Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 778/22.0BELRA |
| Secção: | CT |
| Data do Acordão: | 03/20/2025 |
| Relator: | TERESA COSTA ALEMÃO |
| Descritores: | CESE 2019 INCONSTITUCIONALIDADE |
| Sumário: | I - É inconstitucional, por violação do artigo 13.º da CRP, o artigo 2.º, alínea d), do Regime Jurídico da CESE vigente em 2019; II - O juízo de inconstitucionalidade de tal norma implica a anulação da liquidação impugnada que nela se suportou; III - Para os efeitos indemnizatórios previstos no artigo 53.º da L.G.T., não é de considerar a fiança entre as garantias (“bancária ou equivalente”) de que depende a sua aplicação. |
| Indicações Eventuais: | Subsecção Tributária Comum |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório T......., S.A., veio interpor recurso jurisdicional da sentença, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida, na sequência da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, contra o actos tributários de autoliquidação de Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético (CESE) respeitantes ao ano de 2019, no valor de € 691.755,50, e respectivos juros compensatórios e moratórios, no valor de € 1.005,89.
A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso nas quais formulou as seguintes conclusões: “B. A CESE foi estabelecida com a intenção de constituir uma medida extraordinária (conforme decorre, aliás, da sua própria designação), no âmbito e a propósito da negociação e cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre o Estado português, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que vigorou entre 2011 e 2014 (vulgo “programa da Troika”). Assim sendo, era suposto que a CESE vigorasse por um período transitório e limitado. Porém, desde que foi criada, a medida tem vindo a ser prorrogada anualmente, até ao presente, estando já no nono ano de vigência (quase uma década). O período em causa nos presentes autos, 2019, foi o sexto ano em que a CESE esteve em vigor. C. Quer agora, em 2023, quer no ano aqui em questão, 2019, estamos a falar de momentos por reporte aos quais foram há muito ultrapassadas as circunstâncias que justificaram a permanência excepcional e transitória da CESE na nossa ordem jurídica. De acordo com a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, essas circunstâncias reconduzem-se à situação de emergência financeira que a República Portuguesa atravessou entre o início e meados da década passada. Com efeito, apesar de até ao momento o Tribunal se ter colocado do lado da validade da CESE, não só teve apenas em conta o tributo vigente entre 2014 e 2017 como, das decisões conhecidas, é possível retirar como consequência que, a partir de 2018, a medida deixou de ter justificação constitucional para vigorar (extraordinariamente) no nosso ordenamento. D. A essa luz, tanto os actuais dez anos de duração da CESE quanto os seis que ela já levava em 2018 configuram uma situação óbvia de uso excessivo e inconstitucional do poder do Estado, que requer com urgência uma intervenção que o limite - pelo menos, como ultima ratio, uma intervenção judicial. É essa intervenção que se requer a este Tribunal, enquanto garante máximo dos princípios constitucionais em que se baseia a ordem jurídico-política portuguesa. E. Segundo o Tribunal, a conformidade da CESE com a Constituição mantém-se apenas enquanto ela puder ser considerada uma medida extraordinária, pelo que saber se ela ainda merece ou não essa qualificação é uma questão central, um critério fundamental que deve orientar a apreciação da sua validade ou invalidade. Ora, à luz da jurisprudência, não faz sentido que, no sexto ano de vigência da medida, ainda se possa considerar admissível a permanência da CESE na ordem jurídica. É que não é só a urgência da receita gerada que despareceu (em 2019, Portugal não estava já na situação financeira de há dez anos. Nessa altura, aliás, o Governo inclusivamente celebrava o facto de termos ultrapassado essa situação); desapareceu também a urgência de o tributo existir naquelas condições - condições essas que, lembre-se, este Tribunal aceitou porque eram «de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados (...), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido». F. Pois bem: para o Tribunal (por exemplo, no Acórdão n.° 532/2021), saber se a CESE reveste ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um “critério conjuntural", em cada ano de vigência, à luz da “verificação periódica de um certo estado de coisas”. G. No entanto, esta circunstância de a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação, implica que não nos possamos desviar de alguns princípios essenciais. Em primeiro lugar, sob pena de se abrir a porta à maior arbitrariedade possível, ao configurarem-se as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não podemos estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE. H. É verdade que, potencialmente e em abstracto, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias (por exemplo, de índole orçamental) que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; todavia, quando nos debruçamos sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida - desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária - , não nos podemos afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optarmos por esse afastamento, estamos a aceitar que pode deixar de haver - ou deixar de ser impossível averiguar - qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos. I. Em vez de estarmos sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que estamos adstritos é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida. Caso contrário, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objectivos determinado pelo legislador. J. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com - nas palavras do TC - “a implementação de critérios, porventura mais adequados” à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação. K. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que não se pode dar justificações para a CESE que alterem natureza do tributo, a não ser que daí se retirem as devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.° 7/2019, tinha por pressuposto que a actividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da actuação do Estado na resolução desses problemas. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos. L. Ora, o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava. Em concreto, o TC justifica a CESE com a situação de rescaldo do PAEF, durante o qual Portugal permanecia num contexto de fragilidade das contas públicas, e a manutenção do procedimento por défice excessivo, previsto no artigo 126° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (relativamente à CESE dos anos de 2015 e 2016, podemos referir as Decisões Sumárias n.°s 358/2021 e 422/2021 e os Acórdãos n.°s 436/2021, 437/2021, 438/2021, 513/2021 e 532/2021. Quanto a 2017, podemos citar o Acórdão 736/2021). M. Antes de mais, analisada a jurisprudência em apreço, o que importa sublinhar é que o TC dá apenas uma justificação para a CESE de 2015, 2016 e 2017 - e essa justificação é a necessidade de consolidação orçamental. Esta circunstância transporta dois significados importantes para o caso vertente. N. Em primeiro lugar, implica necessariamente que a CESE deve ser considerada como um verdadeiro imposto, na medida em que, se serviu simplesmente para consolidação orçamental, constitui afinal um tributo cobrado para os fins gerais dos impostos, sem qualquer efeito no financiamento de medidas de sustentabilidade do sector energético, seja na redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional ou em qualquer outra. Assim, é indispensável a medida ser apreciada à luz dos princípios constitucionais que regem a criação de impostos. O. Aliás, insista-se, a partir de 2018 a CESE perdeu até a ligação à emergência da consolidação orçamental, que nessa altura deixou de se verificar, o que acarreta que deixou de existir qualquer correspectividade especial entre a CESE e uma necessidade do Estado que pudesse justificar, mesmo que temerariamente, a sua vigência extraordinária. Também por este facto se deve concluir, então, que falar hoje da CESE como um tributo bilateral - designadamente uma contribuição especial - é um erro. P. Com efeito, em segundo lugar, levando em linha de conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem de se concluir que a CESE deixou de ser uma medida extraordinária em 2018, pois que nesse ano Portugal não só já tinha há muito deixado para trás o PAEF como havia fechado o procedimento por défice excessivo. Por reporte a 2017, o último ano analisado pelo Tribunal, este já só teve como pressuposto da natureza extraordinária da CESE a existência do procedimento por défice excessivo: se este terminou, terá de se concluir que com ele terminou igualmente a