Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:245/24.8BELSB-S1
Secção:CA
Data do Acordão:10/31/2024
Relator:ANA CARLA TELES DUARTE PALMA
Descritores:SEGUNDA PERÍCIA
APELAÇÃO AUTÓNOMA
Sumário:I – Os critérios a observar na admissão do requerimento com vista à realização de uma segunda perícia não se confundem com os que se encontram previstos para a reclamação e prestação de esclarecimentos pelo perito – deficiência, obscuridade, contradição ou falta de fundamentação das conclusões (artigo 485.º do CPC);
II – A admissão da segunda perícia basta-se com a alegação fundada de razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, nos termos do disposto no artigo 487.º, n.º 1, do CPC;
II – O juízo a levar a cabo, na admissão dessa diligência probatória, não deve implicar a tomada de posição, pelo julgador, quanto à prova dos factos pelo relatório pericial já apresentado ou quanto ao bem ou mal fundado da discordância da parte requerente quanto ao aí vertido.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de CONTRATOS PÚBLICOS
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*

F…, Lda e CTT Correios de Portugal, intentaram contra o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social IP, ação administrativa de contencioso pré-contratual, na qual peticionaram a anulação do ato que adjudicou o contrato à E… – E… documentação SA, a anulação do contrato que eventualmente tenha sido ou venha a ser celebrado e a condenação na prática de ato de adjudicação a favor da proposta das autoras.

Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, tendo, nesse despacho, sido admitidos requerimentos probatórios e determinada a realização de uma perícia.

Apresentada, pela contrainteressada, reclamação sobre o Relatório Pericial e prestado esclarecimento por escrito, veio esta requerer a realização de uma segunda perícia, a qual foi indeferida pelo tribunal a quo.

Inconformada, veio a contrainteressada interpor o presente recurso, no qual apresentou as conclusões que seguem:

«1.ª O presente recurso visa a impugnação do despacho que indeferiu a realização de segunda perícia requerida pela ora Recorrente.

2.ª Trata-se de decisão recorrível, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º do artigo 644.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 140.º do CPTA, porquanto a mesma consubstancia uma situação de indeferimento de um meio de prova, no caso, a realização de segunda perícia.

3.ª Com o maior respeito, a Recorrente não pode concordar com o entendimento expresso na douta decisão recorrida por considerar que a mesma padece de erro de julgamento quanto à questão de direito em apreço neste recurso - mais concretamente sobre a verificação dos pressupostos legais de deferimento da realização segunda perícia -, incorrendo na incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 487.º a 489.º do CPC.

4.ª As razões de discordância expostas pela Recorrente sobre o teor do Relatório Pericial satisfazem plenamente o ónus de alegação fundamentada imposto pelo n.º 1 do artigo 487.º do CPC, devendo, como tal, considerar-se admissível a realização de segunda perícia.

5.ª Contrariamente ao que foi decidido na douta decisão recorrida, a realização de uma segunda perícia afigura-se pertinente por todas as razões que foram expostas pela Contrainteressada no requerimento de realização da segunda perícia.

6.ª Não obstante a prova perícia estar submetida ao princípio da livre apreciação a prova, segundo o artigo 489.º do CPC e o artigo do 389.º do Código Civil, nos termos do artigo 346.º do Código Civil, assiste à Contrainteressada o direito à contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos.

7.ª A Recorrente colocou em causa, de forma justificada, os fundamentos invocados pelo Senhor Perito para sustentar as respostas dadas às duas questões colocadas pelo Tribunal recorrido no despacho saneador, mais precisamente, sobre:

a) O conceito de extração de automática de dados de documentos, prevista na Cláusula 23.ª do Caderno de Encargos – Questão 1.

b) Se a solução “KOFAX EXPRESS”, proposta pela Contrainteressada, ora Recorrente, permite ou não a extração automática de dados de acordo com o previsto na Cláusula 23.ª do Caderno de Encargos (e, portanto, se cumpre ou não o exigido nesta norma) – Questão 2.

8.ª A resposta às questões colocadas depende - de forma cristalina, diga-se - de uma apreciação (que o Tribunal recorrido determinou oficiosamente ser pericial) sobre o que, em matéria de extração automática de dados, está contemplado no clausulado técnico do Caderno de Encargos do procedimento sub judice.

9.ª Foi justamente contra a fundamentação da resposta dada a estas questões no Relatório Pericial que a Contrainteressada apresentou, no seu requerimento com a Ref. 009652857 do SITAF, as diversas razões da sua discordância, atingindo e suscitando sérias dúvidas sobre os pressupostos daquele relatório, as quais tornam, pelo menos, pertinente a realização da segunda perícia requerida.

