Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:685/22.7BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:06/05/2025
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:CESE DO ANO DE 2020
INCONSTITUCIONALIDADE ARTIGO 2.º RJCESE
VIOLAÇÃO DO ARTIGO 13.º DA CRP
Sumário:I-O artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2020, pelo artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2020, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – viola o artigo 13.º da CRP.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (doravante Recorrente) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por S…………– Sociedade de ………………, S.A, tendo por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que manteve o ato tributário de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), referente ao ano de 2019, no valor global de €1.266.321,50.

A Recorrente apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

i. O Tribunal a quo decidiu anular a liquidação impugnada, por entender que esta enferma do vício de violação de lei, por violação do Princípio da Igualdade, na esteira do decidido no Acórdão n.º 101/2023, de 16-03-2023, no Processo n.º 480/22, no qual a norma do artigo 2.º, alínea d) do regime da CESE foi julgada inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), na parte em que aquela determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural.

ii. Sucede que, o entendimento vertido no Acórdão n.º 101/2013 foi infirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 296/2023, de 25-05-2023, no Processo n.º 1288/21, que decidiu não julgar inconstitucional o art.º 2.º, 3.º e 12.º do Regime da CESE, na versão vigente no período de 2018, assente, para além da demais fundamentação, na conclusão de que «Seria, pois, a exclusão das empresas do subsetor do gás natural do regime contributivo – solução diferenciada [como aquela que foi seguida no Acórdão n.º 101/2023] que contrastaria com os demais agentes económicos do setor energético, em contexto em que a atividade do FSSSE persiste legalmente dirigida ao domínio de atividade de todos eles –, que representaria um tratamento tributário desigual e injustificado entre operadores e, por inerência, que dificilmente se poderia dizer compatível com o artigo 13.º da Lei Fundamental.».

iii. Assim, a Recorrente considera que a Sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento de facto e de direito, com base no qual o Tribunal a quo decidiu anular a liquidação impugnada e condenar a Fazenda Pública ao pagamento de indemnização por garantia indevidamente prestada em montante a apurar em execução de sentença, ancorada no pressuposto da inconstitucionalidade do disposto no art.º 2.º, alínea d) do regime da CESE, decorrente de violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP, sendo que o juízo de inconstitucionalidade que recaiu sobre aquela norma no âmbito do Acórdão n.º 101/2023 foi posteriormente infirmado pelo Tribunal Constitucional com o alcance referido no Acórdão n.º 296/2023.

iv. O teor do Acórdão n.º 296/2023 permite verificar que, nele o Tribunal Constitucional sindicou, para além de outras normas do regime da CESE (vigente para o ano de 2018, nos termos da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), a norma de incidência subjetiva ínsita no art.º 2.º, alínea d), do regime aprovado pelo art.º 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.

v. O disposto no art.º 2.º, alínea d) do regime da CESE, aprovado pelo art.º 228.º da Lei n.º 83C/2013, de 31 de dezembro, manteve-se em vigor, no ano de 2019, nos termos do art.º 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, sendo aplicável à aqui Recorrida, (quanto à liquidação de CESE relativa ao ano de 2021), por esta ser sociedade anónima, com sede em território nacional, que exerce atividade no âmbito do aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, conforme consta da factualidade assente na alínea 1) dos Factos Provados na Sentença.

vi. No Acórdão n.º 296/2023, o Tribunal Constitucional reiterou a qualificação jurídico-tributária da CESE como contribuição financeira, acolhendo o Acórdão n.º 7/2019 que decidiu «Não julgar inconstitucionais as normas ínsitas nos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º que modelam o regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético, aprovado pelo artigo 228.º n.º 83-C/2012, de 31 de dezembro», tendo explicitado que: «É a unidade de interesses de grupo, a responsabilidade de grupo e o benefício do grupo, com relação à CESE e aos operadores do setor energético abrangidos pelo âmbito de incidência subjetiva (artigo 2.º do RJCESE), que suportam a conceptualização do tributo em causa como contribuição financeira inserida na lógica comutativa de aquisição de benefício difusa pela ação pública, esta por sua vez assente em responsabilidade de grupo pela situação carecida da atividade que a contribuição é chamada a financiar», mediante a sua alocação à atividade do Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético.

vii. Acresce que, no Acórdão n.º 296/2023, o Tribunal Constitucional nega o entendimento que havia sido acolhido no Acórdão n.º 101/2023, de que, por um lado, a receita da CESE estaria dirigida essencialmente à gestão da dívida tarifária, e por outro, não seria possível reconhecer uma vantagem própria aos operadores do setor do gás natural que adviesse dessa gestão, nem um nexo de causa entre a atividade destes e o problema gerido, levaria a que esses agentes económicos ficassem afastados do espectro de incidência.

viii. No sentido de fundamentar a negação do entendimento que fora acolhido no Acórdão n.º 101/2023, o Tribunal Constitucional explicitou no Acórdão n.º 296/2023, além do mais, o seguinte:

ix. «Nunca o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, nem na sua redação originária, nem na introduzida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, alguma vez estabeleceu uma regra de afetação da receita da CESE a determinadas despesas do Fundo para a Sustentabilidade do Setor Energético: a prioridade definida no sobredito preceito respeita às “verbas do FSSSE”, ou seja, a todas as disponibilidades financeiras integradas no património do Fundo, advenientes das cinco fontes de receita legalmente previstas (cfr. artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, acrescidas dos excedentes transportados de exercícios anteriores – cfr. n.º 2), não à coleta obtida de uma delas, fosse o caso da CESE.»;

x. «Sobre o destino específico a cometer à receita por esta contribuição financeira no âmbito da governação do FSSSE, nenhuma alteração foi introduzida no diploma pelo Decreto-Lei n.º 109A/2018, de 7 de dezembro, porque nunca nenhuma finalidade peculiar às disponibilidades libertadas pela CESE alguma vez esteve fixada no Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril.»;

xi. «A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, reduziu este teto máximo (de 2/3) para 1/3 da receita da CESE, permitindo ainda ao Governo definir uma regra orçamental que se contenha neste quadro (cfr. artigo 4.º, n.º 4, alínea a), e 3, na nova redação). No entanto, como está bom de ver, isso não importou uma regra diferente de consignação da receita obtida pela CESE a certas despesas, já que essa regra nunca existiu: aquela permanece alocada à globalidade das despesas do Fundo, em consonância com os objetivos programáticos da entidade pública.»;

xii. «(…), a atividade regulatória do FSSSE no plano de políticas relativas ao setor energético e sua eficiência, maxime de cariz social e ambiental (artigo 2.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril), responde (também) a necessidades geradas pela atividade das entidades integradas no Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) e que dessa regulação estas extraem vantagem (…) a lógica dos tributos comutativos atribuída à CESE pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional não se pode dizer embargada: a CESE, enquanto instrumento de assistência financeira ao FSSSE, viu preservado o nexo relevante para com as empresas do SNGN que até então se veio observando, bem como para com as demais que integram o quadro de incidência subjetiva, permitindo e impondo a sua qualificação como contribuição financeira.». [Sublinhado nosso];

xiii. «O abatimento no valor da tarifa por UGS [utilização global do sistema de gás natural] do SNGN [Sistema Nacional de Gás Natural] constitui uma medida de realização de despesa pelo FSSSE que se destina à estabilidade e equilíbrio do subsetor do gás natural que acresce às demais atividades compreendidas no seu escopo programático dirigidas ao conjunto do setor energético, de que os respeitos operadores serão beneficiários, (…).». [Sublinhado nosso];

xiv. «Não se diga, como sugere o Acórdão do TC n.º 101/2023, que o interesse das empresas do setor de gás natural que aqui se sinaliza advém de linha “oblíqua”, ou que fosse de tal forma ténue que não se pudesse convocar como fundamento da incidência contributiva. O que se observa do exposto é a estreita interdependência entre subsetores do grande setor energético e a partilha de bases de consumo, sinalizando um mesmo feixe de interesses económicos, unitário e consistente, de onde resulta a homogeneidade de grupo que suporta a incidência da CESE, tal como vem, desde há muito, defendendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional.» [Sublinhado nosso];

xv. «(…) não colhe o argumento de que a CESE se destina exclusiva ou predominantemente a propósitos de “consolidação orçamental” ou que as entidades obrigadas, fosse esse o caso dos operadores do SNGN, dela não retiram vantagem que não seja comum a qualquer outra pessoa, singular ou coletiva, sediada em território nacional: demonstradamente e em face do respetivo regime e realidade operacional com que os operadores no setor da energia se confrontam, estamos perante situação absolutamente oposta.».

xvi. Dito isto, a evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 296/2023, concorre para concluir que a Recorrida, atento o exercício da atividade aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, encontra-se integrada no grupo homogéneo composto pelos subsetores do sector energético e pode ser considerada responsável e beneficiária das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar, pelo que a norma de incidência subjetiva prevista no artigo 2.º, alínea d) do regime da CESE, aprovado pelo art.º 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que se manteve-se em vigor, no ano de 2019, nos termos do art.º 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, não é violadora do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP.

xvii. Sobre a conformidade do disposto no art.º 2 do Regime da CESE, vigente no ano de 2018, com o princípio da igualdade, veja-se também a jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no sobre Decisão Sumária n.º 73/2023, de 06-02-2023, publicado e consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20230073.html, no Acórdão n.º 338/2023, de 06-06-2023, publicado e consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230338.html, e no Acórdão n.º 372/2023, de 07-06-2023, publicado https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230372.html.

xviii. Em face do exposto, considerando o juízo de não inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 296/2023, a respeito do disposto no art.º 2.º do regime da CESE vigente no ano 2018, (cujos fundamentos têm cabimento mutatis mutandis para o ano de 2019), conclui-se que a Sentença padece do vício de erro de julgamento de facto e de direito, o qual constitui fundamento para anular a Sentença recorrida e dar provimento ao recurso, reconhecendo a legalidade das liquidações impugnadas (de CESE e juros compensatórios) e a inexistência de erro imputável aos serviços na liquidação da contribuição que obsta à condenação da Fazenda Pública no pagamento de indemnização por garantia indevidamente prestada, (prevista no art.º 53.º da LGT), com todas as consequências legais.

xix. Quanto aos demais vícios invocados pela Recorrida, cujo conhecimento ficou prejudicado por causa do erro de julgamento incorrido pelo Tribunal a quo, se tais questões tivessem sido apreciadas, as mesmas certamente conduziriam à decisão de improcedência da impugnação judicial e absolvição da Fazenda Pública, aqui Recorrente, de todos os pedidos, com os fundamentos detalhamos nos autos nos art.º 64.º a 123.º da contestação que aqui damos por reproduzidos, e que se encontram alinhados com os princípios constitucionais e a jurisprudência consolidada.

NESTES TERMOS, requer-se a V.as Ex.as que seja dado provimento ao Recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA. Mais se requer, a V.as Ex. as, que atendendo a que o valor do recurso ser superior a € 275.000,00, seja a Fazenda Pública dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do n.º 7 do art.º 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tendo em consideração o valor da ação e a natureza da questão em apreço e a boa conduta processual das partes.”


***

A Recorrida devidamente notificada apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

“A. O Acórdão n.º 296/2023 do Tribunal Constitucional (TC), no qual assenta o recurso interposto pela Fazenda Pública, erra ao pressupor que a discussão em causa nos autos se encontra praticamente esgotada em controvérsias resolvidas desde o Acórdão n.º 7/2019 e que assim é porque a questão da conformidade constitucional da CESE estaria fundamentalmente dependente de se saber se aquela constitui um verdadeiro imposto ou antes uma contribuição financeira.

B. Com efeito, após aquele Acórdão n.º 7/2019, relativo à CESE em vigor em 2014 (o primeiro ano de vigência do tributo), este Tribunal foi construindo, reiterando e consolidando uma jurisprudência, relativa inicialmente aos anos de 2015 a 2017, da qual resulta que a justificação da CESE – mesmo admitindo que ela é uma contribuição financeira – se manteria apenas enquanto se mantivessem também as obrigações internacionais do Estado português ligadas à emergência do reequilíbrio das contas públicas, obrigações essas vertidas primeiro no Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) e depois no Procedimento por Défice Excessivo (PDE). Ora, como nem um nem outro estavam já em vigor em 2018, a consequência lógica e previsível daquela jurisprudência seria a de que a partir daquele ano a CESE teria perdido a sua razão de ser.

C. O Acórdão n.º 101/2023 (em que se fundamenta a sentença recorrida) – relativo a 2018 mas aplicável a todos os períodos posteriores –, tem por subjacente o conteúdo dessa jurisprudência. Em parte, é um corolário ou uma consequência lógica da mesma. Isto significa que o Acórdão n.º 296/2023 não foi proferido em contradição apenas com o Acórdão n.º 101/2023: apesar de relativamente a este a contradição ser directa e completa, porque existe um contraste quanto à argumentação e ao sentido da decisão, essa contradição existe igualmente, na dimensão da argumentação, relativamente a todo o percurso jurisprudencial que desembocou naquele aresto.

D. No entanto, além de dar importância ao facto de a partir de 2018 se terem deixado de se verificar as condições gerais de excecionalidade financeira que, segundo a jurisprudência anterior, justificavam a vigência extraordinária da CESE (designadamente a vigência do PAEF e do PDE), o Acórdão n.º 101/2023 acrescenta um outro elemento de análise fundamental: no que concerne ao contexto específico do sector energético que justificou a criação da CESE, o TC sublinha que, de novo a partir de 2018, também a trajetória de redução da dívida tarifária do SEN – o principal objetivo concreto da medida – significa que o tributo deixou de ter o mesmo sentido de urgência que tinha quando foi criado.

E. Essa aceleração da redução da dívida tarifária resultou da decisão política de transferir em 2018 a receita necessária para o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético, entidade à qual cabe aplicar a receita da CESE aos fins legalmente previstos (segundo o Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril) – isto na sequência de uma alteração ao seu regime produzida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de Dezembro. Antes de tal intervenção legislativa, o Fundo estava obrigado a dirigir apenas um terço daquela receita para o objetivo de redução da dívida tarifária do SEN, enquanto dois terços da mesma seriam destinados a outras políticas gerais de sustentabilidade energética. Após a alteração legal, o Fundo passou a poder aplicar à redução da dívida tarifária dois terços da receita da CESE, podendo utilizar até um terço da mesma no financiamento de outras medidas.