validade transitória e excepcional da CESE. Ao contrário do que sucedeu de 2014 a 2017, em 2018 e nos anos seguintes (incluindo 2019, aqui em causa) Portugal já não estava obrigado pela União Europeia à adopção de medidas orçamentais extraordinárias. Em 2019, o défice foi de 0,5% do PIB, que na altura o Governo celebrou como um «resultado histórico e virtuoso». Q. Portanto, se a jurisprudência do Tribunal Constitucional é a que é, e se os factos de 2019 são o que são, nada pode justificar a vigência da CESE nesse ano. O Tribunal sinaliza claramente uma aproximação da CESE ao limite do aceitável, já que a razão com a qual o tem identificado a justificação da validade temporária da medida - a emergência financeira de Portugal - não se verifica nos anos seguintes àqueles sobre os quais se debruçou a jurisprudência conhecida. O limite do aceitável, segundo o TC, foi ultrapassado em 2018. R. É por isso que, precisamente a partir de 2018, o Governo foi dando sinais formais - nas sucessivas leis orçamentais - de que pretende uma revogação faseada da medida. Fê-lo mediante autorizações legislativas, para sinalizar uma alegada vontade do Estado português de, mais tarde ou mais cedo, remover a CESE do ordenamento jurídico. E fê-lo porque teve a noção do risco de constitucionalidade de o não fazer. S. Porém, ao desaproveitar sistematicamente essas autorizações legislativas, o que o Governo demonstrou é que, em bom rigor, a sua intenção é fazer letra-morta da natureza extraordinária da CESE, que deste modo permanece ainda na ordem jurídica basicamente como foi aprovada em 2014. T. Do exposto resulta que a CESE tem de ser apreciada como aquilo que verdadeiramente é - ou que verdadeiramente já é pelo menos desde 2018: um imposto especial sobre o sector da energia, sem natureza extraordinária. U. Trata-se, sem dúvida, de uma medida inconstitucional. V. A inconstitucionalidade decorre, antes de mais, de a CESE ser um imposto cujas bases de tributação subjectiva e objectiva violam o princípio da capacidade contributiva, concretização do princípio da Igualdade (artigo 13° da Constituição), desenvolvido também, no que respeita à base objectiva, pelo princípio da tributação das empresas pelo lucro real (n.° 2 do artigo 104°). W. Sobre isso, deve começar-se por sublinhar que a Recorrente não exerce qualquer actividade no sector electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsector da electricidade, pelo que em nada contribui para o problema da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) - que é o principal problema regulatório que o regime da CESE declara pretender resolver -, não beneficiando, pois, de nenhuma forma directa ou especial, da actividade do Estado exercida no âmbito do problema em causa (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos do tributo). X. Não tendo qualquer relação com a dívida tarifária do SEN, a Recorrente não contribuiu ou beneficiou das circunstâncias que geraram esse problema, pelo que não tem também relação com o consequente desequilíbrio orçamental que o Estado português assumiu igualmente como objectivo anular ou atenuar (o mesmo acontecendo, também aqui, com grande parte dos sujeitos passivos da CESE). A Recorrente não é parte da causa de tal desequilíbrio, nem retirará da actuação estadual nesse aspecto qualquer benefício que não seja partilhado, em princípio na mesma medida, por todos os particulares. Y. Quanto ao financiamento de outras políticas sociais e ambientais do sector energético, em geral, que o legislador também inscreveu formalmente no regime como justificação da CESE, não se conhecem, com um grau mínimo de probabilidade objectiva, qual a natureza, o conteúdo e a importância das mesmas, razão pela qual nunca poderemos dar por demonstrada a sua indispensabilidade e, portanto, que os sujeitos passivos do tributo poderão em princípio, alguma vez, ser efectivos beneficiários de uma ou mais das políticas em causa. Z. Aliás, mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação entre um benefício decorrente das políticas em questão e a actividade das empresas energéticas que não actuam no sector da produção de electricidade - no qual se gerou o problema da dívida tarifária do SEN e o consequente desequilíbrio orçamental -, sempre essa ligação seria insuficiente para assegurar a legitimidade da CESE, na medida em que aquelas empresas continuariam a suportar um tributo cuja receita (a restante receita) é afecta a um objectivo com o qual nada têm a ver (a redução da dívida tarifária do sector electroprodutor) e a um outro cuja solução beneficia de igual modo, geral e indiscriminadamente, todos os particulares - para além de ser ele próprio, em parte, uma consequência daquela dívida tarifária (a consolidação orçamental). AA. Em face do exposto, a CESE não cabe no campo dos tributos bilaterais ou sinalagmáticos (taxas ou contribuições financeiras), por não respeitar o princípio da equivalência: os montantes exigidos não o são para o exercício de uma actividade do Estado de que os sujeitos passivos concretamente em causa beneficiem (directa ou indirectamente, efectiva ou presumivelmente, de modo suficientemente distinto da generalidade dos particulares não abrangidos pela incidência do tributo), não sendo sequer possível dizer que a actividade a financiar é originada, específica ou genericamente, pela daqueles sujeitos passivos. BB. A CESE é, pois, um verdadeiro imposto - um imposto especial sobre alguns operadores de um sector de actividade específico, em razão da sua alegada capacidade contributiva particular. CC. Posto isto, a CESE é um imposto materialmente inconstitucional, por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio em que se concretiza no campo dos impostos o princípio constitucional da Igualdade (artigo 13° da Constituição), porque a sua base de incidência subjectiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da “contribuição” (não são de todo beneficiados com as actividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) - designadamente todos aqueles que não actuam no âmbito do sector da produção de electricidade, como é caso da ora Recorrente. DD. Vista como um imposto sobre o rendimento, a CESE viola ainda o princípio da capacidade contributiva por, ao ter como base objectiva o valor dos activos das empresas abrangidas, constituir uma aproximação indirecta ou presumida aos lucros das mesmas - uma aproximação ou presunção fantasiosa, puramente conjecturada do rendimento real, que facilmente conduzirá a resultados arbitrários: com efeito, a CESE permite ao Estado apurar uma colecta sobre lucros ainda que nenhuma capacidade contributiva se revele efectivamente nessa forma, ou uma colecta igual ou superior aos lucros efectivamente obtidos, caso em que representará uma taxa de 100% ou mais de tributação do rendimento e, nessa medida, um imposto confiscatório. EE. Além disso, a CESE tem um efeito de dupla tributação e sobreposição ao IRC que é inaceitável, acentuado pela decisão do legislador de impedir que aquela seja dedutível em sede do referido imposto, o que define com especial clareza a violência do tributo e a sua inconstitucionalidade, mesmo se considerado como um imposto sobre o património ou uma contribuição financeira, pelo menos por violação do princípio da proporcionalidade. FF. E, na verdade, a CESE apresenta problemas inultrapassáveis também ao nível do respeito devido pelo princípio da proporcionalidade. GG. Este princípio é violado, em primeiro lugar, na sua dimensão de idoneidade ou adequação, porque a CESE não é um instrumento tendente a resolver o problema da dívida tarifária do SEN - um dos objectivos legislativamente declarados da medida, ao qual é consignado uma parte importante da respectiva receita: não se trata de uma medida que possa assegurar a eliminação ou sequer uma atenuação séria, estrutural, dessa dívida tarifária (mediante uma alteração das regras vigentes em que assenta a sua existência), mas antes, simplesmente, de uma fonte de receita obtida a fim de o Estado continuar a assegurar o objectivo político central quanto à matéria em causa, ou seja, proteger os consumidores finais de electricidade do esforço de redução da dívida tarifária, impedindo o aumento dos preços em medida pelo menos aproximada à exigida por aquela redução. HH. Neste sentido, a CESE é uma medida inócua e indiferente, tendo por referência a sua aproximação ao fim visado, e até contraproducente, porque produz o efeito negativo de adiar a resolução dos desequilíbrios do SEN e, assim, prolongar e acentuar o problema. II. Depois, a CESE viola o princípio da proporcionalidade também porque é consignada em parte ao financiamento de políticas sociais e ambientais no mesmo ano em que, por exemplo e desde logo, foi reduzida a taxa de IRC em dois pontos percentuais, perdendo-se uma receita pública, já existente, que poderia obviamente servir