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:08/07/2024
Relator:ELIANA CRISTINA DE ALMEIDA PINTO
Descritores:LEI DA AMNISTIA (LEI Nº 38-A/2023)
EXCEÇÕES DO ARTIGO 7.º DA LEI Nº 38-A/2023
CONCEITO DE “REINCIDENTE” – ARTIGO 75.º E 76.º DO CP
Sumário:I - De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritária, tratando-se de providências de exceção, não comportam, por essa mesma razão, aplicação analógica, tal como estatuído no artigo 11.º do Código Civil (doravante CC), nem tão pouco admitem interpretação extensiva ou restritiva. Assim sendo, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9.º do CC.
II - As medidas de clemência, como formas de realização da justiça, encontram fundamentação nas comemorações subjacentes à realização de um determinado evento, como seja, designadamente, a visita de uma figura ilustre, uma vitória militar, a celebração do Natal, a eleição de um chefe de Estado, ou, entre outras, desideratos mais pragmáticos como o da tentativa de minimizar o problema da sobrelotação das prisões. Pois bem, a amnistia é uma medida de graça, geral, objetiva e impessoal, da competência da Assembleia da República, aplicada em função do tipo de crime. Por esta razão, deve atentar-se à estatuição abstratamente cominada na lei, e não à pena aplicada a um agente concretamente determinado.
III - No caso, a propósito da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, o Governo, como forma de honrar a visita de Sua Santidade o Papa Francisco, publicou, no dia 2 de agosto de 2023, a Lei nº 38-A/2023 (doravante Lei da Amnistia), que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações, a entrar em vigor no dia 1 de setembro de 2023, tal como consta do artigo 1.º e 15.º da referida lei. Decorre, ainda, da interpretação literal do artigo 2. º, n.º 2, alínea b) e do artigo 6.º da Lei da Amnistia que as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares, praticadas até às 00h00 horas de 19 de junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, são também amnistiadas.
IV - Face ao exposto é inegável a aplicação aos autos da Lei da Amnistia, a não ser que se verifique alguma das condições de exceção, sendo certo que o artigo 7º, nº 1, alínea j) da Lei da Amnistia determina que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os reincidentes.
a. Mas a que se reporta este regime excecional?
V - A delimitação do conceito de “reincidência” feito no Acórdão recorrido, constante do artigo 7º, nº 1, alínea j) daquela Lei para efeitos de exclusão da aplicação das medidas de clemência aí consagradas, no que se refere a infrações disciplinares, é discutível.
VI - Está, pois, em causa a aplicação da norma do artigo 53º, nº 2 do RDLPFP, defendendo a Recorrente que para efeitos de aplicação do conceito de “reincidente” se deve atender àquele regulamento de disciplina, para interpretar ou integrar o conceito de reincidência estabelecido no artigo 7.º, nº 1, alínea j) da Lei da Amnistia.
VII - Tratando-se de matéria compreendida na reserva absoluta da competência da Assembleia da República, sob pena de violação do artigo 112º, nº 5 da CRP e do artigo 136º do CPA, tal operação interpretativa está vedada ao intérprete.
VIII - Constitui entendimento firme que, de acordo com o princípio da legalidade disposto no artigo 112.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e no artigo 136.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), os atos legislativos – como a Lei da Amnistia – não podem ser interpretados ou integrados por via de normas regulamentares. Recorda-se, também, que a norma contida no artigo 53.º n.º 2 do RDLPFP viola o artigo 57.º do Decreto-Lei n.º 248 - B/2008, de 31 de dezembro, que estabelece o regime jurídico das federações desportivas (“RJFD”) e que estatui que para efeitos disciplinares, os conceitos de “reincidência e de acumulação de infrações” são idênticos aos constantes do Código Penal [CP].
IX - Portanto, o conceito de reincidência constante da norma do artigo 7.º, nº 1, alínea j) da Lei da Amnistia não pode ser preenchido através do recurso ao conceito do artigo 53º, nº 2 do RDLFP, mas somente em função do conceito constante dos artigos 75º e 76º do CP.
X - E o artigo 75.º n.º 1 do Código Penal (“CP”) estabelece que a reincidência apenas se efetiva “…se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime…”.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam no Coletivo constituído para o presente Turno, no âmbito de Reclamação para a Conferência apresentada pela reclamante Federação Portuguesa de Futebol:


