Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1521/16.9BELLE-A
Secção:CT
Data do Acordão:05/16/2024
Relator:MARIA ISABEL FERREIRA DA SILVA
Descritores:CPPT- ARTIGOS 125º.
DEVER DE PRONÚNCIA SOBRE QUESTÕES DE CONHECIMENTO OFICIOSO
INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO HIERÁRQUICO- CASO RESOLVIDO
Sumário:I– Embora o tribunal se deva pronunciar sobre questões de conhecimento oficioso não suscitadas pelas partes, a omissão de tal dever não constitui nulidade da sentença, mas sim erro de julgamento.
II- A intempestividade do recurso hierárquico não é indiferente ao resultado da impugnação judicial, conduzindo à improcedência do pedido por força do caso decidido ou resolvido.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

I- A Fazenda Pública (ora recorrente) veio interpor recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, datada de 25.10.2022, que julgou procedente a impugnação judicial, deduzida na sequência do indeferimento de recurso hierárquico, com a consequente anulação das liquidações de IRS de 2010, 2011 e 2012, no valor global de € 15.793,13, e a restituição desse valor ao Impugnante (ora recorrido).


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A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:


“i-Visa o presente recurso reagir contra decisão em 1.ª instância que julgou procedente a presente impugnação judicial e, em consequência, condenou a Fazenda Pública no pedido de anulação das liquidações de IRS, relativas aos anos de 2010, 2011 e 2012, no valor global de € 15.793,13, e consequente restituição desse valor pago pelo Impugnante;


ii) Considerou o Tribunal a quo que a questão decidenda seria “apreciar se a referida liquidação poderia ter sido levada a cabo, como foi, no pressuposto de que o Impugnante passou a estar enquadrado no regime simplificado de tributação em 2010, 2011 e 2012, tendo optado pelo regime de contabilidade organizada, relativamente a esses exercícios”.


iii)Ora, conforme resulta dos factos provados da sentença recorrida, o recurso hierárquico apresentado pelo Impugnante foi liminarmente indeferido por intempestividade, nos termos do artigo 66.º do CPPT.


iv)Conforme se afere do projeto de decisão do recurso hierárquico e da decisão final do mesmo não foi efetuada qualquer apreciação de mérito das questões colocadas pelo Impugnante, ou seja, não foi efetuada qualquer apreciação da legalidade do enquadramento fiscal em sede de IRS efetuado ao Impugnante, nem das liquidações que daí advieram;


v) De igual modo, não foi igualmente apreciada a legalidade do despacho de indeferimento da petição que esteve na origem do recurso hierárquico, pelo que o órgão da administração tributária que apreciou o recurso hierárquico limitou-se a concluir, e bem, pela intempestividade do recurso hierárquico, visto que o mesmo foi apresentado após o prazo de 30 dias estabelecido no artigo 66.º, n.º 2 do CPPT;


vi)Como tal, nos presentes autos de impugnação, encontrava-se vedada a possibilidade de discussão do enquadramento fiscal em sede de IRS e das liquidações de IRS postas em crise pelo Impugnante.


vii) No entanto, analisada a petição inicial do Impugnante, verifica-se que, tal como entendeu o Tribunal a quo, o mesmo não resistiu a suscitar a ilegalidade do enquadramento fiscal em sede de IRS e as liquidações dos anos de 2010 a 2012 - cf. arts. 3.º a 7.º da sua petição inicial e conforme se afere do pedido efetuado;


viii) Por força da intempestividade do Recurso hierárquico, a decisão da petição apresentada pelo Impugnante (bem como o enquadramento em regime simplificado e as liquidações de IRS de 2010, 2011 e 2012, que constituem o seu objeto mediato) consolidou-se na ordem jurídica, tornando-se definitiva e insuscetível de ser sindicada contenciosamente;


ix)Neste sentido, ensina Jorge Lopes de Sousa, in “Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado”, Áreas Editora, Lisboa, 6.ª edição, Volume I, pág. 601, em nota de pé de página n.º 1026: "A extemporaneidade do recurso hierárquico não determina, actualmente, a intempestividade do subsequente recurso contencioso, como se previa no § 3.º do art. 52.º do RSTA, tacitamente revogado pelo art. 34.º da LPTA. Porém, a intempestividade do recurso hierárquico conduzirá à formação de caso decidido ou resolvido, que obstará à interposição de recurso contencioso com fundamento em vícios geradores de anulabilidade.”


