Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:109/20.4BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/21/2021
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
SISTEMA DE VIDEOVIGILÂNCIA
LEI N.º 39/2009, DE 30 DE JULHO
Sumário:A exigência de captação de som nos sistemas de videovigilância instalados no túnel de acesso aos balneários não viola o art.º 26º da CRP.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório:

O F....., SAD, nos termos dos art.ºs 8º, n.ºs 1, 2 e 5 da LTAD, interpôs o presente recurso do acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) de 26 de outubro de 2019 que confirmou o acórdão do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que o condenou no pagamento da quantia de €1 143,00 (mil cento e quarenta e três euros) pela prática da infração p. e p. pelo art.º 87º-A, n.º 4 do RDLPFPF2018.
Formulou as seguintes conclusões:
A. Funda-se o presente recurso na violação do disposto no artigo 26.º da CRP, na interpretação feita pelo Acórdão da FPF, confirmada pelo Tribunal a quo, no que concerne à exigência imposta pelo art. 87.º-A, n.º 4 do RDLFPF2018 (ex vi art. 18.º-1, 2 e 6 da Lei n.º 39/2009), da existência de um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem e som no túnel de acesso aos balneários dos recintos desportivos.
B. Sendo o direito à palavra um direito fundamental, este apenas pode ser restringido em situações especiais ou excecionais, nomeadamente para salvaguarda de outros direitos fundamentais de idêntica importância (art.18.º, n.º 2 da CRP), e sempre atendendo, impreterivelmente, a estritos critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação.
C. No caso concreto e não estando em causa a proteção de outro direito fundamental, a restrição teria, como se refere na decisão recorrida, tão somente como fundamento a salvaguarda de objetivos de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos.
D. Sendo certo que o Tribunal a quo andou mal quando considerou que a restrição ao direito fundamental à palavra e livre expressão era:
a) adequada à proteção de pessoas e bens, bem como ao exercício da ação penal e contra ordenacional,
b) Não ia para além do estritamente necessário para atingir as finalidades de prevenção e combate à violência no desporto e
c)Equilibrada em virtude de não implicar uma intervenção restritiva em que os benefícios resultantes da prossecução dos fins anteriormente referidos suplanta a gravidade do sacrifício imposto do ponto de vista dos direitos afetados, nem, por outro lado, os custos advenientes para o promotor do espetáculo desportivo do cumprimento desses deveres.
Porém,
E. No túnel e área técnica, local onde se exige a recolha de som para além da imagem, é:
a) é um local de acesso condicionado,
b) transitam trabalhadores da entidade promotora do espetáculo e outros profissionais que são insuportavelmente condicionados e inibidos no exercício do seu direito fundamental de livre expressão, atento o facto de as suas conversas (até privadas) poderem ser reveladas e tornadas públicas em sede de processo contra-ordenacional e penal;
F. Os objetivos de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos não podem pois sobrepor-se ao direito fundamental de colaboradores, jornalistas e outros, poderem expressar-se forma livre, sem estarem com receio de que as suas afirmações possam ser, em sede de processo contra-ordenacional ou penal, tornadas públicas, não consubstanciando uma situação verdadeiramente excecional e especial, que justifique a restrição de um direito fundamental.
G. Tanto mais quando se sabe que as situações de insegurança e racismo, de xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos se verificam, na esmagadora maioria das situações, no seio do público e não no seio daqueles que trabalham na indústria do futebol, sendo que aquelas eventuais situações são perfeitamente acauteladas com a recolha de imagem, a qual e por si só, já é suficientemente intrusiva da privacidade e direito à imagem daqueles que ali circulam.
H. Assim, a recolha de imagem é mais do suficiente para cumprir os referidos objetivos de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, sendo desproporcional, porque desadequado, excessivo e desequilibrado a recolha de som.
I. Impõe-se a declaração da inconstitucionalidade, por violação do disposto no art. 26.º-1 da CRP, na interpretação feita pelo Acórdão da FPF, confirmada pelo Tribunal a quo, no que concerne à exigência imposta pelo art. 87.º-A, n.º 4 do RDLFPF2018 (ex vi art. 18.º-1, 2 e 6 da Lei n.o 39/2009), da existência de um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem e som no túnel de acesso aos balneários dos recintos desportivos.