10.ª Como a Recorrente teve oportunidade de alegar de forma fundamentada, o conceito de extração de automática de dados apresentado pelo Senhor Perito não se estriba no previsto na Cláusula 23.ª do Caderno de Encargos (CE), o qual não exige a utilização de qualquer ferramenta ou técnica mais “sofisticada” com recurso a algoritmos inteligência artificial que permita identificar os diferentes campos de informação impressos em documentos e não proíbe a adoção de outras técnicas ou ferramentas que alcancem o mesmo resultado (output) pretendido pela Entidade Demandada.

11.ª Como também sustentou a Recorrente – suscitando dúvidas sérias sobre tal relatório - não existe qualquer inobservância do disposto no ponto 4, alínea e) da Cláusula 23.ª do Caderno de Encargos (CE) – relativo à captura semiautomática de documentos -, sendo a solução KOFAX EXPRESS, por permitir a utilização de técnicas/metodologias referidas pela Contrainteressada (que o clausulado técnico não proíbe, nem existe motivo para proibir), perfeitamente adequada ao especificado no clausulado técnico daquela peça procedimental (como preconizou, ademais, a Entidade Demandada).

12.ª O Relatório Pericial apresenta, pois, um conceito de extração e tratamento automática de dados que não tem respaldo no estatuído na Cláusula 23.ª do CE;

13.ª Em parte alguma da norma contratual em apreço se diz que a “ferramenta ou técnica” a utilizar tem de dispor de tais algoritmos e que não pode ser o operador, após a captura por via do motor de OCR, a identificar os diferentes campos de informação expressos nos documentos, de forma a permitir a sua indexação.

14.ª As especificações constantes da Cláusula 23.ª do CE reportam-se à prestação de um serviço com determinadas especificações técnicas que visam um determinado resultado (output) e não a contratação de qualquer software específico, sendo, portanto, tal cláusula suficientemente aberta à adoção pelo operador/cocontratante de todas as técnicas possíveis para alcançar o resultado pretendido no tratamento dos documentos.

15.ª No próprio Relatório Pericial se reconhece que a extração da informação de cada documento é feita “de acordo com as necessidades de indexação e regras especificadas”, não existindo, portanto, qualquer impedimento a que seja o operador, no uso da solução adotada, a identificar essas necessidades e a criar as regras específicas para aquela extração.

16.ª Diversamente do que se sustenta no Relatório Pericial, a Cláusula 23.ª do CE não indica que o sistema tem de encontrar os campos “independentemente da localização dos mesmos”.

17.ª Além disso, o CE não especifica que tecnologia é que tem de ser aplicada para obter o resultado válido.

18.ª Não há referência a inteligência artificial ou a outra “ferramenta ou técnica” concreta, sendo que a utilização de inteligência artificial, sendo uma mera possibilidade (e não uma exigência, como se preconiza no Relatório Pericial), não dá também garantias de que toda a informação seja tratada para indexação de forma totalmente automática (o que o CE não contempla, obrigando sempre à confirmação e correção de dados pelo operador).

19.ª Não existe nenhum serviço cem por cento automático no tipo de serviço a contratar nem é isso que decorre do estatuído na Cláusula 23.ª do CE.

20.ª O CE não proíbe a utilização de diferentes ferramentas ou técnicas ou mesmo a utilização de software complementar que auxilie o operador/utilizador na realização das suas tarefas.

21.ª Está em causa um serviço que, reitere-se, ao contrário do que se sugere no Relatório Pericial, nunca é integralmente automático e que depende sempre de intervenção do operador/utilizador.

22.ª Tal como está configurado no CE, o processo/serviço não é totalmente automático, não dispensando a intervenção do operador na validação/confirmação dos dados extraídos dos documentos.

23.ª Em face do expendido, não é possível aceitar o entendimento vertido na fundamentação constante da decisão recorrida de que o Senhor Perito apresentou um conceito incontroverso e irrefragável de extração automática de dados, especialmente se tivermos em consideração que não pode fazê-lo sem ter em consideração o que decorre do especificado na Cláusula 23.ª do CE – que aponta para conclusão diversa – e, bem assim, que invoca a violação de norma que se reporta à extração semiautomática de dados, em que é suposto ocorrer a intervenção do operador.

24.ª Do mesmo modo, diversamente do que parece sustentar-se na decisão recorrida, não é incontroverso e incontestável que, à luz daquela norma, o prestador não possa utilizar técnicas ou ferramentas nativas ou mesmo recorrer à utilização de software complementar que auxilie o operador/utilizador na realização das suas tarefas, como as acima exemplificadas.

25.ª Estas dúvidas não são afastadas, ademais, pela resposta dada pelo Senhor Perito à reclamação e pedido de segunda perícia formulado pela Recorrente.

26.ª Pelo contrário, cotejado com o ali alegado pela Recorrente, suscita dúvidas sérias e fundadas sobre os resultados apresentados que carecem de ser dissipadas e que podem levar a um resultado distinto do que foi alcançado pela primeira perícia.