F. Daqui o Acórdão retira que a CESE é inconstitucional a partir de 2018 por referência às empresas que não integram o sector da produção de eletricidade. Isto é: dado que a receita da CESE passou a servir maioritariamente para financiar a redução da dívida tarifária do SEN, não faz sentido exigi-la às empresas que não são do sector eletroprodutor.

G. Neste sentido, a alínea d) do artigo 2.º do regime da CESE vigente em 2018 é inconstitucional, por quebra do nexo causal entre os objectivos do tributo e os operadores que actuam no sector do gás natural, como a Recorrida.

H. A Recorrida adere ao conteúdo do Acórdão n.º 101/2023, que no seu entender deve prevalecer na ordem jurídica sobre a decisão aqui em crise, por constituir uma melhor subsunção da realidade da CESE de 2018 aos princípios constitucionais aplicáveis.

I. De resto, assim é porque todos os demais pressupostos em que o Acórdão n.º 296/2023 assenta – e que no seu conjunto constituem uma tentativa de refutar a tese central do Acórdão n.º 101/2023 (a de que que o Decreto-Lei n.º 109-A/2018 produziu a mudança fundamental identificada pelo Acórdão n.º 101/2023) – são igualmente erróneos.

J. Desde logo, o Acórdão n.º 296/2023 não tem razão quando diz que o Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de Dezembro, não introduziu qualquer alteração à finalidade das receitas geradas pela CESE, mas apenas à finalidade de todas as disponibilidades financeiras integradas no património do Fundo, advenientes das cinco fontes de receita legalmente previstas. Não tem razão porque a CESE é a única receita do Fundo: não só é a única que se encontra realmente prevista (todas as demais receitas se encontram inscritas na lei enquanto meramente hipotéticas ou potenciais, em termos simplesmente programáticos) como não se conhecem que outras fontes geraram efectivamente receita para o Fundo.

K. Saliente-se, ademais, que a criação do Fundo é contemporânea da criação da CESE. Ambos foram criados no mesmo ensejo legislativo (o tributo na Lei do Orçamento do Estado para 2014, para vigorar a partir do início do ano e ser cobrado até Outubro; o Fundo no Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, a tempo de vir a gerir a receita da CESE). Ora, antes da existência deste Fundo, o Estado já assumia a responsabilidade de políticas no sentido da sustentabilidade do sector energético, sem que para tal tenha tido a necessidade de criar semelhante instrumento jurídico. Só o criou entã para lhe atribuir a gestão desta nova receita, a provinda da CESE. Por isso, analisar a CESE como se se tratasse de simplesmente mais uma receita do Fundo é um erro. Sem a CESE, o Fundo pura e simplesmente não existiria.

L. Essa relação é evidente no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 55/2014, seja na identificação indubitável da relação causal entre a criação da CESE e a necessidade de criar o fundo, seja no facto de apenas se referir à receita daquele tributo. Mas importa referir também que, na parte normativa do Decreto-Lei, mais concretamente na alínea b) do artigo 2º, se estatui expressamente que é “mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o sector energético prevista no artigo 228º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro” que se deve garantir o objectivo “da redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN)”. No artigo 5º, concretiza-se depois, em pormenor, a forma como a “contribuição” deve ser aplicada àquele objectivo: segundo os n.ºs 1 e 2, o montante da CESE consignada à redução da dívida tarifária “é deduzido aos custos de interesse económico geral (CIEG) a repercutir em cada ano na tarifa de uso global do sistema aplicável aos clientes finais e comercializadores”.

M. Perante a vontade legislativa traduzida quer no preâmbulo quer na parte dispositiva do Decreto-Lei, não se percebe como pode o TC pensar que, quando falamos do destino das receitas do Fundo, não é do destino das receitas da CESE que estamos realmente a falar. Mais: revela-se que é errada a afirmação do Acórdão n.º 296/2023 segundo a qual “nunca o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, nem na sua redação originária, nem na introduzida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, alguma vez estabeleceu uma regra de afetação da receita da CESE a determinadas despesas do Fundo para a Sustentabilidade do Setor Energético”.

N. O TC diz a esse propósito que ‘a prioridade definida no sobredito preceito respeita às “verbas do FSSSE”, ou seja, a todas as disponibilidades financeiras integradas no património do Fundo, advenientes das cinco fontes de receita legalmente previstas (cfr. artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, acrescidas dos excedentes transportados de exercícios anteriores – cfr. n.º 2), não à coleta obtida de uma delas, fosse o caso da CESE. Todavia, o TC esquece o que resulta da alínea b) do artigo 2º e do artigo 5º: no que concerne às receitas do Fundo destinadas à redução da dívida tarifária do SEN, o legislador impôs que elas fossem especificamente as receitas da CESE. Em face disto, é também errada a afirmação do Acórdão n.º 296/2023 de que o valor de receita anual da CESE é apenas um “parâmetro de limitação de certas categorias de despesa do Fundo, tendo em vista garantir o equilíbrio da sua orçamentação e da sua conta final”, ou um “valor de referência para o limite à despesa com políticas do setor energético”.

O. De qualquer modo, sempre se diga que, mesmo que considerássemos como válida a interpretação do Acórdão n.º 296/2023, no sentido formalista e artificial de que a alteração legal de 2018 implicou uma mudança da chave de repartição das receitas do Fundo, e não da receita da CESE, não se compreende porque é que a conclusão quanto à inconstitucionalidade do tributo relativamente aos operadores que não são do sector eléctrico haveria de ser distinta da retirada pelo Acórdão n.º 101/2023. É que, nessa hipótese, então pelo menos a título potencial ou nocional a receita da CESE teria passado de estar afecta em um terço à redução da dívida tarifária da electricidade para está-lo na proporção de dois terços. O que, em rigor, significaria o mesmo que a Recorrida aqui defende (à semelhança do Acórdão n.º 101/2023) quanto à importância na análise da constitucionalidade da CESE da mudança no peso relativo da sua receita na prossecução dos objectivos do Fundo.

P. Mas mais: independentemente do teor do Acórdão n.º 101/2023, convém ainda acrescentar que, posteriormente, o TC, numa outra secção (a 1ª Secção), veio proferir o Acórdão n.º 338/2023, no qual se verteu o entendimento de que da alteração às finalidades das receitas da CESE, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de Dezembro (no sentido de que elas passaram a ser dirigidas maioritariamente ao objectivo de redução da dívida tarifária da electricidade), não se pode retirar a conclusão do Acórdão n.º 101/2023 – de que, a partir de 2018, se verificou uma extinção ou diminuição do nexo causal entre a CESE e os sujeitos passivos que não actuam no sector da produção de electricidade, pela simples razão de que a alteração só entrou em vigor no final daquele ano, não tendo qualquer relevância por reporte ao mesmo. Apesar de a Recorrente discordar deste entendimento, por razões que nesta sede não importa desenvolver, o que aqui interessa é dizer que este Acórdão n.º 338/2023 concorda com o Acórdão n.º 101/2023 no que concerne aos períodos após 2018.

Q. Ou seja, neste momento existe jurisprudência do TC, subscrita por uma maioria de juízes (da 1ª e 3ª Secções), no sentido de que, pelo menos a partir de 2019 – incluindo ano aqui em causa, 2019 –, a CESE aplicável ao sector do gás natural é inconstitucional. R. Prosseguindo, é igualmente errado o que o Acórdão n.º 296/2023 diz quanto ao facto de a CESE ter um nexo relevante com os operadores do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) por o regime legal do tributo prever a utilização da receita em fins específicos ligados à sustentabilidade daquele sistema, ou seja, por a receita contributiva obtida das empresas daquele sector, tendo por fonte o valor e excedentes de contratos de aprovisionamento em regime de “take-or-pay” estar alocada ao alívio dos encargos tarifários inerentes à utilização global do sistema (UGS) de gás natural pelos operadores das respetivas redes de transporte e de distribuição.

S. Aqui, o Tribunal omite algo que é essencial e inviabiliza totalmente a conclusão retirada: é que a receita identificada não resulta do tributo em causa nestes autos, mas de um outro, em cuja base de incidência subjectiva o legislador nem sequer integrou os operadores das redes de transporte, distribuição ou armazenamento de gás natural (os sujeitos passivos abrangidos pela alínea d) do artigo 2º do regime da CESE), como a Recorrida. Esse outro tributo especificamente dirigido ao alívio dos encargos tarifários inerentes à UGS de gás natural foi enxertado no regime da CESE após criação desta no artigo 228º da Lei n.º 83º-C/2013, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014).

T. O tributo em causa nos presentes autos é a CESE original ou propriamente dita, criada pela Lei do Orçamento do Estado (para simplificar, podemos chamá-la de “CESE I”). Por sua vez, o tributo que serve especificamente, e em exclusivo, para a atenuação dos encargos tarifários do SNGN (um tributo que tem características que o tornam decisivamente distinto daquele primeiro, até porque diz respeito a factos que nada têm a ver com aqueles em que assenta) – chamemos-lhe “CESE II” – foi criado pela Lei n.º 33/2015, de 27 de Abril, para ser cobrada uma só vez, tendo depois sido estipulado um adicional, igualmente para ser cobrado apenas uma vez, pelo artigo 264º da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2017).

U. A CESE II foi dirigida ao (único) comercializador do SNGN titular de contratos de aprovisionamento de longo prazo em regime de take-or-pay, previstos no artigo 39º-A do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho, celebrados em data anterior à entrada em vigor da Directiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento e do Conselho, de 26 de Junho, e que fornece gás ao comercializador de último recurso grossista, no âmbito da actividade de compra e venda de gás natural para fornecimento aos comercializadores de último recurso retalhistas, aos centros electroprodutores com contrato de fornecimento outorgado em data anterior a 27 de Junho de 2006 e a outras entidades. A lei encontrase construída em termos gerais e abstractos (refere-se, no plural, às entidades que integram o sistema energético nacional como comercializadores do SNGN); porém, esta regra de incidência abrangeu efectivamente apenas um sujeito passivo, (a Galp Gás Natural, S.A. que é a única entidade que cabe na incidência do tributo.

V. Portanto, em conclusão: o objectivo a que o Acórdão n.º 296/2023 alude – a redução dos custos de acesso à rede de gás natural, incorporados nas facturas de consumo final – não é prosseguido com a receita gerada pelo tributo aqui em causa, mas por um outro tributo distinto, que não incide sobre a Recorrida nem sobre os restantes operadores que se dedicam ao transporte, distribuição ou armazenamento de gás natural. Logicamente, esse objectivo não será inviabilizado pela declaração nos presentes autos da inconstitucionalidade da norma neles analisada (a alínea d) do artigo 2º do regime da CESE). Assim sendo, é totalmente desprovida de sentido a tese do Acórdão n.º 296/2023, de que entre a CESE e a Recorrida existe uma relação de bilateralidade típica das contribuições financeiras, com base no pressuposto de que a receita do tributo por ela suportada reverte também para o fim da redução dos encargos tarifários do SNGN.

W. Seja como for, independentemente dos argumentos do Acórdão n.º 296/2023 referidos anteriormente, insiste-se ainda no aresto que os operadores do SNGN têm com o objectivo da dívida tarifária do SEN uma relação suficiente para que os consideremos integrados na “lógica grupal” da CESE. Isto na medida em que, resumidamente, como o gás tem um papel fundamental na produção de electricidade, as empresas do SNGN sofreriam um impacto grande com a redução da procura de electricidade que se verificaria caso o Estado não tivesse implementado as políticas de controlo dos preços ao consumidor que redundaram na criação da dívida tarifária e as que, financiadas pela CESE, posteriormente se dirigiram à redução dessa dívida. Também este pressuposto está errado.

X. Para se perceber porquê, convém lembrar o que é que na realidade essa “lógica grupal” das contribuições financeiras significa. O que ela significa é que, para cumprimento do princípio da equivalência (concretizador do princípio da Igualdade), este tipo de tributos tem de representar a contrapartida de prestações de que os respectivos sujeitos passivos são presumíveis causadores ou presumíveis beneficiários.

Y. Quanto à primeira das relações aludidas – a relação de presumível causalidade existente entre uma contribuição e os seus sujeitos passivos –, ela deve ser uma relação de causalidade especial entre a actividade pública que é preciso financiar e a actividade do universo de agentes económicos que lhe dá origem. E, quando se diz que a causalidade tem de ser especial, quer-se dizer que a necessidade de intervenção regulatória dos poderes públicos tem de decorrer directamente da natureza da actividade dos particulares ou da natureza das opções estratégicas destes.

Z. Portanto, se por referência devemos ter a actividade dos particulares, enquanto factor que gera a situação de desequilíbrio ou o risco de sustentabilidade que determinam a intervenção pública, então a lógica das contribuições pressupõe que os universos de sujeitos passivos considerados sejam grupos económicos bem delimitados. Isto é, necessita-se que o universo de sujeitos passivos de uma determinada contribuição se limite àqueles que, em virtude da natureza da sua actividade ou das suas opções estratégicas, forçaram directamente a intervenção das entidades públicas. Dito de modo reflexo: não tem lógica exigir a determinados operadores o pagamento desse tributo se ele servir para colmatar uma falha de mercado para a qual aqueles não contribuíram directamente.

AA. Pois bem: a dívida tarifária, cuja atenuação o legislador identifica como objectivo da CESE, define-se, latu sensu, como a diferença entre o custo real da geração de energia eléctrica, do seu transporte, distribuição e comercialização, e os custos recuperados pelas tarifas aplicadas em razão do consumo da mesma. É verdade que, como se diz no Acórdão n.º 296/2023, ela “é produto directo da forma como foi liberalizado o mercado de energia”. No entanto, não é um produto das opções dos sujeitos passivos da CESE. A dívida tarifária é o resultado de opções políticas exclusivas do Estado tomadas no âmbito dessa liberalização do mercado da energia (da energia eléctrica, bem entendido), conjugadas depois com opções políticas e legislativas no sentido de impedir a formação livre dos preços da actividade do sector eléctrico e a total repercussão de custos, também estes fixados por decisão administrativa.

