Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:276/23.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/24/2024
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:ACIDENTE EM SERVIÇO
ALTA
PAGAMENTO DE DESPESAS
Sumário:I– De acordo com o disposto no artigo 71º, nº 1, alínea g) da LGTFP, o empregador público deve “prevenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a protecção da segurança e saúde do trabalhador, devendo indemnizá-lo dos prejuízos resultantes de acidentes de trabalho”.
II– O artigo 6º do regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, aprovado pelo DL nº 503/99, de 20/11, a propósito do pagamento das despesas decorrentes de acidentes em serviço, dispõe que os serviços e organismos e fundos autónomos da Administração Pública são responsáveis pelas mesmas, mas apenas até ao restabelecimento do estado de saúde físico e mental e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado (cfr. artigo 4º, nº 3, alínea a) do DL nº 503/99, de 20/11).
III– Tendo a recorrente tido alta médica em 31-1-2022, com proposta de 6% de IPP (cfr. facto e. do probatório) mas, já na pendência dos presentes autos, tendo a mesma sido presente a Junta Médica da CGA em 4-4-2023, que concluiu que “Do acidente/doença não resultaram sequelas passíveis de desvalorização”, o que significa que desde a data da “Alta”, ocorrida em 31-1-2022, e até à realização de Junta de Recurso, requerida pela autora em 25-7-2023, mas ainda não realizada, cessou a obrigação do Município de Lisboa de continuar a suportar as despesas médicas da autora, ainda que relacionadas com o acidente em serviço de que aquela foi vítima.
IV– Tal conduta não envolve a violação do artigo 59º, nº 1, alínea f) da CRP, na medida em que a entidade patronal se limitou a extrair do facto da recorrente ter tido alta a conclusão de que a mesma se encontrava curadas das lesões provocadas pelo acidente em serviço, conclusão aliás suportada pela letra e espírito do regime instituído pelo DL nº 503/99, de 20/11, que deste modo não ofende o núcleo essencial do direito fundamental consagrado na norma constitucional invocada.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL – SUBSECÇÃO SOCIAL


I. RELATÓRIO
1. S..., com os sinais dos autos, intentou no TAC de Lisboa contra o Município de Lisboa uma acção administrativa para reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido contra os actos ou omissões relativos à aplicação do Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11, na qual formulou os seguintes pedidos:
a) Se reconheça o direito da autora à manutenção do pagamento de todas as despesas de saúde relacionadas com o seu acidente em serviço ocorrido em 20-6-2007;
b) Devendo, em consequência, ser anulado o acto proferido pela Directora do Departamento de Saúde, Higiene e Segurança, da Câmara Municipal de Lisboa, constante do Ofício com a Refª nº ................./CML/22, de 14-12-2022, que justificou a cessação dos pagamentos até então efectuados à autora; e,
c) A condenação da entidade demandada no pagamento de todas as despesas que a autora teve desde 31-1-2022 com a reparação das sequelas do referido acidente, cujo cálculo se relega para sede de execução de sentença.
2. Por sentença datada de 2-11-2023, o TAC de Lisboa julgou a acção improcedente e absolveu a entidade demandada do pedido.