x) Ainda que, por mera hipótese, se considere que não ocorreu caso julgado relativamente à decisão da petição apresentada pelo Impugnante (bem como o enquadramento em regime simplificado e as liquidações de IRS de 2010, 2011 e 2012, que constituem o seu objeto mediato), certo é que isso nunca poderia significar que estaria aberta a porta para essa discussão em sede da presente impugnação;


xi)Pelo exposto, entende-se que o Tribunal a quo se pronunciou sobre questões que não devia conhecer, facto que é causa de nulidade da sentença, nos termos do artigo 125.º do CPPT.


xii) O Impugnante não poderia impugnar judicialmente o despacho de indeferimento do recurso hierárquico por intempestividade, mas sim apenas apresentar ação administrativa nos termos do artigo 97.º, n.º 1, alínea p do CPPT (97.º, n.º 2 na anterior redação).


xiii) Isto porque esse indeferimento se consubstanciou num ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade de nenhum ato de liquidação, mas apenas a apreciação da legalidade de um ato administrativo que julgou intempestivo um recurso hierárquico (neste sentido, atentas as semelhanças com o caso em apreço, vide o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proc. 01000/11.0BEALM 01103/17, de 01/07/2020);


xiv) Assim, conclui-se que ocorreu um erro na forma de processo, uma vez que o Impugnante, pretendendo atacar o despacho de indeferimento do recurso hierárquico por intempestividade, lançou mão da impugnação judicial e não da ação administrativa;


xv) O erro na forma de processo constitui exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta igualmente a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da Fazenda Pública da instância, ao abrigo das normas legais constantes nos arts. 89.º, nº 1, do CPTA, 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, nºs. 1 e 2 do CPC, ex vi art. 2.º, alíneas c) e e), do CPPT.


xvi) No caso em apreço, em que estamos perante um erro na forma de processo parcial, não se vislumbra possibilidade de convolação da impugnação em ação administrativa, uma vez que o Impugnante apresentou dois pedidos distintos, sendo que apenas um deles – a anulação das liquidações e restituição do imposto – seria adequado à forma processual escolhida pelo Impugnante (ainda que não tal matéria não pudesse ser apreciada pelos motivos já expostos).


xvii) Assim, salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo quando considerou no aresto recorrido que não existiram exceções ou questões prévias que cumprisse conhecer e que obstassem à apreciação do mérito dos autos;


xviii) Sendo o erro na forma do processo uma exceção de conhecimento oficioso, entende-se que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questão sobre a qual deveria conhecer, facto que é igualmente causa da nulidade da sentença, nos termos do artigo 125.º, n.º 1 do CPPT;


xix) Sem prescindir, sempre terá de se referir que, conforme se afere dos factos provados da sentença, as liquidações em questão nos autos resultam de declarações de IRS voluntariamente apresentadas pelo Impugnante, nas quais fez este constar que estava enquadrado no regime simplificado de tributação, e apresentando, para esse efeito, o anexo B - Rendimentos da Categoria B - Regime Simplificado / Ato Isolado da declaração modelo 22 de IRS;


xx) Não constando dos autos que o Impugnante tenha apresentado para os anos de 2010, 2011 e 2012, declarações de IRS com os correspondentes anexos C da modelo 22 - IRS, relativos à contabilidade organizada, não se poderá dizer que, nos anos em questão nos autos, o Impugnante optou pelo regime de contabilidade organizada;


xxi) Pelo contrário, dos autos resulta que foi o próprio Impugnante que manifestou essa opção de enquadramento no regime simplificado através das declarações de IRS por si apresentadas para os anos de 2010, 2011 e 2012;


xxii) Pelo que se o Impugnante entendia e havia optado pelo regime de contabilidade organizada, sempre deveria ter apresentado as declarações de IRS em consonância com esse regime, o que não fez;