BB. Quer isto dizer que o que deu lugar ao problema em causa não foi a qualquer aspecto concreto da actividade dos operadores privados – qualquer aspecto intrínseco ou decorrente de decisões tomadas em regime de liberdade estratégica. Mais: se assim é quando estamos a falar dos próprios operadores do sector electroprodutor, por maioria de razão o é com ainda mais intensidade quando falamos dos operadores do sector do gás natural ou de outro qualquer sector, que não da electricidade: a dívida tarifária não resultou de quaisquer opções político-legislativas dirigidas a esses sectores. Estes não podem ser considerados, pois, efectivos ou presumíveis causadores, directos ou especiais, do problema da dívida tarifária (a dívida tarifária não é um fenómeno comum a todo o sector económico da energia, sendo antes o produto da forma como ao longo dos anos foi sendo estruturado – apenas – o subsector da produção de electricidade).

CC. De resto, que sentido faz a afirmação do Acórdão n.º 296/2023, segundo a qual a dívida tarifária é “filha da privatização e da oportunidade de negócio capturada pelas empresas que atuam no setor energético e é daí que resulta a necessidade de regulação pública”? Estamos a falar da privatização ocorrida no sector eléctrico. Portanto, mesmo aceitando para benefício da discussão que nesse processo houve uma “oportunidade de negócio capturada” por algumas empresas, não é verdade o que o TC escreve logo a seguir – que essa oportunidade foi “capturada pelas empresas que atuam no setor energético”, em geral. Como é óbvio, as empresas do sector do gás natural não “capturaram” negócio algum na privatização do sector da electricidade.

DD. No que concerne, agora à segunda relação que também pode legitimar a criação de contribuições – a relação de presumível benefício –, ela implica que haja uma relação de benefício também especial entre os sujeitos passivos e a intervenção pública, no sentido em que os primeiros são beneficiados directamente pela segunda. Daí, de novo, a indispensabilidade de um grupo de sujeitos passivos limitado ao sector a que as entidades públicas pretendem dar mais sustentabilidade ou equilíbrio, e em cujas regras mexem directamente. Não é possível integrar no âmbito de sujeição de uma contribuição operadores económicos que retirem apenas um benefício reflexo da actividade financiada pelo tributo. Nesse caso, estaremos a falar de operadores de sectores em cujas regras a actividade pública financiada pela contribuição não toca.

EE. Remetendo para o caso vertente, é óbvio que as políticas públicas orientadas para o controlo dos preços da electricidade – quer as que originaram o diferimento dos custos através da constituição da dívida tarifária quer as que depois serviram para reduzir essa dívida – beneficiam em geral toda a economia. O Acórdão n.º 296/2023 até refere, no lote dos beneficiários, a “indústria” e o “público consumidor”. É inevitável que assim seja, porque é da razão de ser da electricidade (uma fonte de energia de importância central) que as vicissitudes do seu custo constituam reflexamente vicissitudes nos custos de produção de todos os sectores económicos – e que se repercutam em todo o “público consumidor”. Vemo-lo perfeitamente na actualidade: a crise inflacionista a que assistimos, traduzida no aumento de preços generalizado em todos os sectores, deriva em boa parte do aumento dos custos de produção das fontes de energia. Porém, significa isso que seria legítimo criar uma contribuição financeira, aplicável a toda a economia, para combater os custos da inflação? Certamente que não. Esse tributo seria ou uma contribuição inconstitucional, por violação do princípio da equivalência, ou então um puro imposto extraordinário.

FF. Por outro lado, conforme refere o Acórdão n.º 296/2023, os custos da electricidade também têm influência no universo dos fornecedores das empresas electroprodutores, sejam elas fornecedoras de gás ou de qualquer outro bem, porque, se o aumento do preço da energia eléctrica tem o efeito previsível de reduzir a sua procura, terá igualmente o efeito reflexo de reduzir a necessidade de aquisição de matérias-primas e outros factores de produção. Só que, de novo, se estamos perante uma contribuição financeira, que serve para financiar uma actividade estadual regulatória dirigida a (e provocada por características próprias de) um determinado sector económico, não faz sentido incluir no escopo do tributo o universo de fornecedores das empresas que o constituem (empresas fora do sector), ou parte dele, com o argumento de que, “em potência”, os bens ou serviços que estas últimas empresas fornecem se acabarão por transformar no bem que o sector intervencionado produz.

GG. O TC presume, pois, que, em todo o longo processo de intervenção estadual que aqui temos em conta – o que começou com a liberalização do sector eléctrico, prosseguiu com as políticas de controlo de custos na factura dos consumidores finais, com a criação da dívida tarifária e da CESE –, o legislador teve em mente uma interligação ou uma relação de solidariedade natural entre os operadores do SEN e do SNGN. Sucede que, para além de essa relação não poder legitimar a CESE fora do campo das empresas do sector eléctrico (pelo menos, a partir de 2018), nos termos do exposto, a verdade é que essa hipotética relação nunca esteve na mente do legislador.

HH. Ela não esteve na mente do legislador, desde logo, quando o sector eléctrico e o sector do gás natural tiveram processos de liberalização completamente autónomos e com regras completamente distintas. Por exemplo, a renegociação dos contratos em que assenta a actividade das concessionárias do subsector do gás não desembocou no pagamento às mesmas de quaisquer compensações: pelo contrário, o equilíbrio económico dos contratos de concessão do subsector do mercado do gás natural foi obtido através da solução de alargamento do prazo das concessões e da reavaliação dos activos afectos à prossecução das actividades concessionadas. II. Além disso, que o legislador não teve em mente qualquer relação de solidariedade natural e inevitável entre o SEN e o SNGN resulta óbvio, igualmente, do facto de que, como vimos acima, quando se tratou de criar um tributo para financiar uma intervenção regulatória em ordem à sustentabilidade do SNGN, o legislador criou uma CESE específica (a CESE II) cobrada apenas ao sector do gás natural. Seguindo a lógica do Acórdão n.º 296/2023, o legislador poderia ter decidido cobrar também a CESE II ao sector da electricidade, usando por exemplo o argumento de que, face à percentagem que o gás representa no cômputo das matérias-primas da produção de electricidade, então a sustentabilidade do sector eléctrico depende da sustentabilidade do sector do gás natural. Não fez, claro, precisamente porque às contribuições financeiras tem de subjazer uma relação de causalidade especial e benefício directo, que não se compadece com considerações de causalidade ou benefício reflexos ou indirectos, acerca da situação de sujeitos fora do perímetro do sector económico intervencionado com a receita de uma determinada contribuição.

JJ. Após a discussão anterior, que parte de pressupostos relacionados com a incidência subjectiva da CESE, o Acórdão n.º 296/2023 acrescenta por fim que o facto de a base de incidência objectiva da CESE ser o valor global dos activos das empresas abrangidas não implica também a quebra de nexo entre a medida e os sujeitos passivos, uma vez que aquele valor representa a dimensão das empresas e, quanto maior essa dimensão, maior é o seu impacto potencial na sustentabilidade do sector energético, cuja garantia é função da CESE. Nestes termos, conclui o Acórdão, também por esta via se cumpre a regra da equivalência ou bilateralidade subjacente às contribuições financeiras. KK. Esta tese do Acórdão n.º 296/2023 não pode prevalecer. Além de, em geral, um critério ad valorem como este ser próprio dos impostos (ele serve para captar a capacidade contributiva e implica, consequentemente, uma dupla tributação dos lucros – directamente, por via do IRC, e presuntivamente, por via da tributação do valor dos activos), o mais importante, na lógica da presente discussão é lembrar que o valor do activos das empresas do sector energético não é directamente proporcional ao impacto potencial que elas representam na sustentabilidade do mesmo. Daí que o valor do activo não seja um critério adequado, quando apreciado à luz dos objectivos da própria CESE. Ou seja, é contraditório com a própria teleologia da medida.

LL. Repare-se, com efeito, antes de mais, que a CESE abrange de modo igual actividades com impacto e risco totalmente distintos, em sectores diversos (petróleos, electricidade, gás, armazenagem, transporte, refinação, etc.). Uma determinada actividade pode significar um risco ou um impacto muito maior ou muito menor do que o que é representado pelo valor dos activos de uma qualquer empresa que a prossiga. Termos em que o risco ou impacto não é de todo medido pelo valor dos activos.

MM. Depois, em regra, os activos de maior valor são aqueles que apresentam menor risco e impacto na sustentabilidade do sector energético: se determinados activos das empresas energéticas têm um valor elevado, por comparação com outros, pode perfeitamente ser porque são tecnologicamente mais avançados e/ou mais recentes, caso em que o seu valor está contabilisticamente menos amortizado ou depreciado. Ora, se são tecnologicamente mais avançados e/ou mais recentes, então são mais eficientes e menos poluentes. Isto é, são mais valiosos porque são mais sustentáveis. Isto é, podemos dizer que, em boa medida, o valor dos activos é inversamente proporcional ao seu impacto na sustentabilidade ambiental e energética.

NN. Como conclusão de tudo o que vem dito, deve a sentença recorrida ser mantida na ordem jurídica, prevalecendo neste Tribunal a posição segundo a qual a alínea d) do artigo 2.º do regime jurídico da CESE, vigente em 2019 através do artigo 313º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2019), é inconstitucional, em face pelo menos da aprovação do Decreto-Lei n.º 109-A/2018, o qual significou que a partir de 2018 a CESE deixou de constituir um tributo ao qual subjaz uma relação de bilateralidade constitucionalmente aceitável entre a receita gerada e os sujeitos passivos do subsector do gás natural. NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, REQUER-SE A V. EXAS. QUE JULGUEM TOTALMENTE IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELA RECORRENTE, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, NOMEADAMENTE A MANUTENÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA E A CONSEQUENTE ANULAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO IMPUGNADA. “


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Compulsados os autos e analisada a prova documental apresentada, encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a decisão de mérito:

1) A Impugnante é uma sociedade anónima, com sede em território nacional, que exerce actividade no âmbito do aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados (facto não controvertido);

2) Em 17/10/2019, a Impugnante efectuou a autoliquidação da CESE, respeitante ao ano de 2019, apurando um montante a pagar de € 1.267.189,28 (cfr. doc. de fls.724 do SITAF);

3) Em 11/11/2019, foi emitida a liquidação de juros de mora nº ………………047, no montante de € 1.842,63, relativa à CESE do ano 2019, com data limite para pagamento a 30/12/2019 (cfr doc. de fls. 726 do SITAF);

4) Em 14/11/2019, foi instaurado o processo de execução fiscal nº …………….350, para cobrança da CESE da Impugnante, respeitante ao período de 2019 (cfr. doc. de fls. 727 do SITAF);.

5) Em 20/12/2019 a Impugnante prestou garantia para suspensão do processo executivo melhor identificado no ponto antecedente (facto que se retira do doc. fls. 727 do SITAF);

6) A Impugnante apresentou reclamação graciosa das liquidações referidas nos pontos 2 e 3 deste probatório (cfr. doc. de fls. 173 do SITAF);

7) Por despacho do chefe de divisão da Divisão de Justiça Tributária da Unidade de Grandes Contribuintes, por subdelegação, de 20/07/2022, foi indeferida a reclamação graciosa melhor identificada no ponto antecedente (cfr. doc. de fls. 2 do doc. de fls. 366 do SITAF). “


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O Tribunal a quo considerou como factualidade não provada:

“a) Não ficou provado ter a impugnante procedido ao pagamento da CESE.

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa. “


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No concernente à motivação da matéria de facto ficou consignado o seguinte:

“A decisão da matéria de facto com base no exame das informações e dos documentos, não impugnados, que dos autos constam, todos objecto de análise concreta, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório. “


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou totalmente procedente a impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que manteve o ato tributário de autoliquidação da CESE, referente ao ano de 2019.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre apreciar:

Ø Se a sentença padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, ao ter sentenciado que o tributo em contenda é inconstitucional por violação do princípio da igualdade.

Vejamos, então, se a decisão recorrida padece do erro de julgamento que lhe é assacado.

A Recorrente advoga que o entendimento sufragado na decisão recorrida e que acolheu o vertido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2013 não se pode manter, tendo inclusive tal entendimento sido infirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 296/2023, de 25 de maio de 2023, no âmbito do processo n.º 1288/21, que decidiu não julgar inconstitucional o artigo 2.º, 3.º e 12.º do Regime da CESE, na versão vigente no período de 2018.

Sufraga, assim, que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, ao ter anulado a liquidação impugnada ancorada no pressuposto da inconstitucionalidade do disposto no artigo 2.º, alínea d) do regime da CESE, decorrente de violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP, quando tal juízo de inconstitucionalidade que recaiu sobre aquela norma no âmbito do Acórdão n.º 101/2023 foi posteriormente infirmado pelo Tribunal Constitucional.

Conclui, assim, que a evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 296/2023, concorre para concluir que a Recorrida, atento o exercício da atividade aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, encontra-se integrada no grupo homogéneo composto pelos subsetores do sector energético e pode ser considerada responsável e beneficiária das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar, pelo que a norma de incidência subjetiva prevista no artigo 2.º, alínea d) do regime da CESE, aprovado pelo art.º 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que se manteve-se em vigor, no ano de 2019, nos termos do art.º 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, não é violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.

A Recorrida, por seu turno, propugna pela manutenção da decisão recorrida na medida em que espelha o entendimento mais recente do Tribunal Constitucional, retirando-se, de forma inequívoca, de toda a Jurisprudência ulteriormente prolatada ao Aresto invocado pela Recorrente que a CESE é inconstitucional a partir de 2018 por referência às empresas que não integram o sector da produção de eletricidade. Isto é, dado que a receita da CESE passou a servir maioritariamente para financiar a redução da dívida tarifária do SEN, não faz sentido exigi-la às empresas que não são do sector electroprodutor.

Convoca, neste conspecto, designadamente o Acórdão n.º 338/2023, do Tribunal Constitucional para alicerçar a bondade da decisão recorrida, na medida em que no mesmo se verteu, de forma clara, o entendimento de que pelo menos a partir de 2019, a CESE aplicável ao sector do gás natural é inconstitucional.

Propugnando, ainda, que é igualmente incorreto o sufragado no Acórdão n.º 296/2023 quanto ao facto de a CESE ter um nexo relevante com os operadores do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) por o regime legal do tributo prever a utilização da receita em fins específicos ligados à sustentabilidade daquele sistema, ou seja, por a receita contributiva obtida das empresas daquele sector, tendo por fonte o valor e excedentes de contratos de aprovisionamento em regime de “take-or-pay” estar alocada ao alívio dos encargos tarifários inerentes à utilização global do sistema (UGS) de gás natural pelos operadores das respetivas redes de transporte e de distribuição.

