Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:523/21.8BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:05/16/2024
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IRS
MÉTODOS INDIRETOS
ÓNUS DA PROVA
INIMPUGNABILIDADE
INEXISTÊNCIA DO FACTO TRIBUTÁRIO
Sumário:I - Decorre do artigo 104.º, nº2 da CRP, que deve evitar-se a existência de imposto sem rendimento efetivo, contudo a tributação pelo rendimento real constitui um princípio ou uma regra que permite, excecionalmente, desvios ou exceções.
II - Relativamente à impugnabilidade contenciosa dos atos de liquidação resulta que, em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indireta da matéria tributável a impugnação judicial da liquidação depende da prévia apresentação do pedido de revisão da matéria coletável (artigos 91.º a 94.º da LGT).
III - A existência de acordo inviabiliza a possibilidade de impugnação judicial posterior da liquidação com fundamento em ilegalidade ocorrida no processo de determinação da matéria coletável por via da avaliação indireta.
IV - Essa inimpugnabilidade não é absoluta, no entanto, sempre que o erro esteja radicado na aplicação dos métodos indiretos, seja ele relacionado com a decisão administrativa de a ele recorrer, com o método de quantificação indireta escolhido, e com o concreto erro de quantificação daí dimanante, carece, inequivocamente, de prévio pedido de revisão da matéria coletável.
V - A aludida inimpugnabilidade em nada pode traduzir uma denegação de tutela e violação do artigo 20.º da CRP, porquanto não resulta desse normativo e bem assim da própria sujeição à reserva de lei das garantias dos contribuintes, plasmada no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que o Tribunal possa obviar formalidades e condições expressamente consignadas na lei.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


I-RELATÓRIO

H…, Turismo Unipessoal, Lda. (doravante igualmente identificada como Impugnante, Recorrente), veio interpor recurso jurisdicional dirigido a este Tribunal tendo por objeto a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou verificada a exceção dilatória de inimpugnabilidade com a consequente absolvição da Fazenda Pública da instância.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“a) A Recorrente foi alvo de uma ação inspetiva, na qual a AT corrigiu os seus valores de matéria coletável de IRS, através da liquidação adicional no montante de € 15.429,02 de imposto e € 1.694,23 de juros compensatórios.

b) As correções do imposto resultaram da aplicação dos métodos indiretos por parte da AT, no montante de € 65.366,80.

c) Sendo que, segundo a AT o recurso a tais métodos derivou da verificação de “infrações, erros e/ou inexatidões no registo das operações e indícios claros e fundados que a contabilidade não reflete a exata situação patrimonial e o resultado efetivamente obtido”, considerando por isto, existir omissão de rendimentos.

d) Após a emissão da liquidação adicional, a Recorrente reclamou e apresentou Recurso Hierárquico, os quais foram objeto de indeferimento, tendo posteriormente impugnado judicialmente a decisão.

e) O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé julgou improcedente a impugnação feita por procedência da exceção perentória de inimpugnabilidade do ato invocada pela Fazenda Pública.

f) Decisão da qual se recorre.

g) Num Estado de Direito Democrático os Tribunais têm o dever de conceder aos cidadãos a reintegração efetiva dos seus direitos, quando os mesmos são violados.

h) Porém o tribunal recorrido vem invocar, ao abrigo do n.º 1, do art.º 117.º do CPPT e art.º 86º, n.º 5 e 91º da LGT, em matéria de exceção, a “Inexistência de pressuposto processual ou condição de procedibilidade”.

i) Dita a al. a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT que o processo judicial tributário compreende “a) A impugnação da liquidação dos tributos, incluindo os parafiscais e os atos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta”.

j) Assim a utilização do processo de impugnação judicial ou ação administrativa especial, depende do conteúdo do ato impugnado, se comportar a apreciação da legalidade de um ato de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não o recurso contencioso/ação administrativa especial.

k) Sendo que a apreciação da legalidade inclui a sua apreciação quer na forma positiva, quer na forma negativa.

l) Pelo que, estando em causa a apreciação da legalidade de um ato de liquidação sempre seria aplicável o processo de impugnação judicial.

m) Acresce que, e sem descurar o que foi anteriormente dito, a Recorrente não visou impugnar os valores obtidos/fixados pela AT.