para aquele fim (não está, assim, cumprida a dimensão da necessidade ou exigibilidade em que assenta a regra da proporcionalidade), e ainda porque, apesar de os objectivos declarados do legislador serem importantes, nunca poderão ser considerados como pretextos suficientes para justificar o prejuízo económico e patrimonial que a CESE inflige nos seus sujeitos passivos, ainda para mais de modo tão violador do princípio da igualdade: na incidência, lembre-se, são incluídas entidades - como a Recorrente - que pouco ou nada têm a ver com as causas dos problemas que suscitaram a criação do tributo ou que pouco ou nada beneficiarão, directa e especialmente, com a solução de tais problemas (desrespeita-se, assim, a dimensão da proporcionalidade em sentido estrito ou do equilíbrio). JJ. Por fim, entende a Recorrente que caberá, nesta sede, invocar a ilegalidade do acto de (auto)liquidação por violação da regra da discriminação orçamental, uma vez que a receita proveniente da CESE não se encontra devida e suficientemente especificada, quer na Lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano da CESE aqui em causa - 2019 -, quer, aliás, em qualquer uma das Leis do Orçamento do Estado desde a criação da CESE até à presente data - 2014 a 2023, como se demonstrará. KK. Vício que, entende a Recorrente, é cominado com nulidade típica ou integral, por se reconduzir à previsão das alíneas k) e l) do artigo 161.° do CPA, como se demonstrará. LL. O princípio orçamental da discriminação encontra-se previsto no artigo 8.° da Lei de Enquadramento Orçamental (“LEO”), aprovada pela Lei n.° 91/2001, de 20 de Agosto, e, a partir de 2015, nos artigos 15.° a 17.° da LEO, aprovada pela Lei n.° 151/2015, de 11 de Setembro, decorrendo também da própria CRP a imposição da “discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos’’, conforme se dispõe no artigo 105.°, n.° 1, alínea a), da CRP. MM. Dentro do princípio da discriminação orçamental encontramos o subprincípio, ou regra orçamental, da especificação (a par das regras orçamentais da não compensação e da não consignação). NN. O fundamento da regra da especificação orçamental reside nos requisitos de clareza e maior verdade e, bem assim, numa perspetiva de racionalidade financeira e controlo político (cf. SOUSA FRANCO, A. L.- Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I e II, Almedina 2007, p. 353). OO. Esta regra orçamental da especificação integra duas proibições: (i) a proibição, para o Governo, da apresentação de aglomerados de receita e despesa públicas e (ii) a proibição, para a Assembleia da República, de implementação de um sistema de votação global do Orçamento. PP. Ora, poder-se-á concluir, como faz MARIA D’OLIVEIRA MARTINS, que a regra orçamental da especificação serve o princípio da publicidade do Orçamento, que “implica a obrigação de tornar públicos todos os documentos que se revelem necessários para assegurar a adequada divulgação e transparência do Orçamento do Estado e a sua execução.” (cf. p. 32 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria DOliveira Martins, cit. ANEXO N.° 3). QQ. Acresce que, com vista à corporização do princípio da especificação orçamental, a Constituição e a LEO (esta última, tanto na versão de 2001, como na versão de 2015), preveem a existência de três classificações orçamentais: a económica, a orgânica e a funcional. RR. Debruçando-nos sobre a classificação económica, que é a que mais releva para os presentes autos, recorde-se, estabelece o artigo 8.° da LEO de 2001 que "As receitas devem ser suficientemente especificadas de acordo com uma classificação económica’ (cf. também artigo 17.° da LEO de 2015). SS. Sucede, porém, que a CESE - tendo em conta a sua relevância orçamental e a sua natureza - não se encontra devidamente orçamentada de acordo com a regra da especificação orçamental. TT. Embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista na Lei do Orçamento do Estado - neste caso, por referência ao ano de 2019 -, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam o disposto na CRP e na LEO, não se afigurando, à luz do que antecede, suficiente a inscrição global das receitas do FSSSE no Mapa V dos vários Orçamentos do Estado até 2020 e, em 2021, 2022 e 2023, da receita da presumivelmente apenas dentro da categoria de “impostos diretos diversos” do Mapa 5. UU. Na Lei do Orçamento do Estado para 2014, a CESE não é mencionada, especificamente, nem nos mapas orçamentais, nem nos desenvolvimentos orçamentais sendo que, da consulta do Relatório do Tribunal de Contas n.° 3/2015, parece resultar que a CESE terá sido contabilizada, no Mapa I, no Capítulo 0.8 “Outras receitas correntes”. VV. Todavia, tal como resulta do referido Mapa I, não é possível aferir se, realmente, tal contabilização se deu, uma vez que, como se referiu, a receita da CESE não se encontra especificada em nenhum dos mapas anexos à Lei do Orçamento do Estado para 2014. WW. A este respeito, no Mapa V da Lei do Orçamento do Estado para 2019, referente às Receitas dos Serviços e Fundos Autónomos, por classificação orgânica, com especificação das receitas globais de cada serviço e fundo, prevê-se, tão-só, a arrecadação pelo FSSSE do montante global de € 133.140.000 (cento e trinta e três milhões e cento e quarenta mil euros). XX. Se é certo que, do artigo 3.°, n.° 1, al. a) do Decreto-Lei n.° 55/2014, de 9 de Abril, resulta que constitui receita do FSSSE, designadamente, o produto da CESE, assim como outras receitas provenientes de aplicações financeiras, de doações, heranças, entre outras, no aludido Mapa V, as receitas do FSSSE não estão individualizadas, nem suficientemente discriminadas, pois que não se especifica quais os montantes, a título de CESE, que, afinal, se autoriza que sejam cobradas durante o ano e consignados ao FSSSE, em clara violação da CRP (artigo 105.°, n.° 1, alínea a)) e da LEO (artigo 8,° da LEO de 2001 e 17.° da LEO de 2015). YY. De onde se conclui que não está, por isso, discriminado de que é constituído o valor inscrito no Mapa V, de 133 milhões e cento e quarenta mil euros, e desse valor, assumindo que ali está incluída a CESE, qual o que lhe corresponde. ZZ. De facto, considerando os valores arrecadados com a CESE - aproximadamente 665 milhões de euros no período compreendido entre 2014 a 2017 (v.g. http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679595 BBB. Nesta medida, é forçoso concluir que a receita escapou, inevitavelmente, ao crivo parlamentar, razão pela qual a sua não especificação, concreta e individualizada, nos termos da CRP e da LEO, equivale, em termos práticos, à sua não inscrição - e à sua não autorização - no correspondente Mapa da Lei do Orçamento do Estado. CCC. A este respeito, JOSÉ CASALTA NABAIS vai ainda mais longe, entendendo que “(...) o cumprimento do princípio da especificação obriga não só ao cumprimento das exigências constitucionais, mas também das exigências legais e destas decorre não apenas a necessidade da sua previsão no Orçamento do Estado, mas também a sua correcta especificação. Assim, as receitas da CESE teriam que constar dos Mapas I, ou seja, conjuntamente com as receitas dos serviços integrados, por classificação económica. Mas a verdade é que, apesar de uma análise muito cuidada não encontramos a sua menção na classificação respectiva, isto é, como receita corrente” (cf. pág. 9 do Parecer do Professor José Casalta Nabais, cit. ANEXO N.° 5), (sublinhado da Recorrente). DDD. Por outro lado, esta deficiente inscrição orçamental das receitas da CESE atenta, não apenas contra o princípio da legalidade, por violação da regra orçamental da especificação das receitas, mas gera, também, o incumprimento de outros princípios orçamentais, nomeadamente os princípios da transparência, da unidade e da universalidade. EEE. Acresce, ainda, referir que o facto de o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 7/2019, de 8 de janeiro, ter (pese embora sem força obrigatória geral) qualificado a CESE como uma “contribuição financeira”, e não como uma taxa ou imposto, também não poderá justificar o aligeiramento da especificação orçamental quanto a estas receitas. FFF. Em primeiro lugar, porque quer a CRP, quer a LEO referem-se a receitas, sem especificar a sua origem. GGG. Depois, porque as contribuições financeiras possuem características semelhantes aos impostos, tendo assim sido vistas, quer pelo Tribunal de Contas, que a qualificou, em 2015, na categoria dos “impostos diretos”, quer pelo Estado, que anulou a sua propriedade comutativa (determinante para o Tribunal Constitucional a ter qualificado como contribuição financeira) ao não transferir, em 2014 e em 2015, o produto da receita da CESE para o FSSSE, tendo, assim, servido finalidades públicas gerais. HHH. Por tudo, verifica-se a violação do princípio da especificação orçamental, com a consequente ocultação desta receita do controlo parlamentar, uma vez que a votação da Assembleia da República, em todos os Orçamentos desde 2014 a 2023, foi efetuada sem o pleno e cabal conhecimento do montante de receita previsto cobrar a título de CESE. III. Razão pela qual, a omissão da referência à CESE nos Orçamentos do Estado para 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023 corresponde a uma manifesta violação da regra orçamental prevista no artigo 8.