A Recorrida contra-alegou tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, datado de dia 26 de outubro de 2020 que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multa por aplicação do artigo 87.º-A, n.º 4 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional 2018, por referência, por sua vez, aos deveres ínsitos nos artigos 35.º, n.º 1, alínea t), do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional («Regulamento das Competições»), 6.º, alínea u), do Regulamento de Prevenção de Violência que constitui o seu Anexo VI, e 18.º, n.ºs 1, 2 e 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, na redação em vigor à data dos factos.
2. Em concreto, a Recorrente foi condenada por não procedido à captação de som nos sistemas de videovigilância instalados pela Recorrente no túnel de acesso aos balneários do Estádio do Dragão, aquando do jogo n.º ....., realizado a 14/09/2018 e a contar para a Allianz Cup, opondo a F....., SAD à G....., SA, conforme determinam os Regulamentos e Lei aplicáveis ao caso.
3. Funda-se o presente recurso na violação do disposto no artigo 26.º da CRP, na interpretação feita pelo Acórdão do Conselho de Disciplina da Recorrida, confirmada pelo Tribunal a quo, por unanimidade, sublinhe-se, no que concerne à exigência imposta pelo artigo 87.º-A, n.º 4 do RD da LPFP2018 (ex vi artigo 18.º, n.º 1, 2 e 6 da Lei n.º 39/2009), da existência de um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem e som no túnel de acesso aos balneários dos recintos desportivos.
4. Uma das principais características dos direitos fundamentais é a sua relatividade, isto é, eles não se revestem de caráter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício de um ou mais valores.
5. De facto, o artigo 87.º-A, n.º 4 do RD da LPFP2018, aplicável ex vi artigo 18.º, n.ºs 1, 2 e 6 da Lei n.º 39/2009, restringe direitos, liberdades e garantias, em concreto o direito à imagem e à palavra, no sentido do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP.
6. Desde logo, e por um lado, estamos perante a restrição de um direito fundamental suportada e fundamentada em lei geral e abstrata, aprovada pelo Parlamento, conforme impõe o artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
7. Por outro lado, a mencionada restrição limitou-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
8. Efetivamente, a compressão ou restrição do direito à palavra é, desde logo, aceite e permitida pela Constituição, nomeadamente pelo artº 18º n.º 2, limitando-se a mesma ao estritamente necessário para salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (o direito à cultura física e ao desporto (artigo 79.º), corolário do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.°, n.° 1), do direito à proteção da saúde [artigo 64.°, n.° 2, alínea b)] e do direito aos lazeres [artigos 59.°, n.° 1, alínea d), e 70.°, n.° 1, alínea e)], cuja efetivação reclama ainda do legislador medidas específicas tendentes à efetivação de outros direitos e incumbências do Estado, de que é exemplo o combate à violência no desporto (artigo 79.º, n.º 2, in fine).
9. Não se nos afigura, assim, desproporcional a solução consagrada no regime legal em questão, em que o direito à palavra de todos os que se encontravam presentes no Estádio do Dragão, foi apenas restringido na medida necessária a garantir a segurança e prevenção da violência no desporto.
10. Não pode, obviamente, colher a argumentação da Recorrente segundo a qual, sendo o túnel de acesso ao público um local de acesso condicionado, não reclama exigências de segurança e prevenção de tal modo elevadas que justifiquem a imposição de captação de som e imagem.
11. De facto, aquele túnel, reclama precisamente as mesmas exigências de segurança que qualquer outro local num qualquer recinto desportivo. É que, ao contrário do que pretende transparecer a Recorrente, a Lei n.º 39/2009 e, por conseguinte, o tratamento de dados que por via dela se autoriza, têm por escopo o combate à violência e à segurança de pessoas, atente-se todas as pessoas e não apenas dos adeptos, e bens num recinto desportivo. Com efeito, não se percebe como pode a Recorrente afirmar que a existência de um sistema de videovigilância que permite a captação de imagem e som é inconstitucional porquanto viola o princípio da intervenção mínima. Tanto o som como a imagem são absolutamente essenciais na prossecução daquela finalidade.
12. Em particular no que se refere ao critério da proporcionalidade em sentido estrito, segundo o qual não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos, cabe sublinhar que, em face dos fins pretendidos, os objetivos de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, não se afigura excessiva a captação de som nos sistemas de videovigilância instalados nos recintos desportivos e, em particular, no túnel de acesso. De facto, é o combate à violência e à segurança de pessoas (incluindo-se aqui os adeptos, os colaboradores, os jornalistas, etc.) e bens que justifica tal tratamento de dados.
13. Neste sentido entendeu, e bem, o Conselho de Disciplina e confirmou o Tribunal a quo.
14. Em suma, não há qualquer violação de norma ou princípio constitucional que justifique a não aplicação no caso concreto das normas constantes do artigo 87.º-A, n.º 4, do RDLPFP, e n.ºs 1, 2 e 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009.
Sem prescindir,
15. O RD da LPFP, como os demais Regulamentos, são propostos, debatidos e aprovados pelos próprios clubes, em assembleias da Liga de Clubes realizadas para o efeito, pelo que dificilmente se compreende que sejam estes os primeiros a violá-lo ou a não querer cumpri-lo ou, como é o caso, a alegar a inconstitucionalidades do mesmo...!
16. Ademais, mesmo os Autores que defendem a possibilidade (limitada) de desaplicação de normas reputadas como inconstitucionais pela Administração, apenas o admitem quando a violação da Constituição é manifesta e flagrante.
17. Ora, no caso presente, o que a Recorrente reputa como inconstitucional muito dificilmente pode ser entendido como uma violação manifesta e flagrante da Constituição.
18. Neste sentido, andou bem o Colégio de Árbitros ao julgar improcedente o recurso, e, em consequência, ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo 87.º-A, n.º 4 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional 2018.
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O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.
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II – Objeto do recurso:

Em face das conclusões formuladas, cumpre decidir se o Tribunal Arbitral do Deporto incorreu em erro ao julgar que a exigência de um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem e som no túnel de acesso aos balneários dos recintos desportivos (que, segundo, o Recorrente é imposta pelo art.º 87º-A, n.º 4 do RDLPF2018 ex vi art.º 18º da Lei n.º 39/2009 de 30 de julho) viola o art.º 26º da CRP.


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III - Fundamentação De Facto:

No acórdão recorrido foi julgada provada a seguinte factualidade:

1º. No dia 14.09.2018, no Estádio do Dragão, no Porto, foi disputado o jogo oficialmente identificado sob o n.º ..... (.....), entre a F....., SAD e a G..... SAD, a contar para a 1.ª jornada da fase 3 da Allianz Cup.

2º. No âmbito do Processo de inquérito n.º ....., em 25.10.2018 a Demandante foi notificada para, no prazo máximo de 2 dias, remeter aos autos cópia dos ficheiros vídeo (imagem e som) captados pelo sistema de CCTV instalado no estádio, aquando do jogo identificado em 1.º supra, nomeadamente as imagens e sons captados no túnel de acesso aos balneários, que incluam o percurso realizado pelos árbitros desde o momento em que abandonam o relvado e entram no seu balneário (não só as captadas pelas câmaras e microfones aí instalados, mas também as captadas por quaisquer outras câmaras que abranjam esse local), relativas ao período compreendido entre o final da primeira parte e o início da segunda e as referentes ao período compreendido entre o final do jogo até ao encerramento do espetáculo desportivo.

3º. Em 29.10.2018, por correio eletrónico, a Demandante veio informar que enviou as imagens requeridas em formato CD por correio registado, informando que o sistema de videovigilância da área do túnel de acesso aos balneários não possuía gravação de som.

4º. Os ficheiros vídeo gravados nos suportes remetidos pela Demandante não contêm som.

