Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 654/14.0BELSB |
| Secção: | CA |
| Data do Acordão: | 10/09/2025 |
| Relator: | ILDA CÔCO |
| Sumário: | |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Indicações Eventuais: | Subsecção Administrativa Social |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | Acórdão
I – Relatório AA intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, acção administrativa especial contra o Instituto Superior de Agronomia e a Universidade de Lisboa, pedindo a anulação “da deliberação final do Júri do concurso e deste na totalidade, bem como dos sequentes atos de homologação e de autorização de contratação, proferidos pelo Sr. ...da Universidade de Lisboa, em 31 de Dezembro de 2013, por se encontrarem inquinados dos vícios de forma e de lei, dada a patente violação das normas dos artºs 49º e 50, nº6 do ECDU, dos artºs 2º, 5º 6º, 124º e 125º do CPA e dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da transparência, consagrados nas mesmas e no artºs 266º, nº1 e 2 e 268º, nº3 da CRP”. Por sentença proferida em 13/11/2019, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou a acção procedente e anulou o acto de homologação da lista de classificação final do concurso documental internacional para recrutamento, na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas, de um Professor Catedrático na área disciplinar de Ecologia e Ciências do Ambiente, do Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, publicitado em 26/06/2013, na 2.ª Série do Diário da República, pelo Edital n.º..., proferido, em 30/12/2013, pelo ...da Universidade de Lisboa, bem como anulou “todo o concurso, desde a decisão que autorizou a sua abertura” e “a autorização de contratação da C.I., datada de 30.12.2013”. Inconformada, a Universidade de Lisboa interpôs recurso da sentença para este Tribunal Central Administrativo Sul, terminando as alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem: 1. Ao anular o ato de homologação da lista de classificação do concurso documental internacional para recrutamento, na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas, de um Professor Catedrático na área disciplinar de Ecologia e Ciências do Ambiente, do Instituto de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, publicitado em 26.06.2013, na 2.ª série do Diário da República, pelo Edital n.- ..., bem à anulação de todo o concurso, desde a decisão que autorizou a sua abertura, bem como a anulação da autorização de contratação da contrainteressada, datada de 30.12.2013, a sentença impugnada incorreu em erro de julgamento, por incorreta aplicação do direito; 2. Incorreu em erro de julgamento, na medida em que o A. ao lançar mão do meio processual impugnatório autuou com manifesto abuso de direito, na modalidade de Venire Contra Factum Proprio; 3. Na verdade, o A., enquanto membro do Conselho Científico do Instituto Superior de Agronomia, votou favoravelmente, em reunião desse órgão colegial, uma das duas propostas para a atribuição de pesos, com valores mínimos por vertente de avaliação, tendo posteriormente assacado vícios à metodologia de avaliação fixada no Edital, do concurso de que ele próprio votou favoravelmente! 4. Sendo ilegítimo, à luz do art.º 334.º do C. Civil e por conseguinte vedado, por atentatório à boa-fé, o uso a meio processual impugnatório! 5. O Tribunal "a quo”, na apreciação jurídica à argumentação aduzida pela recorrente, em sede de contestação, não fundamentou o motivo pelo qual entende não se estar perante uma situação de abuso de direito, apenas referindo “que se tratam (…) de situações sem qualquer ligação entre si” (p. 22); 6. Motivo pelo qual a aqui recorrente reitera a posição vertida na sua contestação; 7. Tanto é que o Tribunal, enquanto órgão de soberania, está obrigado a fundamentar as suas decisões, tanto em matéria factual, como de direito, o que não aconteceu in casu; 8. Gerando nulidade da sentença, por força do art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, aplicável ex vi pelo art.º 1.º do CPTA; 9. Para mais e no que concerne à falta de fundamentação e de transparência, reitera-se que os membros do júri, elaboraram uma nota justificativa individual, densificando as valorações atribuídas, conforme decorre da ata de 19.12.2013 e anexos, juntos ao processo administrativo; 10. Pelo que não pode acolher tais vícios, por tal não corresponder à verdade dos factos; 11. Para mais, sempre se dirá que a atividade de avaliação académica é forçosamente realizada com amplas margens de livre apreciação técnica, não cabendo ao Tribunal, por força do "Princípio da Separação de Poderes", conhecer das mesmas, ao Tribunal apenas compete conhecer do cumprimento de normas e princípios, que em face do anteriormente alegado, foram devidamente cumpridas pela R. Notificado para o efeito, o autor não apresentou contra-alegações. * Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1, do CPTA, o Ministério Público não emitiu Parecer. * Com dispensa de vistos, nos termos do disposto no n.