Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:307/23.9BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2024
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPOSTO; INTIMAÇÃO PARA OBTENÇÃO DE DOCUMENTOS
FEDERAÇÃO DESPORTIVA; ATOS RELATIVOS À GESTÃO FINANCEIRA E PATRIMONIAL
LEI-QUADRO DO ESTATUTO DE UTILIDADE PUBLICA; DEVER DE TRANSPARÊNCIA
REGIME DE ACESSO AOS DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS
DIREITO À PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS; DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO
ESTATUTO DO JORNALISTA; LEI DA LIBERDADE DE IMPRENSA
TUTELA DA CONFIANÇA LEGÍTIMA; REENVIO PREJUDICIAL
Sumário:I. O Tribunal Arbitral do Desposto é competente para dirimir os litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto, conforme previsto na Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro.
II. Não se enquadra na área de competência específica deste Tribunal a intimação proposta por jornalistas que visam obter acesso a contratos celebrados e na posse de federação desportiva, por estarem em causa atos relativos à gestão financeira e patrimonial desta.
III. Prevê a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Publica (LQEUP), aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, a aplicação às entidades de natureza privada com estatuto de utilidade pública, designadamente, do dever de transparência com possibilidade de acesso aos documentos relativos à sua gestão financeira e patrimonial a quem demonstrar ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido, aplicando-se subsidiariamente o regime de acesso aos documentos administrativos, conforme previsto no respetivo artigo 12.º, n.º 1, al. j).
IV. Este dever de transparência não se confunde com o dever de publicitação da atividade previsto no artigo 8.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, que designadamente impõe a publicitação na internet de todos os dados relevantes e atualizados da sua atividade.