n) E só nesse caso é que o pedido de pedido de revisão da matéria tributável se afiguraria mandatório.

o) A Recorrente pretendeu, isso sim impugnar a própria legalidade do ato, por a AT ter aplicado métodos indiretos quando tinha à sua disposição todos os meios para apurar a matéria coletável por métodos diretos.

p) E não os valores obtidos através desse mesmo ato.

q) Assim, poderá sempre impugnar-se a legalidade do ato.

r) Vejamos, a liquidação e apuramento, de IRC faz-se, preferencialmente, de acordo com a declaração do contribuinte, constituindo a tributação por métodos indiretos um meio excecional, restringido aos casos em que a lei expressamante o admite, como estatui o art. 88º da LGT.

s) Dispõe o art. 83º, n.º2 da LGT que a avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos a partir de indícios, presunções e outros elementos, ou seja “(…) meios que, não estabelecendo diretamente aqueles que se visa provar, estabelecem contudo a verificação de outros dos quais é possível inferir, com algum grau de certeza, através de máximas de experiência, os primeiros” (cfr. Castro Mendes, "O Conceito de Prova em Processo Civil, Lisboa, 1971, pp. 176 e segs.).

t) É por isto, subsidiária da avaliação direta, confome art. 85º, n.º 1 e 2 e art. 84º, n.º 1 da LGT, que constitui a forma privilegiada e preferência legal absoluta para determinação dos rendimentos sujeitos a tributação, baseada no auto confissão do sujeito passivo (artigos 82º, n.º 1, e 81º da LGT), assente na presunção de verdade que gozam as declarações do contribuinte (art.º 75º n.º 1).

u) Define a nossa jurisprudência, nos acórdãos do TCA Sul processos n.º 1041/03 de 07/03/06, e 1068/03 de 07/02/06, que a AT deve procurar apurar a matéria sujeita e não isenta de imposto com a aproximação ao lucro real, realizando todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material.

v) Se a contabilidade da Recorrente veicula uma imagem realista da sua atividade e operações por si realizadas, e se a AT tinha ao dispor toda a documentação e informação que necessitasse não podia vir invocar a impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável, fundamento inscrito no art.º 87º, n.º 1 alínea b).

w) Cabendo ainda à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua atuação, e, não fazendo essa prova a questão relativa à legalidade do seu agir terá que ser resolvida contra ela.

x) Assim não estão reunidos os pressupostos da avaliação indireta elencados nos art.º 87º e 88º da LGT, no caso vertente.

y) Vejamos que nenhum dos argumentos utilizados pela AT e que ora se transcreveu, é suficiente para justificar a aplicação de métodos indiretos.

z) Primeiramente por alguns dos motivos se reportarem apenas a um ano e não a outro e no caso está em causa apenas o ano de 2015.

aa) Ademais a falta de extratos bancários e registo de movimentos bancários por documentos internos não é sinónimo de falta de registo de operações e na dúvida solicitava o que entendesse por necessário, inclusive o levantamento do sigilo bancário, o que não fez.

bb) E o facto de contabilisticamente não ter sido efetuado o correto registo dos juros, relativamente aos financiamentos bancários, considerando tudo como capital, apenas prejudicou a recorrente, apurando imposto a pagar superior ao devido, pelo que não podia usar este argumento para a aplicação de métodos indiretos.

cc) Invoca ainda como justificativo da utilização dos métodos indiretos o facto de a Recorrente apresentar um valor mensal de Prestação de Serviços nos meses de Novembro e Dezembro de 2016, superior aos restantes meses, excetuando Agosto, porém não demonstra a existência de erros, lapsos ou omissões nos registos contabilísticos desses meses, pelo que também este não pode ser considerado motivo para a aplicação de métodos indiretos.

dd) A existência da indicação no site da Recorrente do aluguer de kayaks e a realização de “transfers” como serviços disponibilizados para os quais não houve faturação, também não pode ser motivo para a utilização da aplicação dos métodos indiretos, na medida em que estes efetivamente não se realizaram.

ee) O mesmo se refira quanto a comentários no Facebook e no Triadvisor, não se compreendendo porque, em caso de dúvida, não foram os responsáveis pelos comentários contactados pela AT, para confirmação dos “supostos” serviços.