I – RELATÓRIO

FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL interpõe recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Arbitral do Desporto que concedeu provimento ao recurso interposto pelo SPORTING CLUBE FARENSE – ALGARVE FUTEBOL, SAD, anulando a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, ao abrigo do artigo 8.º/1, 2 e 5 da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, que aplicou a sanção de multa no valor de € 33.470,00 e 2 dias de jogo à porta fechada, por alegado comportamento racista por parte dos adeptos da recorrida.
Inconformado, o recorrente interpôs recurso desta decisão junto deste Tribunal, que decidiu em “DECISÃO SINGULAR”, julgando a sanção aplicada amnistiada, pois que estando em causa a aplicação de sanções disciplinares não superiores a suspensão, não constituindo a infração disciplinar, simultaneamente, ilícito penal não amnistiado pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, e sido praticada em data anterior a 19/06/2022, conforme estatui o artigo 2.º, n.º 1, e 6.º deste diploma legal.
Em todo o caso, inconformado com a “Decisão Sumária”, reclama para a conferência, alegando, em síntese:
A) A decisão sumária aponta a inexistência de recurso da matéria de facto, mas houve alegações de recurso quanto à matéria de facto dada como provada;
B) A decisão do TAD não aplicou a lei da amnistia porquanto entendeu que a sanção referente à realização de 2 jogos à porta fechada levantaria dificuldades interpretativas para se saber se se deve considerar este tipo de sanção superior à suspensão, já que este tipo de sanção está talhado para pessoas singulares e a realização do jogo “à porta fechada” está talhado para pessoas coletivas; e, por outro lado, sendo a demandante reincidente estaria fora da aplicação da lei da amnistia.
Defende que deve ser revogada a “Decisão Sumária”, pugnando que deve o Tribunal ad quem decidir o mérito da causa, por não estar amnistiada a sanção em causa.
***
E quanto às suas conclusões de recurso propriamente dito, o que baliza a pronúncia deste Tribunal, foi alegado, em síntese, que:
“...
1. É entendimento do Recorrente que a decisão proferida padece de vícios, quer no apuramento da matéria de facto, quer na solução de direito que propugnou, razão pela qual este Recurso versa matéria de facto e matéria de direito.
2. É entendimento do Recorrente que deveria ter sido dada como provada a seguinte matéria de facto:
a) O Campo Gémeos Castro, em Candoso, Guimarães não possuía sistema de som para anúncios ao público espectador, nem estava regularmente obrigado a possui-lo!
b) O diretor de segurança da Demandante, A........, presente no recinto de jogo identificou a pessoa que proferiu observações de natureza racista, dirigidas ao jogador, J........, tratando-se de um adepto idoso;
c) O Senhor A........ mandou um reforço de ARD's para o local antes de ter identificado o adepto, circunstância que serenou os ânimos;
d) O Comandante do Policiamento da PSP, L........, presente no recinto de jogo, foi informado pelo Senhor A........ de quem era o adepto, tendo aquele decidido que o mesmo não seria expulso, para não acicatar os ânimos e, para além disso, porque era idoso, ia ter o apoio do público, pelo que seria apenas identificado no final do jogo num auto a ser elaborado para o efeito;
e) O Senhor A........ acatou a referida ordem policial;
f) O delegado da FPF apareceu no local após o Senhor A........ ter identificado o adepto;
g) A Demandante tem implementadas as seguintes medidas destinadas à prevenção e combate a comportamentos racistas: (i) o equipamento é branco e preto: (ii) a decoração no estádio com frases contra comportamentos racistas, como sucedeu, por exemplo, aquando da realização de jogos da Liga das Nações; (iv) a existência de murais com antigos jogadores do VSC de raça negra; (v) o Relações Públicas é de raça negra – N…; (vi) a realização de ações nas escolas contra a violência e o racismo; (vii) a divulgação de vídeos e de mensagens por parte do speaker antes e depois dos jogos: (viii) a realização de ações de sensibilização e de formação dos adeptos, designadamente através do OLA:
h) A identificação do adepto permitiu que a Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto instaurasse um processo de contraordenação nos termos do qual o mesmo foi admoestado e lhe foi aplicada uma sanção assessória de interdição de acesso a recintos desportivos pelo período de 9meses;
4) Para formação da convicção quanto a estes fatos que deveriam ter sido dados como provados, resulta o depoimento da testemunha A........, em nada posto em causa nos autos, bem como a demais prova documental dada nos autos, tudo conforme resulta do corpo das alegações.
5) Desde sempre ressaltou à saciedade dos autos, vertida no relatório do delgado da FPF e do relatório do Chefe da Força policial, que terá sido apenas uma pessoa aquela que alegadamente dirigiu palavras de cariz racista ao Jogador J......... Resulta, também de forma abundante, que os elementos do Staff do VSC tentaram acalmar os ânimos da bancada única existente no recinto, partilhada por adeptos visitados e visitantes, ânimos esses que, na sua globalidade não tinham qualquer teor racista ou xenófobo (feita exceção daquele único adepto).
6) Foi precisamente por os elementos do VSC e os elementos da força policial, terem tentado ir acalmar os ânimos que foi possível ouvir, dentro daqueles ânimos exaltados, que havia uma única pessoa singular que estaria a dirigir palavras de cariz racista.
7) Apenas ao chefe da força policial cabia autoridade para remover aquele adepto da bancada, mas, no entanto, este esclareceu nos autos que: fls. 111, que «o infrator não foi expulso do recinto desportivo porque, os ânimos estavam exaltados por parte dos adeptos da equipa visitada e eram em número considerável, para que não houvesse uma reação violenta por parte desses adeptos que eram em número significativo», aditando que «uma intervenção musculada por parte da PSP poderia desencadear uma alteração da ordem pública, podendo por em risco terceiros, que nada tinham a ver com a situação», terminando concluindo que «por tal motivo entendeu-se intercetar e identificar o infrator apenas no final do jogo, tendo sido informado do motivo da identificação e dos trâmites legais a seguir»;
8) Realça-se, agora, que conforme expos a testemunha A........, Coordenador de Segurança do VSC SAD, esta decisão do Comande policial foi-lhe também a ele comunicada, pelo que, o que existiu por parte do VSC, foi um total acatamento da ordem da P.S.P, mas é também importante realçar que, conforme também expos a testemunha A........, este colaborou e foi preponderante para que ambos (i.e, o coordenador de segurança e o comandante de policiamento) conseguissem detetar aquele único individuo que tomou as lamentáveis condutas relatadas nos autos.
9) Entende o recorrente que a procedência do recurso da matéria de facto demonstra, desde logo, a existência dos factos que impõe a sua absolvição, mas, no entanto, ainda que o recurso da matéria de facto seja julgado improcedente, a correta interpretação da norma jurídica impõe a absolvição do arguido.
10) É entendimento do recorrente que a norma do artigo 62° do RDFPF, não contém, nos seus elementos objetivos, a tipificação de uma conduta omissiva de um clube no sentido de aquela conter uma obrigação de, em momento posterior aos factos, o clube punir os adeptos que pratiquem atos racistas, sob pena de, na sua ausência, se ter como assente que o clube consentiu ou tolerou o ato racista anteriormente sucedido.
11) Na verdade, nos termos do artigo 62° do RDFPF, a ação ou omissão do clube, tem que ser tida como causal na produção do resultado, o que excluiu desde logo a interpretação da decisão recorrida no sentido de que a produção desse resultado tenha ocorrido pela omissão de um ato a praticar posteriormente ao resultado!
12) Fácil está de compreender, assim, a incoerência lógica em que incorre a decisão recorrida, cuja interpretação não encontra qualquer amparo na norma punitiva, pelo que cumpre absolver o recorrente!
