Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:4544/23.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/09/2024
Relator:JOANA MATOS LOPES COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
SUBSTITUIÇÃO DA PETIÇÃO
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
III - A substituição da petição por requerimento de providência cautelar, prevista no n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, pressupõe, não só que se revele indispensável uma célere decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também que seja possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

R…, R…, T… e R…, de nacionalidade norte-americana, residentes nos Estados Unidos da América, intentaram intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna e a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P.. Pedem a condenação das entidades demandadas, no prazo máximo de 15 dias, a praticarem o acto administrativo de agendamento da recolha de dados biométricos dos autores, com vista à concessão de autorização de residência para actividade de investimento, bem como a disponibilizar-lhes os títulos de residência correspondentes, e, subsidiariamente, a convolação da presente intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, em providência cautelar, com pedido de decretamento provisório da providência de condenação da entidade demandada a, no prazo máximo de 15 dias, praticar todos os actos materiais necessários à decisão de concessão de autorização de residência dos autores. Alegam, para tanto e em síntese, que: (i) Com vista à obtenção de títulos de residência em Portugal, submeteram pedidos para concessão de autorização de residência para actividade de investimento, tendo o pedido do primeiro autor sido feito com base numa operação de investimento em Portugal, de aquisição de unidades de participação no Fundo F…, no valor de 350.000,00€, preenchendo os requisitos do artigo 3.º, n.º 1, alínea d), subalínea vii), da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, tendo o mesmo diligenciado pela obtenção de toda a documentação necessária à concessão de autorização de residência e submetido o processo na plataforma online de “ARI” em 28.12.2021; (ii) Em 12 e 14 de Abril de 2022, os segundo a quarto autores submeteram os pedidos de reagrupamento familiar na plataforma online de “ARI” e efectuaram o pagamento das respectivas taxas de análise de cada processo; (iii) Desde 28.12.2021 que os autores aguardam uma resposta aos processos submetidos, sendo os terceiro e quarto autores crianças em idade escolar (com 15 anos e 13 anos), em relação aos quais os primeiro e segundo autores têm de planear a mudança de país, de forma a provocar a menor interrupção possível nos estudos daqueles, tendo os autores planeado a mudança em função dos prazos legalmente estipulados; (iv) A entidade demandada está obrigada à decisão sobre o pedido de concessão dentro do prazo legal de 90 dias e há quase dois anos que os autores aguardam pela decisão dos seus pedidos; (v) Os autores vêem com grande incerteza o seu futuro e não podem gozar da liberdade que os fez optar por Portugal como destino para a sua vida, uma vez que se encontram limitados nas suas deslocações dentro e fora do país que escolheram para investir e residir, encontrando-se numa ansiedade indescritível e sentindo-se absolutamente deixados à sua sorte, apesar de terem cumprido todos os requisitos legais que lhes foram exigidos, vendo-se desesperados, não conseguindo obter qualquer resolução para os seus processos em tempo útil, atraso este que tem efeitos nefastos na sua vida, pois que pretendiam viver em Portugal, registar as crianças em escolas em Portugal e aqui estabelecer o seu negócio; (vi) O recurso ao presente meio de garantia processual é feito ao abrigo do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado na nossa Constituição, uma vez que a sentença provisória se revelará estruturalmente inidónea, o que evidencia a indispensabilidade de uma decisão de mérito pois a falta de um título de residência poderá pôr em causa o reduto básico que se liga ao princípio da dignidade da pessoa humana, dos direitos à liberdade, à livre deslocação no território nacional, à segurança, à identidade pessoal, a procurar trabalho, a trabalhar e à estabilidade no trabalho ou à saúde; (vii) O uso de meios cautelares, nomeadamente antecipatórios, é inidóneo, pois a atribuição de uma providência desse tipo implicaria a atribuição efectiva, durante o tempo em que decorresse o processo principal, da autorização de residência; (viii) Frente à situação em apreço, os autores podem ver-se coibidos, na vida quotidiana, com receio de uma possível expulsão, de invocar um apoio policial, caso necessitem, de se deslocar livremente, ou de se apresentar e celebrar de negócios civis básicos, ou de deslocar-se a um hospital, ou de tentar alcançar trabalho, ou, ainda, de reclamar as devidas condições para o trabalho que consiga angariar nessa situação; (x) Caso o Tribunal não considere reunidas as condições para a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, desde já se requer a convolação da forma processual urgente em decretamento urgentíssimo provisório de providência cautelar previsto no artigo 131.º do CPTA.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a rejeitar liminarmente a petição por falta de personalidade judiciária da primeira entidade demandada e por não verificação dos requisitos do artigo 109.º do CPTA.
