Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:330/22.0BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:09/12/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:AÇÃO INSPETIVA INTERNA
AÇÃO INSPETIVA EXTERNA
PRETERIÇÃO DE FORMALIDADE
Sumário:I. Sustentando-se a ação inspetiva, classificada como interna, em elementos de origem externa, obtidos em procedimento para consulta e recolha de elementos, não tendo, em nenhum deles, sido o contribuinte notificado nos termos e para os efeitos do art.º 49.º do RCPITA, estamos perante a preterição de formalidade essencial estruturante do procedimento inspetivo.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 31.03.2024, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por P……………… N………….., S.A. (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), atinente ao exercício de 2018.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“I - Decidiu a Meritíssima Juiz a quo pela procedência dos autos de Impugnação e, em consequência anulou a liquidação impugnada e julgou procedente o pedido de condenação da Fazenda Pública no pagamento de juros indemnizatórios, por entender, em síntese, o seguinte;

II - (…) verifica-se que no primeiro procedimento (onde terão sido recolhidos os elementos externos), não houve notificação prévia por ter sido considerado um procedimento que visou apenas a consulta, recolha e cruzamento de documentos destinados à confirmação da situação tributária do sujeito passivo; e no segundo procedimento (onde os elementos recolhidos foram aproveitados) não houve notificação prévia por ter sido considerado um procedimento interno. (…);

III - Face ao que antecede, não tendo a Impugnante sido notificada nos termos e para os efeitos do artigo 49.º do RCPIT nem tendo ficado demonstrado estar-se perante uma das situações elencadas no artigo 50.º do RCPIT de dispensa da notificação prévia do procedimento de inspeção, foi preterida uma formalidade legal que inquina o procedimento onde os elementos recolhidos são utilizados;

IV - Conclui-se, portanto, que a liquidação impugnada é ilegal, devendo, por isso ser anulada.”;

V - Salvo melhor e douta opinião, a Fazenda Pública não concorda com a douta sentença pelas razões que se indicam;

VI - Em 15-05-2019, a Impugnante apresentou pedido de reembolso de IVA relativamente ao período respeitante ao primeiro trimestre de 2019 (que deu origem à OI201900600 interna);

VII - Conforme consta nas informações inclusas no procedimento inspetivo, foi emitido despacho externo – DI201901080 – com o objetivo de aferir a legitimidade de um reembolso de IVA solicitado pela Impugnante, ora Recorrida (vide informação a fls. 1 do processo inspetivo).;

VIII - Esse despacho foi emitido nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 46.º do RCPIT, para recolha, consulta e cruzamento de elementos dos exercícios 2016 a 2019, tendo sido recolhidos diversos elementos contabilísticos (balancetes analíticos, ficheiros SAF-T dos lançamentos contabilísticos e respetivos documentos de suporte – vide informação a fls. 107 do processo inspetivo e documentos a fls. 56 e ss.). O despacho foi devidamente assinado pela contabilista certificada (fls. 2);

IX) - Tendo sido detetadas diversas irregularidades em sede de IVA foram emitidas as ordens de serviço internas parciais n.º OI201900776 (2016), OI201900777 (2017) e OI201900778 (2018) para se proceder à devida correção, pelo que não teria a Impugnante, ora Recorrida de ser notificada nos termos e para os efeitos do n. 1 do artigo 49.º do RCPIT;

X) - Acontece que da base de dados dos vários sistemas informáticos da AT e demais documentos juntos pela AT constatou-se também que existiam faltas declarativas em sede de IRC (falta de entrega das declarações modelo 22) nos exercícios de 2017 e 2018, situação que foi notificada em 15-7-2019 ao administrador da Impugnante para regularização (certidão de notificação a fls. 8);

XI - Ora, não tendo sido regularizadas as faltas detetadas foi proposta a emissão de ordens de serviço internas, e bem, de âmbito parcial para IRC, abrangendo os referidos exercícios, tendo sido emitidas as já referidas ordens de serviço OI201901092 e OI201901093;