ff) A “suposta” existência de omissões no consumo de combustíveis, tal como a AT apresentou, não evidencia a omissão de proveitos, mas antes demonstra o cuidado que se teve em apresentar apenas os custos que originaram proveitos, afastando os consumos efetuados por motivos não relacionados com a atividade, nomeadamente is particulares.

gg) No entanto, todos os custos relativos à atividade, nomeadamente aqueles que são efetuados para a manutenção do material e dos equipamentos, foram registados na contabilidade.

hh) Já quanto à questão do consumo em meses em que não houve serviços prestados veja-se que, mesmo sem estes, os barcos e respetivos motores têm de ser sujeitos a manutenção e são utilizados em passeios promocionais com agentes turísticos, o que implica gastos de combustível.

ii) A Recorrente reconhece, porém, que deveria ter dado conhecimento imediato à AT do extravio dos livros de bilhetes e de transfers, sendo que apenas não o fez por culpa do gerente, que devido à sua inexperiência não soube valorizar o facto.

jj) No entanto, é certo que caso tivessem sido prestados serviços, os operadores para quem a recorrente presta serviços eram obrigados a declará-los em sede de E-fatura e tal não aconteceu.

kk) Finalmente a AT não procedeu a qualquer das diligências que o art. 6º do RCPITA obriga para obtenção da verdade material, ao invés disso tentou apenas obter receita fiscal da forma mais simples.

ll) Ora, ao não almejar fazer prova dos pressupostos legais vinculativos da sua atuação, dos elementos em que apoiou, da adequação entre esses elementos e o juízo que formulou, a legalidade do seu agir não se consagrou e o ato tributário subsequente merecerá ser anulado, neste sentido, vide, o Acórdão do TCA-Sul de 07/03/06, tirado no Recurso nº 137/01, in, www.dgsi.pt ).

mm) Assim, por todo o exposto é ilegal a liquidação na origem dos presentes autos, impondo-se a sua anulação e devendo o recurso proceder.

nn) Trazendo-se, pela sua pertinência o Acórdão do TCA Sul, proc.ºs n.º 8160/14.7BCLSB, de 14-03-2019, e 8388/15.2BCLSB, de 22-05-2019, que demonstram que a jurisprudência acolhe a ideia de que “meros elencos de irregularidades da contabilidade” não são suficientes para fundamentar o recurso a métodos indiretos.

oo) Ademais e tendo em conta o disposto no preambulo do Código do IRC a aplicação de métodos indiretos deve procurar tributar o rendimento real e só se não for possível, o que não acontece na situação sub judice,se fixará um rendimento real presumido.

pp) E mesmo este rendimento presumido deve atender ao princípio da capacidade contributiva, que visa não onerar em demasia o contribuinte.

qq) Tanto mais que o caráter subsidiário e excecional deste método, faz com que ele deva ser utilizado com o mínimo de intervenção possível, para que o contribuinte não seja tributado de forma mais elevada do que resultaria da aplicação da avaliação direta.

rr) Importa aqui invocar o que referia Saldanha Sanches1: “para que seja impossível determinar à AT a matéria coletável terá que existir uma relação de causalidade entre o comportamento ilícito do contribuinte e tal impossibilidade”, o que como ficou bem expresso não existiu no caso em apreço.

ss) Estando em causa os pressupostos que determinaram a aplicação dos métodos indiretos, a consequência da sua falta de fundamentação é a nulidade da liquidação, que não poderá produzir quaisquer efeitos jurídicos na esfera do contribuinte de acordo com os art.ºs 124º, n.º 1, 125º, 133, n.º 1 e 2 al. d) todos do CPA.

tt) Assim impõe-se a anulação da liquidação em causa.

Nestes termos, atentos os fundamentos expendidos, nos melhores de direito e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente Recurso, depois de recebido e analisadas as questões colocadas, ser julgado procedente por provado, sendo revogado o douto Despacho do Tribunal “a quo” que declarou extinta a instância, sendo determinada a prossecução dos autos, com todas as consequências legais daí advindas.

Só assim se fará, Justiça!”