° da LEO de 2001 (aplicável aos Orçamentos de Estado de 2014 e 2015) e do artigo 17.° da LEO de 2015 (aplicável aos Orçamentos de 2016 a 2023) e, bem assim, à violação do Decreto-Lei n.° 26/2002, na medida em que promove uma deficiente inserção dessa receita no classificador económico e, também, a sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 105.° da CRP. JJJ. Acresce referir que esta violação da regra orçamental da especificação põe, também, em crise os outros referidos princípios e regras orçamentais, em especial, aqueles que mais se relacionam com esta, como são os da proibição de compensação e da compensação. KKK. Ora, como acima já se deixou referido, a violação do princípio da especificação conduz à nulidade dos “créditos orçamentais que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (...)”, conforme preveem o artigo 8.° n.° 6, da LEO de 2001 e o artigo 17.°, n.° 3, da LEO de 2015, o que deverá significar que esses créditos se devem ter por não escritos, reconstituindo-se a ordem jurídica como se a cobrança da CESE nunca tivesse sido prevista. LLL. Ora, como bem refere MARIA D’OLIVEIRA MARTINS, “implicando as inconstitucionalidades e as ilegalidades detetadas na sua orçamentação a invalidade e a total improdutividade (nulidade absoluta) dos créditos orçamentais relativos à Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, isso não pode deixar de ter como consequência que os atos de liquidação e cobrança fiquem sem base legal de apoio, por não haver previsão orçamental das mesmas. Sem previsão orçamental, a Autoridade Tributária deixa de ter autorização para cobrança desta receita.” (cf. p. 77 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria D’Oliveira Martins, cit. ANEXO N.° 3). MMM. Por este motivo, o ato de (auto)liquidação da CESE aqui em apreço enferma de um vício gerador de ilegalidade abstrata, porquanto a sua liquidação e cobrança não terão sido devidamente autorizados em conformidade com a CRP e a LEO. NNN. No que respeita ao desvalor jurídico do acto de autoliquidação em crise, em resultado da violação das regras orçamentais acima descritas, deverá este conduzir-se à nulidade dos "créditos orçamentais que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (...)", conforme prevêem o artigo 8.° n.° 6, da LEO de 2001 e o artigo 17.°, n.° 3, da LEO de 2015, o que deverá significar que esses créditos se devem ter por não escritos, reconstituindo-se a ordem jurídica como se a cobrança da CESE nunca tivesse sido prevista. OOO. Neste sentido, merecem acolhimento as considerações do Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, quando indica que “(...) A falta de inscrição orçamental de receita liquidada sujeita a tal inscrição será um vício do acto tributário gerador da sua ilegalidade abstracta, equiparável aos vícios de inexistência do tributo (...)” (cf. Lopes de Sousa, Jorge - Código de Procedimento e Processo Tributário - Anotado e Comentado, Volume III, 6.a Edição, p. 451). PPP. Com efeito, a ilegalidade, in casu, é abstracta pelo facto de a mesma não residir directamente no acto que faz a aplicação da lei ao caso concreto - rectius, acto de liquidação -, mas na lei cuja aplicação é feita (cf. Lopes de Sousa, Jorge, Código de Procedimento e Processo Tributário - Anotado e Comentado, Vol. III, 6a edição, Áreas Editora, 2011, pp. 443). QQQ. Ora, esta ilegalidade, decorrente da falta de previsão e de especificação das receitas proporcionadas pela CESE resulta, efectivamente, numa ilegalidade grave dos respectivos actos de liquidação e cobrança, a qual, salvo melhor opinião, nunca pode reconduzir-se à mera anulabilidade, devendo materializar-se numa nulidade típica ou integral. RRR. Com efeito, com a entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo (CPA), publicado em 7 de janeiro de 2015, pelo Decreto-Lei n.° 4/2015, o legislador procedeu à anulação da antiga cláusula geral de nulidade do antigo CPA, passando a prever quatro novos casos de nulidade no atual artigo 161.° daquele diploma, de entre os quais a alínea k), onde se dispõe que são nulos “Os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei". SSS. Assim, de acordo com esta norma, são nulos quaisquer atos que gerem uma obrigação de pagamento não prevista na lei - com desrespeito do princípio da legalidade ou da tipicidade -, garantindo-se, assim, que todas as receitas têm cabimento legal. TTT. Como explicam FAUSTO DE QUADROS, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, RUI CHANCERELLE DE MACHETE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, ANTÓNIO POLÍBIO HENRIQUES e JOSÉ MIGUEL SARDINHA, dá-se assim “expressão e merecido relevo a uma regra constitucional, nos termos da qual os atos de imposição pela Administração de uma obrigação pecuniária aos particulares, designadamente a liquidação de um tributo (imposto, taxa ou outra contribuição), têm como pressuposto necessário a respetiva base legal impositiva"" (cf. Comentários à Revisão do Código de Procedimento Administrativo, Coimbra: Almedina, 2016, p. 324). UUU. Ora, se um dos fundamentos legais da realização da receita da CESE é o Orçamento de Estado, então não devem gerar-se obrigações pecuniárias por meio de ato administrativo quando um tributo não foi adequadamente orçamentado. VVV. Donde é forçoso concluir-se que as deficiências de orçamentação da CESE, desde a sua criação até à presente data, são tão graves que este tributo deve ter-se, mesmo, por não orçamentado, com a consequente nulidade das respetivas (auto)liquidações, ao abrigo da alínea k) do artigo 161.° do CPA. WWW. Considerando as exigências do ónus de suscitação prévia e as particularidades dos vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade, os quais aderem, em rigor, a todo o escopo normativo conducente à cobrança do crédito tributário nulo, elucida-nos TIAGO DUARTE que “Deverá, assim, ser suscitada ao Tribunal a quo a inconstitucionalidade da norma que no ano em causa tenha mantido em vigor a CESE, bem como as normas do regime jurídico da CESE (com a redação em vigor nesse ano) que serão aplicadas pelo Tribunal a quo (...). (...) Todas estas normas (na versão em vigor relativamente ao ano a que a impugnação judicial diga respeito) contribuem para a criação da receita não orçamentada e são normas que serão necessariamente aplicadas pelo Tribunal a quo no momento de decidir um litígio em torno da liquidação e cobrança da CESE no contexto de uma impugnação judicial do acto de liquidação da mesma” (cf. cit. DOCUMENTO N° 4, pp. 23 e 24). XXX. Em face do exposto, e atenta a desconformidade da CESE - mormente do disposto nos artigos 228.° da Lei n.° 83-C/2013, de 31 de dezembro (que institui o Regime jurídico da CESE), 313.° da Lei n.° 71/2018, de 31 de dezembro (que prorroga a vigência da CESE para o ano 2019), 1.° (objeto), 2.° (base de incidência subjetiva), 3.° (base de incidência objetiva), 6.° (determinação da taxa aplicável), 11.° (determinação da consignação da receita ao FSSSE) e 12.° (não dedutibilidade do tributo) do seu regime jurídico - com o disposto no artigo 17.° da LEO e com o artigo 105.° da CRP, é manifestamente ilegal e inconstitucional (indiretamente que seja) o ato de autoliquidação ora impugnado, devendo ser declarado nulo, nos termos da alínea k) do artigo 161.° do CPA, com todas as consequências legais. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com todas as consequências legais, designadamente a anulação da Sentença recorrida. Mais se requer a V. Exas., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 651.°, n.° 2, do Código de Processo Civil (CPC), se dignem admitir a junção aos presentes autos de recurso dos Pareceres da autoria do Prof. Rui Medeiros, do Prof. J. J. Gomes Canotilho, da Prof. Maria d'Oliveira Martins, do Prof. Tiago Pires Duarte e do Prof. José Casalta Nabais, identificados como Anexos n.° 1, n.° 2, n.° 3, n.° 4 e n.° 5, respetivamente.” A Recorrida não apresentou contra-alegações. *** A Digna Magistrada do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. *** Questões a decidir no recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT. Assim sendo, no caso em apreço, atendendo às conclusões de recurso, há que apurar se a sentença sob recurso padece de erro de julgamento: - por ter concluído não padecer a CESE de inconstitucionalidade material, já que a CESE não respeita o princípio da equivalência, não podendo ser considerada uma taxa ou uma contribuição financeira, sendo, pois, um verdadeiro imposto, materialmente inconstitucional por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio no qual se concretiza o princípio da igualdade, e por violação do princípio da proporcionalidade; - já que a CESE enferma do vício de violação da regra da discriminação orçamental, pelo que se verifica a inconstitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, da norma que o manteve em vigor no ano de 2019, das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º do Regime Jurídico da CESE, ferindo de nulidade os respectivos actos de liquidação e cobrança.