V. A disposição normativa referida no ponto II permite a conciliação do direito à proteção de dados pessoais nos termos do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados com o direito à liberdade de expressão e de informação, incluindo o tratamento para fins jornalísticos, conforme previsto nos respetivos artigos 85.º, n.º 1, e 86.º.
VI. Os jornalistas atuam ao abrigo do direito de liberdade de imprensa, constitucionalmente consagrado no artigo 38.º da CRP, e concretizado no Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 1/99, de 1 de janeiro, e na Lei da Liberdade de Imprensa, aprovada pela Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro, que permitem o acesso a fontes oficiais de informação, sendo o seu interesse sempre considerado legítimo.
VII. Sem que o Estado haja criado expectativa legítima e justificada na federação que lhe permitisse antecipar que o acesso aos elementos em questão sempre estaria vedado, inexiste violação do princípio da tutela da confiança legítima.
VIII. Não se antevendo dúvidas fundadas quanto à interpretação do Direito da União Europeia, inexiste fundamento para que sejam colocadas questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I. RELATÓRIO
E... M..., P... C... e R... G..., jornalistas do jornal Expresso, instauraram intimação para prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões contra a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), para satisfação do pedido de acesso aos seguintes documentos:
a) Todos os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados entre a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e F... S..., desde 2014, incluindo respetivas adendas e aditamentos;
b) Todos os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados desde 2011 entre a FPF e todos os seus membros da sua Direção, incluindo respetivas adendas e aditamentos;
c) Todos os contratos de prestação de serviços assinados entre a FPF e sociedades de que os elementos referidos em a. e b. fossem ou sejam sócios, acionistas e/ou beneficiários efetivos, incluindo respetivas adendas e aditamentos;
d) Atas das reuniões nas quais foram discutidos e aprovados os contratos referidos nas alíneas a., b. e c., a celebrar em nome da FPF;
e) A comunicação da existência dos contratos referidos em b), à Comissão de Remunerações da FPF;
f) Propostas subscritas pelo Presidente da FPF, ao abrigo do art.º 51.º, n.º 2, al. g) dos estatutos, no sentido da contratação do atual selecionador nacional, F... S..., bem como da sua equipa técnica;
g) Documentos de suporte à tomada das decisões referidas em d) a f) supra;
h) Atas do Comité de Emergência, desde 2011;
i) Notificações remetidas aos membros da Direção das decisões tomadas no Comité de Emergência (art.º 53.º, n.º 3 dos Estatutos), bem como atas das reuniões da Direção que, ao abrigo do art.º 53.º, n.º 4 dos Estatutos, ratificam essas mesmas decisões.
Por sentença de 15/05/2023, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra - Juízo Administrativo Comum julgou parcialmente procedentes os pedidos de acesso formulados pelos requerentes e, em consequência, intimou a entidade requerida, no prazo de 10 dias, sob pena de aplicação de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 169.º, sem prejuízo do apuramento da responsabilidade civil, disciplinar e criminal a que haja lugar, segundo o disposto nos artigos 159.º e 108.º, n.º 2, do CPTA:
- a possibilitar o acesso aos documentos a que correspondem o peticionado na alínea a), com acesso aos documentos físicos existentes, independentemente da qualificação ou título jurídico;
- quanto às alíneas b) e c) do pedido, a possibilitar o acesso a quaisquer documentos existentes, desde que tenham questões financeiras inerentes ao exercício de funções dos membros da Direção ou com empresas de que sejam sócios, acionistas e/ou beneficiários efetivos, nos termos peticionados;
- quanto às alíneas d), e), f) e g), com acesso na parte relativa à matéria de gestão financeira e patrimonial, com expurgo ou truncagem prévia da matéria que não se correlacione com o pedido formulado, bem como de dados nominativos ou outros que se encontrem sujeitos a restrições ao direito de acesso, ou certidão negativa se não existirem tais documentos.
Inconformada, a requerida FPF interpôs recurso, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“Sobre a exceção da incompetência absoluta do tribunal a quo
1. O Tribunal Arbitral do Desposto (TAD), criado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, é um tribunal arbitral necessário relativamente a litígios decorrentes de relações jurídico-administrativas desportivas que, de outro modo, estariam cometidas à jurisdição dos tribunais administrativos, mas que integram a justiça administrativa, com poderes de plena de jurisdição, e cuja competência abrange todas as pretensões que sobre aquela matéria possam ser formuladas, não sendo restrita às pretensões de impugnação de atos das federações desportivas ou ligas profissionais.
2. A matéria em causa nos autos está diretamente ligada ao ordenamento desportivo e à prática do desporto: está em causa o regime de transparência a que as federações desportivas estão sujeitas, bem como documentos relativos à contratação do selecionador nacional do desporto, e a celebração de contratos-programa de desenvolvimento desportivo ao abrigo do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, o qual releva também do ordenamento jurídico desportivo.
3. Resulta do exposto, que a competência para julgar o presente processo de intimação pertence ao TAD, de acordo com o disposto no artigo 1.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, e com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º da Lei do TAD (aprovada por aquela lei), sendo o tribunal a quo incompetente em razão da matéria para julgar o litígio em primeira instância, o que determina a absolvição da instância da FPF, nos termos do disposto nos n.ºs. 2 e 4, alínea a), do artigo 89.º do CPTA. Ao julgar de modo diverso, concluindo pela competência material do tribunal a quo, a Sentença incorre em erro de aplicação das referidas normas processuais.
Sobre a impugnação da matéria de facto
4. O facto alegado no artigo 33.º da contestação da FPF encontra-se provado por documento (documento n.º 4 junto com a Contestação), cuja autenticidade não foi impugnada, pelo que estava o tribunal a quo obrigado a julgá-lo como provado.
5. Este facto é relevante segundo uma das soluções plausíveis de direito para a causa: não apenas porque releva para aferir, na ótica da Recorrente, que os documentos solicitados não são documentos administrativos, mas também porque releva para aferir que a FPF é uma pessoa coletiva de direito privado (de utilidade pública desportiva) «genuinamente privada», formando-se a respetiva vontade sem qualquer influência de qualquer entidade pública.
6. O facto alegado no atrigo 50.º, incluindo a alegação que o mesmo é do conhecimento público, por força da consulta do Acórdão do CAAD publicitado no sítio indicado, é relevante segundo uma solução plausível de direito, que a Recorrente não aceita (mas o dever de patrocínio obriga a equacionar), porque demonstra que os Requerentes não têm qualquer necessidade ( interesse direto ) de acesso aos documentos solicitados nas alíneas a) e c) do pedido formulado na petição inicial.
7. O mesmo se diga dos factos alegados nos artigos 51.º e 52.º da contestação: provando-se tais factos, de acordo com as regras aplicáveis, concluiu-se pela ilegitimidade dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) da petição inicial baseando-se em meras notícias, os requerentes pretendem alargar a sua investigação a matéria inexistente, e sem causa séria: o interesse não será direto nem legítimo .
8. Ora, o facto alegado no artigo 50.º deveria ter sido dado como assente, e o mesmo se aplica aos dois seguintes, tendo em conta a natureza dos mesmos.
9. Decorre do exposto que o tribunal a quo, ao omitir dos Factos Assentes os factos alegados nos artigos 33.º, e 50.º a 52.º, todos da contestação, incorre em erro de julgamento da matéria de facto; como incorre ao afirmar, na página 9 da Sentença, que «irrelevam mais factos invocados, face ao objeto processual» (sic).
10. Pelo que deverão os quatro factos acima mencionados ser aditados à Matéria de Facto Assente.
Sobre a matéria de direito quanto ao mérito da causa
11. Na Sentença julga-se que a Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, que aprova o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização aos Documentos ), «não tem uma aplicabilidade direta à FPF, considerando que não se enquadra no âmbito subjetiva da norma cfr. artigo 4.º da referida lei designadamente, na alínea a) ou b), do n.º 2, do artigo 4.º, pois que é manifesto, face à factualidade provada quanto ao orçamento da entidade requerida que a sua atividade não é “maioritariamente financiada por alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente número” nem “a respetiva gestão esteja sujeita a um controlo por parte de alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente.
12. Nesta parte, a Sentença, seguindo o Parecer da CADA ali identificado, acolhe doutrina consolidada, e o alegado nos artigos 53.º a 111.º da contestação da FPF, pelo que a questão da aplicação direta da LADA ao caso dos autos está excluída do âmbito do presente recurso; o caso não respeita ao exercício de poderes públicos de regulamentação e disciplina do futebol, mas, ao invés, a atos de gestão privada da FPF, na sua (normal) capacidade de direito privado e regulada pelo direito privado (que é o seu direito comum) tal como também, corretamente, se afirma na Sentença.
13. «A atividade desportiva não é um interesse público, no sentido de fim a ser prosseguido por pessoas jurídicas pertencentes à comunidade política ou a cargo de entidades públicas. É um interesse da sociedade civil que suscita, naturalmente, interesse por parte do público, mas que não alcança, neste contexto, legitimidade para ser equacionado em face de outros valores e se explicita, com amplo apoio doutrinal, a páginas 18 e 19 do Parecer Jurídico do Professor Doutor Francisco Paes Marques, junto com a presente alegação.
14. Em consequência, o contrato de desenvolvimento desportivo celebrado entre o IPDJ, I.P., e a FPF [Facto K) da Matéria Assente], a que é dada especial relevância na sentença e no Parecer da CADA, assenta na ideia errada de que aquele contrato operaria uma «delegação de serviço público», pelo que, ao contrário do que ali se supõe, os contratos relativos à contratação do selecionador nacional não são atos de execução jurídico-públicos, e, como tal, não se convertem por osmose em documentos administrativos; ao julgar de modo diverso, a Sentença incorre em erro de julgamento, aplicando erradamente o quadro normativo resultante do n.º 2 do artigo 79.º da Constituição, dos artigos 7.º, 44.º,e 45.º e 46.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, e do Decreto-Lei n.º 273/2009, de 1 de outubro, designadamente dos seus artigos 1.º, 2.º, 3.º, 5.º e 8.º, tal como se conclui também no mencionado Parecer Jurídico.
15. A ratio decidendi da Sentença assenta fundamentalmente na aplicação da norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade, pelo que principalmente a ela respeitam as questões de direito objeto do presente recurso.
16. A norma da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º LQEUP deve ser interpretada e aplicada no sentido de os «documentos relativos à gestão financeira e patrimonial» das pessoas coletivas de utilidade pública abrangerem de modo tendencialmente exclusivo os inventários, os instrumentos de gestão previsional (em que se destacam os orçamentos e planos de atividades) e os documentos de prestação de contas (em que se destaca o relatório de atividades e as contas que constituem os seus anexos), equivalendo ao conceito de documentos de gestão
17. A norma competente para regular a observância do princípio da transparência pelas federações desportivas, imposta pelos artigos 5.º, n.º 1, e 13.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Federações Desportivas e das Condições de Atribuição do Estatuto de Utilidade Pública e pelo n.º 3 do artigo 19.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (aprovada pela (Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro), é a constante do artigo 8.º daquele Regime Jurídico das Federações Desportivas e das Condições de Atribuição do Estatuto de Utilidade Pública ( aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, com alterações), e não a que consta da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º LQEUP; incorre a Sentença, ao julgar de modo inverso, em errada aplicação destas disposições legais.
18. A norma do artigo 8.º do RJFD contém o regime especial de transparência das federações desportivas, obrigando a publicitar, na Internet, um vasto acervo de documentos em que se incluem os aludidos documentos de gestão da FPF, o que configura um regime mais exigente do que resulta da alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP, o qual exige que os interessados solicitem o acesso a esses documentos.
19. Na leitura da norma da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP, seguida na Sentença, os documentos nela referidos seriam identificados com os «atos numa óptica alargada da prática de actos que integram a actividade da FPF, ou seja, que possibilitem o pleno desenvolvimento do seu objecto, mormente os que envolvam financiamento público», ou como «todos aqueles que possibilitem a normal actividade da pessoa colectiva privada e bem assim a prossecução do seu objecto» (cf., respetivamente, páginas 14 e 17 da Sentença).
20. Em consequência, na Sentença julga-se que os contratos de trabalho e de prestação de serviços celebrados pela FPF, referidos nas alíneas a), b) e c) do pedido da petição inicial, «se reconduzem a atos de gestão, no âmbito dos recursos humanos, que têm um condão financeiro e patrimonial, no âmbito do orçamento da FPF»; o mesmo se aplica aos documentos referidos nas alíneas d) a g) do mesmo pedido, por alegadamente se tratarem de «documentos relacionados com os referidos contratos é por demais manifesto que se tratam também de documentos de gestão, com natureza financeira a patrimonial » (sic).
21. Desta leitura maximalista resulta que quase todos os documentos na posse das pessoas coletivas de utilidade pública estariam sujeitos a um princípio de acesso, pois raros serão os documentos que não exprimem atos de gestão financeira e patrimonial ou não «possibilitem a normal actividade da pessoa colectiva privada e bem assim a prossecução do seu objecto».
22. Além de a tal resultado conduzirem o enunciado linguístico da disposição do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP e jurídico (Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, que estabelece o Regime da Administração Financeira do Estado), «um sentido congruente, teleologicamente orientado e com um mínimo de correspondência na lei do documentos de gestão documentos que corporizam a execução de orçamentos e planos de atividades, mas antes aos próprios orçamentos, relatórios e planos de atividades», conforme se conclui no citado Parecer Jurídico do Professor Doutor Francisco Paes Marques.
23. A interpretação e aplicação da norma da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP com o alcance maximalista defendido na Sentença, poria completamente a nu a gestão financeira e patrimonial das pessoas coletivas de utilidade públicas, bem como a sua vida interna, visto que estas estariam obrigadas a dar acesso a todos os documentos que exprimem atos de gestão financeira e patrimonial ou «possibilitem a normal actividade da pessoa colectiva privada e bem assim a prossecução do seu objecto», incluindo contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços por elas celebrados, e documentos com eles relacionados.
24. Esta interpretação não se apresenta, por conseguinte, em conformidade com os direitos fundamentais reconhecidos nos artigos 26, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, nº. 1 da Constituição, sendo que a obrigação de as pessoas coletivas de utilidade pública darem acesso aos seus documentos de gestão, na interpretação defendida pela Recorrente, revela já o reconhecimento de uma “compressão” dos direitos, visto que para a generalidade das associações genuinamente privadas não se conhece norma que imponha tal acesso.
25. Em segundo lugar, apenas a interpretação e aplicação da norma constante do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP, no sentido defendido pela Recorrente ou semelhante, se apresenta em conformidade com a reserva da vida privada e a proteção de dados pessoais (artigos 26.º, n.º 1, e 35.º da Constituição) das partes nos contratos de trabalho e de prestação de serviços celebrados pelas pessoas coletivas de utilidade pública.
26. Ao invés, a tutela constitucional destes direitos é violada pela leitura maximalista daquela norma, seguida na Sentença, na medida em que considera que toda a matéria de gestão financeira e patrimonial constante dos mesmos contratos aí se incluindo o respetivo valor e demais condições de remuneração e outras condições contratuais de idêntica natureza está incluída no direito de acesso à informação por terceiros.
27. Por último, e de outro ângulo, o artigo 268.º, n.º 2, da Constituição, onde se consagra o direito à informação administrativa, «apenas tem por objeto «uma extensão ilimitada deste regime para documentos privados pertencentes a pessoas coletivas privadas que não pertencem à Administração Pública», sobretudo a pessoas coletivas de utilidade pública de substrato privado (ou seja, das que não se reconduzem à hipótese do n.º 2 do artigo 6.º da LQEUP).
28. Nesta conformidade, aquela leitura maximalista da norma constante do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP, seguida na Sentença, não se apresenta em sintonia com o âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição. Esta norma constitucional apenas será respeitada pela interpretação e aplicação daquela norma no sentido acima explicitado pela Recorrente ou semelhante.
29. Em decorrência das conclusões anteriores, suscitam-se, para todos os efeitos legais, as três seguintes questões de (in)constitucionalidade normativa:
1.ª questão: A norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, interpretada e aplicada no sentido no sentido de abranger na possibilidade de acesso aos documentos relativos à gestão financeira e patrimonial das pessoas coletivas de utilidade pública, cópia dos contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas, e dos documentos relacionados com estes contratos (incluindo atas das reuniões em que os mesmos foram discutidos e aprovados, comunicações a outros órgãos internos sobre a respetiva existência, propostas relativas à sua celebração e demais documentos de suporte à tomada dessas decisões), viola a tutela constitucional da reserva da vida privada dessas pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins, protegidas pelos artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição.
2.ª Questão: A norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, interpretada e aplicada no sentido de abranger na possibilidade de acesso aos documentos relativos à gestão financeira e patrimonial das pessoas coletivas de utilidade pública, cópia dos contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas, e dos documentos relacionados com estes contratos, é inconstitucional por violação da reserva da vida privada e dos dados pessoais das pessoas singulares partes em tais contratos, protegidos pelos artigos 26.º, n.º 1, e 35.º da Constituição.
3.ª Questão: A norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, interpretada e aplicada no sentido de abranger na possibilidade de acesso aos documentos relativos à gestão financeira e patrimonial das pessoas coletivas de utilidade pública de substrato privado (ou seja, das que não se reconduzem à hipótese do n.º 2 do artigo 6.º da LQEUP), cópia dos contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas, e dos documentos relacionados com estes contratos, viola o âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição.
30. Sem conceder: quer o acesso a documentos nominativos por terceiros, na falta de consentimento, quer o acesso a documentos que contenham segredos industrias, comerciais ou sobre a vida interna da empresa, conforme decorre, respetivamente, dos n.º 5 e 6 do artigo 6.º da LADA, só é permitido se o interessado «demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação», sendo que decorre expressamente da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP que o critério para a legitimação do acesso é exatamente o mesmo.
31. Decorre também inequivocamente de ambas as normas que o ónus da prova do interesse direto, pessoal e legítimo é do terceiro interessado no acesso, sendo a que regra é a da prevalência da privacidade, a menos que existam razões imperiosas em sentido contrário.
32. Tal como sublinha a doutrina, para o êxito do pedido de acesso, não basta a mera invocação do Estatuto do Jornalista, «sem outra titulação específica» - em tal hipótese «não será possível fazer pender a balança da ponderação para a prevalência do acesso».
33. A Sentença, ao ter considerado bastante a invocação do Estatuto de Jornalista e da liberdade de imprensa, sem cuidar de qualquer indagação adicional sobre o interesse direto e legítimo dos Requerentes, incorre em erro de aplicação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP e nos n.ºs 5 e 6 do artigo 6.º da LADA.
34. Tal como decorre do Facto K) da Matéria Assente, é de acesso público o Contrato-Programa de Desenvolvimento Desportivo n.º CP/596/DDF/2017, em que o antigo selecionador nacional, Engenheiro F... S... é identificado como técnico responsável pelo projeto de alto rendimento, sendo que a consulta do mesmo permite conhecer a aplicação das subvenções públicas, atribuídas através daquele contrato à respetiva contratação.
35. Tal como decorre também dos Factos H) e I) da mesma Matéria Assente, a FPF disponibiliza no seu sítio na Internet um conjunto de documentos relacionados com a sua gestão, entre outros, orçamentos e planos de atividades, Relatórios e Contas, Contratos Programas, estando ainda discriminados no plano de atividades os subsídios provenientes do Estado e outras entidades públicas, o que permite conhecer os dados de gestão da Recorrente, incluindo as diversas rubricas de receitas e despesas.
36. Em consequência, os Requerentes não têm um interesse direto no acesso aos documentos solicitados, designadamente na medida em que a informação relativa a dinheiros públicos é revelada através de todos esses documentos publicados.
37. O interesse invocado pelos Requerentes também não é legítimo (não é protegido pela ordem jurídica), designadamente porque (i) o interesse baseia-se em meras notícias, sem qualquer suporte de confirmação oficial, (ii) o alegado interesse na gestão de recursos públicos está satisfeito, como se conclui acima, por informação que é pública, e (iii) porque o invocado interesse associado à atividade desportiva não é um interesse público, tal como acima também se conclui.
38. Por último, e caso na Sentença se tivesse concluído, após indagação, que em concreto os Requerentes tinham um interesse direto e legítimo no acesso à concreta informação solicitada, haveria ainda que ter sido feita a ponderação exigida pela segunda parte da alínea b) do n.º 5, e bem assim pela segunda parte do n.º 6, do artigo 6.º, ambos da LADA (aplicável, desde logo, por força da parte final da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP).
39. Em causa estão os direitos à reserva da vida privada e à proteção de dados pessoais tutelados pelos artigos 26.º, n.º 1 e 35.º da Constituição, e pela aplicação conjugada dos artigos 6.º e 86.º do Regulamento Geral de Proteção de Dados [Regulamento (UE) 2016/679 ] do selecionador nacional e demais membros da equipa técnica e, bem assim, dos membros da Direção da FPF desde 2011 (pressupondo, em todos os casos, tal como implicitamente na Sentença se fez, que tais contratos foram celebrados ou que é de reconhecer o direito a saber se o foram).
40. Em segundo lugar, estão também em causa o direito à reserva da vida privada da FPF e à liberdade de associação (artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição) de que a FPF é titular, em cujo âmbito se inscreve também a proteção do segredo comercial ou industrial e da vida interna da associação “segredo de negócio”.
41. Em terceiro lugar, estão em causa princípios fundamentais do “Modelo Europeu de Desporto”, que decorre do artigo 165.º do TFUE, onde se consagra formalmente o estatuto constitucional do Desporto na União.
42. Em consequência das conclusões anteriores, por força da ponderação destes direitos fundamentais em presença o da proteção da vida privada e dos dados pessoais, e o da reserva da vida privada da FPF e da liberdade de associação e do princípio da administração aberta, de acordo com os n.ºs 5 e 6 do artigo 6.º da LADA (por aplicação subsidiária da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP, invocada na Sentença), sempre se deveria ter aí concluído pela negação do acesso aos documentos solicitados, os quais, evidentemente, revelam dados pessoais sensíveis e consubstanciam segredo comercial e sobre a vida interna da FPF (“segredo de negócio”); ao julgar de modo diverso, a Sentença incorre em erro de julgamento e de aplicação destas disposições legais.
43. Finalmente, a Sentença incorre em erro de aplicação do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, na medida em que julga que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, com o alcance maximalista que lhe atribui, pode ser aplicada para impor o acesso a contratos de trabalho ou de prestação de serviços celebrados há, pelo menos, mais de quatro anos antes da sua aprovação e entrada em vigor (pressupondo, em todos os casos, tal como implicitamente na Sentença se fez, que todos esses contratos foram celebrados ou que é de reconhecer o direito a saber se o foram).
44. Em consequência do exposto, suscita-se, para todos os efeitos legais, uma quarta questão de (in)constitucionalidade normativa:
4.ª questão: A norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, interpretada e aplicada no sentido no sentido de abranger na possibilidade de acesso aos documentos relativos à gestão financeira e patrimonial das pessoas coletivas de utilidade pública, cópia dos contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas, bem como dos documentos relacionados com estes contratos (incluindo atas das reuniões em que os mesmos foram discutidos e aprovados, comunicações a outros órgãos internos sobre a respetiva existência, propostas relativas à sua celebração e demais documentos de suporte à tomada dessas decisões), anteriormente à entrada em vigor da referida norma, é inconstitucional por violação do princípio da tutela da confiança legítima, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Sobre o pedido de reenvio prejudicial ao TJUE
45. Conforme decorre das conclusões precedentes, a Recorrente considera que a leitura maximalista da norma da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP, seguida na Sentença, está em desconformidade com normas do Direito da União Europeia: com as normas relativas ao tratamento de dados pessoais e com as normas relativas ao Modelo Europeu de Desporto.
46. Em consequência, a FPF requer respeitosamente que se suspenda o procedimento judicial e se submeta um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267.º, primeiro e segundo parágrafos, do TFUE, propondo, para o efeito, a formulação e apresentação das seguintes questões:
(i) Devem os artigos 8.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da UE e o artigo 16.º, n.º 1, do TFUE, relativos à proteção das pessoas singulares quanto ao tratamento de dados pessoais, tal como concretizados no RGPD, ser interpretados no sentido de que não se opõem à divulgação de cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por pessoas coletivas de utilidade pública e de documentos relacionados com os esses contratos?
(ii) Deve o artigo 6.º, n.º 1, f) do RGPD, ao consagrar uma exceção ao princípio da proibição do tratamento de dados, ser interpretado no sentido de que a imposição de uma obrigação de divulgação a jornalistas de cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por pessoas coletivas de utilidade pública e de documentos relacionados com os esses contratos:
a. Ser considerada como necessária e justificada para a realização dos interesses prosseguidos por jornalistas?
b. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, devem os interesses dos jornalistas no acesso às fontes de informação prevalecer sobre os interesses ou direitos e liberdades fundamentais das pessoas que contrataram com a pessoa coletiva ou das pessoas singulares que a integram?
(iii) Deve o artigo 86.º do RGPD, ao permitir que o direito interno dos Estados- Membros preveja uma derrogação ao princípio da proteção de dados pessoais quando esteja em causa o acesso do público a documentos oficiais, desde que seja respeitado o princípio da proporcionalidade, ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma interpretação da legislação interna que imponha a pessoas coletivas de utilidade pública a obrigação de divulgação de cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços, e de documentos com eles relacionados, celebrados por elas, para fins de informação a jornalistas?
a. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, a resposta mantém-se caso os documentos se refiram a contratos de trabalho e a contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas em data anterior à entrada em vigor da norma de direito interno que consagre uma limitação à tutela do tratamento de dados pessoais de modo a alegadamente assegurar a transparência da gestão das pessoas coletivas de utilidade pública?
(iv) Deve o artigo 165.º do TFUE ser interpretado no sentido de que não se opõe à imposição de uma obrigação de divulgação de documentos, na posse de federações desportivas, de tal modo ampla que se revela suscetível de violar o princípio da igualdade de oportunidades e o princípio da autonomia organizativa e gestionária reconhecida às federações desportivas, tal como desenvolvidos pela jurisprudência do TJUE?
(v) Devem os artigos 45.º ou 56.º, ambos do TFUE, ser interpretados no sentido de que se opõem (um deles ou ambos) a uma interpretação da legislação de um Estado-Membro que imponha a pessoas coletivas de utilidade pública uma obrigação de divulgação de cópia dos contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas, e documentos relacionados com estes contratos, atendendo a que esta obrigação pode constituir quer um impedimento significativo à livre circulação de trabalhadores entre Estados-Membros quer um impedimento significativo à livre prestação de serviços entre Estados-Membros?”
Os recorridos apresentaram contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
Sobre a alegada incompetência absoluta do Tribunal a quo
1. Contrariamente ao entendimento da Recorrente, e como refere a Sentença, é manifesto que o Tribunal a quo é materialmente competente.
2. Está em causa, em termos gerais, um pedido de acesso a documentos que, por inerência do escopo da ora Recorrente, se enquadram no âmbito de projetos de desporto de alto rendimento, mas que, como é evidente, não deram origem a um litígio que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto.
3. O litígio emergente surge da necessidade dos Requerentes - jornalistas de profissão - acederem a documentos que consubstanciam uma matéria tipicamente administrativa, que não releva do ordenamento jurídico desportivo, nem está relacionado com a prática do desporto.
4. O regime da arbitragem necessária do TAD que a Recorrente pretende aplicar está, também, limitado pelo disposto no n.º 3 do artigo 4.º da Lei n.0 74/2013, de 6 de setembro, não se enquadrando a presente ação em nenhuma das alíneas tipificadas no referido artigo.
5. Ademais, o caso sub judice não se enquadra, como refere a Sentença, na “parcela de justiça atribuída ao TAD, que tem competência específica, e não genérica”.
6. Face ao exposto, tratando-se a presente ação de uma intimação para o acesso a documentos administrativos, e por tudo quanto foi exposto na Petição Inicial, na Resposta à Exceção e, fundamentalmente, pelo acerto da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, é manifesto que são materialmente competentes os Tribunais Administrativos, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea n), e 104.0 ambos do CPTA, sendo, por conseguinte, destituída de qualquer fundamento a pretensão da Recorrente.
7. Deve, por isso, ser confirmada a decisão do Tribunal a quo que julgou improcedente a exceção invocada pela ora Recorrente, por não verificada.
Sobre o recurso sobre a impugnação da matéria de facto
8. Os tribunais administrativos têm aplicado a máxima segundo a qual “(o) direito a impugnação da decisão de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito da causa. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstancia próprias do caso em apreciação e as diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente”
(Acordão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 24.10.2019, proferido no processo nº 571/18.5BECTB).
9. A analise da situação concreta evidencia, ponderadas as várias soluções plausíveis de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito. Isto porque:
a. O artigo 33.º da Contestação não releva para a suposta solução plausível de direito que a Recorrente pretende assacar, no paragrafo n.º 30 das Alegações de Recurso;
b. O artigo 50.º da Contestação não releva para a suposta solução plausível de direito que a Recorrente pretende assacar, nos parágrafos n.º 34 e 35 das Alegações de Recurso; e
c. Os artigos 51.º e 52.º da Contestação não relevam para a suposta solução plausível de direito que a Recorrente pretende assacar, nos parágrafos n.º 36 e 37 das Alegações de Recurso.
10. O artigo 33.º da Contestação não releva para a suposta solução plausível de direito que a Recorrente pretende assacar, porque o único facto, com relevo para a decisão de mérito, que se pode retirar dos Estatutos da FPF é o de que a FPF é uma pessoa coletiva de direito privado, com estatuto de utilidade pública.
11. O artigo 50.º da Contestação não releva para a suposta solução plausível de direito que a Recorrente pretende assacar, porque:
a. os Requerentes, no pedido, não se limitaram a solicitar os contratos celebrados entre a FPF e a pessoa do Sr. Eng. F... S...;
b. o acórdão do CAAD não é, reductio ad absurdum, um contrato, portanto, não satisfaz os pedidos formulados em sede de Petição Inicial;
c. o critério da necessidade do acesso aos elementos solicitados é não só autoexplicativo (um contrato contém muita mais informação - no caso, informação de interesse público - do que o mero conhecimento da sua existência ou a mera identificação das partes), como foi devidamente explicitado em sede de Petição Inicial;
d. dificilmente poderia o Tribunal a quo formar uma convicção suficiente quanto ao facto que a Recorrente quer que se faça prova no artigo 50.º da Contestação, atendendo às inconsistências demonstradas pela Recorrente;
e. o artigo 50.º da Contestação não tem também qualquer relevância para (i) a questão de direito de saber se os Requerentes são ou não são titulares de um interesse direto, na aceção da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP, nem (ii) a Recorrente logrou demonstrar em que medida poderia relevar;
12. Os artigos 51.º e 52.º da Contestação não relevam para a suposta solução plausível de direito que a Recorrente pretende assacar, porque (i) ainda que se desse por provados tais “factos” - no que não se concede -, os mesmos não retirariam qualquer legitimidade aos pedidos formulados nas alíneas b) e c); e (ii) a Recorrente nunca logrou demonstrar os supostos factos alegados;
13. Ademais, as alegações da ora Recorrente nos parágrafos n.º 36 e 37 das Alegações de Recurso não são acompanhados do concreto meio probatório que imponha uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil (CPC) aplicável ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA, devendo, por isso, ser rejeitada a impugnação sobre a matéria de facto relativa aos factos invocados nos parágrafos n.º 51 e 52 da Contestação.
Sobre o recurso quanto a matéria de direito
14. A Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Publica - e, em particular, a alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º - é, evidentemente, aplicável à FPF.
15. Conforme referido na Sentença, a relação entre diplomas (LQEUP, LBAFD e RJFD) é complementar, e não de oposição ou de exclusão.
16. Os deveres em causa na alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP e no artigo 8.º do RJFD não consubstanciam uma situação de norma especial vis-à-vis norma geral.
17. Para se poder considerar que o artigo 8.º do RJFD constitui norma especial face a alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP (no que não se concede), teria de estar em causa uma situação de conflito normativo, o que claramente não é o caso: as consequências jurídicas das normas em causa não postulam quaisquer resultados antinómicos ou incompatíveis, seja do ponto de vista lógico ou do ponto de vista teleológico.
18. É descabido invocar um pretenso regime de especialidade do artigo 8.º do RJFD que afastasse a aplicação da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP.
19. Resulta claro que deveres de transparência, como os previstos na alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP, se aplicam, no seu todo, a FPF e a qualquer outra federação desportiva, sob pena de revogação do estatuto de utilidade pública - que, como já referido, é condição necessária para o exercício dos poderes públicos atribuídos às federações desportivas.
20. Como tal, também por este motivo, o regime de transparência do RJFD não exclui a aplicabilidade do regime de transparência da LQEUP.
21. Termos em que a alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP tem plena aplicação a FPF e, em particular, ao caso sub judice.
Sobre a alegada interpretação maximalista da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP
22. O Decreto-Lei n.º 155/92, invocado pela Recorrente, não define o conceito de gestão patrimonial e financeira - apenas o usa em algumas disposições, mais concretamente, nos artigos 45.º a 61.º do mesmo diploma.
23. Impressiona que a Recorrente pretenda aplicar e aproveitar um regime que se refere a organismos da Administração Pública, quando, ao longo das Alegações de Recurso, reclama veementemente a supremacia do seu estatuto de associação de direito privado.
24. A única relação entre o artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, e os artigos 45.º a 61.º do Decreto-Lei n.º 155/92 é a utilização da expressão “gestão patrimonial e financeira”, que é manifestamente insuficiente para argumentar que a intenção do legislador era associar ambos os preceitos.
25. A Sentença é muito clara sobre o âmbito de aplicação subsidiária da LADA e os respetivos limites, não correspondendo à verdade, na interpretação conferida pela Sentença, que a LADA passasse a ter uma aplicação principal.
Sobre a tutela constitucional da reserva da vida privada das pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins
26. Sem prejuízo de se reconhecer o direito a privacidade das pessoas coletivas, este coloca-se, como refere o Tribunal Constitucional, “num espaço ainda mais periférico do espectro de defesa definido pelo artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, resultando tanto mais permeável a ingerências fundadas em valores constitucionais” (Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 177/2023).
27. Não obstante, a Sentença ponderou, precisamente, a permissão de acesso aos documentos solicitados na parte relativa a matéria de gestão financeira e patrimonial, conforme exige a Constituição.
28. A FPF, no que à matéria em causa nos autos concerne, não beneficia da proteção conferida pelo artigo 26.º da CRP na sua intensidade máxima, quando confrontado com outros valores constitucionalmente protegidos, como, inter alia, o direito de acesso previsto no n.º 2 do artigo 268.º da CRP.
29. Os documentos enunciados no pedido em nada se relacionam ou põem em causa o sigilo de particularidades de organização, de funcionamento e de know-how, por não comprometerem a proteção do segredo industrial ou comercial, nem afetarem o direito previsto no artigo 46.º, n.º 2, e no artigo 61.º, n.º 1, da CRP.
30. Sempre sem conceder, refira-se que incorre a Recorrente em manifesta contradição lógica ao socorrer-se da proteção dos seus alegados segredos de negócio para justificar a recusa da entrega dos documentos e, em simultâneo, justificar a mesma recusa na publicidade dos mesmos e na falta de necessidade de os entregar.
31. Não obstante, a informação pedida pelos Requerentes (que não é, de facto, pública) nunca poderia ser considerada segredo de negócio da Recorrente, pois inexiste um nexo entre o valor da informação e o secretismo.
32. Ademais, os elementos solicitados não acrescentam qualquer valor comercial ou vantagem competitiva à FPF.
33. A informação solicitada também não integra o conceito de segredo comercial ou de negócio, na vertente da propriedade intelectual ou industrial.
34. Não se pode também acompanhar a posição da Recorrente quando invoca que a informação solicitada pelos Requerentes se refere a vida interna de uma empresa, sujeita, na sua perspetiva, a restrição de acesso nos termos do n.º 6 do artigo 6.º da LADA.
35. O tema dos alegados segredos comerciais da FPF, de resto, nunca é - nem de forma genérica - suscitado na Contestação; por maioria de razão, nem uma palavra é dedicada aos concretos elementos do pedido dos Requerentes que supostamente constituem segredos. O mesmo se diga, de resto, em relação à não invocação de questões relativas aos dados nominativos.
36. Sobre a suposta ingerência no artigo 46.º, n.º 2, da CRP, nunca a divulgação dos elementos solicitados no pedido a que o Tribunal a quo concedeu provimento coloca em crise aquela que é a normal materialização do direito, no contexto em que a Recorrente se sujeitou a determinadas obrigações legais quando decidiu prosseguir os fins que prossegue e requerer o estatuto de utilidade pública (e utilidade pública desportiva).
37. O cumprimento de um regime de transparência como o da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP em nada belisca o direito à liberdade de associação da FPF, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 46.º da CRP.
38. Termos em que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, não viola a tutela constitucional da reserva da vida privada dessas pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins.
Sobre a tutela constitucional da reserva da vida privada e da proteção dos dados pessoais das pessoas singulares partes em contratos
39. E a Sentença que vem assegurar a salvaguarda da proteção dos dados nominativos, prevendo o expurgo ou truncagem previa dos mesmos.
40. Se os contratos foram celebrados - como a Recorrente afirma terem sido - com a F..., Lda., é expectável que os dados que constem da identificação dos mesmos (como as moradas e outros dados de identificação) sejam os da pessoa coletiva F..., Lda., e não os da pessoa singular F... S....
41. Esses dados da pessoa coletiva não só são públicos por força da publicidade registal, como não são objeto de proteção pelo direito fundamental a proteção de dados previsto no artigo 35.º da CRP e, no plano infra-constitucional, no RGPD.
42. A transmissão dos dados aos Requerentes, nas condições definidas na Sentença, é lícita e tem respaldo nos fundamentos de licitude previstos no RGPD.
43. Por um lado, a transmissão de dados é lícita para a prossecução de interesses legítimos de terceiros (os Requerentes), nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD, designadamente, o tratamento para finalidades jornalísticas.
44. Por outro lado, a transmissão de dados é legítima no cumprimento de uma obrigação jurídica a que a FPF esta sujeita (conceder o direito de acesso a documentos aos Requerentes, ao abrigo, nomeadamente, da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP), nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD.
45. Mais: tendo por referência as disposições relativas a situações especificas de tratamento do Capítulo IX do RGPD, o tratamento é ainda:
a. legítimo por aplicação do artigo 86.º do RGPD;
e
b. legítimo por aplicação das derrogações do artigo 85.º do RGPD, que é concretizado no artigo 24.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto.
46. Termos em que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, não viola a reserva da vida privada e dos dados pessoais das pessoas singulares partes em tais contratos, protegidos pelos artigos 26.º, n.º 1, e 35.º da CRP.
Sobre o âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição: os Requerentes são titulares de um interesse direto, pessoal, e constitucionalmente protegido.
47. O princípio enunciado no n.º 2 do artigo 268.º da CRP traduz-se num dos corolários do princípio da transparência no exercício da função administrativa e do princípio da administração aberta, permitindo o escrutínio pelos cidadãos, das opções, decisões, fundamentações e responsabilidades dos decisores públicos, por mero interesse difuso, inexistindo, por isso, a necessidade de ser parte num qualquer procedimento administrativo para se ter legitimidade.
48. Como bem refere a Sentença, não equivalendo o princípio de transparência de gestão, totalmente ao princípio de “arquivo aberto” que se verifica na Administração Pública, nos termos previstos no CPA e na LADA, “não deixa de ser um princípio que assegura um acesso público a um feixe concreto de actos de gestão, mesmo que não tenham qualquer lastro de administratividade”.
49. Por outro lado, os Requerentes demonstraram interesse direto, pessoal, legitimo e constitucionalmente protegido no acesso.
50. Os Requerentes beneficiam de um estatuto próprio enquanto jornalistas, previsto e concretizado através da Lei n.º 1/99, de 1 de janeiro (“Estatuto do Jornalista”), atribuindo, sem margem para dividas, o artigo 8.º do Estatuto do Jornalista legitimidade aos Requerentes para acederem aos documentos em causa.
51. As suspeitas da prática de ilícitos fiscais, bem como a fundamentação de tais suspeitas, quando noticiadas em vários artigos ao longo de vários meses, demonstram concretamente a relevância de tal acontecimento para o público em geral.
52. Ainda que se considerasse que os Requerentes não demonstraram um interesse legítimo (no que não se concede e apenas por cautela de patrocínio se equaciona), sempre se diga que os jornalistas estão, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º do respetivo Estatuto, dispensados de demonstrar o referido interesse legitimo (cfr. MARIA MANUEL BASTOS e NEUZA LOPES, Comentário à Lei da Imprensa e ao Estatuto do Jornalista, op cit., e demais doutrina citada).
53. Não há qualquer erro de julgamento no facto de a Sentença ter “considerado bastante a invocação do Estatuto do Jornalista e da liberdade de imprensa”, e, muito menos, se ainda se tiver em conta que os Requerentes fundamentaram o pedido com recurso a notícias.
54. Na mesma senda, é, salvo o devido respeito, descabido o que a Recorrente alega ao referir que “os Requerentes não alegaram nem provaram com seriedade a existência de tais suspeitas, designadamente por recurso a fonte oficial”, pelas razões aduzidas no capítulo respetivo.
55. Não só a Sentença analisou e concluiu exemplarmente sobre o interesse pessoal, direto e constitucionalmente protegido dos Requerentes, como, se assim não o fizesse, incorreria a Sentença numa - esta sim, grave - violação dos direitos constitucionais acima descritos, em particular, os direitos a informar, de se informar e de ser informado, decorrentes do disposto nos artigos 37.º, n.º 1, e artigo 38.º, n.º 2, da CRP, assim como do artigo 11.º da CDFUE e do artigo 10.º da CEDH.
56. Termos em que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, não viola o âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da CRP.
57. Pelo contrário, a interpretação que a Recorrente pretende conferir à norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, conjugada com o n.º 2 do artigo 268.º da CRP, no sentido de que os Requerentes não seriam “titular[es] de um interesse direto, pessoal, legitimo e constitucionalmente protegido” é que incorre em violação de lei, nomeadamente dos n.ºs 1 e 2 do artigo 8.º do Estatuto do Jornalista, e é inconstitucional por violação das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 38.º da CRP.
Sobre o princípio da tutela da confiança legítima, ínsito no princípio do Estado de direito
58. Não podem considerar-se preenchidos os pressupostos que, na perspetiva da Recorrente, legitimariam a aplicação de tal princípio de proteção da confiança legítima.
59. O dever de garantir a transparência e regularidade da sua gestão, assim como a possibilidade de fiscalização por parte da Administração Pública a que as federações desportivas estão vinculadas, vinha já expressamente consagrado em diplomas anteriores à LQEUP.
60. A FPF já estava sujeita a um regime de transparência previamente e, com a entrada em vigor da LQEUP, não poderia mesmo senão antecipar que algum dia alguém com legitimidade poderia requerer o acesso a cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços por si celebrados, como pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública, bem como dos documentos relacionados com estes contratos (incluindo atas das reuniões em que os mesmos foram discutidos e aprovados, comunicações a outros orgãos internos sobre a respetiva existência, propostas relativas à sua celebração e demais documentos de suporte tomada dessas decisões), independentemente da data da celebração.
61. Termos em que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j), da LQEUP, não viola o princípio da tutela da confiança legítima, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado o artigo 2.º da CRP.
Sobre o pedido de reenvio prejudicial
62. É firme convicção dos Requerentes a de que o único motivo pelo qual a Recorrente vem requerer ao Tribunal ad quem que suscite o reenvio prejudicial é para obter uma decisão de suspensão da instância e, assim, continuar a protelar a concessão do acesso aos documentos em causa.
63. Analisando as questões formuladas pela Recorrente, as mesmas:
(iv) não constituem verdadeiras dúvidas de interpretação do Direito da União Europeia;
(v) já foram, em geral, respondidas e, por isso, não cumprem os requisitos das questões
do reenvio prejudicial, e
(vi) não têm efeito útil para a causa (que não o de obstar a uma decisão célere), na medida em que (a) se baseiam em contratos que a Recorrente afirma - e pretende dar como provado - que não tem, e (b) o Tribunal a quo previu na Sentença o expurgo ou truncagem de dados nominativos.
64. O Tribunal ad quem não é obrigado a reenviar ao Tribunal de Justiça da União Europeia, não só porque não é o tribunal de Última instância, mas também porque, atentas as questões suscitadas, estão verificados os requisitos da jurisprudência , nos termos da qual o tribunal nacional não é obrigado a reenviar ao Tribunal de Justiça da UE.
65. As questões (i) e (ii)(a) formuladas pela Recorrente encontram-se respondidas pelo TJUE desde, pelo menos, o ano 2000.
66. A questão (ii)(b) formulada pela Recorrente encontra-se, igualmente, respondida pelo TJUE - o Tribunal tem uma linha jurisprudencial assente relativamente as derrogações para finalidades jornalísticas (atual artigo 85.0 do RGPD).
67. A resposta à questão (iii) é manifestamente irrelevante para a causa.
68. A resposta às questões (iv) e (v) é também manifestamente irrelevante para a causa”.”
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por entender, em síntese, quanto à competência do tribunal ser manifesto que o objeto dos presentes autos extravasa a competência específica do TAD, pois o litígio nada tem a ver com o ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática de desporto, conforme exige o artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, tratando-se de matéria tipicamente administrativa de acesso a documentos administrativos, e quanto ao mais, não padecer a decisão de erro de julgamento de facto ou de direito, designadamente no que concerne à interpretação e sentido de aplicação das normas e princípios legais e constitucionais e princípios fundamentais do “Modelo Europeu de Desporto”, que decorre do artigo 165.° do TFUE, mais devendo ser indeferido o requerimento de suspensão do processo judicial e submissão de pedido de reenvio prejudicial ao TJUE.
*

Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir dos erros de julgamento da decisão recorrida quanto:
- à exceção da incompetência absoluta do tribunal a quo;
- à decisão sobre a matéria de facto;
- à decisão sobre a matéria de direito, no que concerne à aplicação direta da LADA ao caso dos autos, à qualificação dos contratos relativos à contratação do selecionador nacional, à aplicação da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º LQEUP, com violação da tutela constitucional da reserva da vida privada dessas pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins, protegidas pelos artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição, da reserva da vida privada e dos dados pessoais das pessoas singulares partes em tais contratos, protegidos pelos artigos 26.º, n.º 1, e 35.º da Constituição, do âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição, ao considerar bastante a invocação do Estatuto de Jornalista e da liberdade de imprensa, sem cuidar de qualquer indagação adicional sobre o interesse direto e legítimo dos Requerentes, incorrendo em erro de aplicação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP e nos n.ºs 5 e 6 do artigo 6.º da LADA, ao violar o direito à reserva da vida privada da FPF e à liberdade de associação (artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição) de que a FPF é titular, em cujo âmbito se inscreve também a proteção do segredo comercial ou industrial e da vida interna da associação, ao violar o artigo 165.º do TFUE, onde se consagra formalmente o estatuto constitucional do Desporto na União, e o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, na medida em que julga que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, com o alcance maximalista que lhe atribui, pode ser aplicada para impor o acesso a contratos de trabalho ou de prestação de serviços celebrados há, pelo menos, mais de quatro anos antes da sua aprovação e entrada em vigor.
Mais suscita a necessidade de pedido de reenvio prejudicial ao TJUE.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
*