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A Recorrida, devidamente notificada optou por não apresentar contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

Com interesse para a decisão da presente excepção suscitada pela Fazenda Pública consideram-se provados os seguintes factos:

“1. A Impugnante foi sujeita a procedimento inspectivo realizado pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Faro ao abrigo das ordens de serviço n.º OI201800974 e n.º OI201800975 – cfr. fls. 31 e seguintes do processo de reclamação graciosa constante do processo administrativo apenso aos autos;

2. No âmbito do procedimento inspectivo referido foi determinado o recurso a métodos indirectos de tributação em sede de IRC, com correcções à matéria tributável, e apurado imposto em falta em sede de IVA, para os anos 2015 e 2016 – cfr. fls. 31 e seguintes do processo de reclamação graciosa constante do processo administrativo apenso aos autos;

3. A Impugnante não apresentou, tempestivamente, pedido de revisão da matéria colectável, nos termos do artigo 91.º da Lei Geral Tributária, no seguimento do recurso aos métodos indirectos de tributação – facto que se da informação a fls. 51 a 53 do processo de reclamação graciosa constante do processo administrativo apenso aos autos.”


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Mais resulta consignado na decisão recorrida o seguinte:

“Não resultam dos autos outros factos com relevância para a decisão da excepção em apreço e que, como tal, importe dar como provados ou não provados. “


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A decisão da matéria de facto assentou no seguinte:

“Os documentos referidos, ou posições assumidas nos autos, que serviram de suporte à prova de cada um dos factos, não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a genuinidade dos documentos.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão que julgou verificada a exceção dilatória de inimpugnabilidade dos atos de liquidação impugnados, fundados em determinação da matéria coletável por métodos indiretos, com a consequente absolvição da Fazenda Pública da instância.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se o Tribunal a quo, incorreu em erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito ao ter sentenciado a inimpugnabilidade contenciosa dos atos impugnados, porquanto a apreciação do erro sobre os pressupostos atinentes ao recurso à avaliação indireta não carece de prévio pedido de revisão da matéria coletável.

Vejamos, então.

A Recorrente advoga, desde logo, que a decisão recorrida viola o consignado no artigo 20.º da CRP, porquanto num Estado de Direito Democrático os Tribunais têm o dever de conceder aos cidadãos a reintegração efetiva dos seus direitos, quando os mesmos são violados.

Densifica, neste âmbito, que a Recorrente não visou impugnar os valores obtidos/fixados pela AT mediante avaliação indireta, mas apenas a legalidade subjacente à adoção dessa metodologia, da sua natureza subsidiária e seus concretos pressupostos, sendo que só em caso de discussão do erro de quantificação é que o pedido de pedido de revisão da matéria tributável se afigura como uma condição de procedibilidade.

Corporizando, depois, a insusceptibilidade de recurso à avaliação indireta, apartando, de forma casuística, as razões que fundaram essa metodologia e o concreto erro de interpretação quanto à suficiência desses pressupostos para legitimação dessa avaliação presuntiva.

Concluindo, assim, que competia à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua atuação, e não fazendo essa prova a questão relativa à legalidade do seu agir terá que ser resolvida contra ela, logo há que concluir que não estão reunidos os pressupostos da avaliação indireta elencados nos artigos 87.º e 88.º da LGT.

Apreciando.

Comecemos por atentar na fundamentação jurídica que esteou a aduzida inimpugnabilidade do ato.

Com efeito, o Tribunal a quo entendeu que “[o] prévio pedido de revisão da matéria tributável por métodos indirectos, com fundamento em erro nessa fixação ou nos pressupostos da utilização destes métodos, constitui um pressuposto ou condição de procedibilidade da impugnação judicial com esses fundamentos (…)”.

Densificando, depois, que “[a] Impugnante insurge-se contra o acto de liquidação de IRC do ano 2015, resultante de procedimento inspectivo em que se recorreu a métodos indirectos de tributação. Sem que a Impugnante, no seguimento da elaboração do relatório final, tivesse apresentado, tempestivamente, pedido de revisão da matéria colectável.”

Concluindo, assim, que “[p]or força dos referidos artigos, não tendo a Impugnante apresentado tal pedido em tempo, encontra-se vedada a discutir em sede judicial da legalidade das liquidações, que têm na sua génese o procedimento inspectivo.”