27.ª Na verdade, o que decorre dos esclarecimentos do Senhor Perito é que o mesmo considera que o KOFAX EXPRESS não é a melhor solução para este tipo de serviço, mas tal não significa que essa solução seja contrária ou violadora do estatuído na Cláusula 23.ª do CE.

28.ª Afigura-se, assim, no entender da Recorrente ser, pelo menos, pertinente a realização de uma segunda perícia, de modo a assegurar o amplo e cabal esclarecimento das questões controvertidas em apreço.

29.ª Padece, pois, a decisão recorrida de erro de direito, por não ser possível formular o juízo de que a segunda perícia é claramente desnecessária para o apuramento da verdade.

30.ª Deve, assim, ser reconhecido à Recorrente o direito à contraprova a respeito dos factos que se pretendem demonstrar com os resultados constantes do Relatório Pericial, admitindo-se a realização de segunda perícia.

IV – O QUE SE ROGA.

Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto despacho a quo, substituindo-se essa decisão por outra que defira o pedido de realização da segunda perícia.»

As autoras, aqui Recorridas, apresentaram contra-alegações e aí formularam as seguintes conclusões:

«1. As partes só podem requerer a realização de segunda perícia depois de conhecido o resultado da primeira perícia (CPC, art.º 487.º, n.º 1).;

2. O resultado da primeira perícia – Relatório Pericial e respectivos esclarecimentos – foi conhecido com a notificação às partes de 28 de Junho de 2024.

3. Quando, em 20 de Maio de 2024, a Recorrente requereu a realização de segunda perícia, não era ainda conhecido o resultado da primeira perícia, pelo que foi tal pedido extemporâneo.

4. Tendo o resultado da primeira perícia sido conhecido com a notificação às partes realizada em 28 de Junho de 2024, poder ser requerida uma segunda perícia.

5. A Recorrente não requereu tempestivamente a realização de segunda perícia no prazo de 10 dias a contar da notificação realizada em 28 de Junho de 2024.

6. Em todo o caso, nunca poderia a Recorrente, ao mesmo tempo e inclusive no mesmo acto, pretender exercer dois direitos – reclamação e requerimento de segunda perícia – que têm objectivos diferentes.

7. Nos presentes autos não foi proferido qualquer despacho de rejeição de meio de prova.

8. O meio de prova que está em causa é a prova pericial, sendo que a segunda perícia insere-se nesse meio de prova.

9. A Recorrente não requereu o meio de prova em questão – prova pericial – tendo tal meio de prova sido ordenado pelo Tribunal a quo, no despacho saneador, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 6.º e do n.º 1 do art.º 467.º do CPC.

10. Não tendo a Recorrente requerido a prova pericial, não podia a mesma ter requerida uma segunda perícia.

11. O meio de prova – prova pericial – não foi requerido pela Recorrente, pelo que não foi rejeitado.

12. A segunda perícia não é um novo meio de prova, mas a repetição da primeira, no quadro da prova pericial inicialmente realizada.

13. O indeferimento da realização de uma segunda perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644º, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação.

14. Deste modo, do despacho de indeferimento de realização de uma segunda perícia não cabe recurso de apelação.

15. A admissibilidade da segunda perícia está dependente da alegação, de forma fundamentada, clara e séria das razões de discordância e inexactidão da primeira perícia.

16. Apenas inexactidões e concretas dúvidas sérias, fundadas e efectivas podem justificar o requerimento de segunda perícia.

17. A discordância da Recorrente em relação à prova pericial produzida baseia-se, tão só, na sua desaprovação do resultado da peritagem face à sua pretensão.

18. A segunda perícia destina-se apenas a corrigir a eventual inexactidão da primeira perícia.

19. O Relatório Pericial não enferma de qualquer inexactidão e não carece de qualquer correcção.

20. A segunda perícia não é uma nova e autónoma perícia, devendo o seu objecto conter-se no âmbito e mover-se dentro das mesmas questões de facto objecto da primeira perícia.

21. A Recorrente conformou-se com o douto despacho saneador, onde o Tribunal a quo ordenou a realização da perícia, não tendo dele reclamado nem interposto recurso.

22. O recurso tem como único fundamento uma mera discordância com o Relatório Pericial que não lhe é favorável, o que não legitima a realização de segunda perícia, nem é fundamento de recurso.

23. O direito à prova não é um direito absoluto e incondicionado, nem vincula à admissibilidade de todo e qualquer meio de prova e em todas e quaisquer circunstâncias, cedendo perante outros valores e interesses como o da celeridade processual com vista à efectiva realização da Justiça.

24. Não são admissíveis os meios de prova que se apresentem como impertinentes para a concreta causa a decidir e que sejam desnecessários ao apuramento da verdade material devidamente comprovados.

25. A Recorrente não considerou relevante a realização da perícia, pois nem sequer a requereu.

26. O Relatório Pericial e esclarecimentos encontram-se devidamente fundamentados e alicerçados numa análise técnica, cuidada e exaustiva.