13) Por outro lado, nos termos do artigo 66° do RDFPF a Recorrente tem a obrigação de punir aquele seu adepto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8° alínea c) e artigo 39-A, n.º 1, alínea b) da lei de combate á violência, racismo, xenofobia no desporto, aprovado pela lei 39/2009 de 30 de Julho na sua atual redação, doravante LCVD.
14) Assim, o incumprimento da arguida deste seu dever legal previsto nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8° alínea c) e artigo 39-A, n.º 1 alínea b) da LCVD faria a arguida incorrer numa violação ao sobredito artigo 66° do RDPFP.
15) Aqui chegados, conclui-se que o entendimento que a decisão recorrida faz da norma do artigo 62° do RD entra em conflito com a norma do artigo 66° do RD, na medida em que ambas as normas exigiriam ao VSC a punição do seu adepto, sob pena de incorrer em infração disciplinar, pelo que, a vingar o entendimento que a decisão recorrida faz do artigo 62°, n.º 1, do RD, deparamo-nos íamos, assim, com a existência de um verdadeiro e efetivo concurso de normas punitivas, uma vez que o artigo 62° e o artigo 66°, ambos do RD, disputariam, entre si, a autoridade punitiva sobre a conduta típicas in casu, a falta de punição do adepto.
16) É, assim, premente, concluir-se que a norma típica do artigo 62° do RD não contém, nos seus elementos objetivos, a tipificação de uma conduta omissiva de um clube no sentido de aquela conter uma obrigação de, em momento posterior aos factos, o clube punir os adeptos que pratiquem atos racistas, sob pena de, na sua ausência, se ter como assente que o clube consentiu ou tolerou o ato racista anteriormente sucedido.
17) A decisão do Conselho de Disciplina, entendeu que o VSC consentiu ou tolerou o ato racista, uma vez que "...este ponto é decisivo para podermos afirmar a tolerância da sociedade anónima desportiva arguida. Com efeito, no mínimo, logo que foi audível o proferir de tais expressões, estes deveriam ter reagido de imediato, uma vez que nessa altura era já absolutamente evidente, para todos, o que se estava a passar. Não obstante, nesse momento, os dirigentes da SAD arguida nada fizeram, permaneceram inertes, aceitando passivamente a conduta do seu adepto, tomando perante a mesma a posição de meros espetadores, assim a tolerando. ASAD arguida adotou, pois, uma atitude omissiva perante a ocorrência dos factos, não tendo reagido de modo algum, designadamente mediante o contato direto e pessoal perante o adepto prevaricador, com vista a determinar que tal comportamento cessasse, o que podia e devia ter feito, assim tolerando aquela conduta do seu adepto. E essa tolerância apenas cessou no momento em que o Delegado da FPF os «obrigou» a agir (sendo aliás de acreditar, pelos elementos que emergem dos autos, que, se o mesmo o não tivesse feito. a sociedade anónima desportiva não teria tomado qualquer atitude) ..." - Cfr. decisão do Conselho de Disciplina, ponto 57.
18) Quer isto dizer que, quando em 28 de Setembro de 2020, o Recorrente intentou recurso junto do Tribunal Arbitral do Desporto, toda a conduta omissiva que lhe era imputada e que constituía a fundamentação da condenação, residia numa suposta omissão de atos pelo VSC, durante o jogo, junto do adepto que terá proferido os insultos racistas;
19) No entanto, a decisão recorrida, tendo aceite o recurso do VSC naquilo que constitui a impugnação dos fundamentos da decisão do conselho de Disciplina, optou por uma inovadora via punitiva e ancorou a sua fundamentação, numa alegação que "...deveria a Demandante ter procurado outras soluções para fazer cessar o grave incidente que se verificou e evitar semelhantes comportamentos para o futuro, como fossem: alertar direta e pessoalmente o adepto infrator (que era apenas um, e estava individualmente identificado): aproveitar este incidente para expor e repudiar publicamente este tipo de comportamentos, alertando a massa associativa para a ilegalidade destes comportamentos e a possibilidade de penalização do clube: ou ainda, impor ao adepto em causa um procedimento disciplinar interno célere e eficaz. Não tendo feito nada disto. nem esboçado qualquer outra reação ou iniciativa semelhante, deve concluir-se que a Demandante não fez o que se lhe exigia, revelou inexplicável passividade perante o incidente e incumpriu com os seus deveres gerais de proteção do fenómeno desportivo e combate aos comportamentos violentos e discriminatórios..." - Cfr decisão recorrida, sumário ponto III.
20) A fundamentação que a decisão recorrida optou, verdadeiramente inovadora no processo, constitui matéria que não fazia parte do objeto do litígio, tal como foi configurado pela decisão do Conselho de Disciplina, constituindo, assim um atropelo ao objeto do processo, o que em tudo prejudicou o arguido, posto que não logrou fazer prova sobre essa matéria, que, até à decisão, lhe era desconhecida.
21) Assim, a decisão recorrida, ao condenar o recorrido com base em matéria que não fazia parte do objeto do litígio, tal como foi configurado pela decisão do Conselho de Disciplina, ignorando a estrutura acusatório do processo, procedeu a uma violação nítida do direito ao contraditório, conforme este se encontra vertido no artigo 34° alínea c) da lei 74/2013 de 6 de Setembro na sua redação atual.
22) Como tal, tem-se como inconstitucional, por violação do artigo 32°, n.° 5, da CRP, a interpretação que extraia dos artigos 34° alínea c) e 46 da lei 74/2013 de 6 de Setembro na sua redação atual, no sentido de que a decisão a proferir pelo tribunal Arbitral, pode, sem qualquer necessidade de contraditar o arguido, proceder à sua condenação com base em e factos fundamentação diversa da que consta na decisão recorrida, in casu, do Conselho de Disciplina.
23) Ademais, a decisão recorrida incorreu, de igual modo, em nulidade por violação do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea b) e c) do Código de Processo Penal, o que aqui, também, expressamente se invoca!
24) No caso em apreço os relatórios do jogo, do delegado da FPP ao mesmo e de policiamento, bem como o depoimento prestado pela testemunha inquirida, nada referem quanto a um qualquer comportamento do arguido e, tão pouco, a um qualquer dever, legal ou regulamentar, por este inobservado, concretamente por via do enunciar, de forma objetiva e concreta, de factos, de atos ou omissões do arguido destinados a evitar o comportamento ocorrido e, em consequência disso, se poder estabelecer um nexo de causal com a conduta do seu adepto e, assim, dela se pudesse retirar o juízo de censurabilidade subjacente a uma violação culposa por sua parte de deveres in vigilando.
25) Deste modo, sempre também fica por provar a culpa do arguido quanto ao comportamento do seu adepto, pelo que sempre se teria, por esta razão, que ter por inverificada a infração que lhe era imputada, que só pode resultar de um seu comportamento culposo afastada que está a possibilidade de qualquer responsabilidade objetiva - ou seja, de a VSC ter violado (por ação ou omissão) um concreto dever que lhe era imposto.
26) Atento o exposto, não tendo a Recorrida, quer nesta sede arbitral, quer em sede disciplinar - logrado fazer a prova da atuação culposa do arguido, não está preenchido o tipo do ilícito p.p. no artigo 62.°, n.º 1, do RDFPF - posto que não provou que o arguido tivesse violado e, muito menos, culposamente, concretos deveres regulamentares e legais a que se encontra adstrita, promovendo, consentindo ou tolerando, por via de ações ou omissões concretamente identificadas, as palavras de cunho racista que um adepto dirigiu a um jogador.
...”.
***
O SPORTING CLUBE FARENSE – ALGARVE FUTEBOL, SAD, reclamado, apresentou contra-alegações, defendendo, na reclamação para a conferência, que:
“...
A) Conforme determina a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, foi estabelecido um perdão de penas e amnistia de infrações que abrange as sanções relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, neste sentido vide artigo 1.º e 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto;
B) Descendo ao caso vertente, os factos em crise nos autos remontam a agosto de 2022, e como tal anteriores ao dia 19 de junho de 2023, logo enquadram-se no citado parâmetro temporal;