3. Inconformada com tal decisão, a autora interpôs recurso de apelação da mesma para este TCA Sul, no qual formulou as seguintes conclusões:
A) Atenta a relevância jurídica e social, aferida em termos de utilidade jurídica para a situação particular da recorrente, justifica-se a interposição do presente recurso de forma a que seja reposta a legalidade e a justiça na presente situação, com relevante repercussão na sua esfera jurídica, profissional e pessoal, em termos de qualidade de vida;
B) A relevância jurídica fundamental verifica-se pela complexidade e dificuldade das operações exegéticas a efectuar, quanto ao enquadramento normativo que suscita e ao entendimento judicialmente propugnado;
C) Por sua vez, adquire uma relevância social acrescida, atenta a situação particular da recorrente, cujos contornos exigem a obtenção de uma solução e entendimento diferente do preconizado, de forma a ser reposta a legalidade e a sua justiça;
D) Com o douto respeito, que é muito e salvo melhor opinião, a decisão recorrida representa um erro na aplicação do direito e acarreta graves danos para os interesses da recorrente, o que justifica a sua revisão, com vista a uma melhor aplicação do direito em causa, pois só assim se fará boa administração da justiça, em sentido amplo e objectivo;
E) A douta sentença a quo padece de erro de julgamento sobre a matéria de direito, tenho o douto tribunal efectuado uma errónea aplicação da lei aos factos, quanto à avaliação da situação da recorrente, para efeitos de reconhecimento do direito à manutenção dos tratamentos médicos e da medicação que necessita para menorizar os danos resultantes do acidente em serviço, pelo que padece a mesma de vício de violação de lei, por violação do disposto no artigo 71º da Lei nº 35/2014, de 20/6, do artigo 6º do DL nº 503/99, de 20/12, bem como do artigo 59º da CRP;
F) Na sua actuação, a Administração Pública encontra-se, ainda, vinculada ao princípio da legalidade, bem como da justiça e da razoabilidade, plasmados nos artigos 3º e 8º do CPA, que lhe impõem obediência à lei e ao direito, assim como o tratamento justo de todos aqueles que com ela entrem em relação, devendo rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, o que se verifica no caso vertente;
G) A douta sentença a quo entendeu que, pelo facto da recorrente, após ter tido “Alta”, não ter lançado mão do disposto no artigo 20º, nº 2 do DL nº 503/99, de 20/12, perdeu o direito à manutenção do pagamento das despesas com os tratamentos e medicação que fruía, quando resulta de todos os normativos e princípios acima enumerados que esta tem esse direito;
H) Ora, com o devido respeito, que é muito, não podemos acompanhar, nem aceitar, tal justificação, na medida em que, como se referiu, o direito à saúde configura-se como um direito a acções, a medidas legislativas, à criação e funcionamento de instituições, a certas prestações (incluindo de carácter financeiro), etc. É também, especialmente, nessa perspectiva que no seu artigo 64º a Constituição encara o direito à saúde, enquanto direito fundamental, integrado no sub-grupo dos «direitos sociais», do grupo dos «direitos económicos, sociais e culturais»;
I) A actuação do réu ultrapassou, no caso vertente, os limites que os princípios de justiça, boa-fé e confiança legítima, ínsitos na Constituição da República Portuguesa, impõem e que a vinculam – vd. artigo 266º da CRP, pelo que à recorrente deve ser-lhe reconhecido o direito à manutenção do direito ao pagamento das despesas com os tratamentos profilácticos e da medicação que lhe tinha sido prescrita”.
4. O réu apresentou contra-alegação, tendo para o efeito formulado as seguintes conclusões:
1. O objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões (cfr. artigo 635º, nº 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 140º do CPTA);
2. As conclusões do recurso não fazem qualquer menção à impugnação da decisão em matéria de facto;
3. A recorrente limita-se a discordar da decisão tomada pelo Tribunal a quo em relação ao facto dado como provado na alínea G. da Factualidade Provada, bem como ao facto dado como não provado no ponto 1. da Factualidade Não Provada, unicamente por eles serem contrários à sua posição e decisivos para a perda da causa;
4. A recorrente não cumpriu o ónus de especificação estabelecido no artigo 640º do CPC, pelo que a impugnação deve ser liminarmente rejeitada e, por consequência, nem sequer apreciada;
5. A sentença recorrida não incorreu em nenhum erro de julgamento em matéria de direito, nomeadamente por violação do disposto nos artigos 71º da Lei nº 35/2014, de 20JUN, 6º do DL nº 503/99, de 20DEZ, e 59º da CRP, ou por não ter considerado que a ED não observou os princípios da legalidade, justiça, razoabilidade, boa-fé e confiança no procedimento administrativo relativo ao acidente de trabalho em causa nos autos;