II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) A 14/11/2022, os Requerentes solicitaram à Entidade Requerida, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, art. 4.º, n.º 1, alínea g), art. 5.º, e artigos 12.º e 13.º, n.º 1, alínea c), da LADA, bem como do artigo 268.º, n.º 2 da Constituição, uma certidão de acesso a um conjunto de documentos administrativos, em concreto (cfr. Documento 7, junto aos autos com a PI, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido):
“a) Todos os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados entre a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e F... S..., desde 2014, incluindo respetivas adendas e aditamentos;
b) Todos os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados desde 2011 entre a FPF e todos os seus membros da sua Direção, incluindo respetivas adendas e aditamentos;
c) Todos os contratos de prestação de serviços assinados entre a FPF e sociedades de que os elementos referidos em a. e b. fossem ou sejam sócios, acionistas e/ou beneficiários efetivos, incluindo respetivas adendas e aditamentos;
d) Atas das reuniões nas quais foram discutidos e aprovados os contratos referidos nas alíneas a., b. e c., a celebrar em nome da FPF;
e) A comunicação da existência dos contratos referidos em b), à Comissão de Remunerações da FPF; f) Propostas subscritas pelo Presidente da FPF, ao abrigo do art.º 51.º, n.º 2, al. g) dos estatutos, no sentido da contratação do atual seleccionador nacional, F... S..., bem como da sua equipa técnica;
g) Documentos de suporte à tomada das decisão referidas em d) a f) supra;
h) Atas do Comité de Emergência, desde 2011;
i) Notificações remetidas aos membros da Direção das decisões tomadas no Comité de Emergência (art.º 53.º, n.º 3 dos Estatutos), bem como atas das reuniões da Direção que, ao abrigo do art.º 53.º, n.º 4 dos Estatutos, ratificam essas mesmas decisões. 46.º”.
b) A 29/11/2022, o pedido de acesso a documentos foi integralmente negado pela FPF (cfr. doc. 8, junto aos autos, com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
c) A 5/12/2022, na sequência da recusa de acesso, a que se reporta a alínea anterior do probatório, os Requerentes deram entrada de uma queixa junto da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), nos termos do artigo 16.º, n.º 1, da LADA (cfr. doc. 9, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
d) A 08/02/2023, a CADA emitiu o Parecer n.º 29/2023 a 8 de fevereiro de 2023, no qual se debruçou sobre o mérito do pedido de acesso aos documentos à luz das disposições aplicáveis (cfr. doc. 10, junto aos autos com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
e) A 21/02/2023, a Federação Portuguesa de Futebol, emitiu a sua decisão final fundamentada, na qual reiterou o seu entendimento e a sua decisão de negar o pedido de acesso aos documentos (cfr. Documento 11, junto aos autos com a PI, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;
f) A 11/03/2023, neste tribunal, deu entrada da PI que deu origem aos presentes autos (cfr. fls. 1, da numeração SITAF);
g) A FPF é, conforme se prescreve no artigo 1.º, n.º 1, dos seus Estatutos, uma entidade de natureza privada – «[a] Federação Portuguesa de Futebol, fundada em 31 de Março de 1914 pelas Associações de Futebol de Lisboa, Portalegre e Porto, por período indeterminado, sob a designação de União Portuguesa de Futebol, é uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, de utilidade pública, constituída sob a forma de associação de direito privado, que engloba vinte e duas associações distritais ou regionais, uma liga profissional de clubes, associações de agentes desportivos, clubes ou sociedades desportivas, jogadores, treinadores e árbitros, inscritos ou filiados nos termos dos estatutos, e demais agentes desportivos nela compreendidos» –, com estatuto de utilidade pública (cfr. doc. n.º 4, junto aos autos com a oposição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e Despacho n.º 56/95, da Presidência do Conselho de Ministros, de 14 de Setembro);
h) A FPF, disponibiliza no seu sítio da Internet da FPF, um conjunto de informação relacionada com a sua gestão, entre os outros, os seus Estatutos, regimentos e regulamentos, orçamentos e planos de atividades, Relatórios e Contas, Contratos Programa, Eleições FPF e Processo Eleitoral, Decisões dos órgãos disciplinares ou jurisdicionais, Deliberações disciplinares profissionais , Acórdãos Conselho de Justiça e Órgãos sociais (cfr. docs. 5 a 17 junto aos autos com a oposição, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos);
i) No plano de actividades da Federação Portuguesa de Futebol, relativo à época de 2021/2022, verifica-se que a FPD, recebeu a título de subsídios provenientes do Estado e outras entidades, o montante de 3.005.320,00€, valor que, quando comparado com o global de rendimentos da Entidade Requerida (76.322.518,74€), representa, apenas, aproximadamente, 3,94% (cfr. doc. 18, junto aos autos com a Contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
j) A FPF beneficia de apoio financeiro do Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P., através da celebração de contratos-programa, nos termos do disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de Outubro (confissão);
k) A FPF celebrou o Contrato-Programa de Desenvolvimento Desportivo n.º CP/596/DDF/2017, em que o antigo selecionador nacional, Engenheiro F... S... é identificado como técnico responsável pelo projeto de alto rendimento (https://ipdj.gov.pt/documents/20123/306475/CP_0596_DDF_2017.pdf e confissão);