XII - Verifica-se assim que, em alternativa à alteração dos fins, âmbito ou extensão do procedimento de inspeção tributária externo, optou a AT, após a conclusão dos atos inspetivos, por abrir um procedimento de inspeção autónomo, que classificou como interno, para, com base nos elementos recolhidos no decurso do procedimento inspetivo anterior, proceder à análise desta última situação tributária da Impugnante;

XIII - Ora, considerando que o artigo 13.º do RCPITA dispõe que:
“Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:
a)Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”;

XIV - Uma vez que no caso sub judice, os atos de inspeção no âmbito das OI201901092 e OI201901093 foram efetuados exclusivamente nos serviços da administração tributária, com recurso à análise dos elementos anteriormente obtidos ao abrigo do despacho externo DI201901080, juntamente com elementos obtidos através da consulta aos sistemas informáticos da AT (de onde foi possível extrair qual a natureza dos rendimentos e a sua quantificação), portanto elementos detidos e obtidos pela AT, sem necessidade de deslocação a instalações da Impugnante ou de terceiros com ela relacionados, não restam dúvidas de que o procedimento deverá ser qualificado como interno;

XV - Com efeito, é pacifico e tem suporte jurisprudencial que o procedimento será interno quando com recurso aos elementos detidos pela AT, englobando atividades de constatação e comprovação para verificação da exatidão do declarado pelo sujeito passivo;

XVI - Aliás, mostra bem a razão que nos assiste a circunstância da sentença ora recorrida se sustentar no acordão do STA de 17-12-2019, processo n.º ……/13.8BEMDL, proferido antes da alteração introduzida à alínea a) do artigo 13.º do RCPIT, pelo Decreto-Lei n.º 36/2016 de 01 de julho, o qual veio clarificar e alargar o conceito de procedimento interno de inspeção, o que não foi tido em conta pela douta sentença, não obstante a situação em causa cair já no domínio da nova redação daquele preceito;.

XVII - Face ao supra exposto, por se tratar de procedimento de inspeção interna, não teria a Impugnante, ora Recorrida de ser notificada nos termos e para os efeitos do artigo 49.º, n.º 1 do RCPIT;

XVIII) - Caso assim não se entenda, vindo por isso a considerar-se que o procedimento tributário em análise foi incorretamente classificado pela AT como tendo natureza interna, porque baseado em documentos recolhidos junto da contabilidade da Impugnante (embora à data da sua abertura já na posse da AT por via de um procedimento externo anterior);

XIX - E verificando-se que a Impugnante apenas teve conhecimento da existência do procedimento inspetivo de que resultou a liquidação impugnada aquando da notificação do projeto de relatório da inspeção tributária na pessoa da sua mandatária (vide notificação a fls. 22 do processo inspetivo), o que, na sua ótica, se reconduziria à preterição de uma formalidade legal essencial daquele procedimento;

XX) - Ainda assim somos da opinião que sempre há que questionar se a falta de notificação do respetivo início é suscetível de gerar a anulabilidade da liquidação subsequente;

XXI) E a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem vindo de há muito a entender que a falta de notificação do início da inspeção externa apenas gerará invalidade se se demonstrar que a entidade inspecionada não teve conhecimento do procedimento e do seu objeto a tempo de sobre o mesmo se poder pronunciar;

XXII) - Assim, nas palavras do douto Acórdão proferido pelo STA no processo n.º 1095/15, de 29.06.2016:
“I - Ainda que o procedimento de inspecção tenha sido erradamente qualificado como interno, quando o deveria ter sido como externo, esse erro irreleva para a decisão a proferir se não puder concluir-se ter sido preterida qualquer formalidade essencial imposta por esta última modalidade de inspecção.
II - A falta da notificação prévia prevista no art. 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento e do seu objecto a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição durante o procedimento inspectivo”.;.

XXIII - Revertendo para o caso dos autos, dir-se-á que ainda que o procedimento de inspeção tributária aberto pelas ordens de serviço internas devesse ter sido classificado como externo, a falta de notificação do seu início não consubstancia omissão de formalidade essencial, na medida em que a Impugnante teve a possibilidade de nele intervir, notificada que foi para exercer o direito de audição sobre o projeto de relatório, nos termos do disposto no artigo no artigo 60.º, do RCPIT;

XXIV - Consequentemente, e contrariamente ao entendimento da douta sentença recorrida, deverá o ato impugnado manter-se na ordem jurídica.