6. A recorrente não logrou densificar nem demonstrar, por um lado, em que termos é que o tribunal a quo aplicou erradamente o direito aos factos e de que modo foram infringidas as normas que considerou violadas, e, por outro lado, em que termos é que o enquadramento jurídico-legal e as disposições legais subjacentes à decisão foram desacertados;
7. Os artigos 71º da Lei nº 35/2014, e 59º da CRP são normas programáticas que carecem de densificação e regulação em sede ordinária e/ou regulamentar, pelo que não se pode dizer e sustentar, sem mais, que a sentença ou o acto administrativo impugnado são inválidos porque violam essas normas;
8. A recorrente faz uma interpretação absolutamente errada do artigo 6º do DL nº 503/99, que, pura e simplesmente, não é aplicável à situação sub judice, como bem decidiu o tribunal a quo, porquanto apenas abrange as despesas e a obrigação de pagamento e/ou reembolso que ocorrem durante o período em que o trabalhador sinistrado se encontra de baixa por força do acidente de trabalho, e não as que sejam realizadas após a alta, como é o caso das peticionadas na acção;
9. Quando é dada “Alta” ao trabalhador sinistrado, ou é porque este está curado, ou é porque as lesões ou a doença se consolidaram, sendo que neste último caso compete à CGA assegurar os eventuais direitos do sinistrado às pensões e às demais prestações que sejam necessárias, nos termos do artigo 34º do DL nº 503/99;
10. De acordo com o regime dos artigos 20º e seguintes do DL nº 503/99, bem aplicado pelo tribunal a quo, após a alta ser concedida, o processo de acidente de trabalho tramitado no seio da entidade empregadora termina, passando o trabalhador e o processo, caso a sua intervenção seja suscitada, para a égide da CGA, nomeadamente para efeitos de apresentação à junta médica, por iniciativa da entidade empregadora, para efeitos de verificação da eventual IPP e avaliação do grau de desvalorização, ou por iniciativa do trabalhador, nos casos em que o mesmo não se sinta em condições para retomar a sua actividade habitual após lhe ser concedida alta;
11. A recorrente não só não exerceu a faculdade prevista no nº 2 desse artigo 20º, como, de resto, confessa;
12. A recorrente limita-se a enunciar a pretensa violação pela ED dos princípios da legalidade, justiça, razoabilidade, boa-fé e confiança, sem contudo densificar em concreto no que é que consistiu cada uma dessas alegadas violações;
13. Por fim, a recorrente limita-se a enunciar a pretensa violação pela ED dos princípios da legalidade, justiça, razoabilidade, boa-fé e confiança, sem contudo densificar em concreto no que é que consistiu cada uma dessas alegadas violações. Ou seja, por outras palavras, a recorrente não identificou em que termos é que a conduta da ED foi ilegal do ponto de vista dos princípios, foi injusta e/ou irrazoável, quando se limitou a aplicar a lei, denotou má-fé (?!) e/ou não tutelou a confiança da mesma na sua actuação;
14. A argumentação jurídico-legal esgrimida pela recorrente é absolutamente inconsistente e desprovida de qualquer sustentabilidade, pelo que o recurso terá necessariamente de improceder”.
5. Remetidos os autos a este TCA Sul, foi cumprido o disposto no artigo 146º do CPTA, tendo o Digno Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer, no qual sustenta que o recurso não merece provimento.
6. Sem vistos às Exmªs Juízas Adjuntas, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A DECIDIR
7. Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nºs 1, 2 e 3, todos do CPCivil, “ex vi” artigo 140º do CPTA, não sendo lícito a este TCA Sul conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
8. E, de acordo com a delimitação do objecto do recurso contida nas conclusões da alegação da recorrente, impõe-se apreciar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito, por ter efectuado uma errónea aplicação da lei aos factos, quanto à avaliação da situação da recorrente, para efeitos de reconhecimento do direito à manutenção dos tratamentos médicos e da medicação que necessita para menorizar os danos resultantes do acidente em serviço, por violação do disposto no artigo 71º da Lei nº 35/2014, de 20/6, do artigo 6º do DL nº 503/99, de 20/12, bem como do artigo 59º da CRP, e ainda se a actuação do réu ultrapassou, no caso vertente, os limites que os princípios de justiça, boa-fé e confiança legítima, ínsitos na Constituição da República Portuguesa, impõem e que a vinculam – vd. artigo 266º da CRP –, impondo o reconhecimento à recorrente do direito à manutenção do pagamento das despesas com os tratamentos profilácticos e da medicação que lhe tinha sido prescrita.


III. FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
9. A sentença recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
a. A autora teve um acidente em serviço em 20-6-2007, enquanto trabalhadora do mapa de pessoal da Câmara Municipal de Lisboa, do qual resultou um traumatismo cervical lombar o que lhe originou uma cervicalgia e lombalgia – cfr. doc. 2, junto com a p.i.;
b. Na sequência do referido acidente, a autora foi submetida, no decurso dos anos, a vários tratamentos médicos e a medicação variada – cfr. doc. 3, junto com a p.i.;
c. Tendo a autora tido “Alta” em 7-8-2007 – cfr. fls. 9 vº, do PA, junto aos autos;
d. Em 15-5-2017, quando já estava ao serviço da Junta de Freguesia de São Vicente, a autora requereu a reabertura do processo de acidente de trabalho por dores na coluna cervical – cfr. fls. 10 a 13 vº e 54, do PA, junto aos autos;
e. Na sequência da reabertura do processo, a autora esteve em situação de ITA entre 17 de Maio e 16 de Agosto de 2017, de ITP entre 16 de Agosto de 2017 e 3 de Janeiro de 2019, de ITA entre 3 de Janeiro de 2019 e 9 de Dezembro de 2021 e de ITP entre 9 de Dezembro de 2021 e 31 de Janeiro de 2022 – cfr. fls. 13 vº, do PA, junto aos autos;
f. Data em que lhe foi dada “Alta”, com proposta de 6% de IPP, na consulta do Gabinete de Avaliação de Dano Corporal pelo Dr. P............, médico especialista em dano corporal dos SSCML – Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, por ter entendido que as lesões da autora estavam consolidadas, não sendo susceptíveis de eliminação ou modificação com terapêutica adequada – cfr. fls. 13 vº, 14 e 15, do PA, junto aos autos;
g. A autora não reclamou da certificação médica que lhe atribuiu a “Alta”;
h. Consta dos vários relatórios médicos emitidos e existentes no seu processo junto do réu, que a autora necessita de fortalecimento muscular e paravertebral, com recurso à hidroginástica e fisioterapia, uma vez que tem uma lombalgia exacerbada – cfr. doc. 13, págs. 13 a 20, junto com a p.i.;
i. Desde a data da alta, em 31-1-2022, e durante todo o ano transacto, de 2022, que a autora reclamou pela manutenção das consultas de que vinha beneficiando, bem como dos tratamentos médicos e medicação que necessitava, para fazer face às sequelas que tinha do referido acidente em serviço – cfr. doc. 5, junto com a p.i.;
j. A autora toma habitualmente uma panóplia de medicação – cfr. doc. 3, págs. 1 a 6 e 10, junto com a p.i.;
k. O Coordenador da Unidade de Tratamento da Dor, no Hospital dos Lusíadas – Dr. J............ – emitiu relatório em 20-12-2021, onde refere, designadamente, o seguinte:
Doente de 55 anos que continuamos a acompanhar na Unidade de Tratamento da Dor do Hospital Lusíadas Lisboa desde Março de 2018, por artropatia degenerativa, incluindo coluna vertebral e grandes articulações, severamente agravada na sequência de um acidente de trabalho ocorrido em 2008 com camioneta do serviço, passando a manifestar recorrentemente cervicalgias e lombalgias num contexto mais amplo de dor muscular de vários territórios.
(…)
O seu quadro álgico tem componente neuropática que se mostra refractária à medicação, pelo que adoptámos um programa de lidocaína endovenosa em ciclos trimestrais de 6 tratamentos, associado a uma medicação multimodal com anticonvulsivantes (gabapentina), analgésicos (tramadol+paracetamol) e relaxantes musculares (ciclobenzaprina).
Tem vindo a fazer progressos com esta abordagem à qual não existe alternativa, pelo que se agenda o próximo ciclo de 6 tratamentos para iniciar em 10 de Janeiro de 2022.