Vejamos, então, se o aludido entendimento é de validar e manter.

Atentemos, então, como funciona o procedimento de avaliação indireta e as formas de reação e de sindicância do seu apuramento.

Ab initio, importa relevar que o recurso aos métodos indiretos só deve ser utilizado quando configure a única solução para se chegar à identificação do valor da matéria tributável efetiva. Assume, portanto, a natureza subsidiária e residual (cfr. artigo 85.º, n.º 1, da LGT). Uma “ultima ratio fisci”, para que a AT possa cumprir o poder/dever que lhe está cometido de diligenciar no sentido de que todos os contribuintes paguem os impostos devidos.

“É, de facto, doutrinária e jurisprudencialmente líquido que a AT apenas estará legitimada a recorrer a presunções, na tarefa de encontrar a matéria tributável do contribuinte, -ainda que, por natureza e norma, meramente aproximativa da efectiva, quando este tenha rompido com o seu dever de colaboração para com aquela na medida em que, por um lado, a declarada, nos termos do princípio vigente neste domínio, não mereça credibilidade, por se indiciar fundadamente, que não tem aderência à realidade e, por outro, porque não haja metodologia alternativa que permita a sua fixação directa e exacta (correcções técnicas), sendo, ao caso e atento o imposto liquidado, relevante o preceituado nos art.ºs 82.º, 83.º e 84.º do CIVA e no art.º 81.º, do CIRS” (1-Vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no recurso nº 2016/07, de 14 de novembro de 2007, disponível para consulta em www.dgsi.pt.)

Neste particular, importa, desde logo, ter presente o consignado no artigo 81.º, nº1, da LGT, o qual preceitua que:

“A matéria tributável é avaliada ou calculada diretamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indireta nos casos e condições expressamente previstos na lei”.

Preceituando, por seu turno, o normativo 83.º da LGT, sobre os fins da avaliação direta e bem assim indireta, no sentido que:

“1 - A avaliação direta visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação.

2 - A avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha”.

Daí que, a determinação da avaliação direta, tenha como ponto de partida as declarações dos contribuintes e/ou os dados apurados na sua contabilidade, os quais se presumem verdadeiros.

Preceitua, neste âmbito, o artigo 75.º, nº1, da LGT, de que se presumem verdadeiras as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei. O princípio da verdade declarativa coloca, assim, na esfera de atuação dos contribuintes a iniciativa no procedimento de apuramento, fixação e pagamento dos impostos, logo a AT está vinculada a liquidar os tributos com base na declaração do contribuinte, sem prejuízo do direito que lhe é concedido de proceder, a posteriori, ao controlo dos factos declarados.

Com efeito, só passa a competir ao contribuinte a prova de que declarou todas as situações a que estava legalmente vinculado quando, efetivamente, a AT tenha carreado elementos de facto que sejam suscetíveis de abalar a dita presunção da escrita. Nessa medida, se por qualquer das razões previstas na lei, a presunção consagrada no citado normativo 75.º, n.º 1 da LGT deixar de funcionar, a AT fica legitimada a efetuar a determinação da matéria tributável, preferencialmente com recurso aos métodos diretos ou, quando tal não seja, de todo, possível, a métodos indiretos.

Note-se que, como decorre do citado normativo, concretamente, do seu nº2, a presunção de veracidade da contabilidade cessa quando revelar “[o]missões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo”.

Conforme decorre do artigo 104.º, nº2 da CRP, deve evitar-se a existência de imposto sem rendimento efetivo, contudo a tributação pelo rendimento real constitui um princípio ou uma regra que permite, excecionalmente, desvios ou exceções.

Daí que, tenha existido a preocupação legal de se objetivarem as situações em que a matéria coletável pode ser fixada através de métodos indiretos, consagração legislativa taxativa (cfr. artigos 87.º e 88.º ambos da LGT) na medida em que não é qualquer omissão, erro ou inexatidão das declarações ou da contabilidade do sujeito passivo que permite o recurso a métodos indiretos de avaliação da matéria coletável, sendo exigido que tais irregularidades sejam de tal forma relevantes que tornem inviável a quantificação direta.