XXV - Assim, ao decidir pela procedência da Impugnação, incorreu a Meritíssima Juiz a quo em erro de julgamento, por ofensa dos preceitos dos artigos 54.º da LGT, 13.º, 46.º, 49.º e 50.º do RCPIT.

Pelo exposto e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.”

A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do presente recurso.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, uma vez que a inspeção realizada à Recorrida foi interna?

b) Há erro de julgamento, dado que, ainda que se considere que a inspeção realizada foi externa, não foi preterida formalidade essencial?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) A Impugnante está coletada pela atividade principal “compra e venda de bens imobiliários” (código CAE 68100) e pelas atividades secundárias “administração de imóveis por conta de outrem” (código CAE 68321), “arrendamento de bens imobiliários” (código CAE 68200) e “alojamento mobilado para turistas” (código CAE 55201) – cfr. fls. 254-281 do sitaf;

B) Em 15-05-2019, a Impugnante apresentou pedido de reembolso de IVA relativamente ao período respeitante ao primeiro trimestre de 2019 – cfr. fls. 27 a 38 do registo do sitaf n.º …………;

C) Na sequência do requerimento referido na alínea antecedente, a Impugnante foi alvo de uma ação de inspeção tributária, de âmbito parcial (IVA), aos exercícios de 2016, 2017, 2018 e 2019 – 3T, realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Faro, a coberto das ordens de serviço n.ºs OI201900600, OI201900776, OI201900777 e OI201900778, que teve início em 15-07-2019 e que a AT qualificou como interna – cfr. relatório de inspeção a fls. 65 a 79 do registo do sitaf n.º ………..;

D) A Impugnante não foi notificada do início da inspeção – facto não controvertido;

E) Em 29-08-2019, no âmbito do procedimento inspetivo mencionado em C), foi elaborado relatório de inspeção tributária, de onde se extrai, designadamente, o seguinte:

«Texto no original»

– cfr. relatório de inspeção a fls. 65 a 79 do registo do sitaf n.º ………….;

F) No âmbito do procedimento inspetivo referido na alínea que antecede, a documentação de suporte à contabilidade foi consultada pela inspetora tributária no escritório da contabilista da Impugnante – depoimento da testemunha Dulce ……………….;

G) Foi a contabilista da Impugnante que forneceu aos serviços inspetivos os elementos por estes solicitados no âmbito da referida ação de inspeção - depoimento da testemunha Dulce ………………..;

H) Os elementos solicitados no âmbito da referida ação de inspeção respeitavam a toda a contabilidade da Impugnante - depoimento da testemunha Dulce ………………..;

I) Na sequência do procedimento inspetivo referido nas alíneas antecedentes, verificaram-se faltas declarativas do sujeito passivo, em sede do IRC, nomeadamente a falta de entrega da declaração de rendimentos modelo 22 dos exercícios de 2017 e 2018 – cfr. informação a fls. 2 do registo do sitaf n.º ………..;

J) Em 08-11-2019, pelo Diretor de Finanças de Faro, foi determinada a emissão de ordens de serviço internas de âmbito parcial (IRC), com extensão aos exercícios de 2017 e 2018 – cfr. fls. 2 do registo do sitaf n.º ………….;

K) Em 03-01-2020, foi elaborado relatório de inspeção tributária, de onde se extrai, designadamente, o seguinte:

(…)

«Texto no original»

(…)

«Texto no original»

(…)

- cfr. fls. 97 a 169 do registo do sitaf n.º…………..

L) Em 15-01-2020, foi emitida, em nome da Impugnante, a liquidação oficiosa de IRC n.º ……………………263, referente ao ano de 2018, no valor de € 51.517,40 – cfr. documento n.º 1 junto à petição inicial;

M) A Impugnante procedeu ao pagamento da liquidação impugnada em sede executiva, em 13-04-2020, pagando a quantia exequenda, no valor de €52.165,58 – cfr. documento n.º 3 junto com a petição inicial.