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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir neste processo cingem-se a saber se ocorrem erros de julgamento da sentença recorrida quanto:
- à exceção da incompetência absoluta do tribunal a quo;
- à decisão sobre a matéria de facto;
- à decisão sobre a matéria de direito, no que concerne à aplicação direta da LADA ao caso dos autos, à qualificação dos contratos relativos à contratação do selecionador nacional, à aplicação da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º LQEUP, com violação da tutela constitucional da reserva da vida privada dessas pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins, protegidas pelos artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição, da reserva da vida privada e dos dados pessoais das pessoas singulares partes em tais contratos, protegidos pelos artigos 26.º, n.º 1, e 35.º da Constituição, do âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição, ao considerar bastante a invocação do Estatuto de Jornalista e da liberdade de imprensa, sem cuidar de qualquer indagação adicional sobre o interesse direto e legítimo dos Requerentes, incorrendo em erro de aplicação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP e nos n.ºs 5 e 6 do artigo 6.º da LADA, ao violar o direito à reserva da vida privada da FPF e à liberdade de associação (artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição) de que a FPF é titular, em cujo âmbito se inscreve também a proteção do segredo comercial ou industrial e da vida interna da associação, ao violar o artigo 165.º do TFUE, onde se consagra formalmente o estatuto constitucional do Desporto na União, e o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, na medida em que julga que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, com o alcance maximalista que lhe atribui, pode ser aplicada para impor o acesso a contratos de trabalho ou de prestação de serviços celebrados há, pelo menos, mais de quatro anos antes da sua aprovação e entrada em vigor.
Mais suscita a necessidade de pedido de reenvio prejudicial ao TJUE.