O mesmo é dizer que, se não obstante a existência de irregularidades contabilísticas, for, ainda assim, possível quantificar diretamente a matéria coletável, deve-se lançar mão dos métodos diretos, desde que os mesmos permitam, com segurança, concluir no sentido da ocorrência do facto tributário e da sua quantificação concreta.

Neste conspecto, e porque assume curial importância para a questão em contenda, há que ter presente e convocar como se processa a impugnação das correções presuntivas, e como visto, dimanantes da avaliação indireta, na medida em que o legislador criou um procedimento próprio de reação regulado no artigo 86.º, n.º 5, da LGT, e no artigo 117.º, n.º 1, do CPPT.

Com efeito, no concernente à impugnabilidade contenciosa dos atos de liquidação resulta que, em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indireta da matéria tributável a impugnação judicial da liquidação depende de prévia reclamação nos termos dos artigos 91.º a 94.º da LGT. Mais dimanando que, a existência de acordo inviabiliza a possibilidade de impugnação judicial posterior da liquidação com fundamento em ilegalidade ocorrida no processo de determinação da matéria coletável por via da avaliação indireta.

Ora, face ao aludido enquadramento normativo cumpre, desde logo, evidenciar que não logra provimento a argumentação da Recorrente no sentido de que apenas em caso de erro de quantum existe prévia necessidade de apresentação do pedido de revisão da matéria coletável, porquanto, como visto e devidamente expendido anteriormente, a sindicância dos próprios pressupostos e recurso à avaliação indireta apresenta, outrossim, como condição sine qua non a apresentação do pedido de revisão da matéria coletável constante no citado normativo 91.º da LGT.

Com efeito, da interpretação conjugada dos normativos citados resulta que sempre que o contribuinte pretenda sindicar os pressupostos de recurso a métodos indiretos ou a respetiva quantificação, tem de existir um prévio pedido de revisão da matéria coletável, existindo, efetivamente, o que se denomina de condição de procedibilidade -no sentido, justamente, ajuizado na decisão recorrida-, ficando, por conseguinte, os atos de liquidação, quanto a esses pressupostos, inatacáveis, donde, inimpugnáveis.

Como claramente doutrinado no Acórdão do STA, proferido no processo nº 0945/14, de 16 de dezembro de 2021 : “A reclamação do ato de fixação da matéria tributável por métodos indiretos, com fundamento em erro nessa fixação ou nos pressupostos da utilização destes métodos, constitui pressuposto ou condição de procedibilidade da impugnação judicial com esses fundamentos, nos termos do artigo 117.º, n.º 1, do CPPT e do artigo 86.º, n.º 5, da LGT.”

Esclarecendo quanto ao âmbito e ratio legis subjacente a essa condição de procedibilidade, designadamente, o Acórdão do STA, proferido no processo nº 0165/12, de 20 de junho de 2012, o seguinte:

“(…) [A] revisão administrativa da matéria colectável só é um preliminar indispensável da impugnação judicial da liquidação nos casos de errónea quantificação da matéria colectável e/ou na não verificação dos pressupostos de determinação indirecta da matéria colectável. Nestes casos, a revisão administrativa funciona como uma “impugnação pré-contenciosa”, que condiciona o acesso aos tribunais e cuja justificação se encontra nos próprios critérios em que assenta a determinação da matéria colectável através de métodos indirectos. Como refere Casalta Nabais, «guiando-se estes por critérios de natureza essencialmente técnica, compreende-se que antes de a sua legalidade ser questionada e discutida nos tribunais, sejam os mesmos objecto de apreciação e decisão por órgãos de natureza técnica constituídos por peritos. Pois estes, para além de poderem levar a cabo uma tutela mais ampla ao contribuinte, encontram-se também em melhores condições técnicas do que os tribunais para uma primeira apreciação da legalidade da determinação da matéria colectável por métodos indirectos» (cfr. in Justiça Administrativa, nº 17, pág. 44). (…)”. [No mesmo sentido, vide, designadamente, Acórdão do STA, proferido no processo nº 216/13, 26.06.2013.]