27. As questões colocadas ao Senhor Perito foram respondidas de forma factual, completa, objectiva, rigorosa e cientificamente comprovada, revelando, de forma notória, dispor de conhecimentos técnicos e científicos.

28. Inexiste qualquer contradição ou inexactidão nas respostas dadas pelo Senhor Perito, estando as mesmas devidamente fundamentadas.

29. O Relatório Pericial esclarece convenientemente o conceito de extracção automática de dados e de que modo a mesma opera de acordo com Caderno de Encargos.

30. O Relatório Pericial esclarece de que o modo o Kofax Express poderia executar o que lhe é pedido, ou seja, mediante o recurso a outra ferramenta, que não é proposta pela Recorrente.

31. Inexiste qualquer fundamento para que a Recorrente – que não requereu qualquer perícia – pretenda agora que se realizem sucessivas perícias até que seja emitido um relatório que lhe seja conveniente.

32. A Recorrente deixou de ter interesse em demonstrar que a solução Kofax Express cumpre com a requisito de captura automática de dados – como fez em sede de contestação – para agora, em sede de recurso, alegar que, afinal, o Caderno de Encargos não exige captura automática.

33. O Caderno de Encargos impõe indubitavelmente a extracção automática de dados, o que foi confirmado no Relatório Pericial.

34. O conceito de extracção automática de dados encontra-se perfeitamente definido no Relatório Pericial.

35. Através do recurso, a Recorrente pretende apenas prolongar o mais possível o contrato n.º 24IN1001000026, ao abrigo do qual encontra-se a executar os serviços sub judice, o qual foi celebrado na sequência de ajuste directo que, entre a assinatura do respectivo Caderno de Encargos e a assinatura do contrato, demorou apenas 27 horas e 41 minutos.

Termos em que, e nos mais que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deve o recurso interposto pela Contrainteressada ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, ser mantida a decisão proferida com o que, uma vez mais, se fará a costumada JUSTIÇA»


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O Ministério Público foi notificado para os efeitos previstos no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, e não emitiu pronúncia.

Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


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Da admissibilidade do recurso

As recorridas, nas contra-alegações, vieram suscitar a questão da inadmissibilidade do recurso, alegando que o indeferimento da realização de uma segunda perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644º, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação.

Vejamos.

Não se desconhece que esta posição vem sendo sustentada e refletida em algumas decisões proferidas pelos tribunais superiores, sendo exemplo, entre outros, os Acórdão proferido pela Relação de Coimbra a 09.01.2024 (P. 58/19.9T(GRD-A.C1, com voto de vencido). Não obstante, não acompanhamos a posição aí vertida.

O requerimento de realização de uma segunda perícia configura um requerimento probatório, com vista à realização de uma diligência de prova que, embora incidente sobre os mesmos factos sobre os quais foi já realizada prova pericial, visa abalar ou confirmar as conclusões vertidas na primeira perícia.

Acompanhamos, aliás, o teor do voto de vencido no Acórdão da Relação de Coimbra acima mencionado, cujo teor transcrevemos:

« - Diz-se no acórdão que a 2ª perícia não passará de um incidente no quadro da prova pericial já admitida e realizada, e ao mesmo tempo se diz que a reclamação da 1ª perícia também é um incidente, o que não subscrevemos, pois se esta última se afigura ser um verdadeiro incidente já aquela tem autonomia, sob pena de termos de admitir que tudo é um incidente a partir do momento inicial do despacho de admissão da realização da 1ª perícia (parece ser este o argumento do referido acórdão da Rel. Porto de 4.11.2019);

- No respeitante à jurisprudência citada, e trecho do Ac. desta Relação de 24.4.2012, o mesmo limita-se a convocar o teor do art. 589º, nº 3, do anterior CPC, sem mais adicional justificação; o de 27.9.2016, não tem pertinência para o caso concreto; e o de 7.11.2017, aprecia questão colateral de reclamação do relatório da peritagem, decidindo correctamente sobre um verdadeiro incidente, embora se pronuncie sobre o nosso tema, en passant, por mera reprodução daquele primeiro acórdão de 24.4.2012, sem mais justificação;

- Primeiro nosso argumento. Apesar da 2º perícia visar a eventual inexactidão dos resultados da 1ª (art. 487º, nº 3, do NCPC), segundo professa A. Reis, em CPC Anotado, Vol. IV, pág. 304, a 2ª perícia é uma prova a mais (o itálico é do referido autor). Os dois arbitramentos subsistem, um ao lado do outro, e assim poderão ser valorados livremente, podendo o segundo prevalecer sobre o primeiro. Assim, a 2ª perícia, não deixa de ser um meio de prova, a que alude o referido art. 644º, nº 2, d);

- Segundo. Também Lebre de Freitas professa este entendimento. Segundo ele (CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., notas 2. e 3. ao anterior art. 589º e 591º = aos actuais arts. 487º e 489º, págs. 554/557), a 2ª perícia visa fornecer ao tribunal novo elemento de prova, relativo aos factos que foram objecto da primeira, podendo até ter mais latitude factualmente. E podendo a 2ª perícia prevalecer sobre a 1ª.