Os autores interpuseram o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“1) Vem o presente Recurso interposto do despacho liminar proferido nos autos supra identificados, o qual decidiu, em suma: a) A falta de personalidade judiciária da 1.ª Requerida (Ministério da Administração Interna – MAI). b) A rejeição do requerimento inicial apresentado pelos requerentes por não estarem preenchidos os pressupostos do artigo 109.º do CPTA.
2) O artigo 109º n.º 1 do CPTA dispõe que “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.”
3) O Tribunal a quo considerou que a 1º Requerida (Ministério da Administração Interna – MAI) não é dotada de personalidade judiciária.
4) Analisada a decisão recorrida, resulta evidente que a mesma padece de uma clara falta de fundamentação, o que determina a nulidade da decisão recorrida nos termos do disposto no art. 645º n.º 1 a) do CPC aplicável ex vi do art. 1.º do CPTA.
5) O tribunal a quo considerou, sem fundamento, a ausência de personalidade judiciária da 1.º Requerida, afastando e contrariando expressamente o disposto no art. 8.º A n.º 3 do CPTA.
6) Da decisão não consta qualquer fundamento legal para tal consideração.
7) Ainda que se entendesse que a 1.ª Requerida não é dotada personalidade judiciária, cabia ao Tribunal a quo a sanação desta irregularidade, nos termos do disposto no n.º 5 do art. 8.º A do CPTA.
8) Sanação que não ocorreu, nem tão pouco a decisão se pronuncia sobre essa possibilidade por parte dos Recorrentes.
9) Considera o tribunal a quo que a ação de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias apenas poderá ser utilizada como meio excecional de resposta à inércia da Administração Pública quando: i. esteja em causa a tutela de um direito fundamental; e ii. seja indispensável que o reconhecimento desta tutela se demonstre, por si só, urgente.
10) O SEF/AIMA dispõe nos termos do disposto no n.º 5 do art.82.º da Lei 23/2007 que “O pedido de concessão de autorização de residência deve ser decidido no prazo de 90 dias.”
11) No caso em apreço, volvidos mais de 2 anos (735 dias) os Recorrentes ainda não tiveram qualquer notificação de agendamento para entrega da documentação original e recolha dos dados biométricos, nem tão pouco de pré-aprovação do seu processo de concessão de autorização de residência para investimento.
12) Este lapso temporal significa que terá decorrido um prazo oito vezes superior ao legalmente estipulado para a concessão.
13) Durante este período, os Recorrentes ficam com a sua vida em stand-by sem poder tomar qualquer decisão sobre a mesma.
14) Afetando não só sua realocação, bem como a obtenção da autorização de residência permanente e a obtenção de nacionalidade portuguesa.
15) Sendo de salientar que, durante toda esta fase anterior à emissão do título de residência, o decurso do tempo, em termos legais, não conta para efeitos de contagem dos 5 anos necessários para a aquisição da residência permanente e/ou da nacionalidade portuguesa, porquanto não se considera que tenham qualquer título de residência válido.
16) Acrescente-se ainda que, o não cumprimento do prazo dos 90 dias obsta à realocação imediata dos Recorrentes para Portugal, que é efetivamente a sua pretensão, desde o início da submissão do processo para concessão da autorização de residência.
17) Assim, é evidente que é necessário obter em tempo útil e com caracter urgente uma decisão definitiva sobre a questão de fundo, não se compreendendo o argumento da não indispensabilidade de uma ação urgente utilizado pelo tribunal a quo.
18) Ressalva-se que, o decurso do tempo pode, inclusive, tornar inútil todo o processo. 19) O que justifica, por si só, o recurso a este meio processual em alternativa a uma ação administrativa comum, que, tendo em conta as regras de experiência comum, se traduzirá num processo ainda mais demorado, sem qualquer previsão de prazo de término, refletindo-se numa inutilidade da eventual condenação das Recorridas à emissão do título.