Alertamos para a necessidade de acompanhamento psiquiátrico que temos vindo a sugerir, dados os estigmas depressivos que manifesta há prolongado tempo.
Tal como nos ciclos anteriores, estes tratamentos obrigam a transporte por táxi, dado que é incompatível o regresso ao domicílio em transportes públicos colectivos” – cfr. doc. 2, pág. 3, junto com a p.i.;
l. O réu deixou de pagar as despesas médicas da autora relacionadas com o acidente em serviço, desde 31-1-2022, informando a autora que “«alta» é a certificação médica do momento a partir do qual se considera que as lesões ou a doença desapareceram totalmente ou se apresentam insusceptíveis de modificação com terapêutica adequada, cessando também o direito a remuneração por faltas e a assistência médica, medicamentosa, de enfermagem, fisioterapia e transportes e estada, exclusivamente para acesso à assistência” – cfr. doc. 1, junto com a p.i.;
m. Através do Ofício nº ............/CML/22, de 22-9-2022, o réu remeteu à CGA toda a documentação relativa aos acidentes em serviço sofridos pela autora, para efeitos de confirmação e atribuição de IPP – cfr. fls. 4 a 6, do PA, junto aos autos;
n. Tendo a autora sido informada dessa remessa, através do Ofício nº ............/CML/22, de 22-9-2022 – cfr. fls. 1 a 3, do PA;
o. Já na pendência dos presentes autos, a autora foi presente a Junta Médica da CGA em 4-4-2023, tendo resultado da mesma que “Do acidente/doença não resultaram sequelas passíveis de desvalorização” – cfr. doc. 1, junto com o requerimento da autora, de 19-4-2023;
p. Em 25-7-2023, a autora requereu a realização de Junta de Recurso que ainda não foi realizada – cfr. doc. 2, junto com o requerimento da autora, de 10-8-2023, e requerimento da autora, de 26-9-2023.


B – DE DIREITO
10. Como decorre dos autos, a sentença recorrida julgou a acção intentada pela autora improcedente, tendo para tanto fundamentado esse juízo de improcedência nos seguintes termos:
(…) Quando ao trabalhador seja concedida alta e este não se considere em condições para retomar a sua actividade habitual, cabe-lhe um ónus de inverter a declaração de alta através da apresentação do requerimento a que alude o artigo 20º, nº 2 do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, coisa que a autora não fez.
Sendo que o artigo 34º, nº 1 do diploma legal em análise prevê expressamente que quando do acidente em serviço “resultar incapacidade permanente ou morte, haverá direito às pensões e outras prestações previstas no regime geral.” Determinando o nº 4 que “as pensões e outras prestações previstas no nº 1 são atribuídas e pagas pela Caixa Geral de Aposentações, regulando-se pelo regime nele referido quanto às condições de atribuição, aos beneficiários, ao montante e à fruição”.
Donde resulta que, havendo incapacidade permanente, após a atribuição da alta, a responsabilidade pelas prestações deixa de ser do empregador e passa a ser da Caixa Geral de Aposentações.
Ora, tendo sido atribuída à autora alta e não tendo ela contestado essa atribuição nos termos do disposto no artigo 20º, nº 2 do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, tal significa que não é possível condenar o réu a efectuar as prestações pretendidas pela autora.
Com efeito, a lei refere que essa responsabilidade passa a ser da Caixa Geral de Aposentações, após a confirmação e graduação da incapacidade permanente pela CGA, que até à data não ocorreu, uma vez que ainda se encontra pendente a submissão da autora à junta de recurso.
Ainda assim, o pedido da autora de condenar a entidade demandada no pagamento de todas as despesas que teve desde 31/01/2022 com a reparação das sequelas do referido acidente, considera-se um pedido genérico, uma vez que não alega e discrimina as despesas, designadamente com consultas médicas, exames, medicamentos e transportes que tenha suportado depois da alta.