- Terceiro. Igualmente Rui Pinto defende esta posição (em Revista da Fac. Direito da Uni. de Lisboa, Ano LXI, 2020, Nº 2, pág. 640) ao argumentar que “Mas já constitui rejeição de um meio de prova a rejeição do requerimento de uma segunda perícia, tal como constitui a rejeição do requerimento de depoimento de uma nova testemunha (e diríamos nós de um novo documento). Pois que ao contrário de certo entendimento (o da Rel. Porto de 4.11.2019, acima referido) o critério e preocupação da lei é material: evitar que a admissão ou a rejeição de certa prova concreta e autónoma, passe sem recurso imediato, porquanto uma revogação tardia dessa admissão ou rejeição poderia ter sérios reflexos no complexo avaliativo de toda a demais prova; não, evitar a admissão ou rejeição der certa categoria legal ou abstracta de meio de prova (como entendeu o referido acórdão da Rel. Porto). Por conseguinte, a expressão «meio de prova» deve ser entendida em sentido concreto e não em sentido abstracto” – o negrito é nosso.

Assim admitiria o recurso.».

Em face do expendido, não se verifica qualquer circunstância que obste ao conhecimento do recurso, designadamente a suscitada quanto à sua (in)admissibilidade.


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O objeto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas (cfr. artigos 635º nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nº 1, do CPC), é o despacho que indeferiu a realização de uma segunda perícia, requerida pela contrainteressada, aqui recorrente, cabendo a este tribunal de apelação decidir se o mesmo errou ao indeferir esse requerimento sob a invocação de que inexistia qualquer contradição ou inexatidão ou falta de fundamentação nas respostas dadas pelo perito.

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Para o conhecimento da questão é decidir, mostra-se relevante atentar no despacho recorrido, que se reproduz:

«Requerimento com a Ref.ª 009652857 – Contra-interessada

Após notificação do relatório pericial, a Contra-interessada requer a realização de uma segunda perícia, com os seguintes fundamentos:

- As explicações prestadas pelo Sr. Perito sobre o conceito de extracção automática de dados constante da Cláusula 23.ª do Caderno de Encargos (CE) padecem de deficiência ou contradição e/ou não se mostram devidamente fundamentadas; pois que, inversamente do que sustenta no Relatório Pericial, é falso ou errado que a solução KOFAX EXPRESS não observe o disposto na Cláusula 23.ª do CE, em especial, a norma ali mencionada, tal seja, a alínea e) do ponto 4 daquela cláusula técnica.

No seguimento do que, este Tribunal solicitou que o Senhor perito se pronunciasse sobre o requerimento da Contra-interessada.

Verificado o teor do relatório, assim como, do teor da resposta aos pedidos de esclarecimentos, o que se constata é que a Contra-interessada não tem razão.

O relatório pericial e respectivos esclarecimentos estão devidamente fundamentados, abordando expressamente a utilização da solução KOFAX EXPRESS e de que forma a mesma executaria as funções que deveria executar, de acordo com pretendido pela Entidade Demandada.

Do mesmo modo que rebate a maior parte das afirmações avançadas pela Contrainteressada, colocando à evidência que a posição de Contra-interessada se trata de uma discordância com o teor do relatório pericial em causa, por não lhe ser favorável.

Ora, a segunda perícia que, regulada nos Artigos 487º a 489º, do CPC, destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira [nº3, do Artigo 487º, do CPC]; ou seja, com a consagração da possibilidade de realização de segunda perícia, visou o legislador tão só possibilitar a dissipação de concretas dúvidas sérias que possam decorrer da primeira perícia, relativas a específicas questões susceptíveis de levar a um resultado distinto daquele que foi alcançado na primeira perícia,

Tal alegação consiste na invocação, clara e explícita, de sérias razões de discordância da parte, não porque o resultado alcançado contraria ou não satisfaz os seus interesses, mas por, nele e no relatório em que assenta, existir inexactidão (insuficiência, incoerência e incorrecção) dos respectivos termos, maxime quanto à forma como operaram os conhecimentos especiais requeridos sobre os factos inspeccionados e ilações daí extraídas, de modo a convencer que, podendo haver lugar à sua correcção técnica, esta implicará resultado susceptível de diversa e útil valoração para a boa decisão da causa.

Não se afigura ser esse o caso.

Da análise do teor do relatório pericial e respectivos esclarecimentos, conclui-se que inexiste qualquer contradição ou inexactidão nas respostas que foram dadas pelo Senhor Perito, estando as mesmas devidamente fundamentadas.