Conclui, assim, no sentido da manutenção da sentença recorrida, porquanto a alínea d), do artigo 2.º, do regime jurídico da CESE, vigente em 2019 através do artigo 313º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2019), é inconstitucional.

O Tribunal a quo esteou a procedência da impugnação judicial começando por convocar o citado Acórdão do Tribunal Constitucional e estabelecer uma resenha do nele decidido à luz do regime em contenda, evidenciando, depois, que “esta tem vindo a ser a posição reiterada do Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos de 437/2021, 438/2021, 756/2021, 231/2022, 232/2022, 305/2022, 411/2022 e 597/2022, muito embora sempre realçando a natureza extraordinária da CESE. Também o STA, designadamente no seu Acórdão de 08.01.2020, exarado no processo n.º 0386/17.8BEMDL foi seguindo a mesma posição.”

Salientando, assim, a existência de uma clara inflexão de Jurisprudência, sublinhando, para o efeito, que “no último Acórdão do Tribunal Constitucional em que esta matéria foi analisada – Acórdão nº 101/2023, no processo nº 480/22 -, foi outra a decisão daquele douto Tribunal, tendo considerado, analisando uma CESE do exercício de 2018, que este tributo enfermava de inconstitucionalidade.”

Razão pela qual, convoca essa mesma jurisprudência, concretamente, do Aresto do Tribunal Constitucional nº 101/2023, proferido no processo nº 480/22 aderindo, integralmente, à sua fundamentação jurídica porquanto reputou inteiramente transponível para o caso sub judice, e conclui, “acompanhando esta recente decisão do Tribunal Constitucional, outra não pode ser a decisão deste Tribunal senão anular a liquidação impugnada por a mesma enfermar do vício de violação de lei por violação do Princípio da Igualdade, na esteira do decidido pelo por aquele douto Tribunal.”

E, de facto, não se vislumbra qualquer erro de julgamento, tendo o Tribunal a quo valorado correta e adequadamente o quadro jurídico vigente com a devida transposição fática, tendo inclusive decidido no sentido da Jurisprudência dos Tribunais Superiores, mormente, do TC, do STA e dos TCA.

Comecemos, então, por convocar o quadro normativo que para os autos releva.

A CESE foi implementada com a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, estando o seu regime contemplado no artigo 228.º, extraindo-se da letra do seu artigo 1.º que a mesma tem por “objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético”.

De relevar, neste particular, que no final do ano de 2014, a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, particularmente os seus artigos 237.º e 238.º prorrogaram a vigência da CESE, com as inerentes adaptações, por forma a adequar o regime jurídico à extensão da vigência ao ano de 2015.

De sublinhar, igualmente, a alteração gizada pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril, mormente em termos de alargamento de incidência subjetiva e no ano de 2016, através Lei n.º 159-C/2015, de 30 de dezembro, particularmente, do seu artigo 6.º na qual se manteve em vigor a CESE, consignando-se, nessa conformidade, que todas as referências feitas ao ano de 2015 se entendem materializadas ao ano de 2016.

Ainda em termos de alterações legislativas, com especial relevo para o caso vertente, importa ter presente a Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, concretamente, o artigo 264.º, o qual procedeu a alterações quanto à redação das normas relativas à incidência objetiva, à não repercussão, às taxas, à liquidação, à consignação e aos ajustamentos tarifários, sem que estas, contudo, tenham alterado substancialmente a CESE, como também bem evidenciado pelo Tribunal a quo.

Sendo que em termos de diplomas mais recentes com alterações à CESE, é preciso ter presente a Lei nº 114/2017, de 29 de dezembro (artigo 280.º), Lei nº 71/2018, de 31 de dezembro (artigo 313.º), Lei nº 2/2020, de 31 de março (artigo 376.º) e Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro artigo 415.º), os quais, entre o mais, regulamentam a manutenção da CESE para os anos subsequentes.

Tendo em consideração que a CESE em discussão nos presentes autos se reporta ao ano de 2019, cumpre sublinhar que a citada Lei nº 71/2018, plasmou no seu artigo 313.º que se mantém “em vigor em 2019 a contribuição extraordinária sobre o setor energético, cujo regime foi aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, na redação dada pelas Leis n.ºs 82-B/2014, de 31 de dezembro, 33/2015, de 27 de abril, 42/2016, de 28 de dezembro, 114/2017, de 29 de dezembro, e pela presente lei”, com as alterações aos normativos 4.º e 7.º.

Feito este introito em termos de evolução legislativa, convoquemos o regime jurídico aplicável ao ano de 2019, nos aspetos de maior relevo para a questão decidenda.

Vejamos, então.

Em termos de incidência subjetiva, preceitua o artigo 2.º que são, designadamente, sujeitos passivos de CESE:

“… [A]s pessoas singulares ou coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2015, se encontrem numa das seguintes situações:
a) - Sejam titulares de licenças de exploração de centros electroprodutores, com exceção dos localizados nas Regiões Autónomas dos Açores ou da Madeira;
b) - Sejam titulares, no caso de centros electroprodutores licenciados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto, de licença de produção e tenham sido considerados em condições de ser autorizada a entrada em exploração, conforme relatório de vistoria elaborado nos termos do n.º 5 do artigo 21.º do referido decreto-lei, com exceção dos localizados nas Regiões Autónomas dos Açores ou da Madeira;
c) - Sejam concessionárias das atividades de transporte ou de distribuição de eletricidade, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 104/2010, de 29 de setembro, 78/2011, de 20 de junho, 75/2012, de 26 de março, 112/2012, de 23 de maio, e 215-A/2012, de 8 de outubro;
d) - Sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n. os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro;
e) - Sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro;
f) - Sejam operadores de refinação de petróleo bruto e de tratamento de produtos de petróleo, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 31/2006, de 15 de fevereiro;
g) - Sejam operadores de armazenamento de petróleo bruto e de produtos de petróleo, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 31/2006, de 15 de fevereiro;
h) - Sejam operadores de transporte de petróleo bruto e de produtos de petróleo, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 31/2006, de 15 de fevereiro;
i) - Sejam operadores de distribuição de produtos de petróleo, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 31/2006, de 15 de fevereiro;
j) - Sejam comercializadores grossistas de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n. os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro;
k) - Sejam comercializadores grossistas de petróleo bruto e de produtos de petróleo, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 31/2006, de 15 de fevereiro;
l) - Sejam comercializadores grossistas de eletricidade, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 104/2010, de 29 de setembro, 78/2011, de 20 de junho, 75/2012, de 26 de março, 112/2012, de 23 de maio, e 215-A/2012, de 8 de outubro;
m) Seja comercializador do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN), nos termos definidos no artigo 39.º-A do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro”.

Por seu turno, no atinente à incidência objetiva, preceitua o artigo 3.º que:

“1- A contribuição extraordinária sobre o setor energético incide sobre o valor dos elementos do ativo dos sujeitos passivos que respeitem, cumulativamente, a:
a) - Ativos fixos tangíveis;
b) - Ativos intangíveis, com exceção dos elementos da propriedade industrial; e
c) - Ativos financeiros afetos a concessões ou a atividades licenciadas nos termos do artigo anterior.
2- No caso previsto na alínea m) do artigo anterior, a contribuição extraordinária sobre o setor energético incide ainda, para além dos elementos previstos no número anterior, sobre o valor económico equivalente dos contratos de aprovisionamento de longo prazo em regime de take-or-pay, previstos no artigo 39.º-A do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n. os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro.
3-A contribuição extraordinária sobre o setor energético incide ainda sobre o excedente apurado para o valor económico equivalente dos contratos a que se refere o número anterior, tendo em conta a informação sobre o real valor desses contratos.
4- No caso das atividades reguladas, a contribuição extraordinária sobre o setor energético incide sobre o valor dos ativos regulados aceites pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) na determinação dos proveitos permitidos recuperados pelas tarifas do ano seguinte, caso este seja superior ao valor dos ativos referidos no n.º 1.
5- Para efeitos do n.º 1, entende-se por 'valor dos elementos do ativo' os ativos líquidos reconhecidos na contabilidade dos sujeitos passivos, com referência a 1 de janeiro de 2015, ou no 1.º dia do exercício económico, caso ocorra em data posterior.
6- O valor económico equivalente dos contratos previstos no n.º 2 é determinado por aplicação da fórmula prevista no anexo I a este regime, que dele faz parte integrante, cujos parâmetros e valores são definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da energia, ouvidas a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e a ERSE, no prazo de 60 dias após a entrada em vigor da presente lei, os quais devem ter em conta a informação disponível, designadamente a relativa à duração dos contratos, às quantidades contratadas e às regras de cálculo do preço do gás previstas nos contratos.
7- Nas situações previstas no n.º 3, o excedente do valor económico equivalente dos contratos corresponde à diferença positiva entre o valor económico equivalente apurado com a informação sobre o real valor desses contratos, designadamente a relativa à sua duração, às quantidades contratadas e às regras de cálculo do preço do gás previstas nos contratos, aplicando-se ao excedente a metodologia prevista no anexo I a este regime, considerando como ano base de valor unitário para efeitos do parâmetro k o ano de 2017 e o valor económico equivalente inicialmente apurado, ao qual é aplicável a Portaria n.º 157-B/2015, de 28 de maio.
8- O valor do excedente ao valor económico equivalente é apurado fazendo-se uso de parâmetros e valores que são definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da energia, ouvidas a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e a ERSE, no prazo de 60 dias após a entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2017.
9- Nos casos em que a obrigação prevista no n.º 8 do artigo 7.º não é cumprida de forma atempada, impedindo a ponderação da informação ali mencionada para efeitos de elaboração e aprovação da portaria referida no número anterior, o pagamento da contribuição extraordinária sobre o setor energético passa a ter natureza de pagamento por conta da contribuição extraordinária sobre o setor energético definitiva, procedendo-se à cobrança do valor remanescente ou ao reembolso do excesso pago, consoante o caso, após análise dos mencionados documentos e informações necessárias à aplicação da contribuição extraordinária.
10- Nos casos em que a obrigação prevista no n.º 7 do artigo 7.º não é cumprida de forma atempada, impedindo a ponderação da informação ali mencionada para efeitos de elaboração e aprovação da portaria referida no número anterior, o pagamento da contribuição extraordinária sobre o setor energético passa a ter natureza de pagamento por conta da contribuição extraordinária sobre o setor energético definitiva, procedendo-se à cobrança do valor remanescente ou ao reembolso do excesso pago, consoante o caso, após análise dos mencionados documentos e informações necessárias à aplicação da contribuição extraordinária.
11- A liquidação, a cobrança e o pagamento da contribuição extraordinária sobre o setor energético cobrada ao abrigo deste artigo segue, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 7.º e 8.º.
12- Para efeitos do disposto no n.º 4, entende-se por 'valor dos ativos regulados' o valor reconhecido pela ERSE para efeitos de apuramento dos proveitos permitidos, com referência a 1 de janeiro de 2015.
13- Para efeitos do disposto no n.º 3, entende-se por 'valor dos ativos regulados' o valor reconhecido pela ERSE para efeitos de apuramento dos proveitos permitidos, com referência a 1 de janeiro de 2015”.
À base de incidência definida nos termos referidos, é aplicada, em regra, uma taxa de 0,85% (art.º 6.º, n.º 1), estando ainda consagradas outras taxas específicas no mesmo art.º 6.º.

Importa, igualmente, ter presente o artigo 4.º do citado regime o qual tipifica as situações de isenção de CESE, o artigo 5.º que consagra a não repercussão e o normativo 11.º que sob a epígrafe de “Consignação”, dispõe que:

“1 - A receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEG), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, e para o SNGN.
2 - (Revogado.)
3 - (Revogado.)
4 - A parcela da receita relativa ao produto da contribuição extraordinária sobre o setor energético obtida nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º é totalmente afeta à minimização dos encargos do SNGN, devendo o FSSSE prever, para o efeito, mecanismos para abater o montante das respetivas cobranças que daí resultem na tarifa de uso global do sistema de gás natural, excluindo as tarifas aplicáveis aos centros eletroprodutores, e definir a respetiva periodicidade.
5 - A receita referida no número anterior não é considerada para efeitos de aplicação do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, que define os termos da alocação do produto da contribuição extraordinária sobre o setor energético previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do referido decreto-lei.
6 - Fica o Governo autorizado a transferir para o FSSSE o montante das cobranças provenientes da contribuição extraordinária sobre o setor energético.
7 - Os encargos de liquidação e cobrança incorridos pela Autoridade Tributária e Aduaneira são compensados através da retenção de uma percentagem de 3 % do produto da contribuição, a qual constitui receita própria”.

Mais importa relevar que, o FSSSE veio a ser criado pelo DL n.º 55/2014, de 9 de abril (tendo ainda sido aprovada a Portaria n.º 1059/2014, publicada no Diário da República n.º 244, 2.ª Série, de 18.12.2014, relativa ao seu regulamento de gestão), tendo a natureza de património autónomo, sem personalidade jurídica e com autonomia administrativa e financeira. De acordo com o artigo 2.º do mencionado diploma:

“… [V]isa contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional, designadamente através:
a) Do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética;
b) Da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético prevista no artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro”.

Uma das receitas do FSSSE é, pois, a CESE [cfr. art.º 3.º, n.º 1, al. a)], sendo que devem ser alocados dois terços da receita em causa ao financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, até ao limite máximo de 100.000.000,00 Eur. [cfr. art.º 4.º, n.º 2, al. a)].

Visto o regime jurídico que releva para os presentes autos, vejamos, então, se assiste razão à Recorrente quando propugna que a CESE não padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.

De relevar, desde já, que no concreto particular da Jurisprudência do Tribunal Constitucional, com especial enfoque quanto à CESE do ano de 2018, há, efetivamente, que relevar que a posição do Tribunal Constitucional não foi unívoca, resultando, designadamente, dos Acórdãos n.ºs 101/2023, de 16.03.2023, 296/2023, de 25.05.2023, 338/2023, de 06.06.2023, 369/2023, de 07.06.2023, 372/2023, de 07.06.2023, 720/2023, de 25.10.2023, e 278/2024, de 10.04.2024.