20) Clarifica o tribunal a quo que a ação de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 109.º do CPTA se aplicou, adequadamente, quando o requerente da autorização de residência se encontrava “em território nacional, aqui tinha organizado a sua vida, porém a segurança jurídica e o grau de estabilidade da sua permanência em Portugal eram, (…), colocados em causa pela inércia do SEF em decidir o pedido de concessão de autorização”.
21) Ora, salvo melhor opinião, não se poderá considerar que o critério decisório para a adequação do meio processual da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias seja, no âmbito dos processos de imigração, o da realocação efetiva para Portugal ou não, quando a ação é proposta no tribunal.
22) A CRP determina que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
23) No mesmo sentido, a DUDH estabelece que “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei”.
24) Os argumentos utilizados pelo Tribunal a quo implicam não só uma discriminação entre cidadãos, como, um benefício dos que se realocam para Portugal, de forma ilegal, sem qualquer título ou previsão de aquisição do mesmo.
25) O Tribunal recorrido tutela de forma injustificada os cidadãos que não têm título válido e ainda assim se encontram em território nacional, em derretimento daqueles que querem cumprir com os procedimentos legais adequados para o efeito.
26) É ainda menos razoável que assim o sugira quando está em causa uma família inteira, com crianças menores que merecem a maior estabilidade alcançável e não devem ser sujeitas a situações em que não lhes é possível, por exemplo, inscreverem-se na escola em Portugal, como seria seu direito por conta da autorização de residência a que se candidataram no âmbito do reagrupamento familiar.
27) Atente-se que a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, reflete o direito à reunificação familiar com toda a estabilidade a esta inerente, no seu artigo 10.º, n.º 1: “(…) todos os pedidos formulados por uma criança ou por seus pais para entrar num Estado Parte ou para o deixar, (…), são considerados pelos Estados Partes de forma positiva, com humanidade e diligência.”
28) Acrescente-se que é ainda menos razoável exigir a um cidadão que cumpriu com todos os requisitos para a concessão de uma autorização de residência para investimento, em conformidade com a alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho e o artigo 90.º-A em conjugação com os artigos 65º-A e 65ºD do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 05 de Novembro, que altere a vida toda sem a certeza de que o pode fazer.
29) Ressalva-se que, na eventualidade dos Recorrentes decidirem realocar-se para Portugal sem um título válido, caso fossem abordados por um agente da PSP na rua, não teriam qualquer título de residência para apresentar.
30) Nem tão pouco inscreverem-se os menores na escola.
31) Sem prejuízo de o SEF/AIMA garantir que alguém com o processo pendente se encontra regularizado em Portugal, não há qualquer fundamento legal para tal justificação,
32) Os Recorrentes cumpriram todos os requisitos legais e por isso devem sentir-se confiantes e confortáveis para residir livremente no país que escolheram, cumprindo-se assim o disposto no art. 13.º da DUDH.
33) Não existe qualquer fundamento legal para que os Recorrentes continuem nesta indefinição.
34) Sintetizando, tal prejuízo que os Recorrentes enfrentam por decidirem realocar-se apenas quando os seus títulos de residência sejam emitidos é, não só irrazoável e inconcebível, como absolutamente discriminatório, inconstitucional e contra direitos fundamentais assegurados pelo direito internacional.
35) Para além de tudo o que foi exposto, existe ainda na decisão recorrida uma clara omissão de pronúncia.
36) A omissão de pronúncia configura uma nulidade nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.
37) O artigo 110.º -A n.º 1 do CPTA dispõe que “Quando verifique que as circunstâncias do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se bastarem com a adoção de uma providência cautelar, o juiz, no despacho liminar, fixa prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar.”
38) Também o artigo 131º n.º 1 do CPTA dispõe que “Quando reconheça a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo, o juiz, no despacho liminar, pode, a pedido do requerente ou a título oficioso, decretar provisoriamente a providência requerida ou aquela que julgue mais adequada, sem mais considerações, no prazo de 48 horas, seguindo o processo cautelar os subsequentes termos dos artigos 117.º e seguintes”
39) Não obstante estas disposições legais, os Recorrentes à cautela apresentaram como pedido subsidiário a convolação da presente intimação em providência cautelar.
40) Da decisão recorrida não consta qualquer menção a este pedido ou sequer ao disposto nos artigos 110.º A e 131.º do CPTA, ignorando por completo o pedido apresentado.