xxiii) Entende-se, por isso, que, ao contrário do que entendeu o Tribunal, não resulta dos presentes autos que tenha sido opção do Impugnante o enquadramento no regime de contabilidade organizada para os anos de 2010, 2011 e 2012;


xxiv) Pelo que, nessa medida, não se pode deixar de considerar que a AT respeitou a opção do contribuinte manifestada nas declarações por si apresentadas, ainda que essa conduta fosse coincidente com o entendimento que a administração possuía sobre a matéria;


xxv) Entende-se, por isso, que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 28.º do Código do IRS.


Nestes termos e nos restantes de Direito que o distinto Tribunal entender por bem suprir, advoga a Representação da Fazenda Pública a procedência do presente recurso jurisdicional, determinando-se a revogação da sentença do Tribunal a quo com o que V. Exas. farão a almejada Justiça!”



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Notificado, o recorrido não apresentou resposta às alegações.

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Os autos tiveram vista do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, nos termos do artigo 288.º, n.º 1 do CPPT, o qual emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, vem o processo à Conferência para julgamento.
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II -QUESTÕES A DECIDIR:
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas as questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, ex vi artigo 2.º, alínea e) e artigo 281.º do CPPT).
Nesta conformidade, cabe a este Tribunal apreciar e decidir se:
(i) A decisão recorrida é nula por se ter pronunciado sobre questão que não devia conhecer, desde logo ao pronunciar-se sobre o mérito da ação o que lhe estava vedado face à intempestividade do recurso hierárquico;
(ii) A decisão recorrida é nula ao ter concluído o Tribunal que inexistiam exceções dilatórias quando havia erro na forma de processo;
(iii) A decisão recorrida padece de vício de erro de julgamento de direito, por errada interpretação na aplicação dos artigos 28º do CIRS.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

O tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:

1) O ora Impugnante esteve coletado pelo exercício da atividade principal CAE ,,,,,,,,,,,,,,,, comércio por grosso de leite, derivados e ovos, desde 22.05.1992 até à data de cessação em 30.01.2015, com o seguinte enquadramento em sede de IRS : - contabilizada organizada por opção em 2004 até ao ano de 2009 (facto não controvertido);

2) O ora Impugnante em 28.06.2011 submeteu por transmissão eletrónica de dados, a declaração de rendimentos modelo 3 do exercício de 2010 (J0551- 41), acompanhada do anexo B, relativo aos rendimentos da categoria B/ Regime Simplificado, apresentando vendas de € 141.529,88 e prestações de serviços de € 4.778,67 - cfr. fls.28 a 31 do procedimento de recurso hierárquico (PRH), ínsito no processo administrativo (PA), apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

3) Em 15.07.2011, foi realizada a liquidação de IRS do exercício de 2010, nº...................., da qual resultou o apuramento de imposto a pagar no valor de € 2.312,00, que se encontra regularizado - cfr. fls.50 do PRH, ínsito no PA, apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

4) No dia 22.05.2012 o ora Impugnante, submeteu por transmissão eletrónica de dados, a declaração de rendimentos modelo 3 do exercício de 2011 (...........), acompanhada do anexo B, relativo aos rendimentos da categoria B/Regime Simplificado, apresentando vendas de €155.503,14 e prestações de serviços de € 4.312,00 - cfr. fls.32 a 36 do PRH, ínsito no PA, apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

5) Em 20.07.2012, foi realizada a liquidação de IRS do exercício de 2011, nº.................., da qual resultou o apuramento de imposto a pagar no valor de € 3.870,51, que se encontra regularizado - cfr. fls.51 do PRH, ínsito no PA, apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

6) Em 27.06.2013, foi submetida por transmissão eletrónica de dados, a declaração de rendimentos modelo 3 do ora Impugnante, do exercício de 2012 (J659-37), acompanhada do anexo B, relativo aos rendimentos da categoria B/Regime Simplificado, apresentado vendas de € 255.719,48 e prestações de serviços e outros rendimentos de € 4.780,46 - cfr. fls.37 a 41 do PRH, ínsito no PA, apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

