Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:504/10.7BELRS-A
Secção:CT
Data do Acordão:06/05/2025
Relator:FILIPE CARVALHO DAS NEVES
Descritores:RECURSO DE REVISÃO
SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA
REVERSÃO
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS
Sumário:I – Não existe qualquer norma legal que atribua força de caso julgado no processo de oposição à execução fiscal às decisões proferidas em processo criminal.
II – A sentença de absolvição em processo-crime deve reconduzir-se a um elemento de prova que deve ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no art.º 607.º, n.º 5 do CPC, ex vi art.º 2.º, alínea e) do CPPT.
III – O recurso de revisão não pode ser utilizado para ultrapassar falhas ou deficiências na construção da defesa apresentada pelo revertido em sede de oposição à execução fiscal, que, a final, poderão ter levado à improcedência da ação.
IV – O fundamento de revisão de decisão judicial ínsito na alínea f) do n.º1 do art.º 696.º do CPC deve ser interpretado de forma parcimoniosa, demandando, além do mais, que a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum.
V – Esta perspetiva hermenêutica visa, fundamentalmente, o equilíbrio entre a segurança jurídica e a observância do julgado pelo TEDH, sopesando também o desiderato de garantir, minimamente, a soberania nacional em matéria de justiça fiscal.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul



I – RELATÓRIO

C…, com os demais sinais dos autos, veio, ao abrigo do disposto nos art.ºs 627.º, 628.º, 631.º, n.ºs 1 e 2, 639.º, n.º 1, 696.º, alínea f), 697.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) e 698.º, n.º 1 e 2, todos do Código de Processo Civil («CPC»), aplicáveis por força da alínea e) do art.º 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário («CPPT»), interpor contra a Autoridade Tributária e Aduaneira («AT») recurso extraordinário de revisão do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul («TCAS») em 19/10/2023, no qual foi decidida a improcedência do recurso jurisdicional interposto pelo Recorrente contra a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa («TTL») em 18/03/2019, com a consequente manutenção na ordem jurídica do despacho que ordenou a reversão contra si do processo de execução fiscal («PEF») n.º 3247199601053450 e apensos na parte em que não foi declarada a prescrição das dívidas exequendas.

A Recorrente apresentou alegações, rematadas com as seguintes conclusões:

«a) Vem o presente recurso extraordinário de revisão interposto do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 19.10.2023 e notificado ao Recorrente nesse mesmo dia com a referência Sitaf 4990847, nos termos do qual foi decidido que “inexiste qualquer norma legal que atribua força de caso julgado no processo de oposição à execução fiscal às decisões proferidas em processo criminal” (cf. as páginas 20 e seguintes do acórdão revidendo), tendo, a final, sido julgado improcedente o recurso interposto pelo Recorrente contra a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa em 18.03.2019, mantendo-se na ordem jurídica do despacho que ordenou a reversão contra o aqui Recorrente do processo de execução fiscal n.º 3247199601053450 e apensos;
b) O acórdão em análise, que não se aceita, lesa os direitos e interesses do Recorrente, C…, pelo que o mesmo tem legitimidade para recorrer, em conformidade com o disposto no artigo 631.º do CPC, aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT;
c) O Recorrente, C… teve efetivo conhecimento da decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, proferida no processo n.º 56564/15, em 07.11.2023, na sequência da disponibilização, no sítio da internet do referido Tribunal;
d) O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não emite qualquer certidão do processo/decisão, uma vez que é alvo de publicação generalizada no sítio da internet do Tribunal (disponível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-228671%22]}), devendo, por este motivo, ser dada como cumprida a formalidade exigida no n.º 2 do artigo 698.º do CPC;
e) Considerando que o presente recurso extraordinário de revisão tem por fundamento a alínea
f) do artigo 696.º do CPC, o Recorrente, C… está em prazo para interpor o presente recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 697.º do CPC, aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT;
f) Não obstante a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ter sido emanada no âmbito de um outro processo judicial de oposição à execução (n.º 502/10.2BELRS, em que estava em causa a reversão do processo de execução fiscal n.º 3247200401036459 e apensos, no valor de € 240.573,74), a mesma deverá ser aplicada in totum ao caso sub judice, na medida em que a situação factual em causa é idêntica;
g) Constatando-se que, no caso vertente, se está perante uma situação de facto idêntica à analisada no processo n.º 502/10.2BELRS - que deu origem ao processo (queixa) que correu
termos junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sob o n.º 56564/15 -, este Venerando Tribunal deverá, em observância do disposto no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil,
do princípio da tutela jurisdicional efetiva prevista no artigo 20.º da CRP e do princípio do primado do direito da União Europeia previsto no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, atender a esta situação e, consequentemente, revogar o acórdão proferido em 19.10.2023 no âmbito dos presentes autos (504/10.7BELRS), observando a tramitação a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 701.º do CPC, aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT;
h) Do confronto entre o acórdão revidendo e a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é manifesta a sua incompatibilidade, na medida em que, enquanto o tribunal português adotou uma “interpretação excessivamente formalista dos requisitos de admissibilidade do recurso” ao nível da possibilidade de análise da inexistência da gerência de facto por parte do aqui Recorrente atendendo à sentença penal absolutória, em virtude de não estender os efeitos extraprocessuais da decisão penal absolutória ao processo tributário, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem defende uma posição diametralmente oposta, entendendo que a decisão penal absolutória ao processo tributário tem de ser, forçosamente,
considerada no processo tributário e, consequentemente, não pode vingar a tese (formalista)
de que (i) o Recorrente teria de invocar os argumentos (sustentados na decisão penal absolutória) em sede da petição inicial e (ii) a sentença penal absolutória não tem quaisquer efeitos extraprocessuais no processo tributário;
i) A interpretação efetuada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem determina que (i) a força de caso julgado da sentença penal absolutória é extensível as ações de natureza tributária, nos termos do artigo 624.º do CPC e, consequentemente, há uma (simples) presunção legal da inexistência desses factos (in casu, a não gerência de facto pelo aqui Recorrente) e que, (ii) sem prejuízo da referida presunção poder ser ilidida mediante prova em contrário (a efetuar, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT e do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, pela Autoridade Tributária), a presunção decorrente da sentença penal absolutória prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil/tributária
(ou seja, sobre a presunção de efetiva gerência e, consequentemente, de culpa, prevista no n.º 1 do artigo 24.º da LGT);
j) A interpretação legal nos termos em que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a faz determina que, não resultando provado que o Recorrente era administrador (de facto) da devedora originária no período a que respeita a dívida - isto é, tendo o Recorrente deixado de
estar em contacto com a devedora originária e de tomar as decisões importantes e capitais para o seu desenvolvimento nesse período -, o mesmo não poderia ser responsabilizado pela dívida exequenda, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º da LGT (independentemente das alíneas aplicadas pela Autoridade Tributária), na medida em que o referido preceito legal exige, para
responsabilização subsidiária do sujeito passivo singular, a gerência efetiva ou de facto;
k) Em todo o caso, o Recorrente considera que, esta prevalência de “inexistência desses factos” “sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil [e tributária]”, manter-se-á mesmo nas situações em que, por algum motivo, se entenda que foi ilidida a presunção prevista no n.º 1 do artigo 624.º do CPC, pelo que ainda que a parte contrária faça prova bastante no processo que, na ótica do Tribunal, ilida a presunção prevista no n.º 1 do artigo 624.º do CPC, jamais poderá ser aproveitada a seu favor uma qualquer presunção de culpa, cabendo-lhe, por esse motivo, a efetiva prova da culpa de determinada situação;
l) Na ótica do Recorrente, o entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que “o mérito da sentença de absolvição proferida contra o recorrente pelo Tribunal de Lisboa” tem de ser (de facto e verdadeiramente) considerado no âmbito do ordenamento jurídico-tributário e, consequentemente, in casu, não pode prevalecer a presunção de culpa contra o Recorrente a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT, a Autoridade Tributária teria de ter feito efetiva prova de que o não pagamento da dívida tributária é imputável ao Recorrente e em que medida é que os atos praticados pelo mesmo levaram à insuficiência do património da devedora originária para fazer face a essas dívidas, em consonância com o disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT e do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil – prova essa que, na ótica do Recorrente, não foi efetuada, nem no âmbito do despacho de reversão, nem no âmbito do processo de oposição à execução.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso extraordinário de revisão ser julgado procedente e, em consequência, com o fundamento a que alude a alínea f) do artigo 696.º do CPC, aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT, deve ser revogado o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 09.06.2021 e notificado ao Recorrente nesse mesmo dia com a referência Sitaf 4158260, por se mostrar incompatível com a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo n.º 56564/15, observando-se a tramitação a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 701.º do CPC, aplicável por força da alínea e) do artigo 2.º do CPPT.
Mais se requer a V. Exa. se digne dispensar do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos da segunda parte do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais.».
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Exmo. Magistrado do Ministério Público («EMMP») pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso de revisão.
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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cf. art.º 635.º, n.º 4 e art.º 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil - «CPC» - ex vi art.º 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - «CPPT»), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se deve ser revogado o acórdão proferido por este Tribunal em 19/10/2023 por se mostrar incompatível com a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos («TEDH») no processo n.º 56564/15.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.A - De facto