41) Sendo que, mesmo desconsiderando o disposto nestas normas legais e até o pedido subsidiário, feito expressamente pelos Recorrentes, dispõe o art. 546.º do CPC que “O Juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.”
42) Em momento algum o tribunal referiu que não existia outro meio processual adequado para a pretensão dos Recorrentes.
43) Inclusive, da decisão recorrida consta que “as alegações dos Requerentes são insuficientes para concluir a indispensabilidade do recurso à intimação do artigo 109.º do CPTA.”
44) O que significa que, poderão existir outros meios processuais adequados para a pretensão dos Recorrentes que nem sequer foram ponderados pelo Tribunal a quo.
45) O artigo 608.º n.º 2 do CPC dispõe que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, executadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
46) Chegados aqui, resta concluir que a decisão recorrida padece de diversas nulidades, nomeadamente, falta de fundamentação e omissão de pronúncia, bem como, salvo o devido respeito, que é muito, uma interpretação inconstitucional e contrária às normas de direito internacional.
A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, considerando que a sentença recorrida não padece das nulidades que lhe são apontadas, no mais reiterando a fundamentação constante da mesma.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

As questões que ao Tribunal cumpre solucionar são as de saber se a sentença recorrida:
a) Padece de nulidade por:
i. Não conter a fundamentação da decisão que considerou que a primeira entidade demandada carecia de personalidade judiciária;
ii. Ter sido omitida a pronúncia relativamente à sanação da irregularidade da falta de personalidade judiciária da primeira entidade demandada, nos termos do artigo 8.º-A, n.º 5, do CPTA;
iii. Não ter ponderado a convolação da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, em processo cautelar, nos termos do artigo 110.º-A do CPTA, e conforme peticionado subsidiariamente;
b) Padece de erro de julgamento por:
i. A decisão que considerou que a primeira entidade demandada carecia de personalidade judiciária violar o disposto no artigo 8.º-A, n.ºs 3 e 5, do CPTA;
ii. Ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A. Da nulidade da sentença

Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, “É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Alegam os recorrentes que a sentença é nula por não conter a fundamentação da decisão que considerou que a primeira entidade demandada carecia de personalidade judiciária e por ter omitido a pronúncia relativamente à sanação da irregularidade da falta de personalidade judiciária, nos termos do artigo 8.º-A, n.º 5, do CPTA.
Todavia, não ocorre a invocada nulidade. Com efeito, tal decisão mostra-se fundamentada nos seguintes termos:
“Desde 29/10/2023 a competência para a concessão da autorização de residência peticionada pela requerente não pertence ao SEF – que integrava a orgânica da 1.ª entidade requerida –, o qual foi extinto, tendo sucedido nessa competência um ente público dotado de personalidade jurídica – 2.ª entidade requerida –, de onde decorre a inaplicabilidade dos artigos 8.º-A, n.º 3, e 10.º, n.º 2, do CPTA. Com efeito, da conjugação das disposições do artigo 3.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, da Lei 73/2021, de 12/11, com o artigo 2.º do DL 41/2023, de 02/06, com o artigo 3.º, n.º 1, alínea c), da Orgânica da AIMA (publicada em anexo ao referido DL), com o artigo 9.º da Portaria n.º 324-A/2023 (Estatutos da AIMA) resulta que a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P é o ente público com atribuições e competência em matéria de admissão, instrução e decisão de pedidos de concessão de autorização de residência. A AIMA possui personalidade judiciária [artigo 1.º da Orgânica da AIMA, publicada em anexo ao DL 41/2023, de 02/06]. Não é aplicável a previsão normativa do artigo 5.º do DL 41/2023, de 02/06, uma vez que a mesma só é aplicável a processos pendentes na data de entrada em vigor do DL 41/2023, de 02/06 e da Portara n.º 324-A/2023, como decorre expressamente do texto da lei. Por outro lado, também não é aplicável a previsão normativa do artigo 10.º, n.º 4, do CPTA, uma vez que tal norma apenas permitiria considerar a ação proposta contra a AIMA caso o requerente tivesse demandada um órgão deste IP, o que não é o caso. Por outro lado, também não é aplicável o incidente de suprimento da falta de personalidade judiciária previsto artigo 8.ºA, n.º 4, do CPTA, já que o mesmo visa apenas a intervenção do Estado.”