E se é certo que no âmbito do citado processo nº 101/2023, de 16 de março de 2023, -como visto jurisprudência em que se fundou a decisão recorrida- se consagrou o juízo de inconstitucionalidade, é, igualmente, certo que ulteriormente à sua prolação foram proferidos outros Acórdãos que concluem no sentido do juízo de não inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º, do Regime da CESE, criada pelo artigo 228.º, da Lei 83-C/2013, de 31/12, em vigor durante o exercício fiscal de 2018 ex vi artigo 280.º da Lei nº 114/2017, de 29 de dezembro, mormente, o proferido no âmbito do processo nº 296/2023, de 25 de maio de 2023, e objeto de convocação pela Recorrente e legitimador do presente recurso.

Mas a verdade é que, tal como evidencia a Recorrida essa linha de entendimento não foi seguida para a CESE do ano em contenda, ou seja, do ano de 2019, tendo inclusive sido objeto de inflexão por parte da Jurisprudência do STA, e bem assim deste TCAS, que já teve, nessa sequência, de reformar diversos acórdãos em função do juízo de inconstitucionalidade.

Com efeito, a Jurisprudência mais recente e que este Tribunal acolhe e adere sem reservas, sentencia que o artigo 2.º, alínea d) do regime jurídico da CESE, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, que sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, viola o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, devendo ser desaplicado.

Com efeito, e tal como sufragado pela Recorrida, a partir de 2019, houve uma inflexão do posicionamento, até então maioritário, ou seja, a partir desse exercício e em diante, houve uma inversão da jurisprudência, passando a decidir-se no sentido da inconstitucionalidade da CESE, a qual tem na sua génese, justamente, o Acórdão n.º 101/2023 do Tribunal Constitucional, em que, como visto, se ancorou a decisão recorrida.

Neste âmbito, e no sentido da inconstitucionalidade da CESE, vide, designadamente, os Acórdãos do Tribunal Constitucional prolatados no âmbito dos processos n.ºs 196/2024, 197/2024, 336/2024, 337/2024, 338/2024 e 427/2024. Existindo, atualmente, o que se pode apelidar de uma reiteração desse juízo de inconstitucionalidade da CESE em situações em que está, justamente, em causa a tributação de empresas dos setores de distribuição de gás natural, como é in casu -conforme resulta plasmado no probatório não impugnado-, e conforme se pode inferir, designadamente, nos Acórdãos prolatados no âmbito dos processos nºs 443/2024, 475/2024, 476/2024, 712/2024, 445/2024, 517/2024, 553/2024 e o 930/2024.