É certo que essa inimpugnabilidade não é absoluta, mas é igualmente certo e seguro, que sempre que o erro esteja radicado na aplicação dos métodos indiretos, seja ele relacionado com a decisão administrativa de a ele recorrer, com o método de quantificação indireta escolhido, e com o concreto erro de quantificação daí dimanante, carecem, inequivocamente, desse prévio pedido de revisão da matéria coletável.

Ora, face ao exposto, e tendo presente que, in casu, a Recorrente nas suas alegações de recurso nada sindica quanto à falta de apresentação de pedido de revisão da matéria coletável, centrando, única e exclusivamente, a sua dissonância no erro de julgamento atinente à concreta interpretação e ao alcance no domínio da própria legitimidade e recurso aos métodos indiretos, ou seja, aos pressupostos para adoção da avaliação indireta, nenhuma censura merece a decisão recorrida.

Noutra formulação, dir-se-á que a Recorrente não alega que invocou outros vícios que não concatenados com os pressupostos da avaliação indireta, mas sim que a sindicância dos pressupostos da avaliação indireta não integra o leque das questões que a montante depende do procedimento de revisão da matéria coletável, razão pela qual os contestou, apartou e justificou no seu articulado inicial e, ora, reitera nas suas alegações de recurso.

É certo que na conclusão SS), a Recorrente alude -genérica e conclusivamente- a uma falta de fundamentação, no entanto, a mesma redunda numa falta de fundamentação substancial que não formal, donde concatenada com o erro sobre os pressupostos de facto e de direito. Aliás, conforme resulta claro do seu articulado inicial a mesma nunca alegou que não percecionou os fundamentos que subjazem à determinação da matéria coletável pela via indireta, mas sim que os fundamentos e os pressupostos que a fundaram assentam em premissas erradas e insuficientes.

Sendo que, nesse conspecto, como já evidenciámos anteriormente e, ora, reiteramos a discussão dos mesmos carece, efetivamente, dessa condição de procedibilidade.

E por assim ser, conclui-se que o alegado pela Recorrente, atinente à falta de preenchimento dos requisitos para o recurso à avaliação indireta, e sua inerente instrução e insuficiência, configura-se como um vício concernente aos próprios pressupostos. Logo, não tendo havido prévio pedido de revisão da matéria coletável, condição de conhecimento dos vícios de erro sobre os pressupostos e erro na quantificação, bem andou o Tribunal a quo na sua decisão.

Face ao supra expendido, e secundando-se o juízo de inimpugnabilidade do Tribunal a quo, carece de relevo todo o expendido pela Recorrente atinente à errada interpretação dos pressupostos de avaliação indireta, concreta insuficiência dos mesmos para legitimar o recurso à avaliação indireta, porquanto, questões a jusante e, naturalmente, inviabilizado o seu conhecimento. Não cumprindo, outrossim, tecer quaisquer considerandos quanto ao evidenciado em I) a L) porquanto o Tribunal a quo nada sindicou, na sua decisão, quanto a essa realidade, dando-a, de resto, por verificada. Carece, assim, de qualquer pertinência qualquer dilucidação nesse e para esse efeito.

Uma última nota para evidenciar que tal decisão em nada pode traduzir uma denegação de tutela e violação do artigo 20.º da CRP, porquanto não resulta desse normativo e bem assim da própria sujeição à reserva de lei das garantias dos contribuintes, plasmado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que o Tribunal possa obviar formalidades e condições expressamente consignadas na lei. Ou seja, para conhecimento do mérito de uma impugnação, não pode, naturalmente, o Tribunal dispensar a verificação de uma condição de impugnabilidade expressamente estabelecida na lei e não destituída de sentido (2-Neste sentido, vide Acórdão do STA, proferido no processo nº 01613/13, de 26.03.2014.).