5º. A Demandante, à data do sobredito jogo, não tinha instalado, em perfeitas condições de funcionamento, um sistema de videovigilância que permitisse o controlo visual de todo o recinto desportivo, e respetivo anel ou perímetro de segurança, dotado de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som e impressão de fotogramas.

6º. A Demandante tinha conhecimento de que o seu sistema de videovigilância não se encontrava apto a abranger, com captação de imagens e som, o túnel de acesso aos balneários.

7º. A Demandante absteve-se de tomar as medidas adequadas a fazer conformar o funcionamento do seu sistema de videovigilância com o preceituado na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e no Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol.

8º. A Demandante, à data dos factos, não havia sido punida pela prática do ilícito disciplinar p. e p. no artigo 87.º-A, n.º 4, do RDLPFP, em qualquer uma das três épocas desportivas anteriores.

Não foram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão dos autos.
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IV – Fundamentação De Direito:

Entende, a Recorrente, que o Tribunal Arbitral do Desporto errou ao julgar que a interpretação efetuada do art.º 87º-A, n.º 4 do RDLFPF 2018 (ex vi art.º 18º, n.º 1, 2 e 6 da Lei n.º 39/2009) não viola o art.º 26º da CRP.
Considera que a recolha de imagem é “mais do que suficiente” para salvaguardar a segurança e combate ao racismo e xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos sendo desadequada, excessiva e desequilibrada a recolha de som pelo que se impõe a declaração de inconstitucionalidade da interpretação efetuada pelo acórdão da FPF no que concerne à exigência imposta pelo art. 87.º-A, n.º 4 do RDLFPF2018 (ex vi art. 18.º-1, 2 e 6 da Lei n.º 39/2009), da existência de um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem e som no túnel de acesso aos balneários dos recintos desportivos.

Vejamos então se incorreu o Tribunal a quo no erro de julgamento que lhe é imputado, enunciando, antes de mais, as disposições legais e regulamentares que fundamentaram a decisão disciplinar impugnada.

A Lei n.º 39/2009, de 30 de julho estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos.

O seu art.º 18º tem como epigrafe “Sistema de videovigilância” e é o seguinte o seu teor (na versão vigente à data da prática dos factos):

1 - O promotor do espetáculo desportivo em cujo recinto se realizem espetáculos desportivos de natureza profissional ou não profissional considerados de risco elevado, sejam nacionais ou internacionais, instala e mantém em perfeitas condições um sistema de videovigilância que permita o controlo visual de todo o recinto desportivo, e respetivo anel ou perímetro de segurança, dotado de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som e impressão de fotogramas, as quais visam a proteção de pessoas e bens, com observância do disposto na Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.

2 - A gravação de imagem e som, aquando da ocorrência de um espetáculo desportivo, é obrigatória, desde a abertura até ao encerramento do recinto desportivo, devendo os respetivos registos ser conservados durante 90 dias, por forma a assegurar, designadamente, a utilização dos registos para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional, prazo findo o qual são destruídos em caso de não utilização.

3 - Nos lugares objeto de videovigilância é obrigatória a afixação, em local bem visível, de um aviso que verse «Para sua proteção, este local é objeto de videovigilância com captação e gravação de imagem e som».

4 - O aviso referido no número anterior deve, igualmente, ser acompanhado de simbologia adequada e estar traduzido em, pelo menos, uma língua estrangeira, escolhida de entre as línguas oficiais do organismo internacional que regula a modalidade.

5 - O sistema de videovigilância previsto nos números anteriores pode, nos mesmos termos, ser utilizado por elementos das forças de segurança.

6 - O organizador da competição desportiva pode aceder às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância, para efeitos exclusivamente disciplinares e no respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, devendo, sem prejuízo da aplicação do n.º 2, assegurar-se das condições de reserva dos registos obtidos.

Nos termos do art.º 5º, n.º 1 deste diploma legal, o organizador da competição desportiva aprova regulamentos internos em matéria de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, nos termos da lei.

Assim sendo, o art.º 35º do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional refere-se às “medidas preventivas para evitar manifestações de violência e incentivo ao fair play” estabelecendo a alínea t) do seu n.º 1 que “em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes (….) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis”.