O relatório pericial esclarece convenientemente o conceito de extracção automática de dados, de que modo a mesma opera, assim como, esclarece, de acordo com o teor do CE, quando é que é suposto ocorrer a intervenção do operador.

Do mesmo modo que esclarece, de que o modo o KOFAX EXPRESS poderia executar o que lhe é pedido, ou seja, mediante o recurso a outra ferramenta, que a própria Contra-interessada confirma na sua reclamação.

Perante o exposto o que se constata é que a reclamação apresentada não tem qualquer fundamento, pelo que se indefere a mesma, condenando-se a Contra-interessada em custas do incidente, que se fixam em 1 UC – cfr. Artigo 7.º, n.º 4 e Tabela II, do RCP.

Notifique.»

E, bem assim, no teor do requerimento que o motivou e antecedeu:

«(…)

II – DA REALIZAÇÃO DE SEGUNDA PERÍCIA.

51. A Contrainteressada dá como integralmente reproduzido, brevitatis causae, tudo o que foi alegado nos pontos anteriores deste requerimento.

52. Do acima exposto decorre que a Contrainteressada alega, de forma fundamentada, as razões pelas quais discorda das respostas dadas às duas questões no relatório pericial apresentado.

53. Como acima se aduziu, rejeita-se o conceito de extração automática de dados constante da Cláusula 23.ª do CE dado que esta, como se advoga, não exige a utilização de qualquer ferramenta ou técnica mais “sofisticada” com recurso a algoritmos de inteligência artificial que permita identificar os diferentes campos de informação impressos em documentos e não proíbe a adoção de outras técnicas ou ferramentas que alcancem o mesmo resultado (output) pretendido pela Entidade Adjudicante.

54. De outra face, rejeita-se que exista qualquer inobservância do disposto na Cláusula 23.ª do CE - muito menos do seu ponto 4, alínea e), relativo à captura semiautomática de documentos, como erradamente se preconiza no relatório pericial - sendo a solução KOFAX EXPRESS, por permitir a utilização das técnicas/metodologias referidas pela Contrainteressada (que o clausulado técnico não proíbe, nem existe razão para proibir), perfeitamente adequada ao estatuído naquela peça procedimental, em especial, ao seu clausulado técnico.

55. Requer-se, assim, em conformidade com o disposto no artigo 487.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º do CPTA, que seja ordenada a realização de segunda perícia.

56. A segunda perícia deverá ter por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre o qual incidiu a primeira perícia e destinar-se-á a corrigir a inexatidão dos resultados desta, nos termos fundadamente invocados pela Contrainteressada.»


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Vejamos, agora, se o despacho recorrido é de manter.

Determina-se, no artigo 487.º do Código de Processo Civil, que

1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.

2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.

3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.

A segunda perícia está sujeita às mesmas regras que disciplinaram a realização da primeira, não podendo, no entanto, nela participar como perito quem tenha intervindo na perícia anterior, nos termos do disposto no artigo 488.º, e esclarecendo-se, no artigo 489.º, quanto ao valor probatório, que uma e outra são livremente apreciadas pelo tribunal.

A segunda perícia, enquanto incidente sobre o mesmo objeto da primeira, visa dotar os autos de mais um juízo técnico, que pode ou não ser coincidente com o primeiro mas que a parte requerente pretende que seja apto a contrariar ou questionar as conclusões apresentadas no primeiro relatório. Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na anotação ao artigo 487.º do CPC (Código de Processo Civil Anotado, vol.II, Almedina, 3.ª edição, p.342) a segunda perícia visa «…fornecer ao tribunal novos elementos relativamente aos factos que foram objeto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (art. 488-a) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial.».

Nesta medida, não se confunde com a possibilidade, processualmente conferida às partes, de apresentar reclamações contra o relatório pericial ou solicitar a comparência dos peritos na audiência final para prestação de esclarecimentos sob juramento, nos termos das disposições dos artigos 485.º e 486.º do CPC, nem os requisitos dos quais depende a admissibilidade se confundem.

Na verdade, as reclamações dependem da invocação de deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial ou de falta de fundamentação das suas conclusões; a realização da segunda perícia depende da alegação fundada de razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.

Referiu-se, a propósito, no Acórdão da Relação de Coimbra, proferido a 26.09.2019 (P 780/11.8TBCVL-AC1), designadamente o seguinte:

«(…) Actualmente, como resulta do citado artº. 487º, nº. 1 do NCPC (correspondente ao artº. 589º, nº. 1 do CPC anterior, sem quaisquer alterações), exige-se que, para além da discordância com a primeira perícia, o requerente da segunda perícia alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.

Agora, o pedido de segunda perícia tem de ser fundamentado com as razões por que a parte discorda da primeira perícia. Não basta requerê-la, sendo exigido a quem a requerer que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com apresentação das razões por que entende que esse resultado devia ser diferente (cfr. Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., pág. 554; no mesmo sentido cfr. acórdão da RG de 7/05/2013, proc. nº. 590-A/2002, acessível em www.dgsi.pt).