N) Em 10-12-2021, a Impugnante apresentou pedido de revisão da matéria tributável fixada – cfr. fls. 308-342 do sitaf;

O) A Impugnante não obteve qualquer resposta relativamente ao pedido de revisão oficiosa efetuado – facto não controvertido”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, decorreu da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como da prova testemunhal produzida em audiência, tal como se fez referência a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

A testemunha Dulce ………………….., que foi contabilista certificada da Impugnante entre 2015 e 2021, demonstrou ter um conhecimento direto dos factos sobre os quais foi inquirida, em razão da sua ligação profissional com a Impugnante, e depôs de forma clara, congruente e credível.

Afirmou, de forma credível, que acompanhou a inspetora tributária no decurso do procedimento inspetivo.

Referiu que, no âmbito do procedimento inspetivo foi pedida toda a contabilidade de 2016 a 2018.

Afirmou, credivelmente, que a documentação de suporte à contabilidade foi consultada pela inspetora no escritório da contabilista. Esclareceu que a Inspetora foi lá mais do que uma vez.

Mais esclareceu que essas consultas foram efetuadas no âmbito da inspeção de IVA e que a liquidação oficiosa do IRC foi feita com base nos elementos que já haviam sido pedidos em sede de IVA”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:

P) Foi proferido, a 25.06.2019, despacho (DI201901080), ordenando a realização de ação inspetiva de consulta, recolha e cruzamento de elementos relativos à Impugnante (cfr. fls. 3 do processo administrativo – documento com o número de registo no SITAF neste TCAS …………).

Q) Não foi enviada carta-aviso à Impugnante para lhe dar conhecimento do início da ação inspetiva mencionada em P) (não controvertido; dos autos nada consta).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao qualificar o procedimento inspetivo como interno (o que teve reflexos no tocante ao alegado quanto à falta de notificação do início da inspeção). Considera, ademais, que, mesmo que seja de considerar que o procedimento foi externo, a preterição da formalidade em causa não é invalidante.

Vejamos, então.

O apuramento da situação tributária dos contribuintes pode ser feito através de atos de inspeção levados a cabo pela administração tributária (AT).

O procedimento inspetivo é, pois, um procedimento tributário, como decorre, desde logo, do art.º 54.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária (LGT).

O n.º 6 desta mesma disposição legal remete para diploma próprio a regulamentação do “exercício do direito de inspeção tributária” [o Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)].

Atentando no n.º 1 do art.º 2.º do RCPITA, “[o] procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributária, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias”.

Como resulta do preâmbulo do DL n.º 413/98, de 31 de dezembro, cujo anexo constitui o RCPIT:

“[T]endo em conta a natureza da actividade inspectiva, a Administração não poderá estar subordinada a uma sucessão imperativa e rígida de actos. Porém, esta circunstância não prejudica a consagração de regras gerais de actuação visando essencialmente a organização do sistema, e consequentemente a garantia da proporcionalidade aos fins a atingir, da segurança dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões, evitando a proliferação de litígios inúteis.

No respeito por estes princípios, a Lei Geral Tributária acolheu uma concepção da inspecção tributária harmónica com o moderno procedimento administrativo e as garantias dos cidadãos.

Assim, a natureza do presente diploma é essencialmente regulamentadora não se pretendendo alterar os actuais poderes e faculdades da inspecção tributária nem os deveres dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que se mantêm integralmente em vigor.

No entanto, a melhor sistematização da acção fiscalizadora incrementará a sua eficiência e eficácia, bem como a segurança do procedimento de inspecção, tendo sido diminuída a margem de discricionaridade(sublinhados nossos).

O RCPITA define, pois, os termos em que deve ser levado a cabo o procedimento inspetivo, consagrando, designadamente, desde os princípios globais em termos de atuação (cfr. art.ºs 5.º a 10.º), à classificação dos procedimentos (cfr. art.ºs 12.º a 15.º), à competência para os mesmos (cfr. art.ºs 16.º a 19.º), ao planeamento e seleção (cfr. art.ºs 23.º a 27.º) e aos termos do procedimento propriamente dito (cfr. art.ºs 28.º e ss.).