7) Em 24.07.2014, foi realizada a liquidação de IRS do exercício de 2012, nº............., da qual resultou o apuramento de imposto a pagar no valor de € 9.610,62, que se encontra regularizado;

8) Em 25.07.2014 apresentou uma petição dirigida ao Chefe do Serviço de Finanças de Rio Maior, com as seguintes alegações:



[IMAGEM; TEXTO NA ÍNTEGRA NO ORIGINAL]
- cfr. fls.11 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo;


9) A Administração Tributária em 05.05.2015 projetou o indeferimento do pedido referido na alínea 1) deste probatório e disso notificou o Impugnante - cfr. fls.45 a 46 e 76 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

10) O ora impugnante no dia 13.05.2015 exerceu o seu direito de audição relativamente ao projecto de indeferimento m.i. na alínea 9) deste probatório - cfr. fls.74 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

11) Em 18.05.2015 foi efetuada a notificação do despacho de indeferimento pelo ofício nº…….. - cfr. fls.75 a 77 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

12) Em 09.07.2015 foi interposto recurso hierárquico do indeferimento do pedido de alteração do enquadramento em sede de IRS (facto não controvertido);

13) O ora impugnante foi notificado para exercer o seu direito de audição:

[IMAGEM: TEXTO NA ÍNTEGRA NO ORIGINAL]










- cfr. fls.12 a 16 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo;

14) Direito que o Impugnante exerceu - cfr. fls.6 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

15) Por despacho de 17.06.2016 foi o mesmo liminarmente indeferido:
[IMAGEM; TEXTO NA ÍNTEGRA NO ORIGINAL ]





- cfr. fls.5 a 7 do PRH, ínsito no PA apenso a este processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

16) A presente impugnação judicial deu entrada neste TAF de Leiria no dia 12 de dezembro de 2016 - cfr. fls.3 da paginação eletrónica.
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O tribunal a quo consignou o seguinte quanto à matéria de facto não provada:
“Não existem quaisquer outros factos provados ou não provados com relevância para a apreciação da questão em apreço”
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A decisão recorrida motivou do modo seguinte a factualidade considerada provada:
“A matéria de facto dada como provada resultou da análise dos documentos constantes dos autos e do Processo Administrativo (PA), bem como do procedimento de Recurso Hierárquico (PRH), assim como na parte dos factos alegados pelas partes que, não tendo sido impugnados, também são corroborados pelos documentos juntos (cfr. artigo 76º n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 362º e seguintes do Código Civil (CC)), conforme discriminado nos vários pontos do probatório”.

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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

Analisadas as conclusões de recurso, constatamos que o recorrente centra todo seu inconformismo com a decisão recorrida por entender que a mesma é nula e por padecer do vício de erro de julgamento de direito, porquanto não ponderou o ato administrativo que está na génese da impugnação judicial, a concreta impropriedade do meio processual e o caso decidido que determina por si a improcedência.
Subsidiariamente, convoca erro de julgamento por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito concretamente do artigo 28.º do CIRS.

Importa antes de mais, dar conta que a factualidade assente não foi posta em causa, pelo que a mesma se encontra estabilizada.

