Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:135/22.9BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/17/2022
Relator:ANA PAULA MARTINS
Descritores:TAD;
INFRACÇÃO DISCIPLINAR;
PRESUNÇÃO DE VERACIDADE;
Sumário:O visionamento pelo delegado da Liga de um registo fotográfico, exibido por um agente desportivo (director de imprensa), não confere a presunção de veracidade estabelecida no artigo 13º, al. f) do RDLFPF.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A Federação Portuguesa de Futebol, demandada no processo nº 11/2021, no qual são demandantes V., F. SAD e M. M., vem recorrer do acórdão proferido, no âmbito do referido processo, em 07.07.2022, pelo Tribunal Arbitral do Desporto, que julgou procedente a acção arbitral apresentada pelos Demandantes e, em consequência, anulou a decisão final de condenação proferida pela Federação Portuguesa de Futebol, em 11.02.2022, no âmbito do processo disciplinar nº 24-2021/2022, através da qual foi confirmada a decisão de aplicação ao Recorrido M. M. um jogo de suspensão e, acessoriamente, com a sanção de multa de 2UC, pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 158.º, al. e) do RD da LPFP.
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Nas alegações de recurso, a recorrente Federação Portuguesa de Futebol formulou as seguintes conclusões:
1. A Recorrente vem interpor recurso do Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 7 de Julho de 2022, que julgou procedente o recurso apresentado pelos ora Recorridos, que correu termos sob o n.º 11/2021, que revogou o acórdão de 11.02.2022, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, através do qual foi confirmada a decisão de aplicação ao Recorrido M. M. (de suspensão de um jogo de suspensão e multa de 2 UC, pela prática de infração p. e p. pelo artigo 158.º, al. e) do RD da LPFP;
2. A questão em apreço diz respeito ao respeito que os agentes desportivos, designadamente os jogadores, devem manter para com os adeptos, nomeadamente abstendo-se de praticar gestos ofensivos, desrespeitosos e provocatórios na direção daqueles, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas – como as que se discutem nos presentes autos – tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos agentes desportivos dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;
3. A questão essencial trazida ao crivo deste TCA revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal ou gestual seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios jogadores, treinadores e dirigentes dos clubes, com a agravante de quando a mesma é dirigida por agentes desportivos a adeptos;
5. Em causa nos presentes autos está, essencialmente, o comportamento do Recorrido que, por ocasião do jogo disputado entre a V. SAD e a S. – F., SAD, a contar para a 21.ª jornada da Liga Portugal Bwin, enquanto jogador efetivo da V. SAD envergando a camisola n.º .., após o apito final e enquanto a equipa da Recorrida V. dava uma “volta olímpica” ao relvado, no momento em que os jogadores da V. SA passavam na Bancada Topo Norte, “acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (vulgo pirete), provocando assobios dos adeptos da S. – F., SAD alocados na zona inferior desta Bancada” – cfr. relatório dos delegados da LPFP;
6. São deveres dos agentes desportivos, manter um tratamento respeitoso para com os demais agentes desportivo e acima de tudo para com os adeptos, abstendo-se de dirigir aos mesmos gestos injuriosos, obscenos, desrespeitosos e provocatórios, o que decorre dos regulamentos federativos, mas também da Constituição;
7. O Colégio Arbitral, declina que haja prova suficiente nos autos que permita concluir pela punição do Recorrido, porquanto os factos constantes no relatório dos delgados da Liga resultam do visionamento por parte daqueles, de um registo fotográfico, isto apesar dos factos vertidos no referido relatório, perfilhando assim entendimento ao arrepio da letra da norma do artigo 13.º, al f) do RDLPFP e do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão;
8. Diga-se, antes de mais que, desresponsabilizar os agentes desportivos pela prática de comportamento injuriosos, é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
9. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo;
10. O Colégio de Árbitros não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, a suficiência da prova coligida pelo Conselho de Disciplina, e bem assim, a presunção de veracidade do relatório dos delegados da LPFP;
Sem razão, senão vejamos
11. Tal como consta do Relatório dos delegados da LPFP, cujo teor se encontra junto aos autos, os mesmos, são absolutamente claros ao afirmar que o Recorrido dirigiu aos adeptos da equipa adversária, o gesto desrespeitoso, injurioso e provocatório de acenar com os dedos médios de ambas as mãos em riste;
12. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina sancionou o Recorrido, com base, entre outros elementos, no relatório elaborado pelos delegados da Liga, sendo que, estes relatórios gozam, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13º, al f) do RD da LPFP);
13. Os Árbitros e os Delegados da FPF são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos diversos agentes desportivos envolvidos no mesmo, que possam originar responsabilidade disciplinar;
14. Assim, quando os delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que determinado agente desportivo dirigiu gesto ofensivo, obsceno, discriminatório e provocatório dirigindo-se a adeptos da equipa adversária, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, visionados pelos referidos delegados, até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
15. Sucede que, não obstante os meios de prova que o CD coligiu, designadamente o relatório dos delegados da LPFP e os esclarecimentos prestados pelos menos em sede de Recurso Hierárquico Impróprio, serem claríssimos ao afirmar que o Recorrido dirigiu aos adeptos da equipa adversária, o gesto desrespeitoso, injurioso e provocatório de acenar com os dedos médios de ambas as mãos em riste o Colégio de Árbitros, numa interpretação sem correspondência na letra da Lei, que a presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos delegados da LPFP, não pode reportar a factos que os delegados da LPFP hajam visionado num registo fotográfico.
16. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade regulamentarmente estabelecida para os relatórios dos delegados da LPFP.
17. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos árbitros e delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.
18. Isto não significa que os Relatórios dos Árbitros e Delegados da FPF contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da Recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;
19. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;
20. E, para abalar essa convicção, cabe ao Recorrido, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;
21. Acresce que as normas constantes do RD da LPFP, em especial as constantes dos artigos 13., al. f), e 158.º, al e) do RD da LPFP, foram aprovadas pelos clubes participantes em competições profissionais, em sede de autorregulação e na medida em que o direito ao desporto tem uma aceção bastante ampla, que inclui o desporto profissional e o direito a organizar e participar em competições desportivas, a não aplicação de alguma norma do artigo do RD da LPFP, em especial do artigo 13º al f), violaria, assim, o conteúdo essencial desse direito, neste segmento.
22. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo do Relatório de Arbitragem, cabia ao Recorrido demonstrar que não dirigiu o gesto em questão na direção dos adeptos do S., designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas o Recorrido nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede, que pudesse afastar a referida presunção de veracidade dos relatórios dos árbitros e dos Delegados da LPFP;
23. Ora, o Relatório do dos delegados da Liga é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição do Recorrido no caso concreto, isto sem prejuízo de todas as diligências e meios de prova realizados e produzidos nos autos, confirmarem ou não contrariarem o teor do referido relatório, sendo que, uma parte desse acervo probatório resultou de diligências de prova realizadas em sede de RHI interposto pelo Recorrido, designadamente os esclarecimentos complementares dos delegados da Liga que corroboram os factos relatados no relatório por si elaborado;
24. Neste conspecto, o CD coligiu prova suficiente para sustentar a decisão de sancionar o Recorrido, tendo concluído em consonância que os meios de prova trazidos aos autos, não transmite aquele grau de certeza minimamente exigível não só para sustentar a versão do recorrido, mas sobretudo para fundadamente abalar o relato que aos delegados da Liga referem no seu relatório;
25. Tendo em contra o supra exposto, resulta inequívoco que o Recorrido dirigindo-se à aos adeptos da equipa adversária, no jogo em crise nos autos, “acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (vulgo pirete), provocando assobios dos adeptos da S. - F., SAD alocados na zona inferior desta Bancada”, protagonizando tal gesto injurioso, obsceno e provocatório, encontrando-se preenchidos os elementos do tipo da norma disciplinar prevista no artigo 158.º, al. e) do RDLPFP;