O anexo VI desse Regulamento constitui o “Regulamento de Prevenção da Violência”, (adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 5.º da lei n.º 39/2009, de 30 de julho), aí se estabelecendo que “sem prejuízo do disposto no Regulamento de Competições e no Regulamento Disciplinar da Liga, as medidas e procedimentos de prevenção, fiscalização e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância ou qualquer outra forma de discriminação nas competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, de forma a possibilitar a realização dos jogos com segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes à sua prática” (art.º 1º).

Nos termos do seu art.º 6º, alínea u), o promotor do espetáculo deve “instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis”.

O incumprimento destas obrigações é previsto e sancionado no Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal (aprovado na Assembleia Geral Extraordinária de 27 de junho de 2011).

Nos termos do seu art.º 87º-A, n.º 4, “o clube que não cumpra as obrigações relativas ao sistema de videovigilância que para si decorrem do Regulamento das Competições é punido com a sanção prevista no n.º 2”. (sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 e o máximo de 100 UC).

Como já evidenciamos, o F....., SAD (Recorrente) sustentava, e continua a sustentar, na sua essencialidade, que “a interpretação” do art.º 87.º-A, n.º 4 do RDLFPF2018 (ex vi art. 18.º, n.ºs 1, 2 e 6 da Lei n.º 39/2009) no sentido de se exigir um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem e som no túnel de acesso aos balneários dos recintos desportivos é inconstitucional (viola o art.º 26º da CRP), o que, segundo entende, deve ser declarado.
Antes, porém, de refletirmos sobre a questão de constitucionalidade suscitada pela Recorrente e apreciada pelo Tribunal a quo, é fundamental assentar no seguinte:
Em primeiro lugar a exigência de um sistema de vigilância não resulta do art.º 87º-A, n.º 4 do Regulamento Disciplinar em questão mas sim de Lei (do art.º 18º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho) e do Regulamento aprovado ao abrigo dessa lei supra citado. O Regulamento Disciplinar limita-se a sancionar a conduta do clube que não cumpra as obrigações relativas ao sistema de videovigilância.
Em segundo lugar o Tribunal a quo - tal como este Tribunal – não tem competência para declarar a inconstitucionalidade de qualquer norma mas tão só para desaplicar as normas que considere inconstitucionais (art.º 204º da CRP).
Feitas estas sumárias considerações preliminares atentemos então à análise da questão da conformidade ou compatibilidade da exigência de videovigilância que permita o controlo visual e sonoro de todo o recinto desportivo através de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som (plasmada no art.º 18º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho) com a tutela constitucional do direito pessoal à palavra e à livre expressão plasmado no art.º 26º, n.º 1 da CRP.
Reconhecendo que está em causa a segurança e combate ao racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, a Recorrente considera justificada a compressão do direito à imagem (mediante a captação de imagens) mas já não (também) a compressão do direito à palavra (mediante a captação de som), restrição que entende ser desproporcionada, no que aos túneis de acesso aos balneários concerne.
Está, portanto, em causa um problema de restrição de direitos, liberdades e garantias que, como resulta do n.º 2 do art.º 18º da CRP, deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses legalmente protegidos.
Como explicam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 1.ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 388), “o regime próprio dos direitos, liberdade e garantias não proíbe de todo em todo a possibilidade de restrição, por via de lei, do exercício dos direitos, liberdades e garantias. Mas submete tais restrições a vários e severos requisitos. Para que a restrição seja constitucionalmente legitima, torna-se necessária a verificação cumulativa das seguintes condições: (a) que a restrição esteja expressamente admitida (ou, eventualmente, imposta) pela Constituição, ela mesma (n.º 2, 1.ª parte); (b) que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (n.º 2 in fine); (c) que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo (n.º 2, 2.ª parte); (d) que a retrição não aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito (n.º 3, in fine).”
Sobre esta concreta questão, nos termos delimitados pelas conclusões formuladas pela Recorrente, foi a seguinte a fundamentação jurídica vertida no acórdão recorrido:
“De um lado, apresentam-se os direitos fundamentais à palavra e à reserva da intimidade da vida privada, invocados pela Demandante e que se assumem como concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 26.º, n.º 1), ao passo que, do outro, avulta o direito à cultura física e ao desporto (artigo 79.º), igualmente corolário do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.°, n.° 1), do direito à proteção da saúde [artigo 64.°, n.° 2, alínea b)] e do direito aos lazeres [artigos 59.°, n.° 1, alínea d), e 70.°, n.° 1, alínea e)], cuja efetivação reclama ainda do legislador medidas específicas tendentes à efetivação de outros direitos e incumbências do Estado, de que é exemplo o combate à violência no desporto (artigo 79.º, n.º 2, in fine).