Assim, nos termos da sentença recorrida, a decisão que considerou que a primeira entidade demandada carecia de personalidade judiciária assenta na circunstância de, à data da instauração da presente acção, a competência para a concessão da autorização de residência em causa não ser do SEF, órgão pertencente à pessoa colectiva Ministério da Administração Interna (primeira entidade demandada), entretanto extinto, pelo que tal decisão se mostra fundamentada, deste modo se afastando a primeira invocada nulidade.
Quanto à omissão de pronúncia relativamente à sanação da irregularidade da falta de personalidade judiciária, nos termos do artigo 8.º-A, n.º 5, do CPTA, cumpre referir que tal norma não tem aplicação à situação em apreço, o que afasta também esta invocada nulidade. Com efeito, dispondo que “A propositura indevida de ação contra um órgão administrativo não tem consequências processuais, nos termos do n.º 4 do artigo 10.º.”, não há que a convocar, desde logo porque na p.i. não foi indicado como parte demandada um órgão pertencente à pessoa colectiva de direito público, ao ministério ou à secretaria regional que deveriam ser demandados; antes o que aconteceu foi que os autores demandaram o Ministério da Administração Interna, e não qualquer órgão da pessoa colectiva AIMA,I.P..
Finalmente, alegam os recorrentes que a sentença recorrida não apreciou a possibilidade de convolação da presente acção em processo cautelar, nos termos do artigo 110.º-A do CPTA, e conforme peticionado pelos mesmos.
Mas também neste ponto não lhe assiste razão.
Nos termos do n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, “Quando verifique que as circunstâncias do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se bastarem com a adoção de uma providência cautelar, o juiz, no despacho liminar, fixa prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar.” Como notam Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 903, prevendo o n.º 1 do artigo 110.º a rejeição liminar da petição por falta de verificação dos pressupostos de recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, não se impõe a convolação quando não esteja preenchido o primeiro dos pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 109.º, o da indispensabilidade de uma célere decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia. Quer dizer, a convolação apenas deve operar se, estando preenchido tal pressuposto – ou seja, revelando-se indispensável uma célere decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, se concluir que é possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar. No mesmo sentido, decidiu já o Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 07.04.2022, proferido no processo n.º 036/22.0BALSB (in www.dgsi.pt), no qual se conclui que, quando o uso da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não se revele indispensável, o artigo 110.º-A do CPTA não impõe a convolação do processo numa providência cautelar.
No caso, ainda que a sentença não se refira expressamente a esse ponto, aflora-o na citação que faz de passagem do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07.04.2023, proferido no processo n.º 036/22.0BALSB, a saber: «…não resulta uma obrigação de convolação do processo de intimação numa providência cautelar, mas apenas uma possibilidade de o fazer, quando o Tribunal entenda que a tutela requerida se basta com a adoção da mesma providência.», a qual não opera quando os requerentes «… não alegam factos que demonstrem a indispensabilidade, nem tão pouco a urgência da intimação – e por maioria de razão de uma providência cautelar - para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos seus direitos, liberdades e garantias.».
Esta fundamentação vai de encontro àquilo que acaba de se expor, no sentido em que obstam à convolação as circunstâncias de os autores não terem alegado uma situação de facto carente de tutela urgente, não se mostrando, assim, verificado o primeiro dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, deste modo tendo o tribunal a quo, emitido pronúncia e justificado a falta de convite aos recorrentes para substituírem a petição nos termos previstos no n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, pelo que a sentença recorrida não omitiu qualquer pronúncia que se impusesse.


B. Do erro de julgamento

Os recorrentes começam por alegar que a decisão que considerou que o Ministério da Administração Interna carecia de personalidade judiciária viola o disposto no artigo 8.º-A, n.ºs 3 e 5, do CPTA, pois que, ainda que se entendesse que a primeira entidade demandada não é dotada personalidade judiciária, cabia ao Tribunal a quo a sanação desta irregularidade, nos termos do n.º 5.
Vejamos.