II.1. Fundamentação de facto O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: * Da decisão recorrida consta, ainda, a seguinte menção: “Com interesse para a decisão a proferir, nada mais foi provado.” * Quanto à motivação da matéria de facto ficou consignado o seguinte: “A decisão da matéria de facto efetuou-se com base na análise crítica dos documentos constantes dos autos e do PAT, bem como nas posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados. conforme discriminado em cada um dos pontos do probatório.” * Como se viu, a Recorrente com as alegações de recurso juntou vários pareceres jurídicos, solicitando a sua admissão aos autos, nos termos do art. 651.°, n.° 2, do Código de Processo Civil. Esta norma dispõe que as partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão. Tal como ficou consignado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no proc. n.º 2332/19.5T8VNG-A.P1, de 08-09-2020, “(…) II - O CPC separa de uma forma clara a junção de documentos destinados à prova dos factos alegados como fundamento da ação ou da defesa, da junção de pareceres, independentemente da natureza que estes tenham, permitindo afirmar que para o CPC os pareceres, nomeadamente os de natureza jurídica, têm um regime de aquisição processual e são realidade diversa dos documentos, que integram a prova documental e que se destinam à prova dos factos que servem de fundamento à ação ou à defesa. III - As opiniões dos técnicos valem como meios de prova ou como pareceres, conforme sejam emitidos em diligência judicial, em resposta a quesitos formulados em arbitramento, ou sejam emitidos por via extrajudicial, sendo que neste último caso, enquanto resultado da investigação e do trabalho de pessoa com competência especializada na matéria, representam apenas e em todo o caso uma simples opinião sobre a solução a dar a determinado problema, a qual, consequentemente, não vincula o tribunal a segui-la, ainda que não deva ser negligenciada nas situações em que seja persuasória e com utilidade para a boa decisão da causa.” Não se destinando um parecer jurídico a servir de meio de prova mas tão somente a ajudar a esclarecer o espírito do julgador, não é considerado documento. E, por isso, pode ser junto aos autos, até se iniciarem os "vistos". Nestes termos, admite-se a junção de tais pareceres, independentemente da avaliação que oportunamente se venha a fazer sobre a sua valia na apreciação da matéria objecto do litígio.
II.2. De Direito T......., S.A. vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou improcedente a impugnação que interpôs, na sequência do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, contra o acto tributário de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), referente ao ano de 2019 e respectivos juros compensatórios e moratórios. Em tal sentença, citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, do STA e deste TCA Sul, foi decidido que a CESE configurava uma contribuição financeira, que o art. 12.º do respectivo Regime Jurídico não era inconstitucional, que a CESE não padecia de inconstitucionalidade por violação dos princípios da igualdade, em todas as suas dimensões, e da proporcionalidade, bem como não havia violação do princípio da especificação orçamental.
Vejamos pois, começando por referir que a jurisprudência mais recente do STA acolheu o posicionamento que prevaleceu no Tribunal Constitucional a partir de 2019, que, inflectindo o entendimento seguido até aí, passou a considerar materialmente inconstitucional a CESE. Desta jurisprudência é exemplo o Acórdão proferido no proc. n.º 345/21.6BEVIS, de 12-02-2025, no qual estava em causa a CESE de 2020, tendo ali sido invocadas as questões aqui colocadas, relativamente à natureza do tributo em causa como contribuição financeira, à interpretação e aplicação ao caso dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, nas várias vertentes e, bem assim, se a CESE enfermava do vício de violação da regra da discriminação orçamental. Tal aresto, fazendo um resumo da evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente, da referida inflexão relativamente aos anos de 2019 e ss., aderiu a esta última, tendo desaplicado, por padecer de inconstitucionalidade material, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE em que se fundava a exigência de pagamento à Recorrente. Em tal acórdão ficou consignado, designadamente, o seguinte: “(…) A questão suscitada nestes autos é, essencialmente, tal como configurada pela Recorrente, a de saber se as normas do regime da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (“CESE”), em particular os artigos 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º, na versão e período de vigência conferidos pelo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), que prorrogou a CESE para 2020, padecem de inconstitucionalidade. Entende a Recorrente que os referidos artigos enfermam de inconstitucionalidade material no que concerne às normas de incidência subjetiva e objetiva, por violação dos princípios: da proporcionalidade, da igualdade, da equivalência, da consignação de receitas a determinadas despesas; por restrição ao direito da proporcionalidade e, por fim, por a CESE assumir natureza não extraordinária, perene e não transitória, não constituindo, por conseguinte, como era o objetivo inicial, uma medida excecional. No âmbito da questão que se coloca, é importante fazer a seguinte contextualização. O problema suscitado não é novo, tendo a CESE sido objeto de múltiplas decisões jurisprudenciais, desde logo no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, mas também no âmbito do próprio Tribunal Constitucional. Todavia, denota-se, no âmbito da jurisprudência existente, uma demarcação clara entre o que foi entendido até 2018 e o posicionamento que tem vindo a prevalecer a partir de 2019. Até ao ano de 2018 foi entendido, de forma reiterada, que não eram inconstitucionais as normas objeto dos sucessivos pedidos de controlo, sempre na esteira do primeiro aresto que se pronunciou sobre esta questão – o acórdão do TC n.º 7/2019. A partir de 2019, porém, houve uma inflexão do posicionamento, até então maioritário. Isto é, do exercício de 2019 em diante, houve uma inversão da jurisprudência, passando-se a decidir no sentido da inconstitucionalidade da CESE (cfr. os acórdãos do TC n.ºs 196/2024, 197/2024, 336/2024, 337/2024, 338/2024 e 427/2024). Havendo, denote-se, uma reiteração desse juízo de inconstitucionalidade da CESE em situações em que estava precisamente em causa a tributação de empresas dos setores de distribuição de gás natural, como é o caso da Recorrente (decorre da matéria provada que – letra A – a Recorrente «dedicava-se à “distribuição de combustíveis gasosos por condutas”»), tal como foi evidenciado pelos acórdãos: 443/2024, 475/2024, 476/2024, 712/2024, 445/2024, 517/2024, 553/2024 e o 930/2024. Esta nova linha jurisprudencial, tem na sua base o acórdão n.º 101/2023 do TC que, sem prejuízo de não ter sido acolhida pelo TC logo no contexto do exercício do ano 2018 (afastada pelos acórdãos n.º 338/2023 e 720/2023), passou, todavia, a dominar a partir do momento em que começam a estar em causa o exercício de 2019 ou seguintes. Linha essa que foi sintetizada, com mestria, pelo acórdão 197/2024, ao dizer: «a linha jurisprudencial traçada pelo Acórdão n.º 101/2023 assenta na ideia de que “[…] as alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, ao regime de afetação das verbas do FSSSE, ao qual se encontra consignada a receita da CESE, descaracterizaram o nexo paracomutativo entre certa categoria de sujeitos e as finalidades do tributo a tal ponto que deixou de ser possível, uma vez entrado em vigor o novo quadro legal, fundamentar a oneração do seu património no princípio da equivalência. Para tais sujeitos, pois, a CESE passou a constituir, em virtude de tal alteração de regime, um verdadeiro imposto, sem que o mesmo encontre respaldo algum no princípio da capacidade contributiva». Tendo sido, portanto, sobretudo como decorrência desse posicionamento que no acórdão 101/2023 do TC se decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual)»: – Posicionamento seguido e replicado nos vários arestos acima referidos, no contexto de vários exercícios subsequentes a 2018.