Especificamente quanto à classificação dos procedimentos de inspeção tributária, o RCPITA prevê várias classificações, sob diversos prismas.

Concretizando, e concretamente quanto ao lugar do procedimento, o mesmo pode ser (cfr. art.º 13.º do RCPITA):

b.1. Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da AT, através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;

b.2. Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.

Uma ação inspetiva interna abrange os casos em que a AT leva a efeito toda a sua atividade nos seus serviços, ou seja, os casos em que atua com base na informação de que dispõe, fruto, designadamente, das obrigações declarativas a cargo dos contribuintes. Ou seja, neste âmbito, considerando a informação significativa de que a AT dispõe, por força das mencionadas declarações, há uma atuação com base nos elementos ali coligidos e analisados. É ainda de sublinhar que a alteração decorrente do DL n.º 36/2016, de 01 de julho, faz ainda menção aos documentos obtidos pela AT no âmbito do procedimento.

No caso das inspeções de âmbito externo, as mesmas abrangem todas aquelas que, total ou parcialmente, se efetuem, designadamente, nas instalações dos sujeitos passivos ou de terceiros.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

Do ponto de vista factual, temos o seguinte:

a) Na sequência de um pedido de reembolso de IVA, apresentado pela Recorrida, esta foi alvo de procedimento inspetivo de consulta, recolha e cruzamento de elementos, mencionado em P), no qual não houve qualquer notificação ao abrigo do art.º 49.º do RCPITA;

b) Houve consulta à documentação de suporte à contabilidade, no escritório da contabilista da Recorrida, que forneceu elementos à AT relativos à mencionada contabilidade;

c) Subsequentemente, foi realizada ação inspetiva, qualificada como interna e mencionada em C), não tendo, também neste contexto, sido a Recorrida notificada do início da inspeção;

d) Posteriormente, foi determinada a emissão de ordens de serviço internas de âmbito parcial (IRC), com extensão aos exercícios de 2017 e 2018, que veio dar origem ao relatório de inspeção tributária (RIT) mencionado em K);

e) Os elementos contabilísticos analisados, no âmbito da apreciação do pedido de reembolso de IVA, foram considerados nesta ação inspetiva

Não é controvertido que, em todos os procedimentos em causa, a Recorrida não foi notificada nos termos do art.º 49.º do RCPITA, desde logo porque dois deles foram considerados procedimentos internos. No caso do procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos, procedimento externo ope legis (cfr. art.º 63.º, n.º 4, da LGT), nada nos autos consta sobre o motivo inerente a essa falta de notificação. No entanto, adiantamos que, a este respeito, aderimos ao entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.12.2019 (Processo: 072/13.8BEMDL), de que, neste tipo de procedimento, não pode ser dispensada a notificação prévia ao abrigo do art.º 50.º, n.º 1, alínea a), do RCPITA, quando se dirija ao sujeito passivo inspecionado, nos termos e nas circunstâncias explanadas no mencionado aresto.

Assim, tivemos um procedimento externo, onde foram obtidos dados da contabilidade da Recorrida, no qual não houve qualquer notificação nos termos do art.º 49.º do RCPITA nem há notícia nos autos de que a mesma tenha sido dispensada fundamentadamente.

Não é igualmente controvertido que, no procedimento que deu origem à liquidação impugnada, foram considerados esses elementos recolhidos em procedimento anterior.

Ora, a classificação que é feita pelos serviços da AT não é vinculativa, cumprindo aferir o tipo de diligências consideradas, para se concluir se, de facto, se trata de ação inspetiva de natureza externa ou interna.

Neste contexto, não há dúvidas de que a AT recolheu externamente elementos, por contacto com a contabilista da Recorrida, elementos esses atinentes à contabilidade.

Esses elementos recolhidos foram, como é claro, obtidos externamente. E foram elementos de natureza externa obtidos em procedimento onde nunca foi dado cumprimento ao disposto no art.º 49.º do RCPITA.