º4 do artigo 657.º do CPC, vem o processo à conferência para julgamento. * II – Questões a decidir Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, a questão a decidir é a de saber se a sentença recorrida padece da nulidade prevista na alínea b), do n.º1 do artigo 668.º do CPC e de erro de julgamento, em virtude de se verificar o abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e de o acto impugnado não padecer do vício de falta de fundamentação. * III – Fundamentação 3.1 – De Facto Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos: 1. Por despacho do Reitor da Universidade Técnica de Lisboa de 11.04.2013, foi aberto concurso documental internacional para recrutamento na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas, de um Professor Catedrático na área disciplinar de Ecologia e Ciências do Ambiente, do Instituto de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, publicitado em 26.06.2013, na 2.ª série do Diário da República, pelo Edital n.º ... – cfr. fls. 1 ss do processo instrutor apenso aos autos; 2. O ora A., AA, bem como BB, CC, DD e EE apresentaram-se como candidatos ao mencionado concurso – cfr. Ata da reunião do Júri do concurso, a fls. 3 do processo instrutor apenso aos autos; 3. Em 05.11.2013, os membros do júri do referido concurso reuniram-se para proceder à admissão dos candidatos a concurso, tendo discutido e votado o mérito absoluto dos mesmos, concluindo pela aprovação de todos – cfr. fls. 2 e ss e 6 do processo instrutor apenso aos autos; 4. Na mesma data, o júri voltou a reunir para, após discussão e esclarecimento com base nos elementos curriculares apresentados pelos candidatos aprovados em mérito absoluto, proceder à respetiva seriação – cfr. fls. 3 do processo instrutor apenso aos autos; 5. Do parecer da Professora FF consta – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que: “(…) havendo que ordenar os candidatos, tomam-se como referência o articulado legal contemplado no ECDU e aplicando os critérios de seleção e seriação expressos no Edital n.º ... na avaliação do mérito científico e pedagógico, conforme quadro em anexo, de que resulta a seguinte ordenação dos candidatos:
(…)
(…)” • cfr. fls. 8 e 9 do processo instrutor apenso aos autos; 6. Do parecer da Professora GG consta – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que: “(…) Pela análise pormenorizada dos vários parâmetros considerados no edital elaborei a grelha em anexo e procedi à classificação final com a seguinte seriação:
(…)
7. Do parecer do Professor HH consta – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que: “(…) procedi à análise dos curricula dos cinco candidatos…. Através da análise das quatro componentes em avaliação, obedecendo aos critérios mínimos aí definidos (ponderação em cada componente), a qual é discriminada no quadro junto, estabeleço a seguinte classificação:
(…)
• cfr. fls. 12 do processo instrutor apenso aos autos; 8. Do parecer da Professora II consta – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que: “(…) Nos termos do n.º IV.5 do Edital n.º ..., procedi à análise dos Curricula… Desta análise, ponderando as actividades de Ensino, Investigação, Transferência de Conhecimento e Gestão Universitária, e conforme grelha anexa, seriei os candidatos da seguinte forma:
(…)
9. Do parecer da Professora II e JJ consta – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que foram utilizados como critérios principais de seriação “o número de publicações em revistas internacionais; número e diversidade de disciplinas… leccionadas; orientações de mestrado e doutoramento concluídas e orientações em post docs; responsabilidade em projetos de investigação; parcerias e divulgação junto de stakeholders; gestão e cargos ocupados na universidade; colaborações internacionais;(…) utilizei as publicações internacionais como o critério de desempate, quando necessário”, tendo a mesma proposto a seguinte ordenação:
(…)” • cfr. fls. 15 do processo instrutor apenso aos autos; 10. Do parecer do Professor KK consta – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que “a produção científica (quantidade e impacto) foi avaliada tendo também em conta o equilíbrio e a coerência da investigação. As tarefas de administração referem-se às atividades de gestão académica mas também de intervenção política. No ensino considerei a contribuição, a inovação, a transmissão de conhecimentos extra-muros”, propondo a final a seguinte ordenação:
Elaborada de acordo com a seguinte tabela: “(…) (…)” • cfr. fls. 16 do processo instrutor apenso aos autos; 11. Do parecer da Professora LL – para além do mais que se dá integralmente por reproduzido –, designadamente, que a avaliação curricular dos candidatos teve por base os parâmetros constantes e definidos no Edital, tendo-se apurado a seguinte classificação: “(…)
Ordenando os candidatos da seguinte forma:
(…)” • cfr. fls. 17 e 18 do processo instrutor apenso aos autos; 12. Em 05.11.2013, foi elaborada a seguinte lista de ordenação final dos candidatos: “(…)
(…)” • cfr. fls. 4 e ss do processo instrutor apenso aos autos; 13. Em 07.11.2013, o A. foi notificado do projeto de deliberação – cfr. doc. junto a fls. 56 dos autos. 14. 15.11.2013, o A. apresentou reclamação, essencialmente com os mesmos fundamentos que servem de base à presente ação – cfr. fls. 38-40 do processo instrutor apenso aos autos; 15. Em 19.12.2013, na sequência da referida reclamação, os membros do júri decidiram manter a ordenação previamente estabelecida – em que figurava no primeiro lugar a candidata EE –, que se converteu em definitiva com a lista de ordenação final, tendo elaborado relatório final, subscrito por todos os membros do júri– cfr. Ata da reunião do júri a fls 25-26 e fls. 27 ss do processo instrutor apenso aos autos; 16. Em resposta à reclamação apresentada pelo Requerente, o Professor HH emitiu parecer segundo o qual refere ter obedecido aos “critérios mínimos definidos no Edital (ponderação de cada componente), precisamente para evitar introduzir um critério de subjetividade na valoração de cada componente em análise” e manteve a ordenação anteriormente proposta – cfr. fls. 30 do processo instrutor apenso aos autos; 17. A Professora JJ emitiu parecer, onde afirma ter usado “…como critérios os indicados no edital, tendo apenas referido no primeiro parecer os aspetos a que dei mais importância dentro de cada componente. Acrescento agora que atribuí os 30% de peso restante às actividades de investigação, o que por lapso não indiquei no parecer anterior” e manteve a ordenação anteriormente proposta – cfr. fls. 31 do processo instrutor apenso aos autos; 18. A Professora LL referiu que “mantenho a classificação apresentada e constante do quadro [inicial]…feita, como previamente referido, tendo em atenção os vários parâmetros constantes em cada uma das quatro vertentes do Edital. Cada parâmetro foi classificado individualmente contribuindo finalmente para a classificação final de cada vertente, a qual foi ponderada de acordo com as percentagens constantes do Edital e a redistribuição dos 30% restantes, tal como consta do quadro [inicial]” – cfr. fls. 32 e 33 do processo instrutor apenso aos autos; 19. A Professora MM manteve a classificação por considerar “ter ponderado de forma correta e informada” – cfr. fls. 34 do processo instrutor apenso aos autos; 20. A Professora MM manteve a classificação, alegando que: “(…)
“(…) • cfr. fls. 35 do processo instrutor apenso aos autos; 21. A Professora II ajustou os pesos a 100%, mantendo a avaliação e ordenação dos candidatos – cfr. fls. 36 do processo instrutor apenso aos autos; 22. O Professor KK, apresentou nova tabela, mantendo a ordenação proposta – cfr. parecer a fls. 37 do processo instrutor apenso aos autos, que se dá integralmente por reproduzido; 23. Em 30.11.2013, foi dado conhecimento ao A. da ata da reunião, dos pareceres da fundamentação da decisão, bem como da lista de ordenação final dos candidatos – cfr. fls. 58 dos autos; 24. A decisão do júri do concurso foi homologada por despacho Reitoral datado de 30.12.2013, exarado na ata de reunião do júri de 05.11.2013 e na de 19.12.2013 e respetivo parecer e lista de ordenação final – cfr. fls. 2, 25 e 29 do processo instrutor apenso aos autos; 25. Por despacho de 30.12.2013, do ...da Universidade de Lisboa, foi autorizada a contratação, em regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, em Regime de Tenure, como Professora Catedrática, da Doutora EE, com efeitos a partir de 31 de dezembro de 2013 – cfr. extrato do despacho n.º ..., publicado na II série do DR de 04.02.2014 * 3.2 – De Direito 3.2.1 – Da nulidade da sentença Nas conclusões das alegações de recurso, a recorrente imputa à sentença recorrida a nulidade prevista na alínea b), do n.