Ora, o cerne da linha argumentativa decorrente do acórdão 101/2023 do TC e dos que o seguiram é plenamente transponível para o caso sub judice, relativo à CESE de 2020, que se refere, justamente, a um sujeito passivo que exerce a sua atividade no âmbito do provisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, atividade expressamente referida nos vários arestos aludidos. Assim sendo, apresenta-se como inelutável o alinhamento deste Supremo Tribunal com a jurisprudência firmada pelo TC quanto à matéria em apreço, no sentido de que, também aqui, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE – (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2020, pelo artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1, do artigo 3.º, do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2020, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Alinhamento, aliás, já consumado por este Supremo Tribunal em vários acórdãos, dos quais destacamos, por ser totalmente sobreponível aos presentes autos, o proferido em 5 de fevereiro de 2025, processo n.º 367/23.2BEAVR, disponível in www.dgsi.pt, cuja fundamentação, pela plena adequação ao caso sub judice, seguimos muito de perto. Decorre do exposto a necessária desaplicação do artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE em que se funda a exigência de pagamento da CESE à Recorrente. A inconstitucionalidade da norma atrás identificada, justifica, por si, a procedência do presente recurso e consequente a anulação dos aludidos atos tributários. (…)” (sublinhado nosso) No mesmo sentido, na sequência da pronúncia do Tribunal Constitucional pela inconstitucionalidade material da CESE de 2019, no Acórdão n.º 336/2024, de 23-04-2024, o STA, no proc. n.º 0994/20.0BEPRT, de 12-02-2025, reformou o Acórdão anterior da seguinte forma: “3. Como foi já referido, o presente recurso foi interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que, tendo concluído que o regime jurídico da CESE, aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31/12 (Orçamento do Estado para 2014) e alterado pelo artigo 238.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12 (Orçamento do Estado para 2015), pela Lei n.º 33/2015, de 27/4, pelo artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28/12 (Orçamento do Estado para 2017) e pela Lei n.º 71/2018, de 31/12 (Orçamento do Estado para 2019), não violava os princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real, da proporcionalidade, da igualdade, os princípios da segurança jurídica, proteção da confiança e não retroatividade da lei fiscal, e bem assim o princípio da discriminação orçamental, julgou improcedente a impugnação judicial da decisão da reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação da «Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) n.º ...67, referente ao ano 2019, no montante de € 3.981.248,83». A Recorrente não se conformou com o assim decidido, por entender, além do mais, que as normas que definem a base de incidência subjetiva e objetiva da CESE e, concretamente, as constantes do artigo 2.º e 3.º, n.º 1, do respetivo regime jurídico (na redação em vigor em 2019) padeciam de inconstitucionalidade por afrontarem os princípios da proporcionalidade e da igualdade material, ínsitos nos artigos 13.º e 103.º, n.º 1, da Constituição [ver a conclusão “CC)” do recurso]. Ora, no acórdão proferido nos autos, o Tribunal Constitucional decidiu que, efetivamente, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (aprovado pelo artigo 228.° da Lei n.° 83-C/2013, de 31.12), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.° da Lei n.° 71/2018, de 31.12, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.° 1 do artigo 3.° do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.° 140/2006, de 26.07, na sua redação atual), padecia de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Resta, por isso, concluir que a Recorrente tem razão por aqui e que, por isso, o recurso merece provimento, com a consequente procedência da impugnação judicial e da anulação dos atos impugnados, com todas as consequências legais, incluindo o reembolso dos montantes pagos a esse título e o pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa legal, desde a data do pagamento do valor liquidado e até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos dos artigos 43.º n.º 1,da Lei Geral Tributária, 61.º, n.º 5, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.” Também este TCA Sul, no Acórdão de 07-11-2024, proferido no proc. n.º 843/20.9BELRA, relativamente a uma CESE de 2019, reformado na sequência de pronúncia do Tribunal Constitucional, deixou consignado o seguinte: “Contudo, na sequência da interposição do competente recurso jurisdicional o Tribunal Constitucional, mediante Aresto prolatado a 20 de junho de 2024, julgou inconstitucional, por violação do artigo 13.º da CRP, o artigo 2.º, alínea d), do Regime Jurídico da CESE, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na redação em vigor em 2019), competindo, ora, proceder à sua reforma. Nesta conformidade, e ao abrigo do consignado nº 2, do artigo 80.º, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LTC), cumpre reformar a decisão em conformidade com o julgamento positivo de inconstitucionalidade do artigo 2.º, alínea d), do aludido Regime Jurídico da CESE, por violação do artigo 13.º da CRP. Face ao exposto, procede-se à aludida reforma, mediante apelo à fundamentação jurídica nele vertida, e que se extrata na parte que, ora, releva e infra se transcreve: “[a] partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, a que diz respeito a norma sindicada no presente recurso. Em primeiro lugar, tornou-se evidente que, por imposição legal, a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico, sem que sejam claras as razões pelas quais o legislador teve por adequado exigir a operadores não integrados nesse subsetor que participassem nos encargos daí advenientes, quando lhes não deram causa alguma, nem se vê que daí extraiam um especial benefício. Cabe notar que a mera circunstância de todos os operadores integrarem o «setor energético» não é manifestamente suficiente para afirmar que exista uma responsabilidade de grupo do subsetor do gás natural pelos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica. Embora seguramente exista alguma homogeneidade de interesses e interdependência entre os vários operadores do mercado energético, são diferentes as condições em que estes operam e bem assim os problemas de sustentabilidade que a propósito de cada um se colocam. Tanto assim que o próprio regime jurídico da CESE, desde as alterações introduzidas em 2015, passou a afetar ao SNGN uma parte da receita do tributo − a que é exigida aos comercializadores do SNGN, titulares de contratos de aprovisionamento de longo prazo −, com o intuito de prevenir os «desequilíbrios sistémicos» próprios deste subsetor. O que daqui se depreende é que não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural. Acresce que o regime não define critérios que imponham que uma parte relevante da receita da CESE se mantenha afeta ao financiamento de medidas tendentes a favorecer os interesses de todos os operadores económicos incluídos no seu âmbito de incidência subjetiva (e não isentos). Pelo contrário, na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos «objetivos que se revelem mais prementes», afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico – ou seja, ao financiamento de prestações públicas de que os operadores do setor do gás natural não podem, como se viu, presumir-se causadores ou beneficiários. Por fim, ainda que um terço da receita da CESE tivesse sido consignado ao «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», a circunstância de as tarefas que o tributo se destina a financiar não terem sido objeto de densificação mínima, não permite sequer apreender se e em que medida cada um dos subsetores em causa é visado pelas medidas a adotar pelo FSSSE. De facto, mesmo em tais condições – estritamente hipotéticas −, não se poderia presumir que um terço da receita da CESE tivesse sido destinado a medidas de que seriam especiais beneficiários os operadores do subsetor do gás natural, de modo a garantir um certo equilíbrio na participação pelos subgrupos de operadores dos benefícios presumivelmente proporcionados pelo FSSSE. A jurisprudência constitucional tem enfatizado que, em matéria de contribuições financeiras, o legislador tem o ónus de delimitar, com precisão, a base de incidência subjetiva do tributo. A este respeito, afirmou-se no Acórdão n.