26. Com efeito, para que possa verificar-se o tipo disciplinar previsto pelo artigo 158.º, al. e), do RDLPFP [Injúrias e ofensas à reputação], é necessário que, voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa, um (i) jogador; (ii) use expressões, verbalmente ou por escrito, ou faça gestos de carácter injurioso, difamatório ou grosseiros; (iii) contra o público ou contra qualquer espectador em particular;
27. Ora, in casu resultado provado que: (i) o jogador Recorrido, após o apito final do jogo em apreço nos autos, e no momento em que, conjuntamente com os seus colegas de equipa, dava uma “volta olímpica” ao relvado, ao passar na Bancada Topo Norte; (ii) acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (vulgo pirete); (iii) provocando assobios dos adeptos da equipa adversária alocados na zona inferior dessa Bancada;
28. Até porque, o Recorrido tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar, nomeadamente, o dever de «manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva” (artigo 19.º, n.º 1, do RDLPFP);
29. Assim, ao dirigir aos adeptos de equipa adversária o gesto desrespeitoso, injurioso e provocatório de acenar com os dedos médios de ambas as mãos em riste, e para mais tratando-se de jogador de equipa profissional de uma das maiores instituições desportivas nacionais, dúvidas não temos que os factos em crise abalam a credibilidade da competição, que assenta, nesta sede, em valores de mútuo respeito entre os diversos agentes desportivos e impõe aos mesmos um constante respeito pelos adeptos e restantes agentes desportivos, no caso concreto, especialmente em causa está a salvaguarda do combate a fenómenos de violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva, princípio norteador do direito ao desporto, previsto no artigo 79.º da CRP, porquanto a tutela e tradução deontológica do princípio da ética desportiva reclama e impõe a qualquer agente desportivo um comportamento em linha com os princípios da correção, da urbanidade e da lealdade, apto à criação e manutenção de um espaço comunicacional de convivência e de respeito em toda a comunidade desportiva, sendo que, as condutas p. e p. no artigo 158.º do RDLPFP são condutas atentatórias dos padrões de conduta esperados e minimamente exigíveis a qualquer agente desportivo;
30. Isto significa que para concluir que o Recorrido dirigiu aos adeptos de equipa adversária o gesto desrespeitoso, injurioso e provocatório de acenar com os dedos médios de ambas as mãos em riste, o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados da Liga, qual tem presunção de veracidade, factos aliás não contrariados e até corroborados pela prova produzida nos autos;
31. Tem sido, aliás, esse o entendimento dos tribunais superiores sobre esta matéria, designadamente do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional;
32. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir Recorrido, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido –o gesto desrespeitoso, injurioso e provocatório de acenar com os dedos médios de ambas as mãos em riste dirigido a adeptos da equipa adversária - foi retirado de outros factos conhecidos e de outros meios de prova, nomeadamente os esclarecimentos dos delegados da Liga, no âmbito do RHI;
33. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos, não se verificando a violação de qualquer princípio constitucional, a saber, o princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP);
34. Acresce que, a interpretação que o Tribunal a quo faz do artigo 13.º, al f) do RDLPFP, no sentido de excluir a presunção de veracidade dos factos relatados nos relatórios de arbitragem e de jogo, quando tais factos resultem do visionamento de registo fotográfico ou de vídeo, não encontra o mínimo respaldo na letra da referida norma, indo contra o espírito que norteia a mesma, dar-se um especial valor probatório aos factos de que árbitros e delegados da Liga têm conhecimento no exercício das duas funções;
35. Com efeito, dispõe o artigo 13.º, al. f) do RDLPFP que a “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga Portugal e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa”, sendo que, no caso concreto, não estamos perante factos preenciados por terceiros, mas sim, perante factualidade diretamente percecionada pelos delegados da LPFP, no exercício das suas funções, que visualizaram diretamente aquele registo fotográfico, associaram-no como causador dos assobios dos adeptos da S. SAD, e daí terem detalhadamente feito constar no Relatório a conduta do jogador representada nesse registo;
36. Da redação da referida norma, não se pode retirar, como é bom d ever, que a presunção de veracidade dos factos constantes de relatório, não opera, se tais factos resultarem de visionamento de registo fotográfico ou de vídeo, sendo neste ponto, com o devido respeito, que se equivoca o Tribunal a quo.