Resulta dos autos a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:

A. Em 19/10/2023, no âmbito do processo n.º 504/10.7BELRS, foi proferido acórdão por este Tribunal que julgou improcedente o recurso jurisdicional interposto pelo aqui Recorrente contra a sentença proferida pelo TTL em 18/03/2019, que julgou, com fundamento na prescrição, parcialmente procedente a oposição à execução fiscal deduzida no PEF n.º 3247199601053450 e apensos;

B. Em 07/11/2023, no âmbito do processo n.º 56564/15, que tem na sua génese o processo n.º 502/10.2BELRS, foi proferida decisão pelo TEDH, a qual foi disponibilizada no sítio da internet daquele Tribunal (https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-228671%22]}), no sentido de que houve violação do art.º 6.º, n.º 2 da Convenção, pois não foi respeitado o princípio da presunção de inocência;

C. Em 08/01/2024 deu entrada neste Tribunal recurso de revisão do acórdão indicado no ponto A. supra.

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Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da presente ação.

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A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados resultou do exame dos documentos, não impugnados, juntos aos autos.

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III.B De Direito

Insurge-se a Recorrente contra o acórdão proferido por este Tribunal em 19/10/2023, no processo n.º 504/10.7BELRS, por a posição ali preconizada ser incompatível com a decisão do TEDH de 07/11/2023, proferida no processo n.º 56564/15. Vem, assim, o Recorrente peticionar a revogação do referido acórdão deste Tribunal, defendendo, na essência, que in casu deveria este Tribunal ter ponderado que não exerceu a gerência de facto da sociedade devedora originária nos períodos a que respeitam as dívidas exequendas, tal como ficou plasmado na sentença absolutória proferida em sede de processo-crime.

Diversamente, entende o EMMP junto deste Tribunal que o recurso não merece provimento, inexistindo fundamento bastante para justificar a modificação do julgado no acórdão revidendo nos termos peticionados no recurso de revisão apresentado.

Apreciemos.

Adiantando, desde já, a nossa posição, entendemos que não tem razão o Recorrente. Vejamos, então, porquê.

Em primeiro lugar, porque como ressalta do ponto B. da factualidade assente, e é expressamente reconhecido pelo Recorrente nas conclusões f) e g) do recurso de revisão interposto, a decisão do TEDH em causa não foi proferida com referência aos presentes autos, pelo que, na nossa perspetiva, não se pode afirmar tout court que foi decidido por aquela instância internacional de recurso que o acórdão revidendo afronta qualquer norma da Convenção Europeia dos Direitos Humanos («CEDH»).