a) da incompetência absoluta do tribunal

Sustenta nesta sede a recorrente que está em causa um litígio decorrente de relações jurídico-administrativas desportivas, pelo que sendo o Tribunal Arbitral do Desposto (TAD), criado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, um tribunal arbitral necessário relativamente a este tipo de litígios, nos termos do disposto nos artigos 1.º e 4.º daquele diploma legal.
A sobredita Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, que criou o Tribunal Arbitral do Desporto e aprovou a respetiva lei, prevê no respetivo artigo 1.º, n.º 2, que o TAD tem competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto.
Mais se prevê no respetivo artigo 4.º tratar-se de uma arbitragem necessária.
Com os presentes autos, visam os três jornalistas do jornal Expresso obter acesso a determinados documentos na posse da recorrente, quais sejam os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados entre a mesma e F... S..., ou sociedade de que este seja sócio, e outros documentos conexos.
Para o que instauraram a presente intimação para prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões.
Como bem se vê, não está em causa litígio que releve do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto. Com efeito, estão em causa atos relativos à gestão financeira e patrimonial, enquadrados na atividade administrativa da recorrente.
No caso, o acesso a documentos produzidos no exercício desta atividade, mormente os contratos celebrados com o então selecionador nacional, assim como os celebrados com sociedade de que este seja sócio.
Não estamos, pois, perante litígio que se enquadre na área de competência específica do Tribunal Arbitral do Desporto.
Pelo que necessariamente será de manter o decidido pelo Tribunal a quo, ao julgar-se competente para conhecer da intimação.


b) do erro de julgamento da decisão de facto

Sustenta nesta sede a recorrente que se devem dar como provados os factos alegados no artigo 33.º da contestação, porque releva para aferir que os documentos solicitados não são documentos administrativos e que a FPF é uma pessoa coletiva de direito privado, no artigo 50.º, por a recorrente não aceitar que os requerentes têm interesse direto no acesso aos documentos solicitados nas alíneas a) e c) do pedido formulado na petição inicial, nos artigos 51.º e 52.º da contestação, dos quais derivará a ilegitimidade dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) da petição inicial baseando-se em meras notícias.
Dispõe como segue o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Daqui decorre que, ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados.
E cabe-lhe alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também porque motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto.
Há que ter ainda em consideração que é em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes. Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório.
E como é consabido, os factos respeitam à ocorrência de acontecimentos históricos, afastando-se de tal qualificação os juízos de natureza valorativa, que comportam antes conclusões sobre factos.
Outrossim, deve ter-se em consideração que no novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, se optou por reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, incrementando os respetivos poderes e deveres, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, conforme consta da exposição dos motivos e se consagra no atual artigo 662.º, n.º 1, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Vejamos então se tem fundamento o invocado.
Consta do artigo 33.º da oposição que, “conforme resulta claro dos Estatutos da FPF, nenhum órgão de soberania, órgão do Estado, institutos públicos, empresas públicas, autarquias locais ou outras entidades públicas exercem poderes de controlo de gestão ou designam, direta ou indiretamente, nenhum dos titulares dos órgãos de administração, de direção ou de fiscalização da FPF – cfr. o disposto nos artigos 20.º e seguintes dos Estatutos da FPF.”
Como bem se vê, a recorrente remete para uma disposição normativa, a que o aplicador da lei pode lançar mão caso entenda relevante para a discussão da questão de direito aqui colocada.
Já não relevará, por tal razão, enquanto facto.
Consta do artigo 50.º da oposição que quanto “aos documentos referidos nos pedidos das alíneas a) e c) da petição inicial: a FPF não celebrou qualquer contrato de trabalho ou de prestação de serviços com o Senhor Eng. F... S..., antigo selecionador nacional, tendo celebrado contratos com a sociedade F..., Lda., tal como resulta de informação pública, designadamente do Acórdão do Centro de Arbitragem Administrativa”.
É verdade que incumbe ao juiz, ao eleger na sentença os factos relevantes objeto da sua pronúncia, sejam factos alegados pelas partes ou resultantes da instrução da causa, ter em consideração as diferentes soluções jurídicas plausíveis e não apenas a solução jurídica que tem por correta (cf. Paulo Ramos de Faria, Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito, in Julgar, outubro de 2019; e os acórdãos aí referenciados do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/05/2014, proc. n.º 1168/13.1TBGRD.C1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 06/10/2015, proc. n.º 1848/11.6TBCSC.L1-1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/01/2017, proc. n.º 1703/15.0T8BCL.G1).
No caso, contudo, afigura-se irrelevante para a própria recorrente a fixação de tal factualidade, que de todo o modo nem sequer se encontra inequivocamente por si demonstrada nos autos.
É que a circunstância de não ter celebrado qualquer contrato de trabalho, ou de prestação de serviços, com o antigo selecionador nacional terá como evidente repercussão na presente intimação, em caso de procedência da mesma, o não ter de entregar os documentos em questão, exatamente porque os mesmos não existem.
Já do artigo 51.º da oposição consta que quanto “aos documentos referidos nos pedidos das alíneas b) e c) da petição inicial: não existem, nem existiram, desde 2011, contratos entre a FPF e todos os membros da sua Direção, ou respetivas adendas e aditamentos, incluindo com sociedades de que estes elementos fossem ou sejam sócios, acionistas e/ou beneficiários efetivos”.
E do artigo 52.º consta que “os membros da Direção da FPF são membros de um órgão social, tendo sido eleitos para os respetivos cargos, sendo esse o vínculo que os liga à FPF e nenhum outro.”
Em primeiro lugar, queda por demonstrar a prova destes factos, pelo que os mesmos não podem ser dados como assentes.
De todo o modo, em nenhuma solução jurídica plausível se afigura que tais alegações possam ter qualquer impacto quanto a uma pretensa ilegitimidade dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) da petição inicial ou quanto à sustentação do interesse dos recorridos não ser direto nem legítimo.
Improcede, pois, a impugnação da decisão da matéria de facto.