C) Neste sentido, pronunciou-se o Douto Tribunal Arbitral do Desporto, no âmbito do processo n.º 69/2023, “sendo que a lei em causa é imperativa e de aplicação imediata, não exceciona as pessoas coletivas da aplicação da amnistia às referidas infrações disciplinares que por elas possam ter sido praticadas, apenas fazendo uma referência objetiva – infrações disciplinares praticadas até ao dia 19.06.2023 – sem qualquer menção específica ao tipo de sujeitos, que as tenham praticado, ao contrário do que sucede com as infrações penais, que se limitam às praticadas por maiores até 30 anos de idade.”;
D) Sempre se diga que o regime da amnistia das infrações disciplinares está todo contido no artigo 6.º da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto: condições e exceções; não sendo por isso aplicáveis as exceções do artigo 7.º.
E) O entendimento doutrinário e jurisprudencial ensina-nos que “As leis de amnistia, como providências excecionais que são, não admitem interpretação extensiva ou aplicação analógica, devendo ser interpretadas nos seus exatos termos sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas - interpretação declarativa estrita.”;
F) Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 16/11/1995, no Processo n.º 018072 propugnou que: “III - As leis de amnistia, como providências excecionais que são, não admitem interpretação extensiva ou aplicação analógica, devendo ser interpretadas nos seus exatos termos sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas - interpretação declarativa estrita.”
G) Deste modo, a decisão reclamada não carece dos vícios apontados pela Reclamante, pelo que deverá a reclamação apresentada improceder.
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Por outro lado, o SPORTING CLUBE FARENSE – ALGARVE FUTEBOL, SAD, recorrido, apresentou contra-alegações em sede de recurso, defendendo que:
1) O recurso da Vitória Sport Clube - Futebol SAD tem por objeto o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto que declarou improcedente o recurso interposto, o qual dizia respeito à impugnação do acórdão de 18.09.2020, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, através do qual foi confirmada a decisão de aplicação à ora Recorrente de multa e de 2 (dois) jogos à porta fechada, por aplicação do disposto no artigo 62.º, n.º 1, do RD da FPF.
2) Em concreto, a Recorrente foi punida por, em jogo disputado no Campo Gémeos Castro, em Candoso, Guimarães, em jogo disputado entre a equipa da Recorrente e a Sport Lisboa e Benfica, Futebol SAD, a contar para a Liga Revelação Sub 23, os seus adeptos terem levado a cabo variadíssimos comportamentos incorretos, designadamente insultos de índole racista dirigidos a jogador da equipa adversária.
3) A factualidade que a Recorrente pretende que seja considerada provada, parte dela, por um lado, não tem qualquer relevância para o objeto dos autos e, outra parte, não resulta, como alega, da prova junta aos autos, pelo que, andou bem o Tribunal a quo na fixação da matéria de facto com relevo para a boa decisão da causa.
4) A Recorrente não nega a ocorrência dos factos pelos quais foi punida e não nega que os factos foram praticados por adeptos ou simpatizantes do VSC. Ficou, portanto, por discutir se a Recorrente violou os deveres que sobre si impendem - e é inegável que os violou, por omissão, tal como entendeu o Colégio Arbitral no seu Acórdão ora recorrido.
5) Os representantes da Recorrente poderiam ter procurado abordar diretamente o autor dos referidos insultos e alertá-lo para a gravidade (e ilegalidade!) do seu comportamento, procurando sensibilizá-lo para a necessidade de cessar e abster-se do mesmo, sob pena de estar a penalizar o espetáculo e o seu clube, para além de se estar a sujeitar a penalizações disciplinares em várias frentes.
6) Poderia a Recorrente, publicamente, ter feito uma denúncia e manifestação de repúdio pelo referido comportamento.
7) Deveria a Recorrente apostar em medidas preventivas, de sensibilização da sua massa associativa para a temática do racismo e demais comportamentos incorretos no Desporto.
8) Dispõe artigo 62.º, n.º 1, do RD da FPF, o seguinte: “... 1. O clube que promova, consinta ou tolere qualquer tipo de conduta, escrita ou oral, que ofenda a dignidade de agente desportivo ou espectador em função da sua ascendência, género, raça, nacionalidade, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, é sancionado com realização de 2 a 5 jogos à porta fechada e cumulativamente com multa entre 10 e 30 UC....”.
9) A expressão utilizada pelo adepto da Recorrente, a saber, "preto vai para a Cova da Moura", são aptas a ofender a dignidade do visado, em função da sua raça. Com efeito, estamos perante um menosprezo e inferiorização em razão da raça do jogador J........, o merece tutela disciplinar.
10) Tanto mais que a referida norma do artigo 62.º, n.º 1, visa sancionar condutas como aquela em crise nos autos, sendo que, no caso concreto, sanciona a Recorrente que, tendo tido conhecimento da especial gravidade da agressão praticada, nada fez, demonstrando a sua indiferença perante a mesma.
11) Ora, não reagindo a tal comportamento do seu adepto, a Recorrente tolera o referido comportamento que ofende a dignidade do visado em função da sua raça.
12) A Recorrente adotou assim uma postura omissiva perante a ocorrência de atos discriminatórios, por parte de um seu adepto, como alias, a própria Recorrente afirma que fez, justificando que o fez, por indicação das autoridades policiais.
13) Cumpre esclarecer que o facto de as autoridades afirmarem que não irão intervir diretamente no episódio em concreto, não justifica que a Recorrente, porque mais próxima e com outro tipo de relação com os seus adeptos, não o faça.
14) Assim, a Recorrente, adotando o comportamento omissivo, representou como possível que o resultado da sua conduta consubstanciaria a prática de um ilícito disciplinar, sendo que não diligenciou par que tal não acontecesse.
15) Ora, a Recorrente ao ter conhecimento e ao nada ter feito para pôr cobro a estes comportamentos, acabou por os tolerar e consentir, encontrando-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo da norma constante no artigo 62.º, n.º 1do RD da FPF.
16) As testemunhas ouvidas em sede arbitral em nada contrariam ou colocam em crise a factualidade dada como provada pelo Conselho de Disciplina.
17) Em suma, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão recorrido, deve o recurso ser considerado totalmente improcedente.
...”.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou reclamação para a conferência, subscrevendo a reclamação da FPF, invocando o disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea i do CPTA e artigo 652.º/3 do CPC, sem prejuízo do disposto no artigo 146.º/1 do CPTA, sendo que aqui se indica a legitimidade às partes.
Em todo o caso, em razão da interpretação conjugada destas disposições levais com o artigo 141.º/1 do CPTA, em que o Ministério Público pode recorrer se estiver em causa uma decisão proferida com violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais, interpreta-se esta Reclamação para a Conferência nestes termos e apreciar-se-ão as observações do Ministério Público, integradas no teor da Reclamação da FPF.
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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA RECLAMAÇÃO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre, pois, apreciar as conclusões referentes à “Decisão Sumária” reclamada, não esquecendo que a reclamação para a conferência serve para imputação de vícios da decisão reclamada e não uma nova oportunidade de recurso, já que este foi interposto em momento antecedente, com conclusões próprias e que foram objeto de apreciação pela “Decisão Sumária” reclamada.
Assim, o objeto da presente reclamação traduz-se em saber se houve recurso da matéria de facto relevante para a decisão final que não foi apreciada, gerando, de resto, nulidade da própria “Decisão Sumária” e saber se houve errada interpretação do direito na aplicação da lei da amnistia.
Apenas se procederem estas alegações o Tribunal ad quem prosseguirá para a apreciação do alegado erro de julgamento na apreciação do mérito do recurso quanto ao erro de julgamento.

III – FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Por não ter sido objeto de impugnação, na parte que releva para o conhecimento da aplicação da lei da amnistia, nem ser caso de alteração da matéria de facto, remete-se para os factos dados como assentes pela sentença recorrida, nos termos do n.º 6 do artigo 663.º do CPC.

DE DIREITO

O objeto da reclamação é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (artigos 144°, n.° 2, do CPTA e 608°, n.° 2, 635.°, nos 4 e 5, e 639.°, n.°s 1 e 2, todos do CPC ex vi artigo 140°, n.° 3, do CPTA).
Há omissão de pronúncia quando o tribunal deixa de apreciar e decidir uma questão que haja sido chamado a resolver, a menos que o seu conhecimento tenha ficado prejudicado em face da solução dada ao litígio.

A) Recurso da Matéria de Facto

A apreciação da questão da aplicação aos autos da lei da amnistia deve preceder a análise de qualquer outro alegado erro de julgamento, pois que a sua aplicação ao caso impede a discussão do mérito da decisão sancionatória, ou de qualquer questão jurídica paralela, e é por essa razão que, para a apreciação da aplicação da lei da amnistia o recurso da matéria de facto em causa é irrelevante e os factos constantes da “prova assente” são suficientes e podem constar na decisão de recurso por remissão, nos termos do n.º 6 do artigo 663.º do CPC.
E foi isso que foi decidido na “Decisão Sumária”, que, de resto, no “Relatório” identificou objetivamente a existência de recurso da matéria de facto, mas para questões referentes ao mérito do recurso quanto ao erro de julgamento referente à concreta decisão sancionatória aplicada.
É neste contexto que foi referido na “Decisão Sumária” que “… Por não ter sido objeto de impugnação, nem ser caso de alteração da matéria de facto, remete-se para os factos dados como assentes pela sentença recorrida, nos termos do n.º 6 do artigo 663.º do CPC…”, pois os factos dados por provados e não recorridos que são necessários para a apreciação da aplicação da lei da amnistia são os que constam da Sentença do TAD, sem necessidade de quaisquer outros.
Na realidade, não há lugar à reapreciação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão a proferir, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria a proibição legal da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPC).
Esta decisão é de manter, estando o Tribunal proibido de praticar atos inúteis