Depois, porque no caso concreto a motivação da não apreciação da questão atinente ao não exercício da gerência de facto da executada originária pelo Recorrente radica na sua falta de invocação oportuna, prevalecendo, pois, como se apontou no acórdão revidendo, o princípio da estabilidade da instância. Com efeito, foi sumariado no ponto IV da decisão revidenda que «Sendo na petição inicial que o Oponente deve invocar os factos e as razões de direito que suportam a pretensão deduzida em juízo, de extinção da execução fiscal e não se subsumindo a questão dos autos (gerência de facto) em questão superveniente, ou de conhecimento oficioso, a invocação de novos factos suscetíveis de integrar fundamento de oposição em sede das alegações previstas no artigo 120.º do CPPT, ex vi artigo 211.º do mesmo diploma legal, envolvendo alteração da causa de pedir, não pode ser objeto de conhecimento, por violar o princípio da estabilidade da instância.».
Constamos, pois, que foi a construção da defesa do Recorrente gizada na petição inicial que prejudicou a apreciação da questão da não gerência de facto da executada originária, sendo-lhe por isso inteiramente imputável a não apreciação desta matéria pelo TTL e por este TCAS. É que se esta questão tivesse sido suscitada pelo Recorrente na petição inicial, seguramente que teria sido objeto de ponderação pelo Tribunal a quo e, em caso de recurso jurisdicional em razão de decisão desfavorável, também seria ponderada por este Tribunal caso integrasse as correspondentes conclusões recursórias.

Por esta razão, o presente recurso de revisão não pode agora ser utilizado pelo Recorrente para colmatar as falhas e deficiências da defesa apresentada em sede de oposição à execução fiscal, tendo o TTL e o TCAS observado, com a equilibrada ponderação, o princípio jurídico-processual da estabilidade da instância, como bem se encontra explanado na decisão revidenda.

Em terceiro lugar, o art.º 624.º do CPC não tem, no caso concreto, o alcance que o Recorrente lhe pretende atribuir para efeitos de modificação do acórdão revidendo.

Como é sabido, não existe qualquer princípio ou norma legal que preveja a prevalência das decisões proferidas em processo-crime sobre as decisões proferidas em sede de processos judiciais tributários. Pelo contrário, o que o legislador prevê no art.º 48.º do Regime Geral das Infrações Tributárias («RGIT») é a possibilidade de «a sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas» constituírem «caso julgado para o processo penal tributário» e «apenas relativamente às questões nela decididas e nos precisos termos em que o foram».



No que respeita, em concreto, à eficácia das decisões proferidas nos processos criminais, determina o art.º 623.º do CPC que «[a] condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração».

Por seu turno, o art.º 624.º, n.º 1 do CPC estipula que «[a] decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário».

Da articulação das acima transcritas normas podemos inferir que uma vez transitada em julgado, a decisão penal condenatória ou absolutória fundada no facto de o arguido ter, ou não, praticado os factos que lhe foram imputados, constitui presunção iuris tantum de (in)existência desses factos.

Como sublinha Maia Gonçalves (in «Código de Processo Penal Anotado», 5ª ed., Coimbra, 1982, p. 239), «[f]oi essa, aliás, a intenção do legislador aquando da Reforma do Código de Processo Civil de 1995 (Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) quando fez constar do respetivo preâmbulo que “no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria”».
Assim, vem sendo sublinhado pela jurisprudência, que «o que está em causa nos arts. 674º-A e 674º-B, do C.Proc.Civil [a que correspondem os atuais artigos 623.º e 624.º do CPC] não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado», que, atualmente, «é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido, invocável em relação a terceiros - isto é, em relação aos sujeitos no processo civil que não tenham intervindo no processo penal - em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção». (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.3.2004, processo n.º 03B4193, disponível em www.dgsi.pt).

Ainda com relevo para o caso que agora nos ocupa, determina o art.º 84.º do Código de Processo Penal («CPP»), sob a epigrafe «Caso julgado» que «[a] decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis».

Da leitura conjugada das aludidas normas, extrai-se, pois, a conclusão de que não existe qualquer norma legal que verdadeiramente atribua força de caso julgado no processo de oposição à execução fiscal às decisões proferidas em processo criminal. Com efeito, só no âmbito de ações civis em que se discutam relações jurídicas conexas com a prática da infração em apreciação no processo penal, pode a decisão penal condenatória/absolutória constituir presunção ilidível relativamente aos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal do crime.