º1 do artigo 615.º do CPC, alegando, em suma, que o Tribunal a quo não fundamentou o motivo pelo qual entende não se estar perante uma situação de abuso de direito, apenas referindo “que se tratam (…) de situações sem qualquer ligação entre si”. Vejamos. As nulidades da sentença “reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito” [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/03/2021, proferido no Processo n.º3157/17.8...]. Relativamente ao conteúdo da sentença, o artigo 94.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º214-G/2015, de 2 de Outubro, aplicável à presente acção por força do disposto no artigo 15.º deste diploma legal, estabelece o seguinte: “1 - A sentença ou acórdão começa com a identificação das partes e do objecto do processo e com a fixação das questões de mérito que ao tribunal cumpra solucionar, ao que se segue a apresentação dos fundamentos e a decisão final. 2- Os fundamentos podem ser formulados sob a forma de considerandos, devendo discriminar os factos provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”. Por sua vez, o artigo 607.º n.º3, do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, estabelece que: “Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”. Atento o disposto no artigo 615.º, n.º1, alínea b), do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, sendo que só a absoluta falta de fundamentação, e já não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação, determina a nulidade da sentença. Analisada a sentença recorrida, verifica-se que, na mesma, são especificados os respectivos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, sendo que, em sede de fundamentação de Direito, consta, relativamente ao alegado abuso de direito, designadamente, o seguinte: “Finalmente, o facto de alegadamente o A. ter participado em reuniões do Conselho Científico do ISA, referentes a concursos distintos, onde foram votadas propostas para a atribuição de pesos, com valores mínimos por vertente de avaliação, não determina de per si a ocorrência de uma situação de abuso de direito, nos termos do art. 334.º do CC, conforme preconiza a Entidade Requerida, pelo facto de vir agora, nos presentes autos, vícios à metodologia de avaliação determinada no Edital, desde logo por se tratar de situações sem qualquer ligação entre si”. O Tribunal a quo fundamentou, assim, ainda que de forma muito sucinta, o decidido quanto ao alegado abuso de direito, sendo que, como já referimos, apenas a absoluta falta de fundamentação constitui causa de nulidade da sentença. Nesta medida, concluímos que a sentença recorrida não padece da nulidade prevista na alínea b), do n.º1, do artigo 615.º do CPC. * 3.2.2 – Do erro de julgamento de Direito Na presente acção administrativa especial, o autor impugna o acto de homologação da lista de classificação final do concurso documental internacional para recrutamento na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas de um Professor Catedrático, na área disciplinar de Ecologia e Ciências do Ambiente, do Instituto Superior de Agronomia, tornado público pelo Edital n.º..., publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 26/06/2013. O Tribunal a quo julgou a acção procedente, tendo concluído que o acto impugnado padece de vício de violação de lei, por violar os princípios da igualdade, imparcialidade e transparência, e de vício de forma, por falta de fundamentação, sendo que, como resulta do que referimos em sede de apreciação da nulidade da sentença, considerou que não se verifica uma situação de abuso de direito. A questão que se coloca, no presente recurso, é a de saber se, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, o autor, ora recorrido, ao impugnar o acto de homologação da lista de classificação final do concurso supra identificado com fundamento na “metodologia de avaliação fixada no Edital” [a expressão é da recorrente], agiu em abuso de direito. Vejamos. Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. O abuso de direito traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando esta ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, sendo que o abuso de direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objectivo, na medida em que não depende da culpa do agente. Na modalidade de venire contra factum proprium, o abuso de direito caracteriza-se pelo exercício de um direito em contradição com uma conduta antes assumida pelo agente susceptível de criar a convicção de que, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira. Os pressupostos desta modalidade de abuso de direito são os seguintes: i) a existência de um comportamento anterior do agente susceptível de fundamentar uma situação objectiva de confiança; ii) a imputabilidade das duas condutas – anterior e actual – ao agente; iii) a boa-fé do lesado; iv) a existência de um “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento de uma actividade com base no comportamento anterior do agente; v) o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” do lesado [cfr., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/11/2013, proferido no Processo n.