A realização da segunda perícia, a requerimento das partes, não se configura como discricionária, pressupondo que a parte alegue, de modo fundamentado e concludente, as razões porque discorda do relatório pericial apresentado (ou da opinião maioritária vencedora).

Como se refere no Acórdão do STJ de 25/11/2004, proferido no proc. nº. 04B3648 (acessível em www.dgsi.pt e em CJ. STJ, Ano XII, Tomo III, pág. 123), Relator: Ferreira de Almeida, «[a] expressão adverbial “fundadamente” significa precisamente que as razões da dissonância tenham de ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira».

Assim, no seguimento da doutrina e jurisprudência acabadas de citar, em primeiro lugar, o requerente deve especificar os pontos sobre que discorda do relatório da primeira perícia, por forma a delimitar o objecto da segunda; em seguida, deve indicar os motivos pelos quais discorda, “mas já não lhe será exigível que demonstre ou sustente o eventual sucesso do resultado que pretende obter, tanto mais que este dependerá, necessariamente, da realização da nova perícia” (cfr. acórdão da RG de 17/01/2013, proc. nº. 785/06.0TBVLN-A, acessível em www.dgsi.pt).

É - também -, nosso entendimento, atento o actual quadro legal - designadamente o disposto no artº. 487º do NCPC -, que constitui condição de deferimento do pedido de realização de segunda perícia a alegação fundamentada das razões de discordância relativamente aos resultados da primeira perícia e, ainda, que tal alegação especificada é o único requisito legal do requerimento em causa a formular nos termos do citado artº. 487º do NCPC.

Com efeito, a lei processual civil, no nº. 1 da norma em causa, apenas se reporta a “alegação fundamentada das razões da discordância” do requerente, não impondo que estas sejam, ainda, razões de “convencimento” do próprio Tribunal, tendo sempre a segunda perícia por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta (nº. 2 do artº. 487º), para além de que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo Tribunal (artº. 489º do NCPC). A segunda perícia é mais um meio de prova, que servirá ao tribunal para melhor esclarecimento dos factos, em livre apreciação (no mesmo sentido cfr. Fernando Pereira Rodrigues, Os Meios de Prova em Processo Civil, Março de 2015, Almedina, pág. 151 e acórdão da RG de 22/06/2010, proc. nº. 1282/06.0TBVCT-A, acessível em www.dgsi.pt)”.» (o destacado é nosso).

As condições de admissibilidade da segunda perícia foram enunciadas, de forma detalhada, no Acórdão da Relação de Évora, de 10.11.2022 (P909/19.8T8PTG-BE1), que aí explicitou, designadamente que:

«A segunda perícia, com exceções para o caso irrelevantes, rege-se pelas disposições aplicáveis à primeira (artigo 488.º do CPC) e a primeira perícia só pode ser indeferida nos casos em que o juiz verifica que ela é impertinente ou dilatória (artigo 476.º, n.º 1, do CPC), ou seja, nos casos em que a perícia não respeita aos factos da causa ou respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (artigo 388.º do Código Civil, ).[5]

A estas causas de indeferimento da primeira perícia acresce uma outra específica da segunda perícia, que respeita à falta de alegação fundada das razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
Alegação fundada das razões de discordância que lida à luz da exposição de motivos do diploma reformador, antes referida, corresponde à indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira perícia, prescindindo de um juízo (de mérito) sobre a procedência de tais razões.

Emitir tal juízo significará tomar posição sobre a primeira perícia entrando assim na análise crítica da prova, tarefa a ter lugar na sentença (artigo 607.º, n.º 4, do CPC), depois de às partes haver sido concedido a faculdade de extraírem as suas conclusões sobre as provas produzidas (artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC).
Razões fundadas de discordância não corresponde, para efeitos da norma, a razões procedentes mas tão só à indicação dos motivos concretos da discordância; trata-se de emitir um juízo sobre a admissibilidade do meio de prova (2ª perícia) e não de emitir um juízo de valor sobre a prova (1ª perícia).

Como superiormente já se escreveu, “a expressão adverbial «fundadamente», significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia”[6].

Apresentando a parte requerimento com a identificação clara das inexatidões a corrigir o juiz deve deferir a realização da segunda perícia, não lhe sendo lícito tomar posição sobre o bem, ou mal, fundado das razões de discordância que fundamentam o requerimento.

Só o caráter impertinente ou dilatório ou a total ausência de fundamentação constitui causa de indeferimento do requerimento para realização de segunda perícia.[7]

“A parte tem que indicar os pontos de discordância (as inexatidões a corrigir) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica. Não cabe ao tribunal aprofundar o bem ou o mal fundado da argumentação apresentada, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para o indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia. Fundamentando o requerente as razões da sua discordância face ao resultado da primeira perícia, a lei não permite ao juiz uma avaliação do mérito da argumentação apresentada como suporte da divergência, devendo o juiz determinar a realização da segunda perícia, desde que conclua que a mesma não tem carácter impertinente ou dilatório”[8].