37. Pelo que, resulta claro que o Conselho de Disciplina coligiu e carreou para os autos, prova mais do que suficiente para concluir e decidir pela punição do Recorrido por este ter dirigido aos adeptos de equipa adversária o gesto desrespeitoso, injurioso e provocatório de acenar com os dedos médios de ambas as mãos em riste;
38. A tese sufragada pelo Colégio de Árbitros é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se- á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em quem pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés – o que é mais preocupante -, criando na comunidade um sentimento de descrédito nas competições e nas autoridades que gerem o futebol português;
39. Neste conspecto, andou mal o Tribunal a quo ao considerar não provado o único facto que elenca nesse segmento do Acórdão de que ora e recorre, pelo que, deve ser considerado provado a seguinte factualidade: “Na “Volta Olímpica” e no momento em que os jogadores da V. SA passavam na Bancada Topo Norte, o jogador n.º .. do V. SC, o aqui Recorrente M. M. acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (vulgo pirete), provocando assobios dos adeptos da S. – F., SAD alocados na zona inferior desta Bancada”
40. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13º, al. f), 158.º, al. e) do RD da LPFP e por erro na apreciação da prova produzida nos autos e do elenco dos factos dados como provados.
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Contra-alegaram os Recorridos, pugnando pela improcedência do recurso.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, no sentido da improcedência do recurso.
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Sem vistos, atento o carácter urgente dos autos, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência.
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II – OBJECTO DO RECURSO

A questão objecto do presente recurso consiste em aferir se o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto padece de erro de julgamento na interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13º, al. f), 158.º, al. e) do RD da LPFP e por erro na apreciação da prova produzida nos autos e do elenco dos factos dados como provados.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

De Facto:
O Tribunal Arbitral de Desporto considerou provados os seguintes factos:
1- No dia .. de … de 2022, no E. D. A. H., em G., realizou-se o jogo n.º …3 (203.01.183), disputado entre a V.SAD e a S. – F., SAD, a contar para a 21.ª jornada da Liga Portugal Bwin.
2- No sobredito jogo interveio, enquanto jogador efetivo da V. SAD, o aqui Demandante M. M., envergando a camisola n.º ...
3- Após o apito final, a equipa visitada, V. SAD, incluindo o Demandante, M. M., festejou o resultado (vitória por 2-1), dando uma “volta olímpica” ao relvado.
4- No Relatório do Delegado referente ao jogo oficial n.º …3 consta que: “Após o apito final, a equipa visitada festejou o resultado, dando uma volta olímpica ao relvado. Foi reportado pelo Sr. Diretor de Imprensa do S., que se deslocou à sala de organização do jogo, um registo fotográfico que, no momento em que a equipa visitada passou na Bancada Topo Norte, o jogador n.º .. do V. acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (pirete), provocando assobios dos adeptos do S. alocados na zona inferior desta Bancada”
5- Tendo presente a factualidade descrita no Relatório de Delegado, e após a concessão de prazo para o exercício do direito de audição prévia, dentro do qual o jogador Recorrente optou por não se pronunciar, foi o mesmo sancionado, por decisão sumária proferida no dia 8 de fevereiro de 2022, em formação restrita, publicitada no Comunicado Oficial n.º 225 da LPFP, de 9 de fevereiro de 2022, em 1 (um) jogo de suspensão e multa no valor de €174,00 (cento e setenta e quatro euros), nos termos do disposto no artigo 158.º, alínea e), do RDLPFP.
6- À data dos factos, o jogador Recorrente tinha averbado no seu cadastro condenações pela prática de infrações disciplinares.
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O TAD indicou como factos não provados o seguinte:
· Na “Volta Olímpica” e no momento em que os jogadores da V. SA passavam na Bancada Topo Norte, o jogador n.º .. do V., o aqui Recorrente M. M. acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (vulgo pirete), provocando assobios dos adeptos da S. – F., SAD alocados na zona inferior desta Bancada.