- Das nulidades imputadas à sentença recorrida

As causas de nulidade da sentença estão vertidas no artigo 125.º do CPPT, designadamente o vício de “falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer”.
No CPC, aquele vício está previsto no artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, estando correlacionado com o comando ínsito no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo código, donde decorre que: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
O Tribunal deve emitir pronúncia sobre todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, ainda que seja para dizer por que delas não conhece (sob pena de omissão de pronúncia) e, com exceção das questões de conhecimento oficioso, não pode conhecer senão dessas questões, sob pena de excesso de pronúncia na parte em que ocorrer esse excesso.
No caso sujeito, defende a recorrente nas suas alegações que a sentença é nula por duas ordens de razões:
(1º) – por se ter pronunciado sobre questão que não devia conhecer, uma vez que o recurso hierárquico que antecede a impugnação foi liminarmente indeferido por intempestividade, encontrando-se, assim, vedada a possibilidade de discussão do enquadramento fiscal em sede de IRS do impugnante, que se consolidou na ordem jurídica.
(2º) – por existir erro na forma de processo, uma vez que o Impugnante, pretendendo atacar o despacho de indeferimento do recurso hierárquico por intempestividade, lançou mão da impugnação judicial e não da ação administrativa, configurando um erro na forma de processo, que constitui exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta igualmente a que o Tribunal tivesse conhecido do mérito da causa, dando lugar à absolvição da Fazenda Pública da instância, ao abrigo das normas legais constantes nos arts. 89.º, nº 1, do CPTA, 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, nºs. 1 e 2 do CPC, ex vi art. 2.º, alíneas c) e e), do CPPT.
Acrescenta que o Tribunal recorrido decidiu que inexistiam exceções e que se verificava o apontado erro na forma de processo.
Analisando.
Consultada a contestação da recorrente FP (constante de págs. 26/27 do SITAF) e bem assim o parecer do Ministério Público em 1ª instância (pág. 74/75 do SITAF), constatamos que nem a recorrente FP nem o Ministério Público suscitaram qualquer matéria de exceção, seja quanto ao erro na forma de processo (parcial ou total), seja quanto à inimpugnabilidade ou até caducidade do direito de ação em virtude da intempestividade do recurso hierárquico que antecede a dedução da impugnação judicial em causa nos presentes autos.
Por assim ser, embora aquelas questões prévias sejam de conhecimento oficioso (seja o erro na forma de processo ou inimpugnabilidade), o facto de não terem sido apreciadas não fulmina a decisão recorrida com nulidade.
Tal como ensina Jorge Lopes de Sousa a respeito da omissão de pronúncia quanto a questões de conhecimento oficioso:
“Esta nulidade de omissão de pronuncia ocorre apenas quando se verifica violação do dever processual que o tribunal tem em relação às partes, de se pronunciar sobre todas as questões por elas suscitadas.
A obrigação do tribunal relativa ao conhecimento de questões é corolário de um dever das partes de suscitarem as questões que querem ver decididas.
Assim, embora o tribunal tenha também o dever de pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso não suscitadas pelas partes (parte final do nº2 do artigo 660º do CPC), a omissão de tal dever não constituirá nulidade, mas sim erro de julgamento.
Com efeito, nestes casos, a omissão de pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso significará que o tribunal entendeu, implicitamente, que a solução das mesmas não é relevante para a apreciação da causa.
Se esta posição for errada, haverá um erro de julgamento que, se a decisão admitir recurso, poderá ser corrigido pelo tribunal superior, que também tem o dever de conhecer das questões de conhecimento oficioso. (…)” – in, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 11 ao artigo 125º do CPPT, pág. 365.
Regressando ao caso sujeito, uma vez que as questões agora colocadas pela recorrente não foram colocadas à Mª juiz a quo, não se pode concluir que exista nulidade da sentença que sobre as mesmas não se pronunciou, ainda que fossem de conhecimento oficioso, podendo existir erro de julgamento.
A outro passo, ainda que o Tribunal a quo tenha conhecido do mérito da impugnação, levando ao probatório factualidade que permite concluir pela intempestividade do recurso hierárquico, tal não configura qualquer excesso de pronúncia, na medida em que as questões que foram conhecidas foram colocadas pelo recorrido, tal como é referido pela recorrente na conclusão VII do recurso.
Inexiste, também aqui, nulidade da sentença, podendo haver, isso sim, erro de julgamento, o que seguidamente apreciamos.
Deste modo, improcedem os vícios de nulidade assacados à decisão recorrida (conclusões iii) a xvii) do recurso).