O artigo 8.º-A do CPTA estabelece, nos seus n.ºs 3 e 5, o seguinte: “3 - Para além dos demais casos de extensão da personalidade judiciária estabelecidos na lei processual civil, os ministérios e os órgãos da Administração Pública têm personalidade judiciária correspondente à legitimidade ativa e passiva que lhes é conferida pelo presente Código. (…) 5 - A propositura indevida de ação contra um órgão administrativo não tem consequências processuais, nos termos do n.º 4 do artigo 10.º.”
Como acima já se referiu, a propósito da invocada omissão de pronúncia relativamente à sanação da irregularidade da falta de personalidade judiciária, a decisão que considerou que a primeira entidade demandada carecia de personalidade judiciária assenta na circunstância de, à data da instauração da presente acção, a competência para a concessão da autorização de residência em causa não ser do SEF, órgão pertencente à pessoa colectiva Ministério da Administração Interna (primeira entidade demandada). Ora, não se reportando a presente acção à omissão de um órgão do Ministério da Administração Interna, não tem esta entidade legitimidade processual e, consequentemente, não tem personalidade judiciária, nos termos do citado n.º 3 do artigo 8.º-A, que estende a personalidade judiciária aos ministérios na medida em que lhes seja conferida pelo CPTA legitimidade processual. Assim, mostra-se acertada a decisão deste ponto efectuada na sentença recorrida.
Quanto ao disposto no artigo 8.º-A, n.º 5, do CPTA, e tal como, também, já mencionado acima, tal norma não tem aplicação à situação em apreço uma vez que na p.i. não foi indicado como parte demandada um órgão pertencente à pessoa colectiva de direito público, ao ministério ou à secretaria regional que deveriam ser demandados; antes o que aconteceu foi que os autores demandaram o Ministério da Administração Interna, e não qualquer órgão da pessoa colectiva AIMA,I.P.. Não sendo aplicável ao caso a norma invocada, não se impunha ao Tribunal a quo que sanasse tal irregularidade, nos termos da mesma, com o que improcede a alegação da sua violação.

Alegam ainda os recorrentes que a sentença recorrida errou ao considerar não ser indispensável à tutela requerida uma acção principal urgente porquanto, devido à omissão de decisão da entidade demandada, têm os mesmos a sua vida em standby sem poder tomar qualquer decisão sobre a mesma, afectando a obtenção da autorização de residência permanente bem como de nacionalidade portuguesa, sem que este lapso de tempo possa contar para o período de 5 anos, necessário para o efeito, e o incumprimento do prazo legal de decisão obsta à sua realocação imediata para Portugal, conforme pretendem. Mais alegam que a sentença recorrida errou ainda ao considerar que o critério decisório para a adequação do meio processual da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, é, no âmbito dos processos de imigração, o da realocação efectiva para Portugal, quando a ação é proposta no tribunal, pois, nos termos da Constituição, “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, determinando, no mesmo sentido, a DUDH que “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei”, e aquele critério, para além de discriminar cidadãos, beneficia os que se realocam para Portugal, de forma ilegal, sem qualquer título ou previsão de aquisição do mesmo, desconsiderando a circunstância de estar em causa uma família inteira, com crianças menores, que merecem a maior estabilidade alcançável e não devem ser sujeitas a situações em que não lhes é possível, por exemplo, inscreverem-se na escola em Portugal, sendo certo que a Convenção sobre os Direitos da Criança reflecte o direito à reunificação familiar com toda a estabilidade a esta inerente. Por fim, a sentença recorrida não apreciou a possibilidade de convolação da presente acção em processo cautelar, nos termos do artigo 110.º-A do CPTA, e conforme peticionado pelos recorrentes.

Sobre a não verificação dos requisitos do artigo 109.º do CPTA, consta o seguinte da sentença recorrida:
“(…)
Os requerentes sustentam o recurso ao presente meio processual na alegação de que há quase 3 anos o 1.º requerente formulou uma candidatura para concessão de autorização de residência ao abrigo do regime do artigo 90.º-A da Lei Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional (LEPSA).