Sendo certo que o pagamento destas despesas dependerá da verificação dos respectivos pressupostos, designadamente da verificação de uma situação de recidiva, agravamento ou recaída, nos termos do disposto no artigo 24º do Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço no âmbito da Administração Pública (DL. nº 503/99), entendendo-se como recidiva a “…lesão ou doença ocorridas após a alta relativa a acidente em serviço em relação às quais seja estabelecido nexo de causalidade com o mesmo”; como agravamento a “…lesão ou doença que, estando a melhorar ou estabilizadas, pioram ou se agravam” e como recaída a “…lesão ou doença que, estando a melhorar ou estabilizadas, pioram ou se agravam” (cfr., respectivamente, alíneas o), p) e q) do nº 1 do artigo 3º daquele diploma) – acórdão do TCAN de 18/9/2020, processo nº 00963/19.2 BEPNF, pois que a responsabilidade da CGA só emerge após a confirmação e graduação da incapacidade permanente da autora por aquela, o que, como vimos, ainda não ocorreu.
Ora, a autora não invocou perante o réu a existência de recidiva, agravamento ou recaída com vista à respectiva reparação, quer em espécie quer em dinheiro, compreendidas no artigo 4º do Decreto-Lei nº 503/99, para que remete o nº 2 do artigo 24º do mesmo diploma, nem desencadeou o respectivo procedimento, pelo que não tem a autora direito a que as referidas despesas sejam pagas pelo réu, concluindo-se pela improcedência da acção”.
11. A recorrente discorda do assim decidido, por entender que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito, por ter efectuado uma errónea aplicação da lei aos factos, quanto à avaliação da situação da recorrente, para efeitos de reconhecimento do direito à manutenção dos tratamentos médicos e da medicação que necessita para menorizar os danos resultantes do acidente em serviço, por violação do disposto no artigo 71º da Lei nº 35/2014, de 20/6, do artigo 6º do DL nº 503/99, de 20/12, bem como do artigo 59º da CRP, e ainda se a actuação do réu ultrapassou, no caso vertente, os limites que os princípios de justiça, boa-fé e confiança legítima, ínsitos na Constituição da República Portuguesa, impõem e que a vinculam – vd. artigo 266º da CRP –, impondo o reconhecimento à recorrente do direito à manutenção do pagamento das despesas com os tratamentos profilácticos e da medicação que lhe tinha sido prescrita.
Vejamos se lhe assiste razão.
12. Conforme nos dá nota a matéria de facto dada como assente, a autora teve um acidente em serviço em 20-6-2007, enquanto trabalhadora do mapa de pessoal da Câmara Municipal de Lisboa, do qual resultou um traumatismo cervical lombar o que lhe originou uma cervicalgia e lombalgia (cfr. facto a. do probatório). Na sequência desse acidente, a autora foi submetida, no decurso dos anos, a vários tratamentos médicos e a medicação variada (cfr. facto b. do probatório), tendo tido “Alta” em 7-8-2007 (cfr. facto c. do probatório). Em 15-5-2017, quando já estava ao serviço da Junta de Freguesia de São Vicente, a autora requereu a reabertura do processo de acidente de trabalho por dores na coluna cervical (cfr. facto d. do probatório), o que veio a suceder, e motivou que aquela estivesse em situação de ITA entre 17-5-2017 e 16-8-2017, em situação de ITP entre 16-8-2017 e 3-1-2019, novamente em situação de ITA entre 3-1-2019 e 9-12-2021 e, finalmente, em situação de ITP entre 9-12- 2021 e 31-1-2022 (cfr. facto e. do probatório). Mais se provou que na data em que lhe voltou a ser dada “Alta” (31-1-2022), com proposta de 6% de IPP, na consulta do Gabinete de Avaliação de Dano Corporal, o respectivo médico responsável, especialista em dano corporal dos SSCML – Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, pronunciou-se no sentido de que as lesões da autora estavam consolidadas e não eram susceptíveis de eliminação ou modificação com terapêutica adequada (cfr. facto f. do probatório), certificação médica com a qual a autora se conformou (cfr. facto g. do probatório).
