Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:699/23.0 BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/12/2023
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:LEI DA AMNISTIA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
EFEITO “EX TUNC”
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I- O artigo 6º da Lei da Amnistia é aplicável a infracções disciplinares e disciplinares militares, não tendo o legislador procurado fazer uma distinção entre amnistia própria e imprópria, ou seja, aplica-se tanto à infracção que ocorre antes da condenação do trabalhador, como àquela que ocorre depois da condenação.
II- In casu, significa que tanto faz extinguir o procedimento disciplinar, como obvia ao cumprimento da sanção disciplinar, porque o acto punitivo também deixa de existir.
III- Optando o legislador por não proceder à distinção entre os dois tipos de amnistia, retira-se do efeito útil da norma que a infracção disciplinar é “apagada”, ou seja, estamos perante uma abolição retroactiva da infracção disciplinar.
IV- A amnistia opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, o que, na prática, cifra-se como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, é eliminado do registo disciplinar do trabalhador.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I. RELATÓRIO
1. M......, com os sinais dos autos, intentou no TAC de Lisboa contra o Ministério da Justiça uma providência cautelar de suspensão da eficácia de acto administrativo, requerendo a suspensão do acto administrativo consubstanciado na decisão emitida pela Ministra da Justiça no processo disciplinar nº ........../CN, mediante a qual foi aplicada à requerente a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional, pelo período de 25 (vinte e cinco) dias.
2. O TAC de Lisboa, por sentença datada de 3-5-2023, julgou a providência cautelar improcedente.
3. Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação para este TCA Sul, no qual formulou as seguintes conclusões:
a) O princípio do inquisitório tem intrínseco um poder/dever do juiz, que implica que, considerando que a ausência de um elemento documental essencial, esteja vinculado a notificar a parte para proceder à sua junção em vista da justa composição do litígio, o qual, não sendo exercido, fere a decisão de violação do artigo 411º do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do artigo 1º do CPTA, que o incorpora;
b) A perda de rendimentos não constantes determina uma insusceptibilidade de reconstituição do dano que se procura obstar com o pedido de suspensão de eficácia do acto, sendo que o prolongar no tempo ainda mais acentua o desajuste de uma possível futura compensação;
c) Reunidos se mostram-se, em consequência, os requisitos a que alude o artigo 120º do CPTA, o qual, a exemplo do comando legal mencionado em a) destes conclusões, e salvo melhor opinião, se mostra violado”.
4. O Ministério da Justiça apresentou contra-alegação, tendo para tanto formulado as seguintes conclusões:
A. Para que possa ser adoptada uma providência cautelar é necessário, desde logo, a verificação de dois requisitos cumulativos, enunciados no nº 1 do artigo 120º do CPTA, que correspondem aos designados periculum in mora (receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente) e fumus boni iuris (aparência do bom direito, reportado ao ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente);
B. O ónus da prova sumária dos requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris cabe ao requerente e tratando-se de requisitos cumulativos, não se verificando um deles, fica irremediavelmente perdida a possibilidade do deferimento da providência requerida;
C. Na sentença em recurso, decidiu-se, e bem, pela não verificação do requisito do periculum in mora e, consequentemente, pela improcedência da presente providência cautelar;
D. A argumentação da recorrente ao sustentar o periculum in mora assenta em dois vectores: o primeiro de matriz unicamente económica, relativo à perda de rendimentos e à impossibilidade de fazer face às suas despesas e dos seus dois filhos menores, e um segundo vector que se prende com os danos reputacionais que se reportam à vertente económica (aqui no sentido da perda irreversível de clientes) em conjugação com a ofensa e danos que acarretam para o seu prestígio e brio profissionais;
E. A recorrente juntou prova documental bastante para confirmar despesas fixas de montante elevado, mas não juntou qualquer prova dos valores por si auferidos nem da respectiva proveniência, circunstância que obstou a uma análise séria dos efeitos decorrentes da perda de rendimentos motivada pela suspensão do exercício de funções;
F. De acordo com o decidido, e bem, na sentença em recurso, cabe ao requerente da providência cautelar o ónus de alegar e provar a matéria de facto integradora dos requisitos legais de que depende a concessão da providência requerida (artigos 342º do CC, 114º, nº 3, alínea g) e 120º, ambos do CPTA), não podendo o tribunal substituir-se ao mesmo, posição que tem acolhimento em vasta jurisprudência administrativa;
G. Pelo que carece de sentido a alegada violação do princípio do inquisitório, uma vez que, nos presentes autos, o ónus da alegação e da prova dos factos integrantes do periculum in mora cabia à recorrente, não estando, por isso, o juiz vinculado a diligenciar nos termos previstos no artigo 411º do CPC, como se alega e pretende no recurso em análise;
H. Por outro lado, tendo a recorrente sido notificada da decisão suspendenda a 20 de Fevereiro de 2023, com efeitos no dia seguinte, e tendo o recorrido sido citado no âmbito da presente providência cautelar a 13 de Março de 2023 (cf. doc. 1), facilmente se constata que no intervalo de tempo decorrido entre a data da produção de efeitos da notificação e a data da citação decorreram 21 dias de cumprimento da sanção disciplinar aplicada, cuja execução foi suspensa por via da citação do recorrido (artigo 128º, nº 1 do CPTA);
I. Desta forma, bem decidiu a sentença recorrida ao concluir que a decisão suspendenda já se mostrava cumprida em 21 dias, restando apenas 4 dias de suspensão por cumprir, ao contrário do que que alega a recorrente ao pretender que estão ainda por cumprir 11 dias de suspensão;
J. O efeito útil da presente providência cautelar para a requerente é, assim, muito reduzido, tendo em conta que a decisão suspendenda está praticamente executada, pelo que os alegados prejuízos referentes a despesas mensais e danos reputacionais serão diminutos, dado que o período susceptível de os causar é de apenas 4 dias;
K. Considerando que os prejuízos alegados ou não se encontram demonstrados ou porque, da configuração dada pela recorrente se constata que os mesmos já ocorreram, concluiu a sentença em recurso que não se verifica uma situação merecedora da tutela cautelar como protecção do status quo ante, dando-se, assim, por não verificado o requisito do periculum in mora, o que não merece qualquer censura;
L. Tratando-se o periculum in mora de um dos requisitos cumulativos de que depende a procedência da providência cautelar e porque, neste caso, tal requisito não se verifica, não pode a presente providência ser adoptada;
M. Pelo que, bem andou a sentença em recurso ao concluir pela improcedência da providência cautelar requerida, não merecendo, por isso, ser revogada”.
5. Remetidos os autos a este TCA Sul, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 146º do CPTA, tendo a Digna Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal emitido douto parecer, no qual sustenta que o recurso não merece provimento.
6. Sem vistos aos Exmºs Juízes Adjuntos, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.


II. OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A DECIDIR
7. Antes da apreciação e decisão das questões colocadas pela recorrente, há que determinar se os efeitos jurídicos da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), mais concretamente do seu artigo 6º, são susceptíveis de se projectar no presente processo e, na afirmativa, em que termos.
8. E, só após esta análise, é que se impõe apreciar no presente recurso se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao ter julgado a providência requerida improcedente, por violação do princípio do inquisitório, que impunha um poder/dever do juiz para, considerando a ausência de um elemento documental essencial, notificar a parte para proceder à sua junção em vista da justa composição do litígio, e que, por não ter sido exercido, fere a decisão de violação do artigo 411º do CPCivil, e se, ainda assim, estão reunidos todos os pressupostos para o respectivo deferimento.


III. FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
9. Considerando que a matéria de facto dada como assente pela decisão do TAC de Lisboa não se mostra impugnada, nem se vislumbra necessária respectiva alteração, ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 6 do CPCivil, dá-se por integralmente reproduzida a matéria de facto constante da sentença recorrida.

B – DE DIREITO
10. Como decorre dos autos, a recorrente M...... intentou no TAC de Lisboa contra o Ministério da Justiça uma providência cautelar de suspensão da eficácia de acto administrativo, na qual requereu a suspensão do acto administrativo consubstanciado na decisão emitida pela Ministra da Justiça no processo disciplinar nº ........../CN, que lhe aplicou a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional, pelo período de 25 (vinte e cinco) dias, não logrando obter provimento, já que o TAC de Lisboa, por sentença datada de 3-5-2023, julgou a providência cautelar improcedente.
11. No dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), cujo artigo 6º tem o seguinte teor:
São amnistiadas as infracções disciplinares e as infracções disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar mais concretamente do seu artigo 6º”.
12. No caso dos autos, no processo disciplinar em que foi arguida a aqui recorrente, foi-lhe aplicada a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional, pelo período de 25 (vinte e cinco) dias, pelo que a infracção disciplinar em causa se encontra amnistiada por força do disposto no citado artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8.
13. A amnistia da infracção disciplinar em sentido próprio, é aquela que ocorre antes da condenação do trabalhador, refere-se à própria infracção e faz extinguir o procedimento disciplinar. Por sua vez, a amnistia em sentido impróprio, ou seja, a que ocorre depois da condenação, apenas impede ou limita o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias.
14. No caso presente, como o artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui uma providência que “apaga” a infracção disciplinar, sendo por isso apropriado falar-se aqui numa abolição retroactiva da infracção disciplinar, porquanto esta (a amnistia), opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, tudo se passando como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado do registo disciplinar do trabalhador.
15. Ora, constituindo o objecto da presente providência cautelar a suspensão da eficácia do acto que puniu a recorrente com a pena disciplinar de suspensão, com o “desaparecimento” da infracção disciplinar, “ex vi” artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, cai também o acto punitivo que sancionou a recorrente, tornando impossível o prosseguimento da presente lide, por aquele acto punitivo ter deixado de ter existência jurídica.
16. E, sendo assim, torna-se desnecessário apreciar os vícios que a recorrente imputa à decisão do TAC de Lisboa e que constituíam o objecto inicial do presente recurso.


IV. DECISÃO
17. Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo – Subsecção Social deste Tribunal Central Administrativo Sul, em declarar amnistiada a infracção disciplinar sancionada pelo despacho suspendendo com a pena de suspensão, por força do disposto no artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 e, em consequência, julgar extinta a presente instância de recurso, por impossibilidade superveniente da lide.
18. Sem custas.

Lisboa, 12 de Outubro de 2023
(Rui Fernando Belfo Pereira – relator)
(Carlos Araújo – 1º adjunto)
(Frederico Macedo Branco – 2º adjunto)