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Foi esta a motivação da matéria de facto exarada na decisão recorrida:
“A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto julgada provada e não provada, para além de ter resultado da consideração conjunta e global de toda a prova produzida, resultou ainda de uma análise crítica e conjugada de todos os meios de prova coligidos e produzidos nos presentes autos,
designadamente documental e testemunhal, tendo-se observado o princípio da livre apreciação da prova e tendo-se concluído que tal prova, segundo as regras de experiência, se mostrou suficiente para, além da dúvida razoável, dar por assentes os factos julgados provados e, inversamente, não dar como assente(s) aquele(s) que se julga(ram) não provado(s).”
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De Direito

O Tribunal Arbitral de Desporto anulou a decisão do Conselho de Disciplina da FPF que condenou os Demandantes na pena de suspensão 1 jogo e, acessoriamente, na pena de multa fixada em 174,00€, pela prática da infracção disciplinar prevista nos artigos 158.º, al. e) do RDLPFP, mediante aplicação da presunção de veracidade prevista na al. f) do art. 13.º do RDLPFP, por entender que um registo fotográfico entregue por um agente desportivo ao Delegado da Liga não confere a aludida presunção de veracidade, que apenas se aplica a factos visualizados “in loco” pelos delegados da Liga.
Foi esta a fundamentação:

Nesta primeira fase temos que verificar se um registo fotográfico entregue pelo Diretor de Imprensa do S. aos delegados da Liga preenche os requisitos do artigo 13º alínea f do RDLPFP21.
Mais concretamente, se o facto de ser entregue um registo fotográfico aos delegados da Liga têm os mesmos efeitos jurídicos e probatórios de ter sido visualizado pelos referidos agentes.
A afirmação só tem que ser negativa como explicaremos de seguida.
Vejamos, os requisitos do artigo 13º alínea f) do RDLPFP21 são:
“O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:
“…
f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga Portugal e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa;”
(Negrito e sublinhado nosso)
Para existir presunção de veracidade dos factos tem que o facto ser percecionado, concretamente, pelo delegado da Liga no seu exercício de funções.
Sem qualquer dúvida que o Delegado da Liga estava em exercício de funções quando o Diretor de Imprensa do S. lhe entregou o registo fotográfico.
O Delegado da Liga no seu relatório mencionou:
“Após o apito final, a equipa visitada festejou o resultado, dando uma volta olímpica ao relvado.
Foi reportado pelo Sr. Diretor de Imprensa do S., que se deslocou à sala de organização do jogo, um registo fotográfico que, no momento em que a equipa visitada passou na Bancada Topo Norte, o jogador n.º .. do V. acenou com os dedos médios de ambas as mãos em riste (pirete), provocando assobios dos adeptos do S. alocados na zona inferior desta Bancada”
Foram solicitados esclarecimentos aos delegados da Liga com as seguintes questões:
“1. Os Srs. Delegados visualizaram o “registo fotográfico” que afirmam ter sido reportado pelo Sr. Diretor de Imprensa do S.?
2. Tratava-se de um registo em suporte fotográfico ou vídeo?
3. Os Srs. Delegados solicitaram uma cópia desse registo? Em caso de resposta afirmativa, solicita-se à sua junção a estes autos, bem como a indicação da razão de não ter sido anexado ao Relatório de Delegado.
Em resposta ao solicitado responderam:
Delegado S. F.
«(…)
Tenho presente o conteúdo do douto despacho que antecede que mereceu a melhor atenção.
Relativamente ao exposto venho, em nome da equipa de delegados presente nesse jogo, prestar os esclarecimentos solicitados.
Por uma questão de sistematização utilizarei a numeração constante nas questões colocadas:
1. Sim, visualizamos conforme referido no relatório de jogo.
2. Como consta do relatório de ocorrências, tratou-se dum “(…) registo fotográfico (…)”.
3. Não foi solicitado o referido registo fotográfico pois é competência dos Delegados da LPFP consignar no respetivo relatório denúncias que lhes sejam apresentadas pelos agentes desportivos, o que foi o caso».
Delegado A. F.
«Concordo com o exposto no e-mail infra, enviado pelo Delegado da Liga, S. F.».

Chegados aqui fica provado que os delegados da Liga verificaram apenas e só o registo fotográfico sem ter ficado na sua posse o referido registo fotográfico.