Ou seja, no caso dos autos, foram utilizados elementos de origem externa em procedimentos nos quais nunca houve previamente notificação ao abrigo do art.º 49.º do RCPITA.

Atenta a esta fonte externa dos elementos, em procedimentos com estas caraterísticas que descrevemos, não podemos deixar de considerar, tal como o Tribunal a quo, que o procedimento de inspeção em causa foi externo.

Trata-se de elementos adicionais recolhidos junto de terceiros e em diligências realizadas fora das instalações da AT. O facto de, após essa recolha e após estarem na posse da AT, tais elementos voltarem a ser utilizados no âmbito de outra ação inspetiva não faz deles elementos de informação interna. Há que ir à origem dos mesmos e esta é externa [cfr., a este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.12.2019 (Processo: 072/13.8BEMDL)].

A alteração ocorrida ao art.º 13.º, al. a), do RCPITA, em 2016, não pode ter o alcance que a Recorrente lhe reconhece, desde logo porque, sem dúvida, os elementos da contabilidade obtidos chegaram ao conhecimento da AT por via de diligências externas e em procedimento em que o contribuinte nunca foi notificado ao abrigo do art.º 49.º do RCPITA.

Esta alteração tem origem na autorização legislativa constante da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2016), de cujo art.º 181.º resulta que:

“1 - Fica o Governo autorizado a alterar os artigos 13.º, 38.º e 43.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (…).

2 - O sentido e a extensão das alterações a introduzir no RCPITA, nos termos da autorização legislativa prevista no número anterior, são os seguintes:

a) Clarificar que o procedimento de inspeção interno compreende a análise formal e de coerência de documentos detidos pela AT ou obtidos no âmbito do referido procedimento”.

Ou seja, o que o legislador pretendeu que ficasse clarificado era que é interno o procedimento que implique a análise de documentos detidos pela AT ou obtidos pela mesma nesse procedimento.

No entanto, o que aqui aconteceu foi que a AT utilizou elementos que obteve em procedimento externo, onde nunca notificou a Recorrida nos termos e para os efeitos do art.º 49.º do RCPITA, e daí elaborou o relatório.

Os elementos externos não foram sequer obtidos no procedimento classificado como interno, foram obtidos previamente em procedimento anterior de origem externa. Aliás, resulta expressamente do RIT que se trataram dos elementos inerentes à credenciação do procedimento.

Como tal, neste contexto, a ação inspetiva que deu origem às liquidações impugnadas foi externa, porquanto baseada em documentos obtidos externamente em procedimento anterior no âmbito do qual o contribuinte não foi notificado nos termos do art.º 49.º do RCPITA.

Posto isto, cumpre, então, aferir se a falta de notificação, nos termos e para os efeitos do art.º 49.º do RCPITA, representa, in casu, preterição de uma formalidade essencial.

In casu, consideramos que a resposta é afirmativa.

Isto porque, como referimos, no primeiro procedimento, nunca houve notificação, nos termos do art.º 49.º do RCPITA (nem, naturalmente, justificada uma eventual dispensa).

Logo, o que aqui ocorre é que temos uma sucessão de procedimentos, onde nunca, em momento algum e em nenhum deles, foi assegurada a notificação ao abrigo do art.º 49.º do RCPITA. E é essa sucessão de falta de notificações que implica que não se possa considerar que a formalidade preterida não foi essencial. Outro entendimento implicaria que uma mera duplicação de procedimentos, um para consulta e outro para correção, levasse a que nunca fosse feita a notificação ao abrigo do art.º 49.º do RCIPTA, o que seria uma diminuição das garantias dos contribuintes que não pode ser acolhida.

Seguimos, de perto, a este respeito o já citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.12.2019 (Processo: 072/13.8BEMDL), onde se refere:

“[T]endo a carta-aviso a que alude aquele dispositivo legal a finalidade de evitar que o sujeito passivo inspecionado seja surpreendido com ações inspetivas externas com que não contava, e sendo as diligências externas, no caso, anteriores à própria inspeção em causa, só há verdadeiramente surpresa se o sujeito passivo tiver sido surpreendido com tais diligências nos procedimentos respetivos.