B) Aplicação da Lei da Amnistia aos autos

A decisão do TAD decide não ser aplicável a decisão de amnistiar a sanção disciplinar aplicada ao recorrente por duas razões:
a) A sanção de realização de jogos à porta fechada pode ser considerada superior à sanção de suspensão;
b) O artigo 7.º, n.º 1, alínea j) da Lei da Amnistia determina que se existir uma situação de reincidência a lei da amnistia não será aplicável.
A amnistia, perspetivada como pressuposto negativo da punição (e não como modo de extinção da infração), pode respeitar tanto a crimes, como a infrações disciplinares, encontrando-se, em ambas as situações, sujeita a princípios comuns (nesse sentido, v. o Acórdão do TC n.° 30/97).
No que diz respeito ao primeiro fundamento, defende o Acórdão em recurso que a sanção de realização de jogos à porta fechada, não implicando a suspensão da atividade, pode levantar dúvidas sobre se na escala sanções deve ser considerada superior à sanção de suspensão.
Assim, a Lei n.º 38-A/2023 é muito parca na caracterização da amnistia de infrações disciplinares comuns, limitando-se a uma delimitação positiva e negativa daquelas que pretende abranger:
a) Infrações disciplinares: i) praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023 (artigo 2.°, n.° 2, alínea b); e ii) cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão (artigo 6.°); desde que,
b) Tais infrações não sejam praticadas por reincidentes (artigo 7.°, n.° 1, alínea j).
Ora, a questão em apreciação prende-se com o facto de o Acórdão em recurso entender que no que diz respeito à “reincidência disciplinar” releva o artigo 53.º do RDLPFP que diz que é reincidente quem, tendo sido sancionado, por decisão transitada em julgado pela prática de infração disciplinar, cometer outra infração do mesmo tipo (de igual ou maior gravidade), ou quem cometer duas ou mais infrações de menor gravidade, determinando o seu n.º 3, que para o efeito apenas relevam as infrações cometidas na mesma época desportiva. Indo ao concreto, o TAD conclui que o CLUBE FARENSE – ALGARVE FUTEBOL, SAD, conforme o seu cadastro disciplinar, na época desportiva 2022-2023 teve 3 sanções disciplinares, relevando para o efeito duas delas, o que seria suficiente para a sua classificação como “reincidente”. E nessa sequência decide não lhe ser aplicável a Lei da Amnistia.
Apreciando e decidindo.
A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto (Lei da Amnistia), veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. o respetivo artigo 1º), sendo que, de acordo com o disposto no artigo 2º, nº 2, alínea b) daquela Lei, consideram-se abrangidas pelo previsto neste diploma as “sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6º”. E, nos termos do artigo 6º deste diploma legal, “…[s]ão amnistiadas as infracções disciplinares e as infracções disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar…”.
De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritárias, tratando-se de providências de exceção, não comportam, por essa mesma razão, qualquer aplicação analógica, tal como estatuído no artigo 11.º do Código Civil (doravante CC), nem tão pouco admitem interpretação extensiva ou restritiva. Assim sendo, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9.º do CC.
As medidas de clemência, como formas de realização da justiça, encontram fundamentação nas comemorações subjacentes à realização de um determinado evento, como seja, designadamente, a visita de uma figura ilustre, uma vitória militar, a celebração do Natal, a eleição de um chefe de Estado, ou, entre outras, desideratos mais pragmáticos como o da tentativa de minimizar o problema da sobrelotação das prisões. Pois bem, a amnistia é uma medida de graça, geral, objetiva e impessoal, da competência da Assembleia da República, aplicada em função do tipo de crime. Por esta razão, deve atentar-se à estatuição abstratamente cominada na lei, e não à pena aplicada a um agente concretamente determinado.
No caso, como antedito, a propósito da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, o Governo, como forma de honrar a visita de Sua Santidade o Papa Francisco, publicou, no dia 2 de agosto de 2023, a Lei nº 38-A/2023 (doravante Lei da Amnistia), que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações, a entrar em vigor no dia 1 de setembro de 2023, tal como consta do artigo 1.º e 15.º da referida lei. Decorre, ainda, da interpretação literal do artigo 2. º, n.º 2, alínea b) e do artigo 6.º da Lei da Amnistia que as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares, praticadas até às 00h00 horas de 19 de junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, são também amnistiadas.
Em resumo: o âmbito da sua aplicação compreende três grupos de sanções, as penais, as contraordenacionais e as de natureza disciplinar – onde se integram as infrações disciplinares militares. No âmbito penal, serão perdoadas penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição, as penas de prisão subsidiária por conversão de pena de multa, penas de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e demais penas de substituição com algumas exceções. No que respeita ao direito contraordenacional, ao contrário do que inicialmente se previa, apenas são perdoadas as sanções acessórias, dependendo o perdão do pagamento da coima. Pelo que, beneficiarão de amnistia apenas quanto às sanções acessórias (inibição de condução), todas as pessoas que até ao dia 19 de junho tenham praticado uma contraordenação leve, grave ou muito grave punível com limite máximo de coima de € 1.000,00, isto é, independentemente da idade, mas com condição de se encontrar paga a coima aplicada.
Quanto às infrações disciplinares e militares, são tratadas nos mesmos moldes que as infrações contraordenacionais, salvo as infrações que constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados nos termos da presente lei e as demais cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão ou prisão disciplinares.
Por fim, na ausência de exclusão expressa da Lei, o regime em apreço mostra-se aplicável quer a pessoas singulares, quer a pessoas coletivas, contanto unicamente que estejam em causa sanções relativas a infrações disciplinares que cumpram quer o critério temporal previsto no artigo 2.º, n.º 2, alínea b), quer o critério de gravidade expresso no artigo 6.º da referida lei.
Vejamos.
Face ao exposto parece inegável a aplicação aos autos da Lei da Amnistia, a não ser que se verifique alguma das condições de exceção, sendo certo que o artigo 7º, nº 1, alínea j) da Lei da Amnistia determina que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os “reincidentes”.
Mas a que se reporta este regime de exceção contido na Lei da Amnistia?
Na verdade, a delimitação do conceito de “reincidência”, feito no Acórdão recorrido, e constante do artigo 7º, nº 1, alínea j) daquela Lei, serve para efeitos de exclusão da aplicação das medidas de clemência aí consagradas, no que se refere a infrações disciplinares.
Está, pois, em causa a aplicação da norma do artigo 53º, nº 2 do RDLPFP, defendendo a Reclamante que para efeitos de aplicação do conceito de “reincidente” se deve atender àquele regulamento de disciplina, interpretando o conceito de “reincidência” estabelecido no já citado artigo 7.º, nº 1, alínea j) da Lei da Amnistia.
Mas será mesmo assim?
É que, por ser matéria compreendida na reserva absoluta da competência da Assembleia da República, sob pena de violação do artigo 112º, nº 5 da CRP e do artigo 136º do CPA, tal operação interpretativa está vedada ao intérprete.