De referir, ainda neste âmbito, que a questão da conformidade constitucional da aludida condição de procedibilidade já foi, por diversas vezes, objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, primeiramente apreciada e decidida no Acórdão n.º 376/2009, e ulteriormente reiterada, em diversos Acórdãos, designadamente, no Acórdão nº 658/2023, datado de 12 de outubro de 2023, no sentido da sua não inconstitucionalidade, dele se extratando, designadamente, o seguinte:

“O Tribunal já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido de não ser possível retirar da garantia de tutela jurisdicional efectiva, conferida aos administrados pelo n.º 4 do artigo 268.º da Constituição – na qual se inclui a impugnação de quaisquer actos administrativos que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos –, a inconstitucionalidade de todas as normas que exigem a prévia utilização de meios de impugnação administrativa como condição de conhecimento da impugnação contenciosa de actos administrativo (…)
Em apreço, no presente recurso, está a norma ínsita no n.º 5 do artigo 86.º conjugado com o artigo 91.º ambos da Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), que determina que em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável a impugnação judicial da liquidação depende da prévia reclamação, a qual segue os termos do procedimento de revisão da matéria colectável.
O legislador acolheu, na Lei Geral Tributária, a solução que preconiza a impugnabilidade dos actos administrativos lesivos, assim garantindo o acesso à justiça tributária, para tutela plena e efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos, dos actos, praticados em matéria tributária, que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 9.º, n.ºs 1 e 2). Concretizando o direito de impugnação ou de recurso, o legislador estabeleceu, no n.º 1 do artigo 95.º da mesma Lei, que o interessado tem o direito de impugnar ou de recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, seguindo as formas de processo prescritas na lei; e esclareceu que pode ser lesivo, para este efeito, o acto de liquidação de tributos (alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo).
Não restam dúvidas, pois, de que a liquidação do tributo é um acto susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos, pelo que os interessados têm o direito de o impugnar. A norma sub iudicio estabelece, no entanto, que, em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, a impugnação judicial da liquidação depende da prévia reclamação. Como vimos, a garantia constitucional proíbe que o legislador ordinário vede a impugnabilidade dos actos lesivos, mas não impede o estabelecimento de pressupostos (processuais) para o exercício desse direito de impugnação, desde que o meio e o regime estabelecido não suprimam nem restrinjam de modo intolerável o exercício do direito de impugnação.
14. Cumpre, assim, analisar se o pressuposto estabelecido pelo legislador – a prévia reclamação – para a impugnação judicial da liquidação, em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, suprime ou restringe, de modo intolerável, o exercício do direito de impugnação.
A reclamação prévia necessária a que se refere o n.º 5 do artigo 86.º da Lei Geral Tributária segue, de acordo com a interpretação normativa em causa, os termos do procedimento de revisão da matéria colectável previsto no artigo 91.º da Lei Geral Tributária. O n.º 2 deste artigo 91.º dispõe que o pedido de revisão da matéria colectável tem efeito suspensivo da liquidação do tributo. Ora, a atribuição do efeito suspensivo da liquidação ao pedido de revisão da matéria colectável (a reclamação necessária) assegura o respeito pela garantia da impugnabilidade dos actos lesivos. Na verdade, sendo os actos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos judicialmente impugnáveis, por força da garantia constitucional, o estabelecimento do pressuposto da utilização prévia de um meio de impugnação administrativa só respeitará essa garantia se ficar assegurado que, enquanto não estiver aberta a via contenciosa, o acto de liquidação não está efectivamente a produzir os efeitos (lesivos) que visa produzir.
15. Em face do exposto, há que concluir que a norma ínsita no n.º 5 do artigo 86.º conjugado com o artigo 91.º ambos da Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), ao determinar que em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável a impugnação judicial da liquidação depende da prévia reclamação, a qual segue os termos do procedimento de revisão da matéria colectável e tem efeito suspensivo da liquidação do tributo, não viola a garantia de tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados, consagrada no artigo 268.º, n.º 4 da Constituição nem o disposto no artigo 20º da Constituição, o qual “consagra de forma genérica o direito de acesso aos tribunais, que é concretizado pelo artigo 268º, n.º 4, da CRP.”

E por assim ser, secundamos o ajuizado pelo Tribunal a quo quanto à inimpugnabilidade da decisão sub judice, em nada podendo, como visto, traduzir qualquer denegação de tutela e concreta violação dos direitos e interesses legalmente protegidos dos interessados.

Destarte, nenhuma censura merece a decisão recorrida, mantendo-se, por conseguinte, na ordem jurídica.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM, deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO e manter a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente.
Registe. Notifique.


Lisboa, 16 de maio de 2024

(Patrícia Manuel Pires)

(Vital Lopes)

(Jorge Cortês)