- Apartado que fica o vício de nulidade da sentença, importa conhecer previamente do erro na forma de processo sobre que versa o recurso (conclusões XII, XIV, XV e XVI), até porque, não obstante não estar alegado, como se viu supra, aquela matéria excetiva é de conhecimento oficioso (Cf. artigos nºs 193.º e 196.º do CPC aplicáveis ex vi art. 2.º al. e) do CPPT).
Para a recorrente não podia ser impugnada a decisão de recurso hierárquico por ser intempestiva, entendendo que a forma adequada seria ação administrativa e que estava vedada a convolação da impugnação judicial naquele meio processual.
Analisando.
Consultando a PI, designadamente o pedido formulado, por via do qual se afere, em primeira linha, acerca da adequação do meio processual utilizado, constatamos que a pretensão levada pela recorrida ao Tribunal a quo, foi a seguinte:
“(…) impugnação ser julgada procedente por provada e em consequência ser deferido o recurso hierárquico apresentado e ainda a Ré condenada a restituir ao Autor a quantia de € 15.793,13 que a Autora recebeu por enriquecimento sem causa acrescida dos juros legais”.
De tudo que fomos avançando já, decorre de modo cristalino dos autos que a impugnação sob censura foi intentada na sequência do indeferimento do recurso hierárquico (objeto imediato) que foi rejeitado liminarmente por intempestividade.
Porém, se atentarmos às causas de pedir em que a recorrida faz assentar a sua pretensão, conseguimos aferir que a mesma se esteia na ilegalidade das liquidações (objeto mediato) ao defender, desde logo, que existe um erro no enquadramento da sua situação fiscal feito pela Administração Fiscal, na medida em que tinha optado pelo regime da contabilidade organizada. E, nada refere quanto à intempestividade do recurso liminarmente rejeitado.
Ademais, foi esta questão, a par da falta de fundamentação da decisão impugnada que o Tribunal elegeu como causas a decidir.
Sendo assim, tendo em conta que a par da decisão do próprio indeferimento do recurso hierárquico foi pedida a procedência da própria impugnação a qual tem na mira a anulação de um ato de liquidação, cremos que inexiste erro na forma de processo, na medida em que é a impugnação judicial o meio próprio para apreciar a legalidade dos atos de liquidação (cf. artigo 97º nº 1 al. a) do CPPT).
De resto, ainda que se entenda que são formulados dois pedidos que apregoam formas processuais distintas, quando assim seja, o meio não deixa de ser adequado, ignorando-se o outro pedido que reclama (outra) forma processual distinta.
Tal como se disse no acórdão do STA de 10.03.2021, tirado do processo nº 0279/19.4BEVIS que:
A cumulação de pedidos apenas seria admissível caso o meio processual fosse o adequado ao conhecimento das duas pretensões deduzidas.
Acresce que os dois meios processuais assumem tramitações distintas, a posição do Ministério Público é diferente, a representação das partes também e, não se encontram regulados pelo mesmo Código (…)”.

Sumariou-se, ainda, naquele douto aresto que:
“I - O meio processual adequado, para os interessados atacarem, contenciosamente, as decisões de rejeição/indeferimento de processos/procedimentos administrativos (v.g., reclamação graciosa) e, concomitantemente, verem analisados os vícios colados ao ato de liquidação (de impostos, taxas….) em causa, é, unicamente, o processo de impugnação judicial, com as condições e trâmites, positivados nos artigos (arts.) 99.º a 133.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
II - O meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.”