Recorda-se que constitui entendimento firme que, de acordo com o princípio da legalidade, disposto no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 136.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), os atos legislativos – como a Lei da Amnistia – não podem ser interpretados ou integrados por via de normas regulamentares. Recorda-se, também, que a norma contida no artigo 53.º n.º 2 do RDLPFP viola o artigo 57.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, que estabelece o regime jurídico das federações desportivas (RJFD) e que estatui que, para efeitos disciplinares, os conceitos de “reincidência” e de “acumulação de infrações” são idênticos aos constantes do Código Penal [CP]. Portanto, o conceito de “reincidência”, constante da norma do artigo 7.º, nº 1, alínea j) da Lei da Amnistia, não pode ser interpretado recorrendo-se ao conceito do artigo 53º, nº 2 do RDLFP, mas somente em função do conceito constante dos artigos 75º e 76º do CP.
Efetivamente, enquanto o artigo 53.º n.º 2 do RDLPFP encara a “reincidência” como mera decorrência automática de uma sucessão de condenações disciplinares, dispondo que “…É sancionado como reincidente quem, na mesma época desportiva, depois ter sido sancionado, por decisão transitada em julgado, pela prática de uma infração disciplinar vier a cometer, por si ou sob qualquer forma de coautoria, outra infração disciplinar do mesmo tipo, infração disciplinar de igual ou maior gravidade ou duas ou mais infrações de menor gravidade…”, já o artigo 75.º n.º 1 do Código Penal (“CP”) estabelece que a reincidência apenas se efetiva “…se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime…”.
Pois bem, a Federação Desportiva, tem na sua génese, dada a sua configuração legal, natureza privada, mas, ao mesmo tempo, é uma entidade dotada de prerrogativas de autoridade pública, atribuídas em razão da descentralizada prossecução de fins públicos, sendo que a Federação obteve, por delegação do Estado, a competência para o exercício, dentro do respetivo âmbito, de poderes regulamentares, disciplinares, em decorrência da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva.
Ao abrigo do disposto no artigo 10.º do RJFD, e em resultado da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, a Federação goza de competência para o exercício em exclusivo, dentro da respetiva modalidade, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, sendo investidas de poderes de autoridade no cumprimento da missão de serviço público de organização e gestão do desporto federado, praticando atos administrativos em matérias que se conexionem diretamente com aquele serviço, sendo essa a causa pela qual, a atividade das Federações, na medida em que praticam verdadeiros atos administrativos unilaterais, se encaminha para a jurisdição administrativa.
Tal significa que lhe foi delegado o poder disciplinar federativo que se traduz na faculdade de editar normas disciplinares, designadamente mediante a tipificação de infrações, e ao mesmo tempo de aplicar sanções disciplinares sancionatórias em razão do incumprimento das normas impostas pelo ordenamento desportivo, de onde se excluem as sanções relativas às infrações das leis do jogo, mas nos termos e limites da lei. De resto, para além dos poderes de regulamentação e disciplina das competições desportivas, relativos à execução das finalidades compreendidas nas atribuições do Estado, são também prerrogativas de natureza pública em si delegadas as tomadas de decisão unilaterais de caráter executivo que impendem sobre os agentes desportivos, designadamente jogadores, treinadores, clubes, e terceiros, envolvendo não só o desempenho de prerrogativas de autoridade, como também a prestação de um serviço que lhe é legalmente imposto.
Foi esta a interpretação tomada no Acórdão do STA, de 23 de janeiro de 2003, relatado por Vítor Gomes, ao entender que “…a actividade federativa no âmbito da regulamentação e disciplina das competições desportivas e no exercício dos poderes conferidos pela lei para a realização obrigatória de finalidades compreendidas nas atribuições do Estado, que envolvam, perante terceiros, o desempenho de prerrogativas de autoridade ou a prestação de apoios ou serviços legalmente determinados, está sujeita a um regime de direito administrativo, cabendo à Administração Pública fiscalizar o seu exercício mediante a realização de inspecções, inquéritos e sindicâncias…”
– Vide Acórdão STA, Processo nº 046299, relatado por Vítor Gomes. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/66bd6bb8e08189ba80256cc2003fa9a1?OpenDocument .
Como bem sabemos, o poder sancionatório, dado o seu carácter restritivo de direitos, liberdades e garantias, é próprio do Estado, que apenas através de órgãos designados para o efeito, e preenchidos os pressupostos expressamente previstos na lei, está autorizado a reprimir atitudes antijurídicas. No entanto, no nosso ordenamento jurídico, mediante o sistema de devolução ou delegação de poderes, o Estado atribuiu às Federações desportivas o poder de aplicar as sanções derivadas do incumprimento das suas normas de disciplina e de organização do desporto, e, para tal, dotou o desporto, a sua tutela, e seus órgãos jurisdicionais de autonomia própria. Assim, a par da regulamentação da respetiva modalidade desportiva, também a disciplina das competições desportivas tem carácter público plenamente justificado, na medida em que serve para cumprir as finalidades compreendidas nas atribuições do Estado. O que facilmente se retira da conjugação entre o n.º 2 do artigo 79.º da CRP e os artigos 14.º e 19.º da LBAFD.
Contudo e sem prejuízo do acima referido, a regulamentação disciplinar tem de cumprir as leis e a CRP.
O que, volvendo ao caso dos autos, significa que o conceito de “reincidência”, constante da Lei da Amnistia, não pode ser preenchido através do recurso ao conceito de “reincidência” vertido no RDLPFP, mas somente em função do conceito consagrado no CP, por força do facto de o artigo 57.º do RJFD determinar que “… Para efeitos disciplinares, os conceitos de reincidência e de acumulação de infrações são idênticos aos constantes no Código Penal…”.
E o Acórdão recorrido não teve em conta esta norma legal à qual estava vinculado.
Verifica-se, por conseguinte, que os regulamentos disciplinares das federações e das ligas, além de não poderem incidir autonomamente sobre matérias abrangidas pela reserva de lei formal nem violar o princípio geral da preferência de lei, se encontram positiva e materialmente vinculados pelas regras e princípios constantes do artigo 52.° e seguintes do RJFD (cfr. o artigo 2.° do RDLPFP).
A “reincidência” prevista como exceção à aplicação da Lei da Amnistia decretada naquela Lei — a qual, recorde-se, abrange crimes, contraordenações e infrações disciplinares—, exige uma preexistente disciplina de tal matéria nos sistemas sancionatórios que integram o âmbito de aplicação material da mesma Lei. Ou seja, este conceito é, por força do disposto no artigo 57.° do RJFD, idêntico ao constante do Código Penal, porquanto o regulamento disciplinar da justiça desportiva deve obedecer às regras e princípios estabelecidos no artigo 52.° e seguintes do citado Regime Jurídico, de que já falamos.
Assim, sob pena de ilegalidade, o conceito de “reincidência”, para efeitos do RDLPFP, tem de corresponder substancialmente ao consagrado no Código Penal.
E o que nos diz o CP?
Artigo 75.°
Pressupostos
1 — E punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
2 — O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
3 - …
4 — A prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência.