Ora, é precisamente tendo como parâmetro fundamentador os citados Acórdãos do Tribunal Constitucional, e aqui adotando a doutrina vertida no processo 197/2024 supra evidenciado, porquanto estabelece uma resenha do dirimido neste contexto e tendo ainda em vista uma interpretação e aplicação uniformes do direito, em conformidade com o preceituado no artigo 8.º, nº 3 do Código Civil, eximimo-nos de expender novas considerações, reproduzindo aqui o raciocínio jurídico vertido nesse citado Aresto e que convoca demais jurisprudência constitucional proferida no âmbito da visada questão:
“Constitui, pois, objeto do recurso a norma contida no artigo 2.º, alíneas d) e e), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (alínea d)) e, bem assim, (alínea e)) as que sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual).
Sobre o mérito do recurso, pronunciou-se o Acórdão n.º 101/2023 nos termos seguintes:
“[…]
5. Recorde-se que a CESE foi criada no contexto da execução do Programa de Assistência Económica e Financeira («PAEF»), acordado pelo Estado português com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional. O Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, celebrado em maio de 2011, estabelecia como objetivo para o mercado de energia, a par da conclusão dos processos de liberalização dos mercados de eletricidade e de gás natural e da avaliação dos instrumentos de política energética e de tributação, a adoção de medidas tendentes a conter o défice tarifário do setor elétrico (v. o n.º 5 do Memorando, disponível, em versão portuguesa, em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexosmou_pt.pdf).
Era então patente a tendência de crescimento da dívida tarifária do setor elétrico, em grande medida resultante das opções políticas adotadas num contexto de liberalização do mercado da eletricidade, que se concretizaram na imposição de limites legais à fixação de preços ajustados aos custos reais de funcionamento do sistema e na consequente previsão de «diferimentos tarifários» (tais como os estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 187/95, de 27 de julho, e já numa fase mais adiantada da liberalização dos mercados, pelo Decretos-Lei n.º 237-B/2006, de 18 de dezembro, o Decreto-Lei n.º 165/2008, de 21 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 78/2011, de 20 de junho, que aditou o artigo 73.º-A ao Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro).
Para fazer face a esse problema, previa-se no Memorando que os sobrecustos associados à produção de eletricidade em regime ordinário fossem reduzidos − através da renegociação ou de revisão em baixa dos custos de manutenção do equilíbrio contratual (CMEC) dos restantes contratos de aquisição de energia a longo prazo (CAE) −, bem como que fossem revistas em baixa as tarifas bonificadas de venda da energia produzida em regime especial, ou seja, através da utilização de recursos endógenos renováveis ou de tecnologias de produção combinada de calor e eletricidade (v. o artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro). Em dezembro de 2011, o Governo viria a reconhecer os riscos associados ao previsível aumento da dívida tarifária associada às «elevadas margens de retorno» de que eram beneficiários os produtores de eletricidade em regime ordinário e especial, comprometendo-se a adotar as medidas necessárias para eliminar este défice até 2020, assim assegurando a sustentabilidade do Sistema Elétrico Nacional (v. o Anexo à Carta de Intenções apresentada ao Fundo Monetário Internacional, n.º 36, pp. 13-14, disponível em língua inglesa em https://www.imf.org/-/media/files/publications/loi/imported-cpid-pdfs/external/np/loi/2011/prt/120911.ashx).
Com esse intuito, promoveram-se várias iniciativas legislativas e negociais – tais como as que levaram à aprovação de novas regras de remuneração aplicáveis às instalações de cogeração (Portaria n.º 140/2012, de 14 de maio); à alteração do regime de atribuição de incentivos à garantia de potência (Portaria n.º 251/2012, de 20 de agosto); à reconfiguração do regime de remuneração da produção em regime especial a partir de fontes renováveis (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 215-A/2012 e 215-B/2012, ambos de 8 de outubro); à alteração do regime de remuneração dos centros electroprodutores eólicos (Decreto-Lei n.º 35/2013, de 28 de fevereiro); ou ao uso das receitas geradas pelos leilões de licenças de emissão de gases com efeito de estufa na redução dos sobrecustos associados à produção de energia em regime especial a partir de fontes de energia renovável (v. o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 38/2013, de 15 de março). Não obstante estas medidas, os esforços de contenção do défice tarifário e promoção da sustentabilidade do sistema elétrico, apreciados no âmbito da oitava e nona revisões do Memorando de Entendimento, foram considerados «insuficientes», anunciando-se a criação de um tributo especial sobre o setor energético cujas receitas se destinariam, na parte que excedesse os cem milhões de euros, à redução da dívida tarifária deste subsetor (v. “The Economic Adjustment Programme for Portugal – Eighth and Ninth Review”, Occasional Papers, n.º 163, Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros da Comissão Europeia, novembro de 2013, p. 33, disponível em https://ec.europa.eu/economy_finance/publications/occasional_paper/2013/pdf/ocp164_en.pdf).
Embora estreita e geneticamente ligada ao problema do défice tarifário do setor elétrico, a CESE foi criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro) com o mais amplo desígnio de «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético» (v. o artigo 1.º, n.º 2, do regime jurídico da CESE, na redação original), abrangendo operadores de todo o setor energético. Em síntese, o tributo então criado caracterizava-se por: i) ser concebido como um tributo de natureza «extraordinária» ou «transitória» (não só por assim ser designado, mas também por o seu regime participar da anualidade do Orçamento do Estado); ii) incidir sobre os operadores económicos do setor energético que desenvolvam determinadas atividades nos subsetores da eletricidade (produção, transporte, distribuição e comercialização grossista), do gás natural (transporte, distribuição, armazenamento ou comercialização grossista) e do petróleo e produtos de petróleo (refinação, tratamento, armazenamento, transporte, distribuição ou comercialização grossista – v. o o artigo 2.º); iii) incidir sobre o valor dos ativos fixos tangíveis, intangíveis (excetuados os elementos da propriedade industrial) e financeiros afetos a concessões ou às atividades licenciadas exercidas, tal como reconhecido na contabilidade dos sujeitos passivos (ou pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, na hipótese prevista no n.º 2 do artigo 3.º); iv) estabelecer um elenco complexo de «isenções», que abrangia boa parte dos operadores visados por outras medidas de redução dos sobrecustos, mas também os sujeitos passivos cujo valor total de balanço, no termo do ano civil anterior, fosse inferior a mil e quinhentos euros (v. o artigo 4.º); v) definir uma taxa-regra de 0,85% e taxas especiais para as atividades de produção de eletricidade por intermédio de centrais termoelétricas de ciclo combinado a gás natural e de refinação de petróleo bruto, variáveis em função, respetivamente, da potência instalada ou do índice de operacionalidade das refinarias (v. o artigo 6.º); vi) vedar a repercussão tarifária, direta ou indireta, das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos, bem como a sua dedução ao lucro tributável para efeitos de liquidação do IRC (artigos 5.º e 12.º, respetivamente); e vii) constituir receita consignada ao financiamento do Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (adiante designado «FSSSE»), a criar «com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida tarifária e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEGs), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira» (v. o n.º 1 do artigo 11.º).
Este Fundo foi posteriormente criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, em que a receita angariada através da CESE figurava como a sua principal fonte de financiamento (v. o artigo 3.º, n.º 1). Em linha com as previsões dos valores da CESE a arrecadar no ano de 2014, previa-se neste diploma que dois terços da receita do Fundo (com o limite máximo de cem milhões de euros) seriam prioritariamente destinados ao financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e o remanescente seria aplicado na redução do défice tarifário do Setor Elétrico Nacional (v. o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 55/2014).
6. A criação deste tributo desencadeou, como é sabido, a mais intensa litigância.
O Tribunal Constitucional tomou posição sobre a inconstitucionalidade do regime jurídico da CESE, pela primeira vez, no Acórdão n.º 7/2019, que versou sobre as normas aplicadas no seu primeiro ano de vigência. Nesse aresto, concluiu-se que a CESE tinha a natureza de uma contribuição financeira, sujeita ao princípio da equivalência, refração no universo dos tributos bilaterais dos princípios constitucionais da igualdade tributária e da proporcionalidade, não sem antes se pronunciar sobre os aspetos mais controversos do respetivo regime jurídico – e em especial, sobre o nexo entre a ampla base de incidência subjetiva do tributo e a finalidade de redução da dívida tarifária do setor elétrico.
Quanto à incidência subjetiva, estando em causa um recurso interposto por um sujeito passivo da CESE que não integrava o subsetor da eletricidade, afirmou o Tribunal:
«10. A recorrente veio invocar que, em virtude da sua atividade, não exercia «qualquer atividade no setor electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsetor da eletricidade (a atividade da Recorrente é a de armazenamento subterrâneo de gás natural), pelo que em nada contribuiria para o problema da dívida tarifária do SEN». Assim sendo, não usufruiria da contrapartida traduzida na redução do défice ou dívida tarifária, pelo que não estaria assegurada a bilateralidade ou sinalagmaticidade do tributo, devendo este ser considerado um imposto.
Sucede que aquela redução é apenas um dos objetivos da CESE, prescrevendo a lei que esta contribuição visa, genericamente, o desenvolvimento de medidas que contribuam para o equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético.
Ainda que não referida a uma contraprestação direta, específica e efetiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objetivos «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético» (artigo 1º, n.º 2, do regime da CESE). É, a par do objetivo da redução da dívida tarifária – que é uma das suas causas –, o objetivo da promoção de mecanismos para financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, bem como de medidas de apoio às empresas, que gerará, igualmente, contrapartidas, ainda que difusas, dirigidas aos sujeitos passivos da CESE. A existência destas presumidas contraprestações que vão além do mero objetivo da redução tarifária, e que a criação do FSSSE garante, assegura, também, o caráter estrutural de bilateralidade ou sinalagmaticidade da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto, já que nelas é possível identificar a satisfação das utilidades do sujeito passivo do tributo como contrapartida do respetivo pagamento. É a participação de um especial setor da atividade económica nos benefícios/custos presumidos da adoção destas políticas de financiamento que permite isolá-los dos demais contribuintes, sujeitando-os à contribuição criada pelas normas em apreciação, sem que essa diferenciação possa considerar-se violadora da Constituição, como veremos. […]»
Retira-se desta jurisprudência que o Tribunal considerou determinante, para efeitos de caracterização do tributo, a circunstância de o produto da CESE se destinar ao financiamento de «ações de regulação», de «políticas do setor energético de cariz social e ambiental» e de «medidas relacionadas com a eficiência energética [e de] apoio às empresas» de que seriam beneficiários todos os operadores do setor da energia, e não apenas os sujeitos passivos integrados no subsetor da energia elétrica. A existência destas contrapartidas era per se suficiente para comprovar a bilateralidade genérica do tributo, não prejudicada pela circunstância de um terço da sua receita ser destinada, nos termos da lei, à redução do défice tarifário do setor elétrico. Acompanhando a decisão então recorrida, afirmou o Tribunal:
«11. Evidentemente, ao contrário do que pretende a requerente, o facto de a CESE ter, igualmente, como objetivo a redução da dívida tarifária do SEN, encarado, também ele, como um mecanismo que promove a sustentabilidade sistémica do setor energético, tal não faz obnubilar aquela outra contrapartida. Deixando de lado o problema de saber se a CESE assume natureza extraordinária, ponto relativamente ao qual o Tribunal Constitucional, atendendo ao objeto do pedido, não tem de se pronunciar – in casu está em causa apenas a apreciação da aplicabilidade da CESE pela primeira vez e no ano para o qual a mesma foi originariamente criada (ano de 2014) – é de acompanhar, sem reservas, a apreciação deste aspeto realizada na decisão recorrida:
“Em relação à afetação de um terço da receita da contribuição à redução da dívida tarifária do Setor Elétrico Nacional, cumpre sublinhar que, efetivamente, nesta parte, existe uma redução intensa (senão mesmo uma exclusão) do nexo causal que é pressuposto desta afetação do tributo, uma vez que é especialmente difícil sustentar que a exigência da CESE aos operadores económicos do setor do gás natural tem sentido no contexto da amortização de um stock de dívida que foi gerado pela adoção de medidas de regulação social no subsetor da energia elétrica (o stock da dívida tarifária do setor elétrico é consequência da cláusula-travão na admissibilidade da repercussão integral dos custos do Sistema Elétrico Nacional nas tarifas a suportar pelos consumidores finais), mesmo sabendo que as empresas que hoje são credoras dessa dívida tarifária (pelo menos uma parte significativa das que recebem custos de manutenção do equilíbrio contratual ou garantia de potência e que operam centrais termelétricas) são consumidoras de gás natural que é fornecido pelas operadoras deste segundo setor e através das respetivas infraestruturas.
Todavia, essa atenuação (ou mesmo interrupção) do nexo causal respeitante a um terço do valor da contribuição não se afigura suficiente para determinar a se uma situação de desproporção significativa entre a exigência do tributo e a finalidade a que o mesmo se destina, pois não só dois terços do valor do mesmo mantêm, como veremos, aquele nexo causal, como ainda a CESE assume um caráter extraordinário. […]”
14. […] Garantido que esteja que a contribuição lançada encontra justificação no benefício recebido/custo provocado relativo a uma prestação diferenciada de que efetiva ou presumivelmente beneficiará/ou terá provocado um grupo seu sujeito passivo, estará assegurado o sinalagma que justifica a diferenciação tributária, bem como o respeito pelo princípio da equivalência.
No caso, como atrás se demonstrou, a sujeição à CESE do grupo constituído pelos operadores económicos em que a recorrente se inclui não é desprovida de contrapartidas. Nem quando globalmente considerado o grupo de operadores no setor da energia, nem quando especificamente considerados aqueles que operam no setor do gás natural. Aliás, na definição da consignação de receitas, é para o setor da energia globalmente considerado que são destinadas a maior parte das verbas, visando o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e de apoio às empresas, já que apenas um terço é reservado à redução da dívida tarifária do SEN.
É, em suma, o caráter sinalagmático, atrás enunciado, que traduz a verificação da equivalência necessária, pelo que não pode deixar de se concluir não existir desrespeito pelo princípio da equivalência. Ao mesmo tempo, a assinalada bilateralidade, encontrada na contraprestação correspondente à sujeição à CESE, retira-lhe o caráter de imposto que incidiria sobre o património das empresas do setor energético que a ela estão obrigadas. Como descrevemos, a estrutura bilateral do tributo justifica que se distinga estes sujeitos passivos dos demais contribuintes, respeitando-se, por isso mesmo, o princípio da equivalência, afastando-se uma injustificada desigualdade.»
Já no que respeita à base de incidência objetiva, o Tribunal considerou que, ao eleger a titularidade de certos ativos, o legislador não pretendia atingir o património dos sujeitos passivos ou o rendimento normal extraído pelos operadores económicos abrangidos (enquanto manifestação de uma especial capacidade contributiva), antes aferir da sua presumível aptidão para participar, em maior ou menor medida, dos custos e benefícios que o tributo visava compensar (segundo um critério de equivalência).
«15. […] Também no que respeita à incidência objetiva da CESE se considera estar garantido um nexo causal suficiente entre os ativos (no caso, ativos regulados) sobre os quais recai a CESE (artigo 3.º, n.º 1, do Regime jurídico da CESE) e as políticas públicas de cariz social e ambiental do setor energético.
A titularidade dos ativos tributáveis por parte das empresas que as normas legais sujeitam à CESE, cuja justificação radica na sustentabilidade sistémica do setor energético, torna-as presumíveis beneficiárias das políticas públicas de energia e da sua regulação. Os ativos não surgem como manifestação meramente hipotética da capacidade contributiva, que fosse exigida como receita para despesas gerais do Estado, mas como indicador que permite presumir a potencial utilidade das prestações públicas que aos operadores aproveitam, e os custos presumidos que provocam, já que os ativos são elementos essenciais ao desenvolvimento da atividade, sendo suficientemente adequados para diferenciarem aquele impacto. Também por esta razão, não pode ligar-se a sujeição do ativo ao tributo a qualquer demonstração de que estaríamos perante um imposto sobre o património das empresas. Na lógica do legislador, a titularidade de ativos em certa área da economia é um dado que permite aferir da suscetibilidade da empresa para ser causa de ou beneficiar de políticas de sustentabilidade, o que a distingue dos demais operadores de outras áreas e dos cidadãos. Não é, assim, uma forma de arrecadar receita, indistintamente».
7. Esta posição viria a ser reiterada em numerosos recursos interpostos de decisões que aplicaram as normas do regime jurídico da CESE mantidas em vigor nos anos subsequentes (pelas Leis n.ºs 82-B/2014, de 31 de dezembro, 159-C/2015, de 30 de dezembro, 7-A/2016, de 30 de março e 42/2016, de 28 de dezembro). Na vasta maioria desses casos, o Tribunal foi confrontado com a alegação de que a posição assumida no Acórdão n.º 7/2019, atenta a «natureza extraordinária» do tributo, só poderia ter-se por válida para o primeiro ano do seu regime jurídico, que foi objeto de sucessivas renovações.
O Tribunal manteve, no entanto, a posição inicialmente adotada.
Com efeito, o Tribunal, sem deixar de conferir relevância à «natureza extraordinária» do tributo, considerou que essa «não é determinada por um critério temporal – o ano de 2014 −, mas conjuntural − a verificação periódica de um certo estado de coisas» (v. o Acórdão n.º 513/2021), pelo que a mera prorrogação da vigência do regime jurídico da CESE não infirmava, por si só, o seu caráter transitório. Entendeu-se ainda que os fatores conjunturais que justificaram a aprovação do regime subsistiram após o ano da sua entrada em vigor e, seguramente, até ao ano de 2017, em que cessou o procedimento relativo a défice excessivo iniciado pela Comissão Europeia em 2010 (v., a Decisão (UE) 2017/1225 do Conselho, de 16 de junho de 2017; neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 513/2021, 532/2021, 736/2021, 204/2022, 214/2022, 580/2022, 581/2022, 658/2022 e 782/2022).
Em algumas decisões acrescentou-se que a vocação conjuntural da CESE não poderia ser tomada como uma condição necessária do juízo de não inconstitucionalidade firmado no Acórdão n.º 7/2019. De acordo com esta linha de raciocínio, mesmo que a prorrogação sucessiva deste regime jurídico viesse afinal revelar o seu caráter permanente, a natureza sinalagmática do tributo não ficaria ipso facto excluída. Como se lê no Acórdão n.º 436/2021:
«9. […] No entanto, mesmo que a recorrente tivesse razão – e que a evolução do regime jurídico e da prática de aplicação da CESE venha a comprovar, sem margem para dúvidas, e ao contrário do que pode afirmar-se com firmeza neste momento, a sua consolidação no ordenamento jurídico, não podendo, a partir de então, negar-se, o seu caráter permanente –, tal não implicaria, sem mais, a sua desconformidade constitucional. Na realidade, isso reforçaria o paralelismo com as demais contribuições financeiras exigidas a privados para financiamento da regulação de determinados setores de interesse geral – nomeadamente, e como se viu, o setor energético, entendido em termos latos, cuja sustentabilidade sistémica (e não meramente financeira, ou tarifária) se configura como uma forma de cumprimento do dever estadual de proteção do direito fundamental ao ambiente e à qualidade de vida, consagrado no artigo 66.º da Constituição. Nestes termos, a adoção de políticas de cariz social e ambiental direcionadas para o setor energético, bem como de medidas relacionadas com a eficiência energética, constitui, nesta sede, uma forma – de entre todas as que podem ser desenhadas pelo legislador no âmbito da sua larga margem de atuação nesta matéria – de dar cumprimento à obrigação de “promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações” e ainda de “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida”, previstas, respetivamente, nas alíneas d) e f) do n.º 2 do artigo 66.º da CRP. Para a avaliação da constitucionalidade da medida nesse cenário, sempre seria, pois, indispensável uma análise detalhada dos concretos elementos atinentes ao regime de tributação, o que, naturalmente, não tem lugar na resolução do caso dos autos, que respeita apenas aos anos iniciais de vigência da CESE, em particular o de 2016.
Ou seja, ao contrário da argumentação da recorrente, não se afigura decisivo o elemento da excecionalidade para um julgamento de não inconstitucionalidade do regime jurídico da CESE. Tal caraterística reforça a argumentação plasmada no Acórdão n.º 7/2019, mas está longe de constituir o seu único pilar de sustentação. Para o juízo de não inconstitucionalidade então proferido – e que agora se renova – contribui, sobretudo, a caraterização dogmática do tributo como contribuição financeira, e o objetivo de financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor da energia, já que este permite afirmar a sinalagmaticidade do tributo, ainda que não referida a uma contraprestação específica.»
Esta orientação − reiterada nos Acórdãos n.ºs 437/2021, 438/2021, 756/2021, 231/2022, 232/2022, 305/2022, 411/2022 e 597/2022, entre outros − foi mais recentemente desenvolvida nos Acórdãos n.ºs 305 e 411, ambos de 2022. Aditou-se, no primeiro aresto, o seguinte:
«6. […] O ponto de essência reside na circunstância de a CESE estar dotada dos carateres específicos que permitem qualificá-la como contribuição financeira, distanciando-a de outras figuras jurídico-tributárias próximas (…)[;] é a unidade de interesses de grupo, a responsabilidade de grupo e o benefício de grupo, com relação à CESE e aos operadores no setor energético abrangidos pelo âmbito de incidência subjetiva (artigo 2.º do RJCESE), que suportam a conceptualização do tributo em causa como contribuição financeira inserida na lógica comutativa de aquisição de vantagem difusa pela ação pública, assente em responsabilidade de grupo pela situação carecida da ação pública que a contribuição financia. […]
De facto, as receitas geradas pela CESE estão legalmente alocadas ao financiamento do FSSSE (cfr. artigo 1.º, n.º 2 do RJCESE) e porque a atividade deste fundo está dirigida à “promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 09.04 e artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do RJCESE), temos por devidamente caracterizado o espetro de vantagens para os operadores económicos do setor enquanto benefício de grupo decorrente da ação pública financiada (artigo 81.º, alínea m) da Constituição da República Portuguesa). Por sua parte, também a necessidade de intervenção estadual tendo em vista garantir equilíbrio ambiental e racionalização na exploração de recursos (artigo 66.º, n.º 2, alíneas d) e f) da Constituição da República Portuguesa), ambos integrados no programa de atividade do FSSSE (cfr. artigo 2.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 09.04), constitui essencialmente uma forma de responder à pressão que a atividade económica dos operadores sujeitos à CESE coloca no respetivo domínio setorial e que lhes aproveita, reforçando a subsunção do tributo à figura da contribuição financeira.
Desta forma, de acordo com a jurisprudência constitucional, a CESE terá sempre de ser entendida como contribuição em função do seu regime jurídico próprio, aferindo-se a sua legitimidade constitucional nesse pressuposto e resultando, por esse motivo, o seu caráter transitório como meramente conjuntural, ao contrário do que pretende a reclamante […].»
Também por remissão para esta jurisprudência, foi proferida a Decisão Sumária n.º 263/2022, em que não foram julgadas inconstitucionais as normas do regime jurídico da CESE vigentes em 2018. Porém, decorridos vários anos desde a sua criação, importa averiguar se os pressupostos em que repousaram os reiterados juízos de não inconstitucionalidade proferidos pelo Tribunal Constitucional se mantêm largamente intocados, para o que importa atender à evolução do regime jurídico deste tributo no período que mediou até 2018, o ano a que se reporta o ato de liquidação impugnado nos autos.
8. Neste período, o regime jurídico da CESE foi objeto de algumas alterações (v. o artigo 238.º da Lei n.os 82-B/2014, de 31 de dezembro, a Lei n.º 33/2015, de 27 de abril e o artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro), entre as quais se destaca o alargamento da base de incidência subjetiva aos comercializadores titulares dos contratos de aprovisionamento de longo prazo com obrigação alternativa de aquisição ou compensação (em regime comummente designado de «take or pay»), celebrados em data anterior à entrada em vigor da Diretiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento e do Conselho, de 26 de junho (a que se refere o artigo 39.º-A do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na redação vigente à data, para o qual remete a alínea m) aditada ao artigo 2.º do regime jurídico da CESE pela Lei n.º 33/2015).
Nestes casos, o tributo passou a incidir, primeiro, sobre o valor dos ativos a que se refere o artigo 3.º, n.º 1, do regime jurídico da CESE e sobre o valor económico equivalente dos contratos de aprovisionamento de longo prazo, a determinar nos termos previstos no n.º 5 do mesmo artigo, a que é aplicável uma taxa de 1,45% (v. o n.º 6 do artigo 6.º do regime, na redação da Lei n.º 33/2015). Com as alterações introduzidas em 2016, passou a incidir, adicionalmente, sobre «o excedente apurado para o valor económico equivalente dos contratos» de aprovisionamento, «tendo em conta a informação sobre o real valor desses contratos», a determinar nos termos dos n.ºs 6 a 8 do artigo 3.º, sendo aplicável a este valor a taxa de 1,77% (v. o n.º 3 do artigo 3.º e o n.º 7 do artigo 6.º, com a redação dada pela Lei n.º 42/2016, bem como a Portaria n.º 92-A/2017, de 2 de março).
Esta alteração encontra justificação, segundo o Preâmbulo da Portaria n.º 157-B/2015, de 28 de maio, na verificação de «desequilíbrios sistémicos do Sistema Nacional de Gás Natural» (adiante designado «SNGN»), pelo que a parcela da receita da CESE obtida por esta via ficou «totalmente afeta à minimização dos encargos do SNGN, devendo o FSSSE prever, para o efeito, mecanismos para abater o montante das respetivas cobranças que daí resultem na tarifa de uso global do sistema de gás natural, excluindo as tarifas aplicáveis aos centros eletroprodutores, e definir a respetiva periodicidade» (v. o n.º 4 do artigo 11.º do regime jurídico da CESE, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 42/2016, bem como o artigo 2.º-A da Portaria n.º 1059/2014, de 18 de dezembro, aditado pela Portaria n.º 133-A/2017, de 10 de abril, e o Despacho n.º 5238-A/2017, de 12 de junho).
Por sua vez, e durante este período, o Decreto-Lei n.º 55/2014, que criou o FSSSE, manteve-se inalterado. As tarefas integradas no amplo espectro das «políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», que o Fundo em parte se destinava a financiar, não foram objeto de concretização ou desenvolvimento neste diploma. Porém, previa-se que continuassem a absorver a maior parcela da receita obtida com a CESE. Até à aprovação do Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, os artigos 2.º e 4.º deste diploma estabeleciam o seguinte:
«Artigo 2.º
Objetivos
O FSSSE visa contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional, designadamente através:
a) Do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética;
b) Da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético prevista no artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
[…]
Artigo 4.º
Despesas
1 – Constituem despesas do FSSSE as que resultem de encargos decorrentes da aplicação do presente decreto-lei, designadamente:
a) Encargos necessários ou decorrentes da realização dos seus objetivos, conforme definidos no artigo 2.º;
b) Encargos de liquidação e cobrança da contribuição extraordinária sobre o setor energético incorridos pela AT, correspondentes a uma percentagem de 3 % da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior.
2 – As verbas do FSSSE devem ser alocadas de acordo com a seguinte ordem de prioridade:
a) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a) do artigo 2.º no montante correspondente a dois terços da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, até ao limite máximo de EUR 100 000 000,00;
b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º no montante remanescente.
3 – O montante referido na alínea a) do número anterior inclui o montante referido na alínea b) do n.º 1.»
Esta ordem de prioridades foi, todavia, invertida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018. Entendendo-se que os critérios de distribuição da receita obtida com a cobrança da CESE «se têm vindo a revelar demasiadamente rígidos, impedindo que, em cada ano, se possam ajustar os valores aos objetivos do FSSSE que se mostrem mais prementes» (v. o Preâmbulo do diploma), foram alterados os n.os 2 e 4 do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 55/2014, que passou a dispor o seguinte:
«Artigo 4.º
Despesas
1 – Constituem despesas do FSSSE as que resultem de encargos decorrentes da aplicação do presente decreto-lei, designadamente:
a) Encargos necessários ou decorrentes da realização dos seus objetivos, conforme definidos no artigo 2.º;
b) Encargos de liquidação e cobrança da contribuição extraordinária sobre o setor energético incorridos pela AT, correspondentes a uma percentagem de 3 % da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior.
2 – As verbas do FSSSE são afetas aos seguintes fins:
a) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a) do artigo 2.º no montante até um terço da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior;
b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º no montante remanescente.
3 – O montante referido na alínea a) do número anterior inclui o montante referido na alínea b) do n.º 1.
4 – A percentagem da alocação de verbas prevista na alínea a) do n.º 2 é definida por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da energia.»
Deste modo, ficou o Governo habilitado a decidir, com a mais larga discricionariedade, a percentagem de receita da CESE afeta ao financiamento das políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, no intervalo de 0% a 33%, visto que a lei não define nenhum limite mínimo nem fixa critérios de decisão. Esta alteração terá permitido que, já no ano de 2018, segundo o Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado, se tenha observado um «grande aumento (131 M€) registado nas transferências do FSSSE destinadas, na sua totalidade, à REN - Rede Elétrica Nacional, S.A., no âmbito da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, proveniente da receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético.» (v. o extrato do Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 17, Parte D, de 24 de janeiro de 2020, p. 353).
Cabe ainda sublinhar que esta alteração do destino típico das receitas da CESE ocorreu num contexto significativamente diverso daquele em que o tributo foi criado. Com efeito, superados os condicionamentos impostos pela execução do PAEF e pelo procedimento de défice excessivo, findo em 2017, observava-se já em 2018 uma «tendência de diminuição da dívida tarifária do SEN, iniciada em 2015» (v. o Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-A/2018). Depois de ter atingido o valor mais alto em 2015 (cinco mil e oitenta milhões de euros), estimava-se que em 2018 este diminuísse para cerca de três mil e setecentos milhões de euros (v. o Comunicado da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos sobre a Proposta de Tarifas e Preços para a Energia Elétrica em 2018, disponível em
https://www.erse.pt/media/1r0c1sce/comunicado_propostas-tarifas-ee_2018_vfinal.pdf, p. 4). Era ainda expectável que essa tendência viesse a acentuar-se em resultado das medidas de redução de custos adotadas no âmbito da execução do PAEF a que se fez menção supra, bem como da consignação de outras receitas à redução do défice tarifário do setor energético (v.g., da parcela de receita dos leilões de licenças, a que se refere o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 38/2013, transferida pelo Fundo Ambiental, criado pelo Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12 de agosto, assim como das receitas provenientes da cobrança de impostos especiais sobre o consumo, a que se refere o artigo 251.º da Lei do Orçamento do Estado para 2018).
Tudo isto implica, como é bom de ver, uma alteração profunda dos pressupostos de facto e de direito em que repousaram as decisões proferidas sobre a CESE no período entre 2014 e 2017: quanto aos primeiros, consubstanciados nos fatores conjunturais atendidos no Acórdão n.º 7/2019, subsistindo embora em 2018 um considerável volume de dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, verificava-se uma tendência firme de redução; quanto aos segundos, a ênfase dada nesse aresto, bem como na jurisprudência posterior deste Tribunal, ao financiamento de medidas de regulação, de apoio às empresas e de cariz social e ambiental, relacionadas com a eficiência energética, deixou de corresponder ao destino legal das receitas da CESE, em virtude das alterações introduzidas no regime jurídico do FSSSE.
9. Resta apreciar se a norma que integra o objeto do presente recurso, na medida em que determina a incidência sobre as empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, descaracteriza o tributo ao ponto de o excluir, no que a estes sujeitos diz respeito, do universo das contribuições financeiras.
Segundo jurisprudência constante deste Tribunal, um tributo tem a natureza de contribuição financeira quando, cumulativamente, tiver como pressuposto uma relação bilateral entre uma entidade pública e um grupo homogéneo de sujeitos − que se presumem causadores ou beneficiários de determinadas prestações administrativas −, e quando tiver por finalidade angariar receitas destinadas a compensar os inerentes custos ou benefícios presumivelmente gerados ou aproveitados pelos elementos desse grupo (v. os Acórdãos n.ºs 539/2015, 7/2019, 344/2019 e 268/2021, bem como a jurisprudência aí citada). Tal como se sintetizou no Acórdão n.º 268/2021:
«14. […] O critério de distinção das contribuições financeiras em relação às demais categorias tributárias assenta, portanto, no tipo de relação jurídica que se estabelece entre o sujeito passivo e os benefícios ou utilidades que para este decorrem do tributo (critério estrutural, pressuposto), com especial destaque para a incidência e a natureza do aproveitamento esperado (geral, difuso, concreto, efetivo ou presumido). A contribuição financeira emerge, deste modo, como um tributo coletivo, fixado em função do grupo, pela utilização ou utilidade singular meramente presumida, numa relação de bilateralidade genérica. O mesmo é dizer que a qualidade de sujeito passivo de uma contribuição financeira não pressupõe a compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito, sendo a pertença ao grupo identificado pelo legislador condição necessária e suficiente para tal.»
Uma adequada conformação normativa, em especial, das regras que definem a incidência subjetiva, objetiva e as finalidades de um tributo deste tipo deve, pois, tornar apreensível o necessário nexo entre a ação pública e os seus destinatários, que permita afirmar a existência, não apenas de uma homogeneidade de interesses, mas sobretudo de uma responsabilidade de grupo, que justifica que sobre os sujeitos que o integram – e não sobre toda a comunidade – recaia a respetiva ablação patrimonial.
Ora, na sua configuração inicial, a CESE destinava-se, não apenas a acudir à premente resolução do problema do défice tarifário do SEN, mas principalmente a financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental, ações de regulação e medidas relacionadas com a eficiência energética. Trata-se, reconhecidamente, de objetivos muito amplos, assimiláveis às incumbências fundamentais e prioritárias do Estado e de inegável interesse geral (v., em especial, as alíneas d) e e) do artigo 9.º, as alíneas d) e f) do artigo 66.º, e as alíneas a), f) e m) do artigo 81.º da Constituição). De resto, são públicos e exigentes os compromissos assumidos pelo Estado português no plano internacional com vista à consolidação de um mercado energético liberalizado, autossuficiente, seguro, justo e sustentável (no período temporal aqui referido, v., em especial, as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 29/2010, que aprovou a Estratégia Nacional para a Energia 2020, e n.º 20/2013, que aprovou o Plano Nacional de Ação para a Eficiência Energética para o período 2013-2016 e o Plano Nacional de Ação para as Energias Renováveis para o período 2013-2020).
Não obstante, a experiência mostra que as políticas e medidas de incentivo e de regulação adotadas pelo Estado com o intuito de realizar tarefas de evidente interesse público podem provocar relevantes custos de que os operadores económicos, integrados em determinados setores económicos, extraem especiais e relevantes benefícios (a respeito de setores, v. os Acórdãos n.ºs 539/2015 e 268/2021). Assim, não se pode excluir, em abstrato, que neste domínio pudesse ser criado um tributo cuja finalidade fosse, não a de suportar os gastos gerais da comunidade com a adoção de medidas indispensáveis à consolidação de um sistema energético sustentável, mas sim a de obter receitas destinadas a financiar, através de um fundo autónomo, determinadas prestações públicas que, concorrendo para esse fim, presumivelmente geram especiais benefícios para uma classe de operadores económicos integrados no setor energético.
10. No entanto, forçoso é reconhecer que os termos em que, a partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, a que diz respeito a norma sindicada no presente recurso.
Em primeiro lugar, tornou-se evidente que, por imposição legal, a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico, sem que sejam claras as razões pelas quais o legislador teve por adequado exigir a operadores não integrados nesse subsetor que participassem nos encargos daí advenientes, quando lhes não deram causa alguma, nem se vê que daí extraiam um especial benefício. Cabe notar que a mera circunstância de todos os operadores integrarem o «setor energético» não é manifestamente suficiente para afirmar que exista uma responsabilidade de grupo do subsetor do gás natural pelos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica. Embora seguramente exista alguma homogeneidade de interesses e interdependência entre os vários operadores do mercado energético, são diferentes as condições em que estes operam e bem assim os problemas de sustentabilidade que a propósito de cada um se colocam. Tanto assim que o próprio regime jurídico da CESE, desde as alterações introduzidas em 2015, passou a afetar ao SNGN uma parte da receita do tributo − a que é exigida aos comercializadores do SNGN, titulares de contratos de aprovisionamento de longo prazo −, com o intuito de prevenir os «desequilíbrios sistémicos» próprios deste subsetor.
O que daqui se depreende é que não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural. Acresce que o regime não define critérios que imponham que uma parte relevante da receita da CESE se mantenha afeta ao financiamento de medidas tendentes a favorecer os interesses de todos os operadores económicos incluídos no seu âmbito de incidência subjetiva (e não isentos). Pelo contrário, na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos «objetivos que se revelem mais prementes», afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico – ou seja, ao financiamento de prestações públicas de que os operadores do setor do gás natural não podem, como se viu, presumir-se causadores ou beneficiários.
Por fim, ainda que um terço da receita da CESE tivesse sido consignado ao «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», a circunstância de as tarefas que o tributo se destina a financiar não terem sido objeto de densificação mínima, não permite sequer apreender se e em que medida cada um dos subsetores em causa é visado pelas medidas a adotar pelo FSSSE. De facto, mesmo em tais condições – estritamente hipotéticas −, não se poderia presumir que um terço da receita da CESE tivesse sido destinado a medidas de que seriam especiais beneficiários os operadores do subsetor do gás natural, de modo a garantir um certo equilíbrio na participação pelos subgrupos de operadores dos benefícios presumivelmente proporcionados pelo FSSSE.
A jurisprudência constitucional tem enfatizado que, em matéria de contribuições financeiras, o legislador tem o ónus de delimitar, com precisão, a base de incidência subjetiva do tributo. A este respeito, afirmou-se no Acórdão n.º 344/2019 o seguinte:
«Nesta última espécie de tributos – contribuições – o princípio da equivalência vincula o legislador a definir o universo de sujeitos passivos que se presume provocar ou aproveitar a prestação administrativa. Não podendo dar-se por seguro que cada um dos concretos sujeitos passivos provoca ou aproveita a prestação pública – como ocorre nas taxas – exige-se que o legislador isole os grupos de pessoas às quais estejam presumivelmente associados custos e benefícios comuns. Assim, o princípio da equivalência projeta-se na estruturação subjetiva do tributo através do recorte de um grupo de pessoas que tem interesses e qualidades em comum, que tem responsabilidades na concretização dos objetivos a que o tributo se dirige, e que a prestação tributária seja empregue no interesse dos membros grupo. A propósito destes “requisitos de legitimação” dos tributos de estrutura bilateral grupal refere Sérgio Vasques que “só a provocação de custos comuns e o aproveitamento de benefícios comuns garantem a homogeneidade capaz de legitimar a sobretributação de um qualquer grupo social ou económico no confronto com o todo da coletividade, mostrando-se discriminatória uma contribuição cobrada na sua falta” (O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Almedina, pág. 528).»
Ora, a partir de 2018, o legislador reduziu os objetivos a que a CESE se dirige em termos tais, que deixou de ser possível afirmar que as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural podem ser consideradas responsáveis pela sua concretização, e muito menos presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar. Resta, pois, concluir que a norma que integra o objeto do presente recurso viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
[…]” (sublinhados acrescentados).
A constelação argumentativa subjacente ao Acórdão n.º 101/2023 foi, ainda, desenvolvida em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 296/2023 pelo Senhor Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro:
“[…]
1. O principal argumento aduzido no presente aresto para refutar a fundamentação do Acórdão n.º 101/2023 – que relatei −, o qual julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, as normas do regime jurídico da CESE para o ano de 2018 que determinam a incidência do tributo sobre as entidades concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, é o de que «nunca o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 55/2014, de 9 de abril [que criou o FSSSE] (…) estabeleceu uma regra de afetação da receita da CESE a determinadas despesas do Fundo de Sustentabilidade do Setor Energético (…)».
A proceder, o argumento atinge a razão essencial para o juízo de inconstitucionalidade firmado no Acórdão n.º 101/2023 – a de que, de acordo com o regime de consignação que consta do diploma que criou o FSSE, ao passo que, «na sua configuração inicial, a CESE destinava-se, não apenas a acudir à premente resolução do problema do défice tarifário do SEN, mas principalmente a financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental, ações de regulação e medidas relacionadas com a eficiência energética», «os termos em que, a partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural», uma vez que, em apertada síntese, «a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico» e, «na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos “objetivos que se revelem mais prementes”, afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico».
Porém, o argumento do presente aresto é improcedente. A consignação da receita da CESE a determinadas despesas do FSSSE foi estabelecida logo na versão originária do diploma que criou este último, resultando inequivocamente da conjugação do artigo 11.º do regime jurídico da CESE, constante do artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, com os artigos 2.º e 4.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril. Com efeito, o citado artigo 11.º dispõe, sob a epígrafe «consignação», que «a receita obtida com a contribuição extraordinária do setor energético é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) (…)», determinando simultaneamente o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/2014 que os «objetivos» do FSSSE são o «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental (…)» e a «redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN) (…)», e o n.º 2 do artigo 4.º do mesmo diploma que «as verbas do FSSSE devem ser alocadas de acordo com a seguinte ordem de prioridade: a) [c]obertura de encargos decorrentes [do financiamento de políticas do setor energético] no montante correspondente a dois terços da receita; [e] b) [c]obertura dos encargos decorrentes da realização do objetivo de [redução da dívida tarifária do SEN] no montante remanescente».
É bem certo que, como se salienta no presente aresto, o FSSSE tem outras receitas para além da CESE e que a alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto Lei n.º 55/2014 limitava a um valor máximo de 100 milhões de euros a regra de afetação de dois terços das verbas do Fundo ao financiamento de políticas do setor energético. Mas nenhum destes argumentos complementares infirma o juízo de que a CESE se encontrava consignada, em proporções fixas e diversas, aos dois objetivos do FSSSE. Por um lado, as demais receitas do FSSSE, que constam das alíneas b) a e) do artigo 3.º do diploma que o criou – a saber: dotações legais, rendimentos de aplicações, o produto de doações, heranças e legados ou outras receitas atribuídas por lei ou negócio jurídico −, são relativamente insignificantes, não constando sequer que se tenham materializado em medida alguma desde que o FSSSE foi criado. Com efeito, como notam José Casalta Nabais e Marta Costa Santos, “Contribuição Extraordinária do Setor Energético: Um Imposto Sob Outro Nome”, Revista Portuguesa de Direito Constitucional, n.º 2, 2022, p. 54, «[a] CESE é a única receita do Fundo que se encontra verdadeiramente prevista (…)». Por outro lado, compulsando a conta geral, verifica-se que a receita total da CESE atingiu, nos vários anos de vigência do tributo, valores pouco superiores ao limite máximo de afetação de dois terços das verbas do FSSSE ao objetivo de financiamento das políticas do setor energético – o que era mais do que previsível, tendo em conta a simplicidade das regras de incidência objetiva do tributo −, pelo que não se pode duvidar que a alteração das proporções de afetação das verbas e a atribuição ao executivo da prerrogativa de determinar até ao montante de um terço qual a percentagem a usar no financiamento das políticas setoriais, ambas operadas em 2018, implicou uma modificação de grande monta no regime financeiro do tributo, descaracterizando a sua natureza como contribuição financeira para as entidades que operam no setor do gás. Assim se argumentou, com desenvolvimento, no Acórdão n.º 101/2023.
2. Resta-me fazer duas observações adicionais sobre o presente aresto.
A primeira diz respeito a uma putativa «relação entre a dívida tarifária e o conjunto do setor energético no âmbito do controlo da homogenia de grupo», fundada na verificação de que «o mercado de gás natural» está «em situação de completa dependência da produção de energia elétrica e das condições de atividade dos respetivos operadores», ao ponto de se afirmar que «metade do gás natural transportado, distribuído ou armazenado por empresas em Portugal nestes anos [de vigência da CESE] não era mais do que “eletricidade em potência”». Ainda que se concedam – arguendo – os factos invocados e, o que é coisa bem diversa, os corolários deles inferidos, cabe notar que as contribuições financeiras se destinam a compensar prestações administrativas que, pese apenas se poderem presumir provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos, são efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo grupo homogéneo a que aqueles pertencem. Sendo certo que, ao contrário das taxas, as contribuições não implicam uma relação de comutatividade entre o sujeito passivo e a prestação administrativa, não deixam de implicar, como é bom de ver, um nexo «paracomutativo» entre o conjunto dos sujeitos e a atividade da administração – razão pela qual se diz amiúde destes tributos que consubstanciam verdadeiras «taxas grupais». Em suma, a presunção refere-se ao sujeito passivo – a quem o tributo é cobrado−, não ao grupo homogéneo – o totum que aquele integra.
Em virtude dessa sua natureza, «[a]s modernas contribuições não visam compensar prestações que se dirijam ao sujeito passivo de modo “indireto” ou “reflexo”, da maneira que se pode dizer que as grandes obras públicas beneficiam os terrenos circundantes. O que [as caracteriza] é o estarem voltad[a]s à compensação de prestações de que só presumivelmente se pode dizer causador ou beneficiário o sujeito passivo» (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, 2018, p. 257). Ora, suponho que seja uma evidência que a dívida tarifária do setor elétrico não foi provocada pelo setor do gás, nem a sua redução beneficia o conjunto dos operadores integrados neste setor de modo efetivo ou direto – antes constituindo, quando muito, um benefício presumido a partir de determinadas contingências. Daí a afirmação, no Acórdão n.º 101/2023, de que «não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural».
A segunda observação prende-se com a argumentação aduzida a propósito da não dedutibilidade da CESE como encargo tributário no âmbito do IRC. Diz-se no presente aresto que, se a lei fiscal admitisse tal dedução, gerar-se-iam os seguintes efeitos perniciosos: por um lado, «o tributo ficaria desprovido de boa parte do seu alcance contributivo efetivo, cingindo-se, da perspetiva do sujeito passivo e em parte, a um mero efeito de transferência entre fontes de despesa»; por outro, «penalizaria operadores com lucros mais baixos ou que apresentassem resultados negativos», o que aproximaria a contribuição de «um imposto sobre o rendimento das empresas de caráter regressivo».
Tenho dificuldade em acompanhar estes raciocínios.
Quanto ao primeiro, sendo inegável que – como se afirma numa passagem do Acórdão n.º 301/2021, citada no presente aresto − «se o encargo da CESE pudesse ser deduzido ao lucro tributável de modo a reduzir a coleta de IRC, o impacto financeiro deste tributo para os sujeitos passivos poderia ser efetivamente menor», não é menos verdade que daí resulta – prossegue imediatamente o texto original, já não citado no presente aresto − «um agravamento do montante de IRC a pagar», o que «poderá convocar o princípio da igualdade, na medida em que que se entenda que este exige a consideração de todos os encargos tributários suportados pelas empresas na determinação da sua real capacidade contributiva (ou do lucro [rendimento] real a que se refere o artigo 104.º, n.º 2, da Constituição)». Ora, quanto a esta questão − não apreciada no Acórdão n.º 301/2021, por se ter entendido que extravasava o objeto do recurso – não creio que no presente aresto se adiante coisa nenhuma. O problema da compatibilidade da regra da não dedutibilidade com o princípio da tributação pelo rendimento real fica, pois, ainda por resolver, sem prejuízo de se reconhecer que a jurisprudência constitucional vem admitindo, em diversos domínios de incidência daquele princípio, a sua derrogação em razão de interesses públicos atendíveis de sentido contrário.
Quanto ao segundo raciocínio, o de que a dedutibilidade do encargo com a CESE no âmbito do IRC poderia ter um «efeito regressivo», penalizando «operadores com lucros mais baixos ou que apresentassem resultados negativos», creio bem que incorre numa petição de princípio. Com efeito, constituindo a CESE um tributo bilateral, e não um imposto, o tertium comparationis relevante para aferir da igualdade na distribuição dos encargos não é a capacidade contributiva, mas a equivalência jurídica – no caso das contribuições financeiras, a presunção de que o sujeito passivo provoca ou aproveita determinadas prestações administrativas. Os montantes a pagar de taxas e contribuições variam, pois, em razão da tendencial desigualdade das prestações, não da capacidade contributiva dos sujeitos. Dizer-se que a dedutibilidade fiscal da CESE pode ter um «efeito regressivo» é partir-se desde logo do princípio de que não é um custo dedutível, uma vez que o apuramento do rendimento real das entidades sujeitas a IRC – o índice da sua capacidade contributiva – implica que aos seus rendimentos brutos tenham sido subtraídos os custos em que incorreram no exercício considerado. O que a recorrente alega é que a CESE é um verdadeiro custo para os sujeitos passivos de IRC e, nessa medida, um elemento a ter necessariamente em conta na determinação do seu «rendimento real». Ora, a questão que se coloca é precisamente a de saber se a CESE pode deixar de ser concebida como um custo – e, sendo-o, como justificar a sua não dedutibilidade em matéria de liquidação do imposto sobre o rendimento.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Em síntese, a linha jurisprudencial traçada pelo Acórdão n.º 101/2023 assenta na ideia de que “[…] as alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, ao regime de afetação das verbas do FSSSE, ao qual se encontra consignada a receita da CESE, descaracterizaram o nexo paracomutativo entre certa categoria de sujeitos e as finalidades do tributo a tal ponto que deixou de ser possível, uma vez entrado em vigor o novo quadro legal, fundamentar a oneração do seu património no princípio da equivalência. Para tais sujeitos, pois, a CESE passou a constituir, em virtude de tal alteração de regime, um verdadeiro imposto, sem que o mesmo encontre respaldo algum no princípio da capacidade contributiva” (cfr. declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 338/2023 pelo Senhor Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro).
2.3. A transposição do juízo de censura jurídico-constitucional afirmado no Acórdão n.º 101/2023 para a norma em causa nos presentes autos não prescinde de duas breves notas de autónoma fundamentação.
2.3.1. Em primeiro lugar, sublinha-se que os fundamentos do Acórdão n.º 101/2023 merecem integral acolhimento na presente situação. A conclusão ali alcançada – de que, para as entidades concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, dissolveram o nexo com as finalidades do tributo, transformando o tributo num imposto, no que a tais entidades respeita – vale, por identidade de razão, para as entidades titulares de licenças de distribuição local de gás natural (sendo que a recorrente tem ativos correspondentes a ambas as categorias) e vale para o os tributos liquidados por referência ao exercício económico de 2019, com idênticos fundamentos, porquanto o regime instituído por aquele decreto-lei se manteve inalterado durante tal período.
2.3.2. Em segundo lugar – e corresponde à outra nota a sublinhar –, não obstaria ao juízo de inconstitucionalidade o entendimento que, por maioria, se afirmou no recente Acórdão n.º 338/2023, desta 1.ª Secção. Efetivamente, nesta decisão (e ao contrário da posição que se encontra no Acórdão n.º 296/2023, da 2.ª Secção) não se toma posição quanto à descaracterização do tributo na sequência das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro – apenas se conclui que “[…] em relação à CESE 2018, o problema não se coloca […]”, em suma, por “[…] a situação que gera a obrigação de pagar o tributo em questão [ser] a detenção pelos sujeitos passivos de determinados ativos, incidindo a CESE sobre o valor dos elementos do ativo dos sujeitos passivos reconhecidos na respetiva contabilidade (nos termos do artigo 3.º), com referência a 1 de janeiro de cada ano […]” e por “a autoliquidação da CESE ocorre[r], por regra, até ao final do mês de outubro”, pelo que não haveria, sequer, lugar à invocação de “[…] expetativas jurídicas que sejam dignas de tutela nos termos do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa […]” à data da publicação daquele diploma (dezembro de 2018). Sucede que tais reservas levadas ao Acórdão n.º 338/2023 se aplicam apenas ao ano de 2018, perdendo pertinência a partir de 2019, uma vez que, no início deste ano, já vigorava o Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, pelo que, mesmo que se aceitasse que a questão se poderia colocar no plano de “[…] expetativas jurídicas que sejam dignas de tutela nos termos do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa”, a inevitável conclusão seria da sua verificação e frustração.
Tanto basta para concluir que, seja por via da posição maioritária que conduziu ao Acórdão n.º 338/2023, desta 1.ª Secção, seja por via da posição minoritária expressa nas respetivas declarações de voto, o recurso sempre seria procedente.
Vale o exposto por dizer que se impõe um juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 2.º, alíneas d) e e), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural e, bem assim, as que sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual), com a consequente procedência do recurso, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal Central Administrativo Sul, para reforma da decisão recorrida em conformidade com tal juízo (artigo 80.º, n.º 2, da LTC).(…)
3. Em face do exposto, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma contida no artigo 2.º, alíneas d) e e), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural e, bem assim, as que sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual); “