Assim, considerando-se assente que os sistemas de videovigilância implicam, por natureza, restrições de direitos, liberdades e garantias, ponto-chave é que caberá à lei a definição da medida exata em que esses sistemas podem ser utilizados, e, em especial, assegurar que aquelas restrições se limitam apenas «ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Ora, é justamente isso que encontramos na situação em apreço, em que a captação e a medida do tratamento dos dados (imagem e som) surge suportada e fundamentada em lei geral e abstrata, aprovada pelo Parlamento.
A medida em que a lei procede a essa restrição não vem posta em causa nos presentes autos no que respeita à captação das imagens nos recintos desportivos, mas, como se viu, apenas no que concerne à gravação de som, que a Demandante encara como excessiva e violadora do principio da proporcionalidade. Porém, as razões que justificam a compressão do direito à imagem na situação em análise afiguram-se a este Tribunal serem exatamente as mesmas que legitimam a restrição do direito à palavra – ainda que, como se evidenciará e resulta da solução legalmente consagrada, com diferentes graus de cedência ou compressão de cada um desses direitos. Importa notar, com efeito, que, na dimensão do problema que presentemente nos ocupa, não está em causa o tratamento ou a utilização que é dada dos dados, mas unicamente a sua recolha. O que é muito relevante, desde logo, à luz do diferente regime que neste particular resulta dos n. os 1, 2 e 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009. É que a circunstância de o acesso não apenas às imagens, mas também ao som, acarretar um grau de intrusão maior do que aquele que ocorre quando apenas se permite o acesso às imagens consubstancia justamente a razão pela qual a opção do legislador foi a de permitir o acesso e a utilização das referidas imagens e som, designadamente, às forças de segurança para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional (n.º 2), mas já não ao organizador das competições desportivas, nomeadamente para efeitos disciplinares, possibilitando a este o acesso apenas «às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância» (n.º 6)
É isso mesmo que decorre das normas aqui em confronto, na medida em que não resulta do n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009 qualquer alusão ao som, mas apenas às imagens, sendo certo que o conceito de som não é naturalmente assimilável no de imagem, de mais a mais tendo em conta a distinção a que tipicamente se procede em matéria de videovigilância entre recolha de imagem, recolha de som e impressão de fotogramas (n.º 1). Entendeu o legislador, portanto, que, no caso da aplicação de sanções disciplinares, justifica-se o acesso pelo organizador das competições apenas às imagens, enquanto o sancionamento das condutas mais graves, passíveis de gerar responsabilidade penal ou contraordenacional (as previstas no n.º 2), não dispensa a possibilidade de utilização do som. O que significa, por sua vez, que o legislador levou a cabo uma ponderação em termos de harmonização e concordância prática dos interesses em confronto, tendo, à luz de um juízo de adequação, necessidade e proporcionalidade, autorizado diferentes graus de afetação, no caso, dos direitos à imagem, à palavra e à intimidade da vida privada. Pressuposto é, em qualquer caso, que os clubes e sociedades desportivas, para se conformarem com as obrigações legais decorrentes dos citados n.ºs 1 e 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, e, portanto, não tanto do seu n.º 6, mantenham em perfeitas condições de funcionamento «um sistema de videovigilância que permita o controlo visual de todo o recinto desportivo, e respetivo anel ou perímetro de segurança, dotado de câmaras fixas ou móveis com gravação de imagem e som e impressão de fotogramas». Ou seja, a recolha de som, além da imagem, por meio de sistema de videovigilância é obrigação que resulta diretamente para os promotores de espetáculos desportivos dos referidos n.ºs 1 e 2 do artigo 18.º, afigurando-se a este Tribunal estarem em causa restrições de direitos, liberdades e garantias impostas em respeito pelo princípio da reserva material de lei e em integral cumprimento do princípio da proporcionalidade. Tais restrições mostram-se, com efeito:
(i) adequadas, ao menos a um nível mínimo, à proteção de pessoas e bens, bem como ao exercício da ação penal e contraordenacional;
(ii) (ii) não vão além do estritamente necessário para atingir as finalidades de prevenção e combate à violência no desporto, ou, na formulação da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, os objetivos de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos;
(iii) (iii) são equilibradas, em virtude de não implicarem uma intervenção restritiva em que os benefícios resultantes da prossecução dos fins anteriormente referidos suplanta a gravidade do sacrifício imposto do ponto de vista dos direitos afetados, nem, por outro lado, os custos advenientes para o promotor do espetáculo desportivo do cumprimento desses deveres.