Confrontado o teor do despacho recorrido com o do requerimento apresentado com vista à realização da segunda perícia e considerando as questões de facto submetidas através do despacho que a ordenou, quais sejam «1) esclareça o senhor perito em que é que consiste a extração automática de dados de documentos, a qual se encontra prevista na cláusula 23.ª do Caderno de Encargos e; 2) esclareça o senhor perito se a solução proposta pela contrainteressada – Kofax Express - permite a extração automática de dados, de acordo com o previsto na cláusula 23.ª do caderno de Encargos, esclarecendo devidamente porque é que cumpre, ou não, o aí exigido?», verifica-se, por um lado, que a contrainteressada, aqui recorrente, fundou o requerimento de realização da segunda perícia na discordância com as respostas dadas às questões colocadas pelo tribunal, tendo enunciado as razões da referida discordância, designadamente ao referir que « … rejeita-se o conceito de extração automática de dados constante da Cláusula 23.ª do CE dado que esta, como se advoga, não exige a utilização de qualquer ferramenta ou técnica mais “sofisticada” com recurso a algoritmos de inteligência artificial que permita identificar os diferentes campos de informação impressos em documentos e não proíbe a adoção de outras técnicas ou ferramentas que alcancem o mesmo resultado (output) pretendido pela Entidade Adjudicante.

54. De outra face, rejeita-se que exista qualquer inobservância do disposto na Cláusula 23.ª do CE - muito menos do seu ponto 4, alínea e), relativo à captura semiautomática de documentos, como erradamente se preconiza no relatório pericial - sendo a solução KOFAX EXPRESS, por permitir a utilização das técnicas/metodologias referidas pela Contrainteressada (que o clausulado técnico não proíbe, nem existe razão para proibir), perfeitamente adequada ao estatuído naquela peça procedimental, em especial, ao seu clausulado técnico.» e, por outro, que o despacho recorrido fundou o indeferimento do requerido na circunstância de inexistir qualquer contradição ou inexatidão ou falta de fundamentação nas respostas dadas pelo perito, chegando mesmo a avançar que «o relatório pericial esclarece convenientemente o conceito de extracção automática de dados, de que modo a mesma opera, assim como esclarece, de acordo com o teor do CE, quando é suposto ocorrer a intervenção do operador. Do mesmo modo esclarece, de que o modo o Kovax Express poderia executar o que lhe é pedido, ou seja, mediante o recurso a outra ferramenta, que a própria contra-interessada confirma na sua reclamação.».

Recuperando o que temos vindo a referir a respeito da admissibilidade da realização da segunda perícia, o juízo a levar a cabo nesta sede, nem se confunde com o que deve ocorrer no âmbito da reclamação e prestação de esclarecimentos pelo perito – deficiência, obscuridade, contradição ou falta de fundamentação das conclusões (artigo 485.º do CPC), nem deve implicar a tomada de posição, pelo julgador, quanto à prova dos factos pelo relatório pericial já apresentado ou quanto ao bem ou mal fundado da discordância da parte requerente quanto ao aí vertido. A sede própria para esse juízo será a do julgamento, ou seja, a da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada.

Assim, não pode manter-se o decidido, pois que apenas a total ausência de fundamento do requerimento pode fundar o indeferimento da realização da segunda perícia. Como referido no ponto II do sumário do Acórdão da Relação do Porto de 7.12.2023 (P. 1066/20.2T8PVZ-A.P1), « (…)II - Apresentado requerimento com identificação do motivo da discordância em relação ao relatório pericial e com a identificação dos pontos que se entende necessitarem de correção ou melhor apreciação, o juiz deve deferir a realização da segunda perícia, apenas o carácter impertinente ou dilatório ou a total ausência de fundamentação constituindo causa de indeferimento de tal requerimento.».

Considerando, como referido acima, que o requerimento apresentado pela recorrente com vista à realização da segunda perícia se mostra fundamentado, com indicação das razões da discordância quanto às respostas dadas no relatório pericial, não pode manter-se o decidido e deve conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro, que defira e ordene a realização da segunda perícia requerida.

Vencidas, as recorridas suportarão as custas.


*

Por tudo o que vem de ser expendido, acordam em conferência os juízes que compõem a presente formação da subsecção de Contratos Públicos da secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que deferira e ordene a realização da segunda perícia requerida.

Custas pelas recorridas (artigo 527.º, n.º 1, do CPC).

Registe e notifique.

Lisboa, 31 de outubro de 2024


Ana Carla Teles Duarte Palma (relatora)

Jorge Martins Pelicano

Ana Cristina Lameira