Continua, no mesmo aresto, aquele alto Tribunal a doutrinar que:
Efetivamente, para este Supremo Tribunal, o meio processual adequado, para os interessados atacarem, contenciosamente, as decisões de rejeição/indeferimento de processos/procedimentos administrativos (v.g., reclamação graciosa) e, concomitantemente, verem analisados os vícios colados ao ato de liquidação (de impostos, taxas….) em causa, é, unicamente, o processo de impugnação judicial, com as condições e trâmites, positivados nos artigos (arts.) 99.º a 133.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). O exclusivo requisito/condição exigida, para que, sempre, seja esta a forma de processo a utilizar, é a verificação e conclusão de o, prévio, procedimento administrativo, casuisticamente, ativado, envolver, dizer respeito, à liquidação de tributos, estaduais, regionais e/ou locais. Portanto, numa formulação genérica, o meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, mesmo que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar; por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.
Por contraponto, esta jurisprudência não é suscetível de ser afastada, designadamente, pela singela proposta de, neste caso, a cumulação de pedidos formulada, pela autora, ora, rte, na presente ação administrativa, merecer a cobertura do disposto no art. 5.º n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) (Normativo, totalmente, revogado pela Lei n.º 118/2019 de 17 de setembro, mas que, até então, prescrevia no respetivo n.º 1: “A cumulação de pedidos é possível mesmo quando, nos termos deste Código, a algum dos pedidos cumulados corresponda uma das formas da ação administrativa urgente, que deve ser, nesse caso, observada com as adaptações que se revelem necessárias, devendo as adaptações que impliquem menor celeridade do processo cingir-se ao estritamente indispensável.”.). Este comando legal, por um lado, patenteava um âmbito de aplicação restrito, privativo, do contencioso administrativo, stricto sensu, acrescendo, por outro, que o seu (hipotético) funcionamento, em sede de contencioso tributário, jamais, poderia, mesmo com as devidas adaptações, implicar a derrogação da supra inscrita regra de impugnação judicial ser a forma de processo, única, utilizável (sob pena de erro na forma de processo) em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, mesmo que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um, precedente, procedimento de cariz administrativo.
Por outras palavras e focando a situação julganda, presente a causa de pedir consubstanciada nos arts. 38.º a 54.º da petição inicial (Sugestivamente, epigrafada de “b) Da ilegalidade da liquidação de IRC”.), com tradução, correspondente, no pedido de anulação parcial do ato de liquidação de IRC …, este processo (judicial) tinha de ter sido apresentado e tramitado, como impugnação judicial, nunca, como ação administrativa, ostentando um pedido de declaração de ilegalidade da decisão de rejeição liminar da reclamação graciosa, pretensamente, cumulado com o de anulação parcial do aludido ato tributário de liquidação.(…)”
Por fim, ainda a respeito da idoneidade da impugnação judicial para situações como a que nos é colocada, vejam-se os acórdãos do STA tirados dos processos nºs 0219/18, de 13.01.2021, e 0608/13, de 18.11.2020.
Tendo em conta tudo que avançámos, visto à luz da jurisprudência citada, terá igualmente que improceder o recurso nesta parte.

- Do erro de julgamento

Considerando este Tribunal ad quem que o meio processual é o próprio, importará agora, então, analisar o impacto do caso decidido emergente da extemporaneidade do recurso hierárquico, em sede da própria impugnação do tributo controvertido, onde repousa a recorrente parte das suas alegações recursivas.

Na verdade, como dissemos já, afronta a recorrente a sentença recorrida pelo facto de se ter pronunciado sobre o mérito das questões colocadas pelo recorrido – quanto ao enquadramento no regime geral e/ou simplificado para efeitos do artigo 28º do CIRS -, quando do probatório resulta que o recurso hierárquico que antecede a impugnação judicial foi liminarmente rejeitado por intempestividade, o que configura caso resolvido relativamente às liquidações de IRS impugnadas.

Na verdade, lendo a PI de impugnação judicial da recorrida, a questão da rejeição liminar por intempestividade do recurso hierárquico não é aflorada.

A decisão posta em crise nada refere a este propósito, repousando aqui o pomo da discórdia do recorrente quanto à mesma, pois entende que deveria o Tribunal concluir que as liquidações estavam já cristalizadas na ordem jurídica.

Apreciando.

Consultando a factualidade considerada provada, dali se colhe que efetivamente antes de deduzir a presente impugnação o recorrido interpôs recurso hierárquico, o qual foi indeferido por ser intempestivo – Cf. ponto 15) dos factos provados.

Como se disse, esta intempestividade não é sequer controversa entre as partes.

A ser assim, facilmente se conclui que as liquidações de IRS impugnadas encontram-se firmadas/consolidadas na ordem jurídica, o que leva à improcedência da própria impugnação judicial. A não ser assim, usando o recorrido daquele meio gracioso facultativo, de modo intempestivo, abrir-se-ia uma janela de oportunidade para sindicar tributos que se haviam solidificado na ordem jurídica por falta de reação tempestiva.