No que respeita, em especial, ao último critério enunciado (proporcionalidade em sentido estrito), afigura-se ainda que a lesão dos direitos à palavra e à privacidade se mostra mínima mesmo quando se considere a incidência da gravação do som na parte dos recintos desportivos correspondente aos túneis de acesso ao relvado e aos balneários. Não existe, com efeito, qualquer impedimento à livre expressão de palavras ou ideias nesses espaços, nem, tão-pouco, qualquer razão que leve a pugnar pela existência nos referidos túneis de acesso de um ambiente de intimidade tal que torne excessiva ou desproporcional a captação de som nesses locais. Não está em causa, com efeito, a esfera íntima de quaisquer dos agentes que transitam por esses corredores nos dias de jogo, os quais, aliás, não se encontram senão no exercício das suas atividades profissionais, no âmbito da competição desportiva que se visa regular e que é a razão de ser da sua presença ou passagem em tais locais. Acresce, por outro lado, que a suscetibilidade de utilização das gravações em causa está, como se demonstrou, totalmente balizada pelo legislador (servindo unicamente para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional), razão pela qual se entende não estar em causa qualquer restrição excessiva ou intolerável do direito à intimidade da vida privada. Não se vislumbra, em suma, qualquer violação de norma ou principio constitucional que justifique a não aplicação no caso concreto das normas constantes do artigo 87.º-A, n.º 4, do RDLPFP, e n.ºs 1 e 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, e, consequentemente, a revogação por essa via da decisão disciplinar aplicada pela Demandada à Demandante.”
É rigoroso e acertado este julgamento, apenas se devendo enfatizar que não estava ainda em causa a utilização das imagens e do som captados para fins de investigação criminal ou para a instrução de processo contraordenacional ou disciplinar, mas sim a existência e o funcionamento de um sistema de videovigilância que permita a captação de imagem, de som e a impressão de fotogramas, com expressa salvaguarda da proteção de dados pessoais vertida na Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.
Em todo o caso julgamos também que a norma em questão respeita uma “concordância prática” (na expressão de Viera de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1998, pág.. 222 e sgs) entre os direitos e valores em conflito da qual não resulta uma afectação dos seus conteúdos essências sendo assim conforme à Constituição (ao art.º 18º) a “compressão” do direito à palavra e à livre expressão, inexistindo, por isso, fundamento para a recusa de aplicação da norma.
O recurso não merece, portanto, provimento.

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As custas serão suportadas pelo Recorrente F....., SAD, nos termos dos art.ºs 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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V – Decisão:

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, manter o acórdão arbitral.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 21 de janeiro de 2021



Catarina Vasconcelos
Paulo Pereira Gouveia
Catarina Jarmela


Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, a Relatora atesta que os Srs Juízes Desembargadores Adjuntos têm voto de conformidade.