(…)
No caso concreto, das alegações vertidas no requerimento inicial não se retira que caso o pedido venha a ser concedido em sede de ação administrativa os requerentes não retirarão utilidade na tutela, na medida em que nada é alegado sobre os concretos motivos pelos quais não pode aguardar o desfecho de uma ação principal. Efetivamente, os requerentes nada alegam quanto à indispensabilidade de recorrer a uma tutela principal urgente, na medida em que não alegam porque não podem aguardar pelo desfecho de uma ação principal. As alegações dos requerentes são insuficientes para concluir pela indispensabilidade do recurso à intimação do artigo 109.º do CPTA. A verificação do requisito da indispensabilidade é feita em concreto, pelo que o apelo a decisão anterior, nos termos em que os requerentes fazem, tem um alcance limitado, uma vez que têm o ónus de alegar os contornos factuais da sua situação para habilitar o tribunal a valorar a similitude das situações e, logo, apreciar a aplicabilidade da fundamentação e sentido decisório. No processo n.º 1899/18.0BELSB, ao qual os requerentes fazem apelo no requerimento inicial, a idoneidade do recurso ao meio processual do artigo 109.º do CPTA é aferida para uma situação com um substrato fatual substancialmente diverso do presente caso. Com efeito, o requerente do processo n.º 1899/18.0BELSB encontrava-se em território nacional, aqui tinha organizado a sua vida, porém a segurança jurídica e o grau de estabilidade da sua permanência em Portugal eram, segundo a argumentação do acórdão, colocados em causa pela inércia do SEF em decidir o pedido de concessão de autorização. Este entendimento está em linha com a jurisprudência do TEDH segundo a qual um Estado que admite a permanência de um estrangeiro no seu território não o pode colocar num «… “espaço de não direito”…», sob pena de a sua omissão conduzir à «… violação de outros direitos fundamentais de que o estrangeiro é titular…», violação cuja reintegração não é compatível com uma decisão provisória na medida em que, pela sua natureza, o manteria no referido estado de incerteza [cf., neste sentido, Ana Rita Gil, Estudo sobre o Direito da Emigração e do Asilo, página 109]. No caso concreto os requerentes não alegam residir em Portugal, não alegam que o território nacional é o centro da sua vida, não alegam factos que permitam concluir que a putativa inércia da administração os coloca numa situação de tamanha incerteza que se encontrem impedidos «…de levar a cabo uma vida privada e familiar normal» [ob. e loc. cit]. Aliás, o que decorre da argumentação vertida no requerimento inicial é que os requerentes conduzem a sua vida pessoal, familiar e profissional no local onde residem e que projetam/almejam que a mesma se possa vir a desenvolver, no todo ou em parte, em Portugal, sem, contudo, explicar a urgência na realização de tal projeto para a tutela dos direitos fundamentais que invocam. Finalmente refira-se que, como ensina o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão do processo n.º 036/22.0BALSB, de 07/04/2023, explica que do artigo 110.º-A do CPTA «…não resulta uma obrigação de convolação do processo de intimação numa providência cautelar, mas apenas uma possibilidade de o fazer, quando o Tribunal entenda que a tutela requerida se basta com a adoção da mesma providência.», a qual não opera quando os requerentes «… não alegam factos que demonstrem a indispensabilidade, nem tão pouco a urgência da intimação – e por maioria de razão de uma providência cautelar - para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos seus direitos, liberdades e garantias.».
(…).”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.

Alegam os recorrentes que a indispensabilidade da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias no caso em apreço decorre da circunstância de a omissão de decisão do pedido de autorização de residência fazer com que a sua vida se encontre em standby, impedindo-os de tomar qualquer decisão sobre a sua vida, afectando a obtenção da autorização de residência permanente bem como de nacionalidade portuguesa, sem que este lapso de tempo possa contar para o período de 5 anos, necessário para o efeito, e obstando à sua realocação imediata para Portugal, conforme pretendem. Mais alegam que é errado o critério decisório da realocação efectiva para Portugal, quando a ação é proposta no tribunal, seguido na sentença recorrida para a adequação do meio processual da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, pois, nos termos da Constituição, “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, determinando, no mesmo sentido, a DUDH que “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei”, e aquele critério, para além de discriminar cidadãos, beneficia os que se realocam para Portugal, de forma ilegal, sem qualquer título ou previsão de aquisição do mesmo, desconsiderando a circunstância de estar em causa uma família inteira, com crianças menores, que merecem a maior estabilidade alcançável e não devem ser sujeitas a situações em que não lhes é possível, por exemplo, inscreverem-se na escola em Portugal, sendo certo que a Convenção sobre os Direitos da Criança reflecte o direito à reunificação familiar com toda a estabilidade a esta inerente.