c) do erro de julgamento da decisão de direito

Consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:
[S]alvaguardadas as circunstâncias em que age munida de poderes públicos (neste sentido, cfr. parecer da CADA n.º 440/2015, de 17 de Novembro de 2015) – a LADA tem uma aplicação subsidiária à FPF, apenas nos termos previstos no artigo 12.º, n.º1, alínea j), da LQEUP, com as necessárias adaptações. Isto é, apenas e somente aos actos relativos à sua gestão financeira e patrimonial, no âmbito da verificação do princípio da transparência de gestão, actos estes aqui entendidos numa óptica alargada da prática de actos que integram a actividade da FPF, ou seja, que possibilitem o pleno desenvolvimento do seu objecto, mormente, os que envolvam financiamento público.
Neste sentido, não faz qualquer espécie de sentido, a invocação da requerida de que tal disposição não é aplicável a FPF, face ao regime de transparência a que está adstrita e que é mais exigente, sendo o que consta do artigo 5.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, mormente, o artigo 8.º, que especifica, através de enumeração exaustiva, os documentos que devem ser publicitados na Internet.
Compreenda a FPF que não pode confundir um dever específico de publicitação de certo documentos, no seu site da internet, conforme resulta do artigo 8.º, do RJFD - que alias é manifesto que cumpre - com o dever de acesso aos documentos administrativos relativos à sua gestão financeira e patrimonial, que se encontra adstrita, face ao regime que emerge da LQEUP.
Ainda que ambas as obrigações resultem da verificação do princípio da transparência da gestão, enquanto vinculação jurídico-pública a que a FPF se encontra obrigada, face ao seu estatuto de utilidade pública, tratam-se, na verdade, de obrigações distintas:
- Uma de divulgação pública, com carácter permanente, de um conjunto concreto e tipificado de documentos – nos termos do artigo 8.º RJFD;
- e outra, de acesso ocasional, e que não abranjam aqueles já publicados, em face de pedidos concretos, após verificação de um conjunto de pressupostos, mormente de legitimidade de acesso – nos termos da alínea j), do n.º1, do artigo 12.º da LQEUP.
Neste sentido, inexiste qualquer incompatibilidade entre as duas obrigações e respectivos regimes, sendo descabido invocar a especialidade do regime do RJDF, face à generalidade da LQEUP, sendo que este último, na parte que aqui releva, apenas complementa o já existente - não o revogando, nem alterando - mas sim complementando-o, adicionando-lhe um conjunto de deveres, entre os quais o de acesso aos seus documentos de gestão financeira e patrimonial.
Note-se que, nos termos em que o legislador previu o acesso a tais documentos, é irrelevante se os documentos exprimem ou não o exercício de poderes públicos, ou se a actividade da FPF, é ou não maioritariamente financiada por entidades públicas ou se está ou não sujeito a qualquer tipo de controlo de gestão.
O que releva é se tais documentos se correlacionam com a sua actividade de gestão financeira ou patrimonial.
Assim, verificada que está a sujeição da FPF, ao princípio da transparência, e bem assim, da obrigação de acesso aos seus documentos de gestão, tal como conclui a CADA no seu doutor Parecer, cumpre apenas verificar do preenchimento do dois os pressupostos legais para o acesso requerido:
- no caso a aferição do “interesse directo, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido”;
- e se os documentos solicitados se enquadram no domínio da “gestão financeira e patrimonial”.
Vejamos.
Quanto ao primeiro pressuposto, que se configura como um pressuposto de legitimidade no acesso, cumpre apenas referir que os aqui requerentes, assentaram o seu pedido, não na qualidade de um qualquer particular, mas sim de jornalistas.
Assim, beneficiam de um estatuto próprio - Lei n.º 1/99, de 01 de Janeiro, que lhe consagra um “direito de acesso a fontes oficiais de informação”, que estipula que, “o interesse dos jornalistas no acesso às fontes de informação é sempre considerado legítimo para efeitos do exercício do direito regulado nos artigos 61.º a 63.º do Código do Procedimento Administrativo”, e que aqui, numa leitura actualizada, face à data do diploma, deverá entender-se por remissão ao regime de acesso aos documentos administrativos, contidos na LADA, aplicável ex vi, nos termos da alínea j), do n.º1, do artigo 12.º da LQEUP, o que cumpre de forma imediata o critério de legitimidade.
A tal acresce o facto de ser invocado pelos requerentes, o direito de liberdade de imprensa, com guarida constitucional, no seu artigo 38.º da CRP, que contempla o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação, mas também enquanto garantia do direito de informação na sua tripla acepção de “informar, de se informar e de ser informado”.
Termos em que, sem necessidade de mais, considerações, se conclui pela plena legitimidade dos requerentes para o pedido formulado.
Por outro lado, quando ao segundo pressuposto, há que aferir da natureza gestionária dos documentos solicitados, sendo certo, assim já o referimos, por actos de gestão deverão ser entendidos como todos aqueles que possibilitem a normal a actividade da pessoa colectiva privada e bem assim a prossecução do seu objecto.
Ora, verificados que sejam os documentos solicitados, resulta manifesto que todos encerram matéria gestionárias, maxime “todos os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados entre a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e F... S..., desde 2014, incluindo respetivas adendas e aditamentos, bem como todos os contratos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços assinados desde 2011 entre a FPF e todos os seus membros da sua Direção, incluindo respetivas adendas e aditamentos, bem como todos os contratos de prestação de serviços assinados entre a FPF e sociedades de que os elementos referidos em a. e b. fossem ou sejam sócios, acionistas e/ou beneficiários efetivos, incluindo respetivas adendas e aditamentos”; porquanto todos eles, se reconduzem a actos de gestão, no âmbito dos recursos humanos, que têm um condão financeiro e patrominal, no âmbito do orçamento da FPF.
Note-se que, tal como bem conclui a CADA, há ainda que ter em consideração que assumem especial relevância, os que se correlacionem com os contratos-programa, face à canalização directa de verbas públicas para a FPF, o que ainda mais releva no âmbito do acesso aos referidos documentos, de como é exemplo os documentos que tenham surgido no âmbito do contrato-programa CP596/DDF/2017.
Quanto ao mais peticionado, designadamente os documentos relacionados com os referidos contratos, é por demais manifesto que se tratam também documentos de gestão, com natureza financeira e patrimonial, que se encontram sujeitos ao princípio da transparência, a que a FPF, se encontra vinculada, devendo ser, como bem se explica, no parecer da CADA, expurgada toda a matéria que não se relacione com tais contratos, ou que contenha dados nominativos ou encerre qualquer espécie de segredo comercial, que não interesse à pretensão material dos requerentes.
Por último, quanto ao peticionado nas alíneas h) e i), por falta de alegação bastante, também não se vislumbra, qual o interesse dos requerentes quantos ao mesmos, nem em que medida tais actos são relevantes do ponto de vista da gestão financeira e patrimonial da FPF, pelo que nesta parte, o pedido terá de improceder.
De referir ainda, em conclusão, que não se vislumbra em que medida tal princípio de gestão de alguma forma seja violador do princípio da protecção da confiança, não obstante estarem em causa documentos que remontam a cerca de 10 anos antes da entrada em vigor da norma que impõe a verificação de acesso.
Como é sabido, sem necessidade de grandes desenvolvimentos dogmáticos, para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da “confiança” é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados “expectativas” de continuidade;
Para mais, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões;
Em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do “comportamento” estadual;
Por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem tal alteração, designadamente quando estão em causa restrições de direitos, liberdades e garantias.
Ora, do exposto, ainda que porventura se possa compreender que a FPF não vislumbrasse, em 2011, vir a ser alvo de escrutínio público, no âmbito da sua actividade de gestão que, de facto, é privada, designadamente quanto aos contratos, sejam de trabalho, sejam de prestação de serviços, não se vislumbra em que medida tal expectativa de reserva, discrição ou opacidade da sua actividade de gestão possa ser legítima, considerando que a sua actividade representa no quotidiano português, uma enorme relevância pública, de âmbito nacional e com forte mediatismo associado.
Na verdade, desde o momento em que lhe foi reconhecida o estatuto de utilidade pública, ficando assim adstrita a um catálogo de direitos, mormente a de percepção de verbas provenientes do erário público, bem como de benefícios fiscais, seria expectável que a sua actividade de gestão pudesse, mais cedo ou mais tarde, ser alvo de escrutínio público, ainda que condicionado, não se podendo sequer dizer que a não submissão a tal regime de transparência apresente razões justificadas e fundadas em boas razões.
Note-se que, o princípio da transparência de gestão, vinha já contemplado no RJFD, bem como na Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, em momento anterior a 2011, e como princípio que é, encerra em si um mandado de optimização que ordena que algo seja realizado na maior medida possível.
Assim, é no confronto com os demais princípios aplicáveis a um determinado caso concreto que se afere da desrazoabilidade ou desproporção de uma determinada situação jurídica, sendo certo que é na razão de uns que se comprimem outros, em virtude da colisão existente entre o cerne de cada um dos princípios aplicáveis (cfr. Robert Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales (1986), trad. E. Garzón Valdés, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001 (2ª. reimp.) pág. 97 e 111).
E no caso, não se vislumbram, nem tal foi alegado, que existam outros princípios que de alguma forma possam restringir a verificação máxima do princípio da transparência aplicável.
Na verdade, na ponderação dos princípios aplicáveis, designadamente o de transparência, ou até dos interesses em presença, resulta manifesto que o interesse público inerente à verificação do direito de liberdade de imprensa, bem como do escrutínio público inerente ao financiamento público de que beneficia, se apresenta com um peso muito superior face a qualquer argumentação de protecção de reserva de gestão privada, sendo certo que nada de mais sério é sequer alegado pela FPF.
Aqui chegados e concluindo-se que a Entidade requerida não satisfez o pedido de acesso a documentação apresentado pelos Requerentes no prazo previsto no artigo 15.º da LADA, nem tão-pouco na pendência dos presentes autos, deve ser intimada para o efeito, possibilitando o acesso documentos que contenham as informações solicitadas, ou certidão negativa, no caso de inexistirem esses documentos, nos termos dos artigos 13.º e 14.º da LADA, aplicável subsidiariamente à FPF, designadamente do ponto de vista formal ex vi alínea j), artigo 12.º”.
Diverge a recorrente no que concerne à aplicação direta da LADA ao caso dos autos, à qualificação dos contratos relativos à contratação do selecionador nacional, à aplicação da alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º LQEUP, com violação da tutela constitucional da reserva da vida privada dessas pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins, protegidas pelos artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição, da reserva da vida privada e dos dados pessoais das pessoas singulares partes em tais contratos, protegidos pelos artigos 26.º, n.º 1, e 35.º da Constituição, do âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição, ao considerar bastante a invocação do Estatuto de Jornalista e da liberdade de imprensa, sem cuidar de qualquer indagação adicional sobre o interesse direto e legítimo dos Requerentes, incorrendo em erro de aplicação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 12.º da LQEUP e nos n.ºs 5 e 6 do artigo 6.º da LADA, ao violar o direito à reserva da vida privada da FPF e à liberdade de associação (artigos 26.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição) de que a FPF é titular, em cujo âmbito se inscreve também a proteção do segredo comercial ou industrial e da vida interna da associação, ao violar o artigo 165.º do TFUE, onde se consagra formalmente o estatuto constitucional do Desporto na União, e o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição, na medida em que julga que a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea j) da LQEUP, aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, com o alcance maximalista que lhe atribui, pode ser aplicada para impor o acesso a contratos de trabalho ou de prestação de serviços celebrados há, pelo menos, mais de quatro anos antes da sua aprovação e entrada em vigor.
Vejamos então.
A recorrente é uma entidade de natureza privada, com estatuto de utilidade pública.
Aplica-se-lhe, pois, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Publica (LQEUP), aprovada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho.
O estatuto de utilidade pública pode ser atribuído às pessoas coletivas que prossigam fins de interesse geral, regional ou local e que cooperem, nesse âmbito, com a administração central, regional ou local, cf. artigo 4.º, n.º 1.
Prevê este diploma, a par dos direitos e benefícios que tal estatuto lhes confere, quais os deveres a que se encontram obrigadas estas entidades, no respetivo artigo 12.º.
E para o caso particularmente releva o dever previsto na alínea j) do respetivo n.º 1, de assegurar a transparência da gestão através da possibilidade de acesso aos documentos relativos à sua gestão financeira e patrimonial a quem demonstrar ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido, aplicando -se subsidiariamente, com as adaptações necessárias, o regime de acesso aos documentos administrativos, aprovado pela Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto.
Como bem se vê, o regime legal aplicável à recorrente é absolutamente claro, inexistindo qualquer razão que obstaculize à aplicação da dita Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) ao caso da recorrente.
Este dever de transparência não se confunde com o dever de publicitação da atividade previsto no artigo 8.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, que designadamente impõe à recorrente que publicite na respetiva página na Internet todos os dados relevantes e atualizados da sua atividade.
Tratam-se de obrigações de natureza distinta, inexistindo qualquer relação de especialidade entre a norma da LQEUP e a norma do RJFD. À evidência, um dever não exclui o outro, estando em causa dois diplomas legais que se aplicam à recorrente, daí decorrendo imposições legais que esta tem de seguir.
Afigurando-se de todo descabida a tentativa de desmontar o dever de transparência que incumbe à recorrente, não suscitando quaisquer dúvidas quanto à sua incidência, dada a clareza do regime legal ao possibilitar o acesso aos documentos relativos à sua gestão financeira e patrimonial a quem demonstrar ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido.
Os especiais direitos e benefícios que cabem às entidades com estatuto de utilidade pública têm como contrapartida deveres semelhantes aos da administração.
Nesta medida, o aludido dever de transparência enquadra-se no princípio estruturante do regime legal de acesso a documentos elaborados ou na posse da administração, consagrado no artigo 268.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o princípio da administração aberta.
Como tal, o invocado direito à reserva da vida privada das pessoas coletivas e a liberdade de prossecução dos respetivos fins, assim como o direito a liberdade de associação, são limitados por aquele princípio de acesso aos documentos elaborados ou na posse da administração, como este o é por tais direitos, impondo-se a otimização de solução, no quadro do princípio da concordância prática, que garanta uma relação de convivência equilibrada e harmónica em toda a medida possível (cf. acórdão n.º 413/2011 do Tribunal Constitucional, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, como os demais a citar).
Sendo certo, conforme se assinala no acórdão n.º 177/2023 do Tribunal Constitucional, citado pelos recorridos, que o direito à privacidade das pessoas coletivas se situa num espaço “ainda mais periférico do espectro de defesa definido pelo artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, resultando tanto mais permeável a ingerências fundadas em valores constitucionais”.
Sublinhe-se novamente, está em causa o acesso a documentos produzidos no âmbito da atividade da recorrente de gestão financeira e patrimonial, que o legislador entendeu não manter à margem de qualquer escrutínio, e em particular do regime de acesso à informação administrativa.
Por outro lado, queda por demonstrar em que medida está em causa um invocado segredo de negócio da recorrente, ou que tais documentos lhe acrescentem valor comercial ou vantagem competitiva.
Como igualmente queda por demonstrar em que medida o acesso aos indicados elementos contende com a tutela constitucional da reserva da vida privada e da proteção dos dados pessoais das pessoas singulares partes em contratos.
Desde logo porquanto invoca a recorrente que os contratos em questão não foram celebrados com pessoa singular, mas sim com sociedade comercial.
Por outro lado, o acesso a tais dados não contende com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD, Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016), que o permite no âmbito do cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito (artigo 12.º, n.º 1, al. j), da LQEUP) e da prossecução de interesses legítimos de terceiros, cf. artigo 6.º, n.º 1, als. c) e f) do n.º 1 do RGPD.
No caso, a aludida disposição normativa constante da LQEUP permite a conciliação do direito à proteção de dados pessoais nos termos do regulamento com o direito à liberdade de expressão e de informação, incluindo o tratamento para fins jornalísticos, cf. artigo 85.º, n.º 1, do RGPD.
Aqui se permitindo que os dados pessoais que constem de documentos oficiais na posse, designadamente, de um organismo privado para a prossecução de atribuições de interesse público possam ser divulgados nos termos do direito da União ou do Estado-Membro, cf. o respetivo artigo 86.º.
Sustenta ainda a recorrente que os recorridos não teriam demonstrado um interesse direto, pessoal, legitimo e constitucionalmente protegido no acesso aos documentos em questão.
Não é assim.
Os aqui recorridos são jornalistas e atuam ao abrigo do direito de liberdade de imprensa, constitucionalmente consagrado no artigo 38.º da CRP, e concretizado no Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 1/99, de 1 de janeiro, e na Lei da Liberdade de Imprensa, aprovada pela Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro, que permitem o acesso a fontes oficiais de informação, sendo o seu interesse sempre considerado legítimo.
Outrossim, não se vislumbra sombra de violação do princípio da tutela da confiança legítima.
Desde logo porquanto o dever de transparência a que se encontra vinculada a recorrente não surgiu com a LQEUP, antes já tinha consagração legal em momento anterior ao dos elementos em causa, tanto no Regime Jurídico das Federações Desportivas, como na Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, impendendo sobre si enquanto pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública.
No mais, em momento algum demonstra a recorrente o cabimento de qualquer expectativa legítima e justificada da sua parte, que tenha sido criada pelo Estado e que lhe permitisse à recorrente antecipar que o acesso aos elementos em questão sempre estaria vedado.
De todo o modo, como se salienta na decisão recorrida, uma suposta expectativa de reserva, discrição ou opacidade da sua atividade de gestão não se afigura legítima, no quadro da grande relevância pública da sua atividade no contexto nacional e reconhecido impacto na sociedade. A partir do momento em que lhe foi reconhecido o estatuto de utilidade pública, a recorrente passou a beneficiar de direitos e benefícios, tendo como contrapartida determinados deveres, entre os quais o de transparência da sua atividade de gestão financeira.


d) pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia

Entende a recorrente que deve ser submetido um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267.º, primeiro e segundo parágrafos, do TFUE, propondo, para o efeito, a formulação e apresentação das seguintes questões:
(i) Devem os artigos 8.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da UE e o artigo 16.º, n.º 1, do TFUE, relativos à proteção das pessoas singulares quanto ao tratamento de dados pessoais, tal como concretizados no RGPD, ser interpretados no sentido de que não se opõem à divulgação de cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por pessoas coletivas de utilidade pública e de documentos relacionados com os esses contratos?
(ii) Deve o artigo 6.º, n.º 1, f) do RGPD, ao consagrar uma exceção ao princípio da proibição do tratamento de dados, ser interpretado no sentido de que a imposição de uma obrigação de divulgação a jornalistas de cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por pessoas coletivas de utilidade pública e de documentos relacionados com os esses contratos:
a. Ser considerada como necessária e justificada para a realização dos interesses prosseguidos por jornalistas?
b. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, devem os interesses dos jornalistas no acesso às fontes de informação prevalecer sobre os interesses ou direitos e liberdades fundamentais das pessoas que contrataram com a pessoa coletiva ou das pessoas singulares que a integram?
(iii) Deve o artigo 86.º do RGPD, ao permitir que o direito interno dos Estados- Membros preveja uma derrogação ao princípio da proteção de dados pessoais quando esteja em causa o acesso do público a documentos oficiais, desde que seja respeitado o princípio da proporcionalidade, ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma interpretação da legislação interna que imponha a pessoas coletivas de utilidade pública a obrigação de divulgação de cópias de contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços, e de documentos com eles relacionados, celebrados por elas, para fins de informação a jornalistas?
a. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, a resposta mantém-se caso os documentos se refiram a contratos de trabalho e a contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas em data anterior à entrada em vigor da norma de direito interno que consagre uma limitação à tutela do tratamento de dados pessoais de modo a alegadamente assegurar a transparência da gestão das pessoas coletivas de utilidade pública?
(iv) Deve o artigo 165.º do TFUE ser interpretado no sentido de que não se opõe à imposição de uma obrigação de divulgação de documentos, na posse de federações desportivas, de tal modo ampla que se revela suscetível de violar o princípio da igualdade de oportunidades e o princípio da autonomia organizativa e gestionária reconhecida às federações desportivas, tal como desenvolvidos pela jurisprudência do TJUE?
(v) Devem os artigos 45.º ou 56.º, ambos do TFUE, ser interpretados no sentido de que se opõem (um deles ou ambos) a uma interpretação da legislação de um Estado-Membro que imponha a pessoas coletivas de utilidade pública uma obrigação de divulgação de cópia dos contratos de trabalho e contratos de prestação de serviços celebrados por essas pessoas coletivas, e documentos relacionados com estes contratos, atendendo a que esta obrigação pode constituir quer um impedimento significativo à livre circulação de trabalhadores entre Estados-Membros quer um impedimento significativo à livre prestação de serviços entre Estados-Membros?”
Vejamos.
A figura do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia incide sobre a interpretação ou validade do Direito da União Europeia.
Conforme apreciado quanto à invocação do erro na decisão da matéria de direito, as questões fulcrais em debate no presente dissídio cingem-se ao dever de transparência que impende sobre a recorrente, enquanto entidade dotada de utilidade pública, e a legitimidade dos recorridos no acesso a elementos na posse daquela, produzidos no âmbito da sua atividade administrativa.
Do cotejo entre a resposta dada a estas questões e as que aqui são colocadas pela recorrente, não se antevêm dúvidas fundadas quanto à interpretação do Direito da União Europeia.
Efetivamente, não se vislumbra que as normas ou a jurisprudência invocadas possam de alguma forma contender com o supra decidido.
Atento o exposto, inexiste fundamento para que sejam colocadas questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos formulados pela recorrente.

Em suma, cumpre negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Lisboa, 6 de junho de 2024
(Pedro Nuno Figueiredo)

(Marcelo Mendonça)

(Ilda Côco)