Artigo 76.°
Efeitos
Em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.

Portanto, decorre da própria letra do artigo 75.°, n.° 1, do Código Penal que a verificação da reincidência no âmbito deste diploma não se basta com a verificação de pressupostos formais, exigindo igualmente uma apreciação casuística de ordem material: a de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação anterior ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. Se assim é no âmbito penal, naturalmente mais gravoso, mal se compreende que se não atente a este elemento na justiça disciplinar.
Foi decidido na decisão recorrida o seguinte:
A decisão proferida não aplicou a Lei da Amnistia porque enquadrou o caso dos autos numa situação de “reincidência” como ela foi regulamentada desportivamente, sem, todavia, observar os pressupostos exigidos pelo artigo 75° e 76. ° do CP, erradamente.
Ora, no caso dos autos, está em causa o facto de a Recorrente ter sido punida por, em jogo disputado no Campo Gémeos Castro, em Candoso, Guimarães, entre a equipa da Recorrente e a Sport Lisboa e Benfica, Futebol SAD, a contar para a Liga Revelação Sub 23, os seus adeptos terem levado a cabo variadíssimos comportamentos incorretos, designadamente insultos de índole racista dirigidos a jogador da equipa adversária.
Ora, o artigo 75.º/ 3 do CP determina que importa aferir se “… o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime…”.
Das sanções anteriores, apenas uma se prende com comportamentos incorretos do público e em bom rigor, não se indica, nem apura, quais os concretos deveres a que estaria obrigado para evitar o sucedido e que foram incumpridos pelo Clube durante o desafio em discussão; de igual modo não se alega ou enumera qualquer atuação ou omissão da atuação devida pelo Clube após as outras anteriores sanções para evitar os comportamentos incorretos dos adeptos, com a qual se possa estabelecer um nexo causal do comportamento dos espetadores perpetradores daqueles comportamentos no jogo em causa, e que sirva de esteio à formulação do juízo de censurabilidade inerente à necessária verificação da culpa do agente infrator, de modo a daqui se poder retirar a conclusão de que as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra a infração disciplinar, razão pela qual se não pode deixar de concluir-se pela não censurabilidade do recorrente que o levariam a integrar as suas condutas como reincidentes.
Assim, a sanção disciplinar em causa está amnistiada, por não se verificar uma situação de “reincidência” como ela deve ser analisada, pelo que se mantém a decisão reclamada.
Face à complexidade e impacto social da decisão sobre a interpretação do artigo 7.º da Lei da Amnistia (exceção à aplicação da amnistia e perdão de penas), no que há reincidência diz respeito, foi proferido despacho de admissão de revista, Acórdão do STA, de 2 de maio de 2024, sobre esta particular questão, no âmbito do processo 024/21.4BCLSB.
***
IV – DISPOSITIVO

Pelo exposto, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, Subsecção Social, acordam em indeferir a reclamação para a conferência, mantendo a decisão sumária da relatora, negando provimento ao Recurso, com os fundamentos aqui constantes.
Custas a cargo do reclamante.
Lisboa, dia 7 de agosto de 2024

O Coletivo,

Eliana de Almeida Pinto (Relatora)

Julieta França (1.ª Adjunta)

Angela Cerdeira (2.ª Adjunta)