Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:30/17.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/23/2024
Relator:LUÍS FERNANDO BORGES FREITAS
Descritores:INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUIZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
Sumário:I - Os efeitos do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de dezembro, esgotaram-se com a transição de processos por ele determinada.
II - O Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28 de agosto, que atribuiu ao juízo administrativo social a competência para conhecer de todos os processos relativos ao exercício do poder disciplinar e já não apenas aqueles que emergissem do vínculo de trabalho em funções públicas, nada estabeleceu relativamente aos processos pendentes.
III - Vale, por isso, a regra segundo a qual a competência se fixa no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
IV - O presente litígio reporta-se a um processo disciplinar instaurado à Recorrente enquanto aluna do Curso de Mestrado Integrado em Engenharia Biomédica e Biofísica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
V - A qualidade de aluna não produz qualquer vínculo de trabalho em funções públicas, pelo que o conhecimento do presente processo é da competência do Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
A… interpôs recurso jurisdicional da decisão de 8.3.2022 do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou aquele juízo incompetente para conhecer da ação administrativa que intentou contra a FACULDADE DE CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA.

Partindo de muitos equívocos na leitura das normas aplicáveis, que condicionaram os estritos termos das respetivas conclusões, este tribunal de apelação, dando efeito útil ao recurso apresentado, releva que a Recorrente assume que é o «despacho de 08.03.2022 de que se recorre», o qual errou no seu julgamento, na medida em que, «tratando-se de uma questão disciplinar em que, portanto, a Faculdade e seus órgãos dirigentes são havidos como empregadores e os estudantes são havidos como trabalhadores – para mais, sempre se entendeu a situação de estudante como uma profissão, no caso, exercida numa Faculdade de uma Universidade pública –, é perfeitamente justificável, plausível, que o despacho de 15.02.2021 tenha sustentado, nesta situação nova de surgimento de um Juízo Administrativo Social no Tribunal, que a questão lhe fosse aforada, por se tratar, precisamente, de um litígio “emergente do vínculo de trabalho em funções públicas”».

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

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Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Ministério Público não emitiu parecer.
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Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.


II
A questão submetida à apreciação deste tribunal de apelação consiste em determinar se a decisão recorrida errou ao concluir pela incompetência material do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa para conhecer da ação administrativa instaurada, por ter considerado ser da competência do Juízo Administrativo Comum do mesmo tribunal.


III
É a seguinte a factualidade a considerar:

A) Em 4.1.2017 a Recorrente intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ação administrativa contra a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, aqui Recorrida (referência SITAF 004485490);

B) Através dessa ação a Recorrente impugna diversos atos praticados no âmbito do processo disciplinar que a Recorrida instaurou contra si, na qualidade de aluna do Curso de Mestrado Integrado em Engenharia Biomédica e Biofísica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (referência SITAF 004485490);

C) Por despacho de 15.2.2021 a Senhora Juíza do Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa considerou que «o objeto dos presentes não se enquadra no juízo administrativo comum mas antes no juízo administrativo social, por emergir de um vínculo de trabalho em funções públicas, cujo controlo jurisdicional impende sobre o Juízo Administrativo Social deste Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa», pelo que «deverão os presentes autos ser redistribuídos neste último» (referência SITAF 004485537);

D) Por despacho de 8.3.2022 a Senhora Juíza do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa considerou que esse juízo «não é o juízo materialmente competente para conhecer da presente ação, tal como configurada pela A., na medida em que não está em causa litígio “emergente do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social” ou cuja matéria lhe seja deferida por lei». Nesse sentido considerou competente o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (referência SITAF 004485542).



IV
1. A Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que consubstanciou a décima segunda alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, veio prever, mediante alteração ao artigo 9.º do referido Estatuto, a possibilidade de serem criados os seguintes juízos de competência especializada administrativa:

a) Juízo administrativo comum;
b) Juízo administrativo social;
c) Juízo de contratos públicos;
d) Juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território.

2. Por outro lado, aditou ao mesmo Estatuto o artigo 44.º-A, no qual se estabeleceu, para o que agora releva, o seguinte:

«1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;
b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;
(…)».

3. Nessa linha veio a ser publicado o Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de dezembro, que procedeu à concreta criação dos juízos de competência especializada. E fê-lo, nomeadamente, no Tribunal Administrativo de Círculo. Na verdade, pode ler-se no artigo 2.º daquele decreto-lei o seguinte:

«1 — O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa integra os seguintes juízos de competência especializada:

a) Juízo administrativo comum;
b) Juízo administrativo social.

2 — O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa integra ainda um juízo de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos Tribunais Administrativos de Círculo de Almada, Lisboa e Sintra».

4. Por sua vez, estabeleceu-se ainda no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de dezembro, que «[a] instalação e a entrada em funcionamento dos juízos de competência especializada são definidas por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça», o que veio a ser efetuado pela Portaria n.º 121/2020, de 22 de maio, a qual determinou que a entrada em funcionamento dos juízes especializados ocorresse no dia 1.9.2020. Portanto, nesta data, e por força do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de dezembro, todos os processos pendentes no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa transitaram «para os juízos de competência especializada, de acordo com as novas regras de competência material».

5. À luz do quadro legal acima transcrito a questão a resolver é muito simples. Na verdade, ao juízo administrativo social cabe conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação. Ora, o presente litígio reporta-se a um processo disciplinar instaurado à Recorrente enquanto aluna do Curso de Mestrado Integrado em Engenharia Biomédica e Biofísica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A qualidade de aluna, como é evidente, não produz qualquer vínculo de trabalho em funções públicas - como decorre, desde logo, do disposto nos artigos 6.º e 10.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho -, pelo que o conhecimento do presente processo é da competência do Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

6. É certo que o Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28 de agosto – posterior, portanto, à data da interposição do presente recurso -, introduziu, para o que nos ocupa, uma alteração relevante, na medida em que atribuiu ao juízo administrativo social a competência para conhecer de todos os processos relativos ao exercício do poder disciplinar e já não apenas aqueles que emergissem do vínculo de trabalho em funções públicas. No entanto, e relativamente aos processos pendentes, nada se estabeleceu. Vale, por isso, a regra constante do artigo 5.º/1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos da qual «[a]competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente» (note-se que não há que convocar – para este momento - o disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de dezembro, na medida em que os seus efeitos se esgotaram com a transição de processos por ele determinada).

V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, que considerou competente para o julgamento o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Custas pela Recorrente (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil).



Lisboa, 23 de maio de 2024.

Luís Borges Freitas – relator
Rui Fernando Belfo Pereira – 1.º adjunto
Frederico de Frias Macedo Branco – 2.º adjunto