Dizendo de outro modo: o procedimento inspetivo que se baseie em elementos recolhidos anteriormente em outros procedimentos inspetivos só padece de ilegalidade por preterição da formalidade a que alude aquele artigo 49.º se a recolha desses elementos nesses outros procedimentos estiver, ela própria, enfermada dessa ilegalidade.

Ou ainda de outro modo: nos casos em que as diligências externas são efetuadas num procedimento e aproveitadas noutro procedimento, relevam também neste procedimento as diligências tomadas no outro com vista a evitar que o sujeito passivo inspecionado fosse surpreendido por estas.

(…) [O primeiro] procedimento inspetivo (…) teve, no mais, origem em «consulta, recolha e cruzamento de elementos» efetuadas a coberto do Despacho DI200801675. O qual (…) também não teve notificação prévia a coberto da alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária.

E o que daqui se retira é que, no primeiro procedimento (onde terá sido recolhida a esmagadora maioria dos elementos externos), não houve notificação prévia por ter sido considerado um procedimento que visou apenas a consulta, recolha e cruzamento de documentos destinados à confirmação da situação tributária do sujeito passivo; e no segundo procedimento (onde os elementos recolhidos foram aproveitados) não houve notificação prévia por ter sido considerado um procedimento interno.

Ora, um tal procedimento nunca poderia ser agora validado porque tal significaria que a norma podia ser sempre contornada pela Administração Tributária recorrendo à duplicação de procedimentos.

Não sendo de admitir como solução razoável que o legislador tivesse instituído um mecanismo que pudesse eliminar totalmente a efetividade de uma garantia procedimental também instituída e devendo o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais adequadas, a alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º deve ser interpretada no sentido de que não há lugar à notificação prévia do procedimento de inspeção quando a atividade procedimental se reconduza apenas à consulta, recolha ou cruzamento de elementos junto de outros sujeitos passivos, com quem o sujeito passivo inspecionado mantenha relações económicas – cfr. o artigo 46.º, n.º 7, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária.

O que significa, na prática que na recolha de elementos no primeiro procedimento não poderia ter sido prescindida a notificação prévia com base naquela alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º. Porque se reconhece expressamente no relatório que a inspeção tributária resultante do Despacho n.º DI200801675 foi dirigida ao sujeito passivo inspecionado.

E, assim, sendo, os elementos assim recolhidos junto do sujeito passivo inspecionado também não poderiam ser aproveitados noutro procedimento com vista às correções impugnadas. Porque a instrução do procedimento padece de uma ilegalidade em que a Administração Tributária incorreu na origem, aquando da recolha desses elementos” (sublinhados nossos).

Assim, esta ilegalidade originária reflete-se no procedimento que deu origem às liquidações impugnadas.

Chama-se ainda à colação os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 06.05.2015 (Processo: 01101/15) e de 19.09.2018 (Processo: 01460/17). Refere-se no primeiro, a propósito do alegado quanto à possibilidade de exercício do direito de audição:

“O direito de audição é um direito de exercício facultativo para os contribuintes, cujo não exercício não importa a perda de direitos nomeadamente de contenciosamente reagirem contra os actos tributários ou em matéria tributária que sejam lesivos dos seus interesses patrimoniais e não hajam sido praticados com observância estrita da lei. De todo o modo quando foi dado cumprimento ao disposto no art.º 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária por definição estavam já praticados os actos de inspecção tornando impossível qualquer oposição à sua realização que já tinha tido lugar.

(…) Tais formalidades são formalidades previstas na lei como formalidades essenciais, na ausência de disposição legal em contrário, estruturantes do procedimento inspectivo, que uma vez não observadas serão invalidantes dos posteriores termos procedimentais, designadamente da liquidação posterior que neles se suporta, dado não poder concluir-se, face à prova produzida, com um grau de certeza razoável, que o resultado a atingir sempre seria o mesmo, caso a formalidade tivesse sido cumprida” (sublinhados nossos).

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 12 de setembro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Patrícia Manuel Pires – em substituição)

(Rui A. S. Ferreira)