º1464/11.2...-A.C1.S1]. As consequências do abuso de direito são de natureza variada, podendo consistir na supressão do direito ou na cessação do exercício abusivo, bem como num dever de restituir, em espécie ou equivalente pecuniário, ou num dever de indemnizar, quando se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil. Na situação dos autos, e tal como o recorrente configurou a questão, o eventual abuso de direito por parte do recorrido obstaria a que o Tribunal anulasse o acto impugnado com fundamento no alegado quanto à falta de definição, no aviso de abertura do concurso, da ponderação a atribuir a cada uma das vertentes da avaliação curricular. Ora, na contestação, o recorrente alegou, relativamente ao abuso de direito, o seguinte: “17º Ora, cumpre, desde já, referir que o próprio A. enquanto membro do Conselho Científico do ISA, votou favoravelmente, em reunião desse órgão colegial, uma das duas propostas para atribuição de pesos, com valores mínimos por vertente de avaliação: Investigação, Ensino, Gestão e Transferência. Proposta A: 25, 25, 10, 10, Proposta B: 30, 20, 10,10, conforme expressamente resulta da Ata 10-2013 do Conselho Científico do ISA, de 27 de maio, que se junta, em anexo como Doc 1. 18º Assim, vindo agora o A. a assacar vícios à metodologia de avaliação fixada no Edital do concurso do caso de que ele próprio votou favoravelmente, tal atuação integra, claramente, a previsão factual intrínseca à figura jurídica do Abuso de Direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, cfr artigo 334º do Código Civil, sendo, por conseguinte, ilegítima a sua arguição”. Verifica-se, no entanto, que o facto de o autor, ora recorrido, ter votado favoravelmente, em reunião do Conselho Científico, uma das propostas para atribuição de pesos não consta da factualidade provada, ou seja, e em suma, o facto em que o recorrente sustenta a alegação de que o recorrido age em abuso de direito não resultou provado nos autos, sendo certo que o recorrente não impugnou a decisão da matéria de facto. Assim sendo, atenta a factualidade provada, não podemos concluir que o autor, ora recorrido, adoptou um comportamento anterior, qual seja, ter votado favoravelmente uma das propostas para atribuição de pesos, susceptível de fundamentar uma situação objectiva de confiança e, assim, que se encontra preenchido o primeiro pressuposto do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Não podemos, pois, concluir que o recorrido, ao impugnar o acto de homologação da lista de classificação final do concurso supra identificado com fundamento na “metodologia de avaliação fixada no Edital”, age em abuso de direito e, nesta medida, que a sentença recorrida padece de erro de julgamento na apreciação da questão relativa ao abuso de direito. Deve, assim, manter-se o decidido pelo Tribunal a quo relativamente ao abuso de direito e, em consequência, a anulação do acto impugnado com fundamento na verificação do vício de violação de lei, por, em suma, “não se tendo definido totalmente as ponderações que iriam recair sobre cada um dos parâmetros avaliativos, em momento prévio ao conhecimento dos candidatos pelos elementos do júri”, terem sido violados os princípios da igualdade, imparcialidade e transparência. Fica, assim, prejudicado o conhecimento do fundamento do recurso que se prende com a falta de fundamentação do acto impugnado, uma vez que, ainda que concluíssemos que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, aquele acto não padece do vício de falta de fundamentação, sempre se teria de manter a sentença recorrida, na medida em que, como resulta do que já referimos, a anulação do acto impugnado encontrou o seu fundamento (também) na verificação do vício de violação de lei. Cumpre, pois, negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida. * IV – Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em conferência os juízes da Subsecção Social da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida. Custas pelo recorrente. * Lisboa, 09/10/2025 Ilda Côco Teresa Caiado Luís Borges Freitas |