º 344/2019 o seguinte: «Nesta última espécie de tributos – contribuições – o princípio da equivalência vincula o legislador a definir o universo de sujeitos passivos que se presume provocar ou aproveitar a prestação administrativa. Não podendo dar-se por seguro que cada um dos concretos sujeitos passivos provoca ou aproveita a prestação pública – como ocorre nas taxas – exige-se que o legislador isole os grupos de pessoas às quais estejam presumivelmente associados custos e benefícios comuns. Assim, o princípio da equivalência projeta-se na estruturação subjetiva do tributo através do recorte de um grupo de pessoas que tem interesses e qualidades em comum, que tem responsabilidades na concretização dos objetivos a que o tributo se dirige, e que a prestação tributária seja empregue no interesse dos membros grupo. A propósito destes “requisitos de legitimação” dos tributos de estrutura bilateral grupal refere Sérgio Vasques que “só a provocação de custos comuns e o aproveitamento de benefícios comuns garantem a homogeneidade capaz de legitimar a sobretributação de um qualquer grupo social ou económico no confronto com o todo da coletividade, mostrando-se discriminatória uma contribuição cobrada na sua falta” (O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Almedina, pág. 528).» Ora, a partir de 2018, o legislador reduziu os objetivos a que a CESE se dirige em termos tais, que deixou de ser possível afirmar que as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural podem ser consideradas responsáveis pela sua concretização, e muito menos presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar. Resta, pois, concluir que a norma que integra o objeto do presente recurso viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.» Ressuma da fundamentação expendida nesta decisão a conclusão de que a CESE passou a constituir um verdadeiro imposto, em virtude de tal alteração de regime operada pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, ao regime de afetação das verbas do FSSSE, haver descaracterizado o «nexo paracomutativo entre certa categoria de sujeitos e as finalidades do tributo a tal ponto que deixou de ser possível, uma vez entrado em vigor o novo quadro legal, fundamentar a oneração do seu património no princípio da equivalência» (cf. declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 338/2023, bem como os Acórdãos n.os196/2024, 197/2024, 336/2024, 337/2024, 427/2024 e 443/2024). O juízo de censura jurídico-constitucional firmado no Acórdão n.º 101/2023 mostra-se como plena e integralmente transponível para a presente situação e para o juízo a firmar quanto à norma em causa nos presentes autos, já que a conclusão ali alcançada vale, por identidade de razão, para os tributos liquidados por referência ao exercício económico de 2019.” Destarte, o juízo de inconstitucionalidade do artigo 2.º, alínea d), do Regime Jurídico da CESE, por violação do artigo 13.º da CRP, decretado nos moldes expendidos anteriormente, implica que a liquidação impugnada fique sem suporte normativo, o que determina a sua anulação.” Tratando-se de situações similares à dos presentes autos, por economia de meios, visando a interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. art. 8.º n.º 3 do Código Civil), acolhemos a argumentação jurídica dos acórdãos citados, o que vale por concluir que o recurso procede e que a sentença recorrida, por padecer do erro de julgamento que lhe foi imputado, não se pode manter. Com efeito, a inconstitucionalidade da norma do art. 2.º d) do Regime Jurídico da CESE justifica, por si, a procedência do presente recurso e a consequente anulação do acto tributário impugnado, ficando prejudicada a apreciação da constitucionalidade suscitada pela Recorrente relativamente às restantes normas que indicou do regime jurídico da CESE.
Seguidamente, e em virtude da procedência da impugnação, há que apreciar os pedidos de “reembolso dos montantes que tenham sido ou venham entretanto a ser pagos”, “em caso de efectivo pagamento de qualquer montante, a declaração do direito da Impugnante ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT, de acordo com o princípio estatuído nos artigos 43º e 100º da LGT” e a “a declaração do direito da Impugnante ao pagamento da indemnização prevista nos artigos 53º da LGT e 171º do CPPT em virtude da prestação indevida de garantia para suspensão do processo executivo instaurado para cobrança coerciva do montante não pago voluntariamente”. Do probatório (ponto 7)) resulta que, a Impugnante apresentou fiança, no valor € 876.608,98, com vista à suspensão dos processos de execução fiscal. Ora, assim sendo, estes pedidos terão de improceder, na medida em que inexiste qualquer prova nos autos de que tenha sido efectuado o pagamento da liquidação anulada, inviabilizando, por si só e na presente data, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios. Com efeito, destinando-se os juros indemnizatórios a compensar o contribuinte pelo prejuízo causado pelo pagamento indevido de uma prestação tributária, sendo, portanto, pressuposto do seu reconhecimento o pagamento do tributo, não resultando, no caso concreto, demonstrado o pagamento da liquidação impugnada, não há que reconhecer o direito ao pagamento de juros indemnizatórios, carecendo de qualquer justificação legal a condenação no pagamento de juros indemnizatórios de forma condicional [vide, designadamente, Acórdãos do TCAS, proferidos nos processos nºs 194/20, e 2017/08, de 18.05.2023 e 14.01.2020, respetivamente]. Quanto à atribuição de indemnização por prestação indevida de garantia idónea, resulta do artigo 53.°, n.°s 1 e 2, da LGT que o “devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento”, sendo que este prazo não se aplica quando se verifique, designadamente, no processo de impugnação onde se discute a dívida a garantir, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo. Esta indemnização "tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei” (n.º 3 do art. 53.º da LGT). Por outro lado, o artigo 171.° do CPPT, estabelece que esta indemnização por "garantia bancária ou equivalente" indevidamente prestada tem de ser requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, devendo ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso, ou, em caso de o seu fundamento ser superveniente, no prazo de 30 dias após a sua ocorrência. E, portanto, estando demonstrado que a garantia prestada pela Recorrente para suspender a execução fiscal foi a fiança, o que há que apurar é se tal tipo de garantia se pode considerar “equivalente” à garantia bancária. Ora, o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, no proc. n.º 018/20.7BALSB, de 04-11-2020, pronunciou-se em sentido negativo, como segue: “A questão fundamental em oposição resume-se em saber se, para os efeitos indemnizatórios previstos no artigo 53.º da L.G.T., é de considerar a fiança entre as garantias (“bancária ou equivalente”) de que depende a sua aplicação. Resulta dos n.ºs 1 e 2 do art. 53.º da L.G.T. que se faz depender a indemnização prevista no n.