Face ao supra expendido, e uma vez que o aludido Aresto analisa com total propriedade não só a resenha jurisprudencial sobre a questão em contenda, como aborda e afasta todos os argumentos convocados pela Recorrente, aderimos na íntegra à jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional quanto à matéria em apreço, secundando-se, assim, o entendimento propugnado pelo Tribunal a quo no sentido de que, também aqui, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE – (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1, do artigo 3.º, do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. [Neste sentido, convoque-se, igualmente, os Arestos do STA, prolatados nos processos 367/23, de 5 de fevereiro de 2025, 0345/21, de 12 de fevereiro de 2025].

Ajuíza-se, por conseguinte, que o julgamento neles firmado mantém toda a atualidade e é integralmente transponível para o caso dos autos, concluindo-se, assim, que a CESE sub judice, padece da sentenciada inconstitucionalidade, donde a sentença que assim o decidiu deve ser confirmada, mantendo-se, por isso, na ordem jurídica.


***

Uma última nota quanto à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, nº 7 do RCP.

No caso sub judice, considera-se que o valor de taxa de justiça devida a final, calculado nos termos do tabela I.B., do RCP, é excessivo. Porquanto, ponderadas as circunstâncias do caso vertente à luz dos critérios escolhidos pelo legislador, em especial, o comportamento processual das partes litigantes, sem qualquer reparo negativo a apontar, a complexidade do processo – atendendo, outrossim, que as questões em apreciação já foram objeto de apreciação quer por este Tribunal, pelo TC e pelo STA, acarretando, assim, menor complexidade na solução jurídica das questões decidendas, determina-se que haja lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.


***




IV. DECISÃO
Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM deste Tribunal Central Administrativo Sul em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, E MANTER A DECISÃO RECORRIDA.

Custas a cargo da Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que excede os €275.000,00.

Registe. Notifique.



Lisboa, 05 de junho de 2025

(Patrícia Manuel Pires)

(Ana Cristina Carvalho)

(Isabel Silva)