13. Sustenta a recorrente o erro de julgamento de direito da sentença, por ter efectuado uma errónea aplicação da lei aos factos, quanto à avaliação da situação da recorrente, para efeitos de reconhecimento do direito à manutenção dos tratamentos médicos e da medicação que necessita para menorizar os danos resultantes do acidente em serviço, por violação do disposto no artigo 71º da Lei nº 35/2014, de 20/6, do artigo 6º do DL nº 503/99, de 20/12, bem como do artigo 59º da CRP.
14. Embora a recorrente não refira qual das alíneas do artigo 71º da LGTFP entende que foi violada pela sentença recorrida, é manifesto que se está a referir à alínea g) do nº 1, que prescreve que o empregador público deve “prevenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a protecção da segurança e saúde do trabalhador, devendo indemnizá-lo dos prejuízos resultantes de acidentes de trabalho”. Por outro lado, dispõe o artigo 6º do regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, aprovado pelo DL nº 503/99, de 20/11, a propósito do pagamento das despesas decorrentes de acidentes em serviço, que os serviços e organismos e fundos autónomos da Administração Pública são responsáveis pelas mesmas, mas apenas até ao restabelecimento do estado de saúde físico e mental e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado (cfr. artigo 4º, nº 3, alínea a) do DL nº 503/99, de 20/11).
15. No caso da recorrente, esta teve alta médica em 31-1-2022, com proposta de 6% de IPP (cfr. facto e. do probatório) mas, já na pendência dos presentes autos, a mesma foi presente a Junta Médica da CGA em 4-4-2023, que concluiu que “Do acidente/doença não resultaram sequelas passíveis de desvalorização”, o que significa que desde a data da “Alta”, ocorrida em 31-1-2022, e até à realização de Junta de Recurso, requerida pela autora em 25-7-2023, mas ainda não realizada, cessou a obrigação do Município de Lisboa de continuar a suportar as despesas médicas da autora, ainda que relacionadas com o acidente em serviço de que foi vítima.
16. E, tal como considerou a sentença recorrida, tal conduta não envolve a violação do artigo 59º, nº 1, alínea f) da CRP, na medida em que a entidade patronal se limitou a extrair do facto da recorrente ter tido alta a conclusão de que a mesma se encontrava curadas das lesões provocadas pelo acidente em serviço, conclusão aliás suportada pela letra e espírito do regime instituído pelo DL nº 503/99, de 20/11, que deste modo não ofende o núcleo essencial do direito fundamental consagrado na norma constitucional invocada.
17. Coisa diferente poderá ocorrer caso a junta de recurso a que a recorrente irá comparecer reverter a conclusão a que chegou a junta médica da CGA em 4-4-2023, situação em que estaremos perante uma situação de recidiva ou recaída, a justificar a reabertura do processo e a conferir ao trabalhador o direito à reparação previsto no artigo 4º do DL nº 503/99, de 20/11, nos termos previstos no artigo 24º do diploma citado.
18. Por conseguinte, não pode afirmar-se que a actuação do Município de Lisboa tenha ultrapassado os limites que os princípios de justiça, boa-fé e confiança legítima, ínsitos na Constituição da República Portuguesa, impõem e que a vinculam, previstos no artigo 266º da CRP, impondo o reconhecimento à recorrente do direito à manutenção do pagamento das despesas com os tratamentos profilácticos e da medicação que lhe tinha sido prescrita, já que aquele agiu de acordo com a regulamentação que emerge do regime jurídico constante do DL nº 503/99, de 20/11.
Só assim será se o Município de Lisboa, confrontado com a situação mencionada no artigo 24º do DL nº 503/99, de 20/11, não determinar a abertura do processo e não reparar, nos termos previstos no artigo 4º do citado diploma, os danos resultantes da recidiva ou recaída da recorrente.
19. Por conseguinte, conclui-se que a sentença recorrida não padece dos vícios que a recorrente lhe aponta, merecendo por isso ser confirmada.

IV. DECISÃO
20. Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo – Subsecção Social deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
21. Sem custas, por isenção (artigo 48º, nº 2 do DL nº 503/99, de 20/11).

Lisboa, 24 de Abril de 2024
(Rui Fernando Belfo Pereira – relator)
(Maria Helena Filipe – 1ª adjunta)
(Eliana de Almeida Pinto – 2ª adjunta)