Esta constatação da menção expressa e exclusiva às ações civis, afastando as ações de natureza tributária, levou a jurisprudência a acolher a posição de que «(…) apesar da maior exigência probatória do processo criminal para dar como provados factos integradores de infracção que é corolário do principio in dúbio por reo, não existe qualquer norma legal que atribua força de caso julgado no processo de impugnação judicial às decisões proferidas em processo criminal.
Com efeito, o art. 84.º do C.P.P. apenas atribui relevância extraprocessual ao caso julgado no
caso de decisões penais que apreciam pedidos cíveis e os arts 674.º-A e 674.º-B do C.P.C. apenas atribuem a decisões penais efeitos em processos de natureza cível e não de natureza tributária.
Sendo assim, independentemente de o tribunal tributário poder e dever aproveitar provas produzidas em processo criminal (…) não se pode justificar que se aguarde que nesse processo seja proferida decisão com trânsito em julgado, pois nenhuma relevância é legalmente atribuída a este trânsito no processo de impugnação judicial» (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo – «STA» – de 16/02/2005, processo n.º 08/05, e, neste mesmo sentido, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27/05/2021, processo n.º 0102/20, todos disponíveis em www.dgsi.pt - destaques nossos).

Neste sentido, a jurisprudência tem também vindo a afirmar que «a lei não atribui relevância em processo de oposição fiscal ao caso julgado absolutório formado em processo penal», sem prejuízo de «poder consubstanciar um elemento de prova, a valorar pelo tribunal tributário, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova», nos termos do disposto no n.º 5 do art. 607.º do CPC, aplicável subsidiariamente (cf., neste sentido, acórdão do STA de 08/10/2014, processo n.º 01930/13 e, no mesmo sentido, acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 20/04/2017, processo n.º 00145/10.9BEPNF e de 17/03/2022, processo n.º 03378/10.4BEPRT, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Importar ainda destacar que a posição que agora sustentamos está em harmonia com o regime previsto nos art.ºs 47.º e 48.º do RGIT, dos quais dimana que existe uma opção legislativa no sentido da preferência da jurisdição fiscal em relação à jurisdição criminal para apreciação de questões de natureza tributária, preferência essa que é corolário da atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada (cf. art.º 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa - «CRP») e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais (cf. acórdão do STA de 12/06/2007, proferido no processo n.º 0115/07, igualmente disponível em www.dgsi.pt)

Assim, sendo certo que as decisões do TEDH podem influenciar a interpretação do direito aplicável e orientar o sentido decisório dos tribunais nacionais, a verdade é que a lei constitui o ponto de partida da atividade jurisdicional. E, como visto, não há qualquer norma no nosso ordenamento jurídico que permita, sem mais, dar como assente em processo tributário o que ficou provado ou não provado em sede de processo-crime, cabendo, pois, ao julgador, de acordo com as alegações formuladas nos articulados iniciais e os meios de prova existentes fixar os factos relevantes para a decisão da causa, tal como impõe, designadamente, o art.º 123.º, n.º2 do CPPT, que preceitua que «[o] juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões».

E como acima já se deixou dito, o decidido em sede de processo-crime só não foi tomado em linha de conta pelo TTL e pelo TCAS porquanto o não exercício da gerência de facto da executada originária não vinha alegado pelo Recorrente na petição inicial, não integrando, assim, o conjunto de questões que àqueles Tribunais cumpriu apreciar e decidir. E tal apenas sucedeu por razão inteiramente imputável ao Recorrente, dado que é a si que lhe cabe o dever de substanciar a causa de pedir (cf. art.º 5.º, n.º1 do CPC ex vi alínea e) do art.º 2.º do CPPT), invocando os factos essenciais que constituem a causa de pedir e os vícios que imputa ao ato cuja anulação pretende (in casu, o despacho de reversão). E nada disso foi feito no caso que agora nos ocupa quanto à questão do não exercício da gerência de facto da executada originária.

Por último, mas não menos importante, não é qualquer violação da CEDH decidida pelo TEDH que consequencia necessariamente a revisão de uma decisão judicial, dado que esta é uma solução de última ratio que deve ser utilizada de forma parcimoniosa, acautelando também outros princípios e valores que enformam o nosso ordenamento jurídico-fiscal.

O Estado Português aderiu à CEDH (aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13/10) e declarou, para os efeitos previstos no seu art.º 46.º (reconhecimento, pela Parte Contratante, da obrigatoriedade da jurisdição do TEDH para todos os assuntos relativos à interpretação e aplicação da Convenção), reconhecer como obrigatória a jurisdição daquele tribunal para todos os assuntos relativos à interpretação e aplicação da Convenção (aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros - Direcção-Geral dos Negócios Políticos, publicado no D.R., II série, de 06/02/1979).