A respeito de situação semelhante (apesar do meio gracioso intempestivo fosse a reclamação graciosa e não o recurso hierárquico) disse-se o seguinte no acórdão do STA de 31.05.2017, Processo nº 01609/13:

“(....) a eventual intempestividade da reclamação graciosa não é indiferente ao resultado da impugnação judicial, conduzindo, a verificar-se, à improcedência do pedido por força do caso decidido ou resolvido e consequente inimpugnabilidade do acto (neste sentido, entre outros, o acórdão do STA de 2/04/2009, no processo nº 0125/09). É que, no caso de o acto já se ter firmado na ordem jurídica, por falta de atempado uso dos meios graciosos que a lei coloca à disposição do interessado, não pode este recuperar a oportunidade perdida, retirando da dedução de uma reclamação graciosa intempestiva consequências que a estabilidade do acto sindicado já não consente. (…)”(O destaque é nosso)

Mais recentemente, na minha linha jurisprudencial, sumariou o STA no douto acórdão de 03.05.2023, processo nº 0697/22.0BEPRT, que:

“III- A partir do momento em que os Recorrentes não colocam em crise a decisão de rejeição liminar da reclamação graciosa, por extemporaneidade, o acto impugnado consolidou-se na ordem jurídica e o conhecimento de eventuais ilegalidades originadoras de anulabilidade do acto, não é admissível em sede de impugnação judicial apresentada do indeferimento de reclamação graciosa, uma vez que estamos perante a inimpugnabilidade do acto, o que implica, como decidido, a improcedência da impugnação” (O destaque é nosso).

Porque assim é, a sorte das liquidações, por falta de reação tempestiva cristalizaram-se na ordem jurídica enquanto “caso decidido”, donde, a sorte da impugnação não poderia ser outra senão a sua improcedência – Vd, ainda, entre tantos outros, os acórdãos do STA datados de 01.07.2020, processo nº 01000/11.0BEALM 01103/17, e de 07.10.2009, processo 0476/09.

Aqui chegados, assuma a conclusão que o recurso terá de proceder atento o caso decidido, ficando prejudicado o conhecimento do erro de julgamento relativamente à errada interpretação e aplicação do artigo 28º do CIRS.


Nesta conformidade, revogando a decisão recorrida, terá de improceder a impugnação judicial com a consequente manutenção na ordem jurídica das liquidações impugnadas e dos montantes pagos, o que, em conformidade se decidirá.


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No que respeita a custas, considerando o princípio da causalidade vertido no artigo 122º nº 2 do CPPT e bem assim no 527º nº 1 e 2 do CPC, as custas ficam a cargo da parte vencida.

Contudo, não tendo a recorrida apresentado contra-alegações, não será responsável pelo pagamento da taxa de justiçaCf. acórdão deste TCAS de 17.09.2020, Processo nº 1505/17.0BELRS, o qual faz referência ao sumariado no acórdão do STA de 13/12/2017, donde se extrai que:

“I - As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artigos 529.º n.º 1, do CPC, e 3º, nº 1, do RCP).

II – A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente (artigos 529º, nº 2, e 6º, nº 1, do CPC) e apenas é devida no seu pagamento pela parte que demande (artigo 530.º n. 1, do CPC).

III - O Recorrido que não contra-alegue não é, em caso algum, responsável pelo pagamento de taxa de justiça, o qual não lhe é exigível ainda que no recurso fique vencido (artigos 7º, nº 2, do RCP, e 37º, nº 4, da Portaria nº 419-A/2009, de 17 de Abril);

IV – Se, porém, o Recorrido ficar vencido no recurso é, nos termos gerais, responsável pelo pagamento das custas (artigo 446º do CPC).”


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IV- DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Subsecção de Contencioso Tributário Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
- conceder provimento ao recurso;
- revogar a decisão recorrida;
- julgar improcedente a impugnação judicial, mantendo-se as liquidações impugnadas com todas as legais consequências.

Custas pelo recorrido, que não é responsável pelo pagamento da taxa de justiça nesta instância porque não contra-alegou.
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Lisboa, 16 de maio de 2024

Isabel Silva
(Relatora)
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Patricia Manuel Pires
(1ª adjunta)
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Vital Lopes
(2º adjunto)
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