Um registo fotográfico não é naturalmente o mesmo que os “olhos” dos delegados da Liga e da equipa de arbitragem veem “in loco”, nem tão pouco se lhes pode querer atribuir o mesmo valor jurídico.
E é isso mesmo que a norma do artigo 13º alínea f) do RDLPFP21 quer dizer, e no caso nela previsto, e só nele, de que depende a presunção de veracidade.
Dar valor probatório ao que os “olhos” dos delegados da Liga e da equipa de arbitragem visualizam, ao vivo, “in loco”, no exercício das suas funções e não outras situações denunciadas por outros agentes desportivos.
Para esse efeito existem outras formas processuais presentes no RDLPFP21. Legitimar o sancionamento em processo sumário, tendo presente a sua especificidade processual, com base em registos fotográficos, vídeos e demais denúncias de agentes desportivos apresentadas aos delegados da Liga e não percecionadas por este, seria “abrir” um precedente inadmissível, destituído de fundamento legal e violador, não só da referida norma regulamentar, como dos elementares direitos de defesa do visado.

Adiante-se que concordamos integralmente com a decisão tomada pelo TAD, não podendo proceder os fundamentos de recurso apresentados.
In casu, os Demandantes, ora Recorridos, foram condenados pela prática da infracção prevista e punida no artigo 158º, al. e) do Regulamento Disciplinar da LPFP - que disciplina os poderes disciplinares de natureza pública exercidos no âmbito das competições de futebol organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional -, norma inserida na subsecção III relativa às infracções disciplinares graves e epigrafada “Injúrias e ofensas à reputação” – segundo a qual os “jogadores que usem expressões, verbalmente ou por escrito, ou façam gestos de carácter injurioso, difamatório ou grosseiro são punidos: (…) no caso de expressões dirigidas contra o público ou contra qualquer espectador em particular, com a sanção de suspensão a fixar entre um a dois jogos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 2 UC e o máximo de 25 UC”.
A Federação Portuguesa de Futebol alicerçou a condenação na presunção prevista no artigo 13º, al f) do referido Regulamento – que configura princípio fundamental do procedimento disciplinar regulado no mesmo -, nos termos da qual se presume a “veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga Portugal e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa”.
A questão do valor probatório dos relatórios de jogo elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional é matéria já muito discutida pelo Supremo Tribunal Administrativo – cfr. acórdãos de 18 de Outubro de 2018 (processo nº 0144/17.0BCLSB); de 20 de Dezembro de 2018 (Processo nº 08/18.0BCLSB), de 21 de Fevereiro de 2019 (Processo nº 033/18.0BCLSB); de 21 de Março de 2019 (Processo nº 075/18.6BCLSB); de 4 de Abril de 2019 (Processos nºs 040/18.3BCLSB e 030/18.6BCLSB); de 2 de Maio de 2019 (Processo nº 073/18.0BCLSB); de 19 de Junho de 2019 (Processo nº 01/18.2BCLSB); de 5 de Setembro de 2019 (Processos nºs 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB) de 16 de Janeiro de 2020 (Processo nº 039/19.2BCLSB); de 7 de Maio de 2020 (Processos nº 144/17.0BCLSB e 074/19.0BCLSB; de 18 de Junho de 2020 (Processo nº 42/19.2BCLSB); de 19 de Novembro de 2020 (Processos n.ºs 82/18.9BCLSB e 102/19.0BCLSB); de 3 de Dezembro de 2020 (Processo nº 0147/19.0BCLSB); e de 11 de Março de 2021 (Processo nº 089/19.9BCLSB), disponíveis para consulta em www.dgsi.pt -, no sentido de que a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo artº 13º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos artºs 2º, 20º, nº 4, e 32º, nºs 2 e 10º, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo”.
Não é essa a discussão nos presentes autos.
No caso em apreço, o dissídio reside em saber o que são factos “percecionados” pelo delegado da Liga - sendo pacífico que a situação em causa ocorreu no exercício das suas funções – para efeitos de aplicação da presunção prevista no artigo 13º, al f) do Regulamento.
Mais concretamente, saber se o visionamento pelo delegado da Liga de um registo fotográfico, que lhe foi exibido por um outro agente desportivo (Director de Imprensa do S.), confere a aludida presunção de veracidade. Ou, dito de outra forma, saber se, atento o facto dado como provado sob o nº 4 (numeração nossa) – Relatório do Delegado -, o TAD deveria ter considerado provado o facto que indicou como não provado.
Para o que aqui releva, a presunção de veracidade confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes, por eles percecionados no exercício das suas funções.
Este valor reforçado encontra o seu fundamento na natureza das funções exercidas pelo delegado da Liga e na circunstância de o facto ter sido por ele percepcionado, isto é, ter sido dele percebido ou conhecido através dos seus sentidos.
No caso, o delegado da Liga não viu o jogador M. M., ora Recorrido, fazer o gesto que lhe é imputado. O que o delegado viu foi um registo fotográfico, que lhe foi exibido pelo Director de Imprensa do S., na sala de organização do jogo.
Acresce que a fotografia exibida não ficou na posse do delegado nem foi junta aos autos, impedindo, assim, qualquer análise da mesma, designadamente apurar se é ou não manipulada e, sendo real, em que circunstâncias de tempo e lugar foi tirada.
Não é equiparável a situação em que o delegado da Liga visiona imediata e directamente o comportamento do jogador, “em campo”, com a situação em causa, em que o delegado visiona uma fotografia, exibida pelo Director de Imprensa do clube adversário, na sala de organização do jogo, a retratar o jogador, ora Recorrido, a fazer o gesto que lhe é imputado.
De resto, essa diferenciação é assinalada pelo delegado da Liga quando, no seu relatório, não se limita a fazer constar a actuação imputada ao jogador; antes fazendo constar o reporte do registo fotográfico e a conduta do jogador aí representada.
Conduta reforçada quanto, em sede de esclarecimentos, os delegados da Liga não afirmam que o jogador teve determinada actuação, o que dizem é que visualizaram o registo fotográfico referido no relatório, acrescentando que “não foi solicitado o referido registo fotográfico pois é competência dos Delegados da LPFP consignar no respetivo relatório denúncias que lhes sejam apresentadas pelos agentes desportivos, o que foi o caso”.
Donde, o próprio delegado da Liga enquadra o reporte que lhe foi feito como sendo uma denúncia apresentada por um agente desportivo, que consignou no relatório, e não como algo equivalente a um visionamento seu.
Esta actuação do delegado da Liga encontra respaldo no artigo 65º, nº 2, als. i) e m) do Regulamento das Competições organizadas pela Liga Portugal, nos termos do qual, entre as competências dos delegados da Liga, contam-se a de elaborar e remeter à Liga Portugal um relatório circunstanciado de todas as ocorrências relativas ao normal decurso do jogo, incluindo quaisquer comportamentos dos agentes desportivos findo o jogo, na flash interview; e consignar no respectivo relatório as denúncias que lhes sejam apresentadas pelos delegados dos clubes.
A denúncia de um agente desportivo para apuramento de responsabilidade disciplinar e a instauração de auto de flagrante delito, em sede de processo sumário, está prevista e regulada no artigo 258º do RD LPFP. Não foi esta, porém, a via seguida.
Aqui chegados, concluímos, como o Tribunal Arbitral de Desporto, que a norma do artigo 13º alínea f) do RDLPFP – que, recordemos, constitui princípio fundamental do procedimento disciplinar aí regulado – confere valor probatório reforçado (presunção de veracidade) ao que os “olhos” dos delegados da Liga visualizam, ao vivo, “in loco”, no exercício das suas funções e não a outras situações denunciadas por outros agentes desportivos.
Donde, o Tribunal Arbitral de Desporto decidiu acertadamente no elenco que faz da matéria de facto provada e não provada e fez correcta interpretação e aplicação do direito invocado.
Em consequência, improcede o presente recurso, mantendo-se o acórdão recorrido na ordem jurídica.
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IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso, mantendo o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto. *
Custas pela Recorrente, nos termos do art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 17 de Novembro de 2022

Ana Paula Martins
Carlos Araújo
Frederico Macedo Branco