A sentença recorrida entendeu que os recorrentes nada alegaram sobre os concretos motivos pelos quais não podem aguardar pelo desfecho de uma acção principal, sendo indispensável uma tutela principal urgente. Concretizando tal conclusão, e face à invocação de decisão judicial anterior no sentido que preconizam, refere-se ainda que os recorrentes nem sequer alegam residir em Portugal nem que este país é o centro da sua vida, nem mesmo que a falta de decisão do seu pedido de autorização de residência “os coloca numa situação de tamanha incerteza que se encontrem impedidos «…de levar a cabo uma vida privada e familiar normal»”, nem explicam a urgência na obtenção da autorização de residência para a tutela dos direitos que invocam.
O certo é que os recorrentes apenas alegam a demora na decisão do seu pedido de autorização de residência, limitando-se a concluir que tal demora coloca a sua vida em standby e impede-os de tomar decisões, sem explicar em que termos concretos isso acontece, ou seja, sem alegar factualidade apta a concluir no sentido que pretendem. Ou seja, nem sequer se trata de uma alegação insuficiente; é mesmo uma falta de alegação de factos. E para se poder concluir pela indispensabilidade de uma tutela de mérito urgente no caso concreto, impunha-se-lhes, como exemplifica a sentença recorrida, que alegassem factualidade concreta demonstrativa de que a falta de decisão do pedido de autorização de residência os impedia de desenvolver uma vida normal (privada, familiar, profissional, etc), designadamente que tinham em Portugal o centro da sua vida, o que, manifestamente, não fizeram. Ora, essa explicação dada na sentença recorrida não se reconduz ao que os recorrentes denominam de “critério decisório da realocação efectiva para Portugal”. Em nenhum ponto da sentença tal é referido. E, dado que a alegação dos recorrentes quanto à discriminação de cidadãos assenta nesse pressuposto errado de que a sentença recorrida elege como critério de decisão a residência em Portugal, carece a mesma de qualquer sentido, soçobrando por falta de fundamento.
Conforme se refere, com acerto, na sentença recorrida, a alegação dos recorrentes reconduz-se a uma pressa na obtenção da autorização de residência, e a uma expectativa - legítima, aliás – de ver decidido o seu pedido no prazo legal, o que não se confunde com uma situação de urgência, não tendo sido alegada qualquer factualidade consubstanciadora de uma situação de urgência na tutela de um direito fundamental. Os autores recorrentes não descrevem uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invocam – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para os recorrentes na concessão de autorização de residência. É que não basta estar em causa um direito, liberdade e garantia, sendo ainda necessário demonstrar que é urgente a sua tutela, o que os recorrentes, nos termos expostos, não fizeram.
Acresce que não assistem aos recorrentes os direitos que invocam, à identidade pessoal, de circular livremente em Portugal, ao trabalho e à saúde. É verdade que os artigos 26.º, 44.º, 58.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa garantem tais direitos a todos os cidadãos, e que o artigo 15.º estende o gozo dos direitos do cidadão português aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal. Sucede que os recorrentes nem se encontram nem residem em Portugal, como, além do mais, os próprios admitem na p.i., pelo que, não beneficiando de tal extensão, não lhes assistem aqueles direitos.

De todo o modo, sempre se dirá que, atentos os contornos factuais alegados, a situação de facto descrita pelos autores recorrentes é susceptível de ser acautelada com a adopção de uma providência cautelar que intime a entidade demandada a emitir um título de residência provisório, de modo a permitir que os autores permaneçam, de modo regular, em Portugal até ser proferida decisão em acção principal de condenação a decidir o pedido de autorização de residência, não se mostrando, assim, imprescindível, nem sequer necessário, que se decida definitivamente com carácter urgente se os autores têm direito à emissão de autorização de residência. Tal decretamento, para além de suficiente para tutela dos direitos cuja violação os recorrentes invocam, não põe em causa o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português, constante da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, considerando que a entidade a quem cabe decidir o pedido de autorização de residência não se pronunciou ainda sobre o preenchimento das condições legalmente previstas para a concessão de tal autorização.

Ante o exposto, concluímos que não foi alegada factualidade apta a demonstrar a verificação dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, nem a indispensabilidade de uma célere decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, nem, tão-pouco, a impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 09 de Maio de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Marta Cavaleira
Pedro Nuno Figueiredo