A CEDH vigora na ordem jurídica portuguesa desde 1978 e goza (pelo menos) de força supralegal, prevalecendo sobre as leis ordinárias, por força do art.º 8.º, n.º 2 da CRP. Por esta razão, as instâncias nacionais dos Estados Contratantes são a primeira instância de aplicação da CEDH, como decorre do seu art.º 13.º.

O Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, introduziu um novo fundamento de admissibilidade de recurso extraordinário de revisão, hoje ínsito na alínea f), do art.º 696.º do CPC, nos termos da qual uma decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando «seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português», que o preâmbulo daquele diploma justifica como forma de permitir que «a decisão interna transitada em julgado possa ser revista quando viole a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte», isto é, por forma a possibilitar a execução jurisdicional da decisão do TEDH, através do instituto da revisão da decisão nacional, transitada em julgado, visando, fundamentalmente, dar resposta à falta de meios internos de execução das decisões do TEDH.

Não sendo o TEDH uma instância internacional de recurso entendida como um tribunal, hierarquicamente, superior aos tribunais nacionais, com a finalidade de anular, modificar ou revogar atos jurídicos de direito interno, com base em erro de julgamento ou de procedimento, é, porém, uma entidade internacional vinculativa para o Estado Português, que tem obrigação de cumprir os acórdãos proferidos pelo mesmo, embora faculte ao Estado a escolha dos meios a utilizar para cumprir a obrigação que decorre do art.º 46.º, n.º1 da CEDH, ou seja, de respeitar e executar as sentenças definitivas do TEDH, nos litígios em que forem partes os Estados signatários, reparando as consequências da violação constatada.

Porém, a reabertura de processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à Convenção, ou quando constate a ocorrência de uma violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum (cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – «STJ» – de 15/11/2012, proc. n.º 23/04.0GDSCD-B.S1, de 04/07/2017, proc. n.º 5817/07.2TBOER.L1.S1 e de 09/01/2024, proc. 2398/06.8TBPDL-A.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).


Ora, no caso que agora nos ocupa, na medida em que o Recorrente, por inércia, nada peticionou e reivindicou junto do TEDH a título de indemnização reparatória com referência ao desfecho dos presentes autos, não se encontra reunido um dos requisitos cumulativamente exigidos para a pretendida revisão: que a parte lesada continue a sofrer, na sequência da decisão nacional, consequências negativas, particularmente, graves, que não possam ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, mas que, apenas, sejam suscetíveis de ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum.

Destacamos que, esta perspetiva, no sentido da exigência cumulativa da verificação dos acima apontados dois requisitos, visa, fundamentalmente, a harmonização e o equilíbrio entre a segurança jurídica e o desiderato de verdade e da justiça na atividade jurisdicional com a observância dos julgados pelo TEDH, sopesando também a necessidade de garantir, minimamente, a soberania nacional em matéria judicial.

E por ser assim, vistas e ponderadas as conclusões recursivas, concluímos que o recurso não merece provimento, devendo o acórdão revidendo ser mantido, o que de seguida se decidirá.
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No que respeita ao remanescente da taxa de justiça, estabelece o n.º7 do art.º 6.º do Regulamento das Custas Processuais («RCP») que «nas causas de valor superior a € 275 000 o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».

Conforme entendimento expresso no acórdão do STA de 07/05/2014, proferido no processo n.º 01953/13, a que aderimos sem reserva, «A norma constante do nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz, ser lícito, mesmo a título oficioso, dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade.».

In casu, considerando que o valor da presente ação ultrapassa o valor de 275.000 Euros e que a mesma não assumiu especial complexidade, nem a conduta assumida pelas partes, em sede de recurso, se pode considerar reprovável, entende-se ser de dispensar do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Nestes termos, e pelos fundamentos apontados, impõe-se determinar a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no citado art.º 6.º, n.º7 do RCP.
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IV- DECISÃO

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Valor da ação: 360.818,42 Euros.


Custas pela Recorrente, sem prejuízo da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida a final.

Registe e notifique.

Lisboa, 5 de junho de 2025

(Filipe Carvalho das Neves)

(Lurdes Toscano)

(Luísa Soares)