º 3 de, entre outros requisitos, ter sido oferecida "garantia bancária ou equivalente" para suspender a execução. Tal como no acórdão fundamento se considera: “Trata-se, por conseguinte, de um direito indemnizatório muito específico, que a lei tributária prevê e atribui num procedimento muito simplificado, e que embora tenha a sua raiz na responsabilidade civil da administração tributária por danos decorrentes de uma actuação ilegal, parte de uma presunção de existência desses prejuízos nas situações em que o contribuinte se viu obrigado a prestar "garantia bancária ou equivalente" para suspender a cobrança de obrigação tributária que veio a revelar-se ilegal, dispensando-o de provar não só o nexo de imputação à actuação ilegal como, também, a existência de prejuízos, embora estabeleça um montante máximo para esta indemnização. Tal não significa, porém, que no caso de os prejuízos excederem esse limite máximo previsto no nº 3 do art.º 53º da LGT, o lesado não possa deles ser ressarcido. O direito indemnizatório por actos ilegais de entes públicos tem raiz constitucional, constituindo uma garantia constitucional face ao disposto no art.º 22º da Constituição, pelo que este limite fixado no nº 3 não pode afastar, sob pena de inconstitucionalidade, a possibilidade de o lesado exigir uma indemnização superior; só que, nesse caso, terá, como qualquer lesado por acto ilícito de entes públicos, de intentar acção judicial para efectivar a responsabilidade civil extracontratual da administração tributária, onde terá de alegar e provar a dimensão do dano e o montante concreto do prejuízo que sofreu, designadamente com a garantia que foi obrigado a prestar para suspender a cobrança coerciva da obrigação tributária enquanto se encontrava em discussão a legalidade do acto de liquidação donde esta emergira. Por outro lado, é inequívoco, perante o teor do art.º 53º da LGT e do art.º 171º do CPPT, que para os efeitos indemnizatórios aí previstos apenas são consideradas as "garantias bancárias ou equivalentes". O que se compreende, na medida em que nas garantias bancárias e equivalentes (como é o seguro-caução) o contribuinte suporta forçosamente uma despesa, cujo montante vai aumentando em função do período de tempo durante o qual é mantida, e, portanto, a presença de prejuízos é certa e infalível, porque inerente a este tipo de garantia. E porque a sua quantificação é fácil de fazer, o legislador quis dar ao lesado a possibilidade de obter, de forma imediata e praticamente automática, o reconhecimento do direito indemnizatório, ainda que limitado ao montante máximo previsto no nº 3 do art.º 53º da LGT. Como refere A. LIMA GUERREIRO, em anotação ao art.º 53º na sua "Lei Geral Tributária Anotada", «o presente preceito compreende apenas o prejuízo sofrido pela prestação de garantia bancária ou equivalente (como o seguro-caução). Não abrange o prejuízo sofrido pela prestação de outro tipo de garantia (ver, por exemplo, a constituição de penhor ou hipoteca legal), o que resulta da muito maior dificuldade em se configurar então a existência de um prejuízo efectivo sofrido pelo executado nesse tipo de circunstâncias, o que não significa que tal não possa ocorrer, devendo, então, o ressarcimento do lesado fazer-se pelos meios indemnizatórios gerais» - pág.245. Também JORGE LOPES DE SOUSA, na obra "Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais - Notas Práticas", refere que equivalente à garantia bancária «serão todas as formas de garantia que impliquem para o interessado suportar uma despesa cujo montante vai aumentando em função do período de tempo durante o qual aquela é mantida. Dos meios de garantia expressamente previstos no art.º 199º do CPPT, será o caso do seguro-caução, cujo regime está previsto nos arts 6º e 7º do DL nº 183/88, de 24 de Maio». E, como adianta no seu "Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado", voI. III, 6ª ed., pág. 346, a restrição do dever de indemnização aos casos de prestação de garantia bancária e garantias equivalentes, como o seguro-caução, vale, tão-somente, quanto a esta indemnização automática, derivada da mera verificação dos pressupostos previstos no artigo 53º nºs 1 e 2 da LGT, independentemente da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, regulada pela Lei nº 67/2007. E daí que a garantia prestada sob a forma de fiança não se encontre abrangida por estes preceitos legais que atribuem e fixam um direito indemnizatório de forma praticamente automática num procedimento simplificado, o que se justifica por a fiança ser, por regra, prestada gratuitamente, isto é, sem qualquer contraprestação especial destinada a retribuir a obrigação assumida pelo fiador, ainda que nada impeça que seja remunerada (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol.I, pág.617.).
O que não significa que o lesado nos seus direitos patrimoniais pela prestação desta garantia (ou de outras, como a hipoteca e penhor), não possa exigir a reparação dos prejuízos que efectivamente sofreu, por se tratar de direito que lhe é assegurado não só pelo art.º 22º da Constituição como pela Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (Lei nº 67/2007, de 31.12). Terá, porém, de intentar para o efeito acção judicial para efectivar essa responsabilidade civil da administração tributária, onde terá de invocar e provar todos os danos que sofreu, tal como se deixou, aliás, frisado na sentença recorrida.” Acresce referir que no mesmo sentido decidiu o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-10-2012, proferido no processo n.º 0528/12, no que respeita à garantia na modalidade de hipoteca, a qual também não foi tida por equivalente a garantia bancária. De tudo o que antecede resulta ser ilegal a decisão arbitral recorrida no segmento decisório respeitante a “Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de uma indemnização pela prestação de uma garantia, em valor a determinar em execução de sentença”, que nessa parte é de anular. E do exposto resulta ainda que, para os efeitos indemnizatórios previstos no artigo 53.º da L.G.T., não é de considerar a fiança entre as garantias (“bancária ou equivalente”) de que depende a sua aplicação.”
Ora, concordando-se inteiramente com esta jurisprudência, também nós entendemos que a fiança não é equiparável à garantia bancária para efeitos de indemnização por prestação de garantia indevida. Assim sendo, e sem necessidade de desenvolvimentos adicionais, improcede, também, o identificado pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.
Impõe-se, ainda, analisar o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, considerando que o valor da causa é de € 692.761,39. Tal pedido já havia sido feito no tribunal recorrido, tendo o mesmo sido concedido. Ora, não vê este Tribunal razões para divergir do ali, então, decidido, considerando “a simplificação da tramitação decorrente da ausência de fase instrutória e a conduta das partes em litígio, situada dentro dos padrões da normalidade e dos limites da boa-fé processual e, bem assim, ponderando o elevado valor da causa e o serviço concretamente prestado, à luz do princípio da proporcionalidade” e, bem assim, o facto de as questões de fundo terem sido resolvidas fazendo apelo a jurisprudência dos tribunais superiores. Deste modo, deve concluir-se que se justifica esta intervenção moderadora, assim devendo aplicar-se a dispensa de pagamento prevista no artigo 6.º, nº 7, do RCP, o que seguidamente se determinará. III. DECISÃO Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em: i) conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e julgar procedente a impugnação, com a consequente anulação dos acto tributários impugnados; ii) julgar improcedente o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida, bem como dos pedidos de reembolso do imposto indevidamente pago e respectivos juros indemnizatórios.
Custas pela Recorrida, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça (sem taxa de justiça nesta instância uma vez que não contra-alegou).
Lisboa, 20-03-2025 _________________ (Teresa Costa Alemão)
__________________ (Patrícia Manuel Pires